Vivemos neste governo petista tempos paradoxais. A elite do poder – e como tal entendo o consórcio STF-Poder Executivo que passou a governar como se não existisse legislativo e como se na Constituição não figurasse a tripartição de poderes públicos - pressupondo que não haveria mais o jogo de pesos e contrapesos entre os poderes para que vingasse, soberana, a vontade popular. Uma volta de duzentos anos ao absolutismo pombalino! É definitivamente lamentável a versão de ditadura, que foi caracterizada como o exercício “legítimo” de um novo Poder Moderador, que tem, entre outros afazeres, a pesada labuta de “formatar a opinião pública brasileira”!
Essa realidade nos incomoda como um pano de fundo trágico que deu ao traste com todas as nossas conquistas democráticas. A calamitosa situação tem sido criticada de várias maneiras, embora o consórcio absolutista tenha desfraldado uma política sistemática de perseguição contra as pessoas mais variadas, que se têm levantado contra, desde os corajosos parlamentares ameaçados e cassados nos seus mandatos, até pessoas do comum do povo, que têm sido presas por expressarem o seu desacordo com a forma em que o Supremo tem conduzido a resposta aos protestos populares. Jornalistas, donas de casa, simples trabalhadores ambulantes, desempregados, idosos, etc. foram colocados no mesmo saco de gatos que constituiu a prisão massiva de mais de 1500 manifestantes, ao ensejo dos protestos de 8 de janeiro de 2023. Foi constrangedor, para dizer o menos, observar os filmes e as fotografias que mostravam um amontoado de pessoas comuns - famílias inteiras, com crianças, com pessoas adoentadas, todos presos num grande recinto como se fossem animais, tendo sido negada a eles a prestação de serviços básicos de higiene e de alimentação. O preso político Cleriston da Cunha já faleceu em decorrência de não ter tomado medicação para a pressão arterial. Confesso que chorei ao ver essas imagens e senti profunda vergonha de ser brasileiro, não porque quisesse amesquinhar a minha condição civil, mas pelo fato de observar o que o governo fazia com semelhantes, entre os quais poderíamos estar eu e a minha família.
Uma figura, talvez, resuma o sem-sentido da atual onda de perseguição aos dissidentes: a prisão e o julgamento sumário daquela jovem mulher que, para expressar o seu descontentamento, escreveu, com inofensivo batom, a frase pronunciada por um dos supremos juízes quando foi abordado pelos que protestavam nas ruas de Nova Iorque contra o autoritarismo em ascensão, circunstância na qual o supremo juiz respondeu: “perdeu mané, não amola”. Ora, essa frase, escrita com batom na estátua da Justiça, diante do Palácio do Supremo Tribunal Federal, valeu à manifestante pesada condena por terrorismo! Terrorismo, convenhamos, praticado não por ela, mas pelos que a prenderam e condenaram! Tremenda tergiversação dos fatos!
Dizia o grande Tocqueville que os espíritos absolutistas odeiam a liberdade dos outros, mas defendem, com unhas e dentes, a própria. A razão pela qual os absolutistas gostam tanto da própria liberdade mas menosprezam a dos outros, radica, segundo o pensador francês, no fato de que consideram indignos os seus semelhantes das benesses da liberdade, enquanto eles próprios se julgam dignos para desfrutarem as vantagens de serem livres. Os absolutistas consideram-se pertencentes a uma casta superior, dignos, portanto, de serem livres e de viver como lhes aprouver.
A respeito desse despropósito de alguém se considerar a si mesmo superior ontologicamente aos seus semelhantes, tendo, em consequência, pleno e exclusivo direito de ser livre, Tocqueville considerava que é uma pretensão que não tem nada a ver com as sociedades ocidentais modernas, que incorporaram o ideal da liberdade e da democracia como aberto a todas as pessoas.
A respeito, escrevia Tocqueville: “Todos os grandes escritores da Antigüidade faziam parte da aristocracia dos senhores, ou pelo menos viam essa aristocracia estabelecida sem contestação ante os seus olhos; o seu espírito, depois de se haver estendido por vários lados, achou-se, pois, limitado por aquela, e foi preciso que Jesus Cristo viesse à terra para fazer compreender que todos os membros da espécie humana eram naturalmente semelhantes e iguais [Tocqueville, A Democracia na América, 2ª edição brasileira, tradução, prefácio e notas de N. Ribeiro da Silva, Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1077, p. 329].
Observo, pelos noticiários, que o atual governo petista e o STF tentam desqualificar as iniciativas parlamentares que tendem a resgatar um pouco de civilidade na forma de governar, limitando, por decisão do Congresso, a tomada de decisões monocráticas por parte do Supremo. Ora, ora. Essa providência seria o mínimo que deveria ser feito nestes momentos, se é que desejamos manter o nome de República para o sistema que nos governa. Sinto vergonha profunda em face daquilo em que se tornou o nosso convívio nacional, que não merece o nome de República. Tocqueville definia esse modo de convívio político, quando estudou a democracia norte americana, como “o reino tranquilo da maioria”. A República maltrapilha em que se converteu a nossa Pátria, poderia ser definida com as palavras com que o grande pensador francês identificava aquelas comunidades políticas que não respeitavam os direitos básicos dos seus cidadãos, a República de faz de conta, que ele definia como “o reino intranquilo da minoria”. Ora, reino intranquilo porque não poderíamos imaginar o que aconteceria com Lula ou com os Ministros do Supremo, se saíssem na rua para tomar cafezinho no bar da esquina.