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UMA BELA HISTÓRIA DE NATAL

UMA BELA HISTÓRIA DE NATAL

O NASCIMENTO DE JESÚS SEGUNDO O PINTOR ESPANHOL BARTOLOMÉ ESTEBAN MURILLO (1617-1682)

“Havia pastores que estavam nos campos próximos e durante a noite tomavam conta dos seus rebanhos. E aconteceu que um anjo do Senhor lhes apareceu e a glória do Senhor resplandeceu ao redor deles; e ficaram aterrorizados. Mas o anjo lhes disse: ‘Não tenham medo. Estou lhes trazendo boas novas de grande alegria, que são para todo o povo. Hoje, na cidade de Davi, lhes nasceu o Salvador, que é Cristo, o Senhor. Isto lhes servirá de sinal: encontrarão o bebê envolto em panos e deitado numa manjedoura’. De repente, uma grande multidão do exército celestial apareceu com o anjo, louvando a Deus e dizendo: ‘Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade’ " (Lucas 2, 8-14).

O relato evangélico de Lucas, que acabo de citar, simplesmente cindiu a história humana em duas grandes épocas: Antes de Cristo e Depois de Cristo. Essa é uma das duas colunas sobre as quais repousa a nossa Civilização Ocidental. A primeira coluna, e à qual estou fazendo referência agora, é a encarnação de Cristo e a consequência que decorreu desse fato histórico é esta: fomos salvos por Ele. Nós, seres humanos, que tínhamos sido criados à imagem e semelhança de Deus, fomos convidados, através de Cristo, a sermos os filhos do Altíssimo. As grandes revoluções e as reformas sociais decorreram desse fato primordial. Pois se somos filhos de Deus, por que há uns que têm tudo e outros que não? Por que uns desfrutam de direitos, enquanto outros amargam a privação deles?

Em relação a esse fato, assim escrevia Alexis de Tocqueville (1805-1859) em A democracia na América: “Todos os grandes escritores da Antiguidade faziam parte da aristocracia dos senhores, ou pelo menos viam essa aristocracia estabelecida sem contestação ante os seus olhos; o seu espírito, depois de ter-se expandido em várias direções, achou-se, pois, limitado por aquela, e foi preciso que Jesus Cristo viesse à terra para fazer compreender que todos os membros da espécie humana eram naturalmente semelhantes e iguais”.

Falava anteriormente que duas são as colunas sobre as quais repousa a Civilização Ocidental. A primeira, e que acabo de mencionar, herdada da Tradição Bíblica, é que todos temos a mesma dignidade de sermos filhos de Deus. A segunda coluna é herdada da Civilização Grega e consiste em que todos estamos dotados de razão e que tudo, no nosso devir, deve ser esclarecido à luz dela. Não há mais uma tradição que se levante sobranceira sobre a nossa vida, sem que possamos peneirá-la à luz da razão. A autoridade, para poder se consolidar deve, portanto, ser razoável, ou seja, ser passível de aprovação pela nossa razão. A anomia e o absolutismo estão condenados de entrada. A razão é fonte de esclarecimento e de estabilidade na nossa vida social. À sua luz devem-se abrir todos os códigos. E a aplicação deles, à vida humana, deve estar presidida pela luz da racionalidade.

Immanuel Kant (1724-1804), de forma surpreendente e genial, formulou os imperativos categóricos da moral moderna, a partir da apreensão, pela razão, dos mandamentos da Lei de Deus. Mas preservou, não invalidou essa origem divina. Kant conseguiu formular a perspectiva transcendental para o conhecimento humano. Temos, através dele, sim, acesso à realidade. Mas dela formamos uma representação, a partir do a-priori da nossa razão. Essa é a explicação transcendental de Kant sobre o conhecimento, tendo abandonado a antiga metafísica de origem escolástica e aristotélica, que pressupunha que temos acesso, pela nossa razão, à coisa em si (ou à substância das coisas). No terreno da moral, segundo Kant, devemos formular os imperativos categóricos a partir da apreensão, pela nossa razão, da mensagem bíblica, que faz do homem filho de Deus redimido por Cristo. O mandamento central do Cristianismo, de amor ao próximo, se traduz, para Kant, no imperativo categórico de respeito à pessoa humana, que não pode ser tratada como meio para atingir um determinado fim, mas que é fim em si mesma.

Jean Jacques Rousseau (1712-1778), fez uma leitura excludente da moral moderna: esta não provêm da fé cristã como seu fundamento essencial, mas é unicamente formulada a partir das conveniências temporais daqueles que governam. Rousseau substituiu o Cristianismo por uma religião civil inventada por ele, que foi formulada na sua obra O Contrato Social (1762). O ponto fundamental da nova religião era este: a felicidade humana decorre da unanimidade de todo o corpo social ao redor do Legislador. Ora, se a unanimidade é o fundamento da felicidade geral, a dissidência a impede. Consequência: os dissidentes precisam ser eliminados por qualquer meio que seja útil para essa finalidade. Aí entra a ideia perversa de que compete ao Legislador banir a dissidência e formar um corpo social a partir da unanimidade ao redor dos que governam. Essa é a origem da “democracia totalitária”, que se sitúa no início do totalitarismo hodierno.

A primeira manifestação da unanimidade rousseauniana foi a Revolução Francesa, à cuja testa se colocaram os jacobinos, alegando as razões inventadas por Rousseau para justificar a unanimidade. Inventou-se a forma eficiente de acabar com a dissidência, cortando literalmente as cabeças dos dissidentes. A guilhotina, que funcionou sem descanso durante a Revolução de 1789 e na época do Terror que seguiu àquela, deu conta da tarefa de garantir a unanimidade. A lógica de nivelamento da guilhotina funcionou plenamente, inclusive chegando a cortar a cabeça dos seus inventores. Marat foi esfaqueado na banheira, mas Saint-Just, Robespierre e outros jacobinos foram para a guilhotina. Ficou patente que a ordem social a partir da unanimidade é uma coisa absurda. O período napoleônico, que seguiu à Revolução e ao Terror, ainda manteve a ideia da felicidade como decorrente da unanimidade. Mas, após a queda do ditador-imperador, quando da sua derrota em Waterloo em 18 de junho de 1815 e com a sua morte, em 1821, como prisioneiro dos Ingleses na Ilha de Santa Helena, a maluca ideia de felicidade social decorrente da unanimidade entrou em declínio e foi substituída pela ideia da progressiva construção da ordem social, mediante o consenso dos cidadãos expresso nas maiorias parlamentares.

Como toda ideia maluca tem seguidores, o absolutismo de Rousseau ressuscitou no século XX, ao ensejo dos totalitarismos Nazi-fascista e Comunista. O totalitarismo soviético deixou uma soma de 100 milhões de mortos, pelo mundo afora. O modelo totalitário nazi-fascista eliminou aproximadamente 6 milhões de judeus, sem contar as baixas decorrentes da 2ª Guerra Mundial iniciada pelos nazistas, calculadas em 60 milhões de mortos, em escala planetária. No Brasil, o rousseaunianismo se materializou nas ditaduras castilhista e getuliana as quais, inspiradas na “ditadura científica” de Augusto Comte (1798-1857), eram tributárias, também, do totalitarismo rousseauniano de busca da unanimidade ao redor do Executivo hipertrofiado. À luz desse modelo, não havia oposição, sendo que qualquer manifestação desta era tratada como ameaça ao Estado. “Aos nossos opositores (tratados como inimigos) só resta uma sincera penitência”, era o princípio posto em prática por Júlio de Castilhos (1860-1904).

No Brasil, até algum tempo atrás, não havia mais, como nos tempos do absolutismo, ordens secretas provenientes do soberano absoluto, aquelas famosas lettres cachées (decretos secretos) à maneira de Luís XIV (1638-1715), que condenavam a-priori os desafetos da ordem estabelecida. Mas, em virtude do princípio formulado por Millôr Fernandes (1923-2012) de que “as ideologias, quando ficam bem velhinhas, vêm morar no Brasil”, o PT encarregou-se de encarnar, de novo, a tendência de uma ditadura de cunho totalitário. Com a queda do comunismo na União Soviética, Lula e Fidel Castro fundaram o Foro de São Paulo, para garantir a pervivência do comunismo, a partir da América Latina (em 1990).

Mesmo que queiram os autocratas desta republiqueta em que o PT tenta converter as instituições brasileiras, não valem “decretos secretos” ou decisões incomunicáveis: tudo deve ser justificado à luz das leis e da razoabilidade delas na sua aplicação. A caneta de Alexandre de Moraes pode muitas coisas, menos se sobrepor à lei da razão que preside o universo jurídico. Complementando o fundo ético que deve presidir a ideia de Justiça Social, Tocqueville escrevia ao seu amigo Orglanes, em 1834: “Eu creio que cada um de nós deve prestar contas à sociedade, tanto de seus pensamentos quanto de suas forças. Quando vemos nossos semelhantes em perigo, é obrigação de cada um correr em socorro deles”.

Termino fazendo um paralelo imaginário. Se Cristo viesse ao mundo para se encarnar hoje, onde escolheria para nascer? No relato do evangelista Lucas, sabemos que o Salvador escolheu o mais simples dos cenários: um presépio e uma manjedoura como berço, ao redor da qual estavam Maria, José, os pastores e alguns animais do campo. Onde nasceria o Redentor nos dias de hoje? Na grandiosa sala do Supremo, em Brasília, rodeando o berço e a Sagrada Família uma solene corte de juízes togados de preto? Talvez o Redentor escolhesse, hoje, um dos centos de acampamentos que foram erguidos pelo povo à frente dos quartéis do Exército pelo Brasil afora, onde de forma pacífica, algumas famílias inteiras, pequenos e grandes empresários do agro, pessoas da classe média e das classes populares, de diferentes raças, desempregados, indígenas de diversas tribos irmanadas pelas mesmas lonas, pelas mesmas refeições, e pela mesma esperança de justiça, entoando cânticos e orações de cunho ecumênico, tentam explicitar o seu protesto por uma eleição que consideram fraudada, dando vazão também à sua esperança por um Brasil democrático e livre.

Qual seria o sentimento a ser exigido dos que participariam do cenário em que o Salvador haveria de nascer? O Evangelista nos dá a dica, no final do texto relativo ao nascimento de Jesus: “Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade”. Ou seja: reconhecimento da grandeza de Deus, de quem esperamos a salvação e sentimento de paz (de “boa vontade”) em face dos nossos semelhantes, aos quais estendemos a nossa mão e o nosso amor. Nada de black blocs nem de ódio decorrente da luta de classes.

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Recebi do amigo Eiiti Sato o seguinte comentário em relação ao meu texto sobre o Natal. Agradeço ao Eiiti pela sua gentileza.

Como de hábito, seus textos são inspiradores no sentido de chamar nossa atenção para aspectos importantes de pensamentos e de desenvolvimentos que marcam a sociedade e a própria condição humana, de uma forma geral. Nesta reflexão publicada em seu blog, você aborda as contribuições do cristianismo ao pensamento social e político, que definiram o que chamamos de Civilização Ocidental, responsável pela introdução, na convivência social, de valores como a tolerância e a democracia como base da ordem.

Ouso acrescentar uma outra contribuição intensamente vivida, sobretudo nesta época de fim-de-ano, mas pouco lembrada em relação à "Bela História do Natal": o conteúdo estético da celebração. Hoje, em toda parte do mundo, uma representação do presépio ou de uma cena típica de Natal é a imagem de tudo aquilo que desperta o sentimento da beleza pela prática do amor ao próximo, da solidariedade e da tolerância. Se houvesse um grande cataclismo capaz de aniquilar as civilizações de nosso tempo, daqui a mil anos, depois que a humanidade houvesse apagado os registros da história até este início do século XXI, algum arqueólogo poderia desenterrar imagens e sons do Natal de nosso tempo e, provavelmente, ele e seus contemporâneos iriam olhar com inveja não terem vivido essas imagens e esses sons.

O escritor e pensador Virgil Gheorghiu (1916-1992), em um de seus livros, conta a história de um pintor de ícones que dizia que, para pinta-los de forma apropriada, era preciso que o artista estivesse em jejum e em paz com sua consciência pois, pintar ícones era, no fundo, tentar reproduzir o Céu por meio de figuras e de cores "tout ce qui est beauté appartient au ciel", argumenta o personagem do romance.

Se existe um céu, ele só pode ser parecido com as imagens, os sons e as histórias evocadas pelo Natal. Também vale relembrar o belo livro de Thomas Cahill How the Irish Saved Civilization, no qual descreve e explica a importância de Saint Patrick e dos monges de seu tempo (sec. IV-V) que, pela fé, pacientemente registraram em livros belamente escritos, acompanhados de ilustrações marcantes, as orações de seu tempo e o legado vindo da antiguidade. Por suas mãos muita sabedoria dos antigos não se perdeu e a Irlanda tornou-se "a ilha dos santos e dos scholars".

Talvez isso tudo seja uma pista para entender a frase "mas, tudo que permanece, os poetas o fundam", deixada pelo poeta Hölderlin (1770-1843), que era uma mente continuamente perturbada pela busca do absoluto em sua arte.

Um forte abraço, e Feliz Natal,

Eiiti