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TÓPICOS ESPECIAIS DE FILOSOFIA MODERNA - CAPÍTULO 6º - FILOSOFIA E ESPIRITUALIDADE JUDAICA NO PENSAMENTO DE BARUCH ESPINOSA

TÓPICOS ESPECIAIS DE FILOSOFIA MODERNA - CAPÍTULO 6º - FILOSOFIA E ESPIRITUALIDADE JUDAICA NO PENSAMENTO DE BARUCH ESPINOSA

URIEL DA COSTA ENSINANDO AO JOVEM ESPINOSA - (QUADRO DE SAMUEL HIRSHENBERG - 1901)



BARUCH DE ESPINOSA (1632-1677), "PONTO ALTO DA FILOSOFIA MODERNA" SEGUNDO HEGEL

A meditação de Baruch Espinosa (1632-1677) é, no sentir de Hegel (1770-1831), o “ponto alto da Filosofia Moderna”. Tamanho elogio, feito pelo fundador da História da Filosofia, não é gratuito. A metafísica do pensador judeu-holandês corresponde, junto com a de Leibniz (1646-1716), à mais acabada síntese filosófica do século XVII, ao pretender resolver os problemas do dualismo cartesiano e da contraposição razão / tradição.

No caso da meditação luso-brasileira, o aprofundamento na filosofia espinosana é especialmente proveitoso, porquanto ela representa uma vertente que permanece imanente à cultura portuguesa, como acuradamente tem sido mostrado por estudiosos da talha de Joaquim de Carvalho (1892-1958), Jesué Pinharanda Gomes (1939-2019) e Alcântara Nogueira (1918-1989).

Pretendo situar a Filosofia de Espinosa no contexto da espiritualidade judaica moderna. Na busca dessa finalidade, desenvolverei os seguintes itens: I – A espiritualidade judaica. II - Contexto histórico-cultural do pensamento de Baruch Espinosa. III – As teses fundamentais de Espinosa na Ética. IV – As teses fundamentais de Espinosa no Tratado Político. V - Concluirei destacando os Pontos centrais da filosofia espinosana, em face da espiritualidade judaica moderna.

I – A espiritualidade judaica.

A religião de Israel caracterizou-se, fundamentalmente, pelo fato de ser código moral formulado ao ensejo da exigência de santidade, que decorre da Aliança celebrada por Deus com o povo escolhido. A expressão espiritualidade judaica pretende dar conta da índole dessa cultura, naquilo que tem de essencial e mais característico. Singulariza a cultura judaica o fato de haver criado uma religião de caráter moral. Com efeito, o Pacto ou Aliança estabelecida entre Jahvé e o povo de Israel estrutura-se em torno ao Decálogo de Moisés [cf. para esta primeira parte, Paim, Prota, Vélez, 1999:12-42].

Na Torah (Pentateuco), Moisés convoca Israel e lhe diz: “Escuta, Israel, as leis e os preceitos que hoje te faço ouvir, aprende-os e põe-los em prática. O Senhor, nosso Deus, firmou uma Aliança conosco no Horeb. Não foi com os nossos pais que o Senhor contraiu essa Aliança, mas conosco, que hoje estamos aqui ainda vivos. O Senhor falou-nos sobre a Montanha, face a face, do meio do fogo. Eu estava então entre o Senhor e vós para vos transmitir as suas palavras, porque, aterrorizados pelo fogo, não vos aproximastes da Montanha”.

No Decálogo, todos os mandamentos são de índole moral, mesmo aqueles expressamente religiosos, como o primeiro: Amar a Deus sobre todas as coisas, na fórmula consagrada; ou o segundo, na tradição católica; terceiro, na protestante: Não tomar seu Santo Nome em vão. Esses mandamentos podem perfeitamente ser aproximados de ideais morais, decorrentes da Santidade numinosa que emana de Jahvé. Nessa hipótese, o primeiro equivaleria ao ideal de perfeição, como ápice da moral, remetendo o segundo à noção de responsabilidade.

O profetismo, que é outro fato capital na história de Israel, serviu sobretudo para acentuar esse caráter moral. Em sua pregação, as desgraças advindas ao povo judeu são provocadas por Jahvé em revide à dissolução dos costumes e ao abandono da religião tradicional. Resumindo as conclusões de Max Weber (1864-1920) acerca do fenômeno profético, escreve Reinhard Bendix (1916-1991): “Livres da magia e das especulações esotéricas, dedicados ao estudo da lei, vigilantes no esforço de fazer o que era justo aos olhos do Senhor, na esperança de um futuro melhor, os profetas estabeleceram uma religião de fé, que sujeitava a vida diária do homem aos imperativos de uma lei moral ordenada por Deus. Deste modo, o judaísmo antigo ajudou a criar o racionalismo moral da civilização ocidental” [Bendix, 1986: 209].

Além do texto escrito e consagrado da Torah, os judeus criaram o Talmud, que continha regras de comportamento. Trata-se de uma obra coletiva, em cuja elaboração teriam participado mais de dois mil sábios e exegetas, ao longo de quase um milênio, entre 450 a.C e 500 da nossa era. Seu propósito consistia em atender às necessidades práticas e às novas situações. O texto integral divide-se em seis ordens (como, por exemplo, as relativas às festividades, às mulheres, às coisas sagradas, etc.), que constituem 63 tratados, subdivididos em 525 capítulos. Alguns desses textos foram utilizados para leitura coletiva, aos sábados, servindo para promover, entre os judeus, na expressão de J. Guinsburg, “verdadeira impregnação na essência do judaísmo” [Guinsburg, 1968: 168].

A preservação da Torah como código religioso-moral, que exprimia as exigências comportamentais decorrentes do ideal de santidade revelado por Jahvé, permitiu ao povo de Israel manter a identidade nos momentos de confronto com outras culturas, como no Exílio da Babilônia (a partir de 598 a.C.) e no período da diáspora (a partir da destruição do Templo de Jerusalém pelos Romanos, no ano 70).

A respeito da preservação da identidade de Israel mediante a preservação das tradições ancestrais, durante o Exílio da Babilônia, escreve Georges Auzou: “A Torah era o melhor meio de se distinguir, como grupo étnico e religioso, dos demais povos com os quais (Israel) devia conviver no desterro. Não comer exatamente como as outras pessoas, ter regras próprias para distinguir entre o profano e o sagrado, possuir dias festivos especiais e principalmente o sábado, praticar a circuncisão e ser estrito quanto às leis da união conjugal: eram outros tantos pontos que traçavam uma linha de demarcação, e colocavam os fiéis de Jahvé ao abrigo das contaminações pagãs. De outro lado, não há dúvida - como observamos nos profetas do Exílio – de que os israelitas sentiam mais vivamente do que nunca a noção da Santidade de Deus; e que, com isso, as observâncias religiosas adquiriam um caráter mais absoluto. A sólida fixação delas significou, pura e simplesmente, para o povo judeu, poder se conservar como tal, apesar das circunstâncias adversas” [Auzou, 1961: 238].

Correspondeu especialmente aos Profetas e Sacerdotes explicitar o duplo caráter transcendente e moral da Torah. Um profeta do ciclo do Exílio babilônio, Ezequiel, apela para a conversão interior que implica a aceitação da Torah, num processo de interiorização do imperativo moral: “Eu lhes darei um só coração, diz Jahvé, eu colocarei neles um espírito novo, e lhes tirarei o seu coração de pedra e lhes darei um coração de carne (...). Eles serão o meu povo e eu serei o seu Deus” [Ezequiel, 11: 19-20; 18: 31; 36: 26]. Essa profunda renovação interior em nada mitiga a responsabilidade comum de todos [Ezequiel, 16: 23] e incide diretamente sobre a responsabilidade de cada indivíduo [Ezequiel, 18].

Em relação à preservação da identidade de Israel, mediante a Torah, no período da diáspora, o exegeta A. Tricot salientou, assim, o papel unificador do código religioso-moral: “O judaísmo tinha uma superioridade manifesta sobre as religiões do mundo greco-romano: apresentava uma doutrina muito firme e elevada acerca de Deus, um culto completamente espiritual, sem imagens da divindade, uma moralidade superior e um código de regras muito precisas sobre o modo de viver” [Tricot, apud Robert-Feuillet, 1965: 114].

Tudo leva a crer que tenha sido justamente o caráter moral da religião judaica que há de ter contribuído para assegurar a unidade dos judeus, no transcurso da diáspora. Durante esse dilatado período, a sinagoga, além de centro religioso destinado à prática do culto e de um local de estudos abrigou, ainda, um tribunal rabínico. Vale dizer: os judeus dispunham de um instrumento plenamente autônomo, em relação às estruturas jurídico-administrativas a que estavam submetidos, enquanto cidadãos, capaz de zelar tanto pela preservação do legado místico, como pela observância dos preceitos morais.

Atingida essa preservação milenar, assegurou-se a plena diferenciação da espiritualidade judaica em relação à cultura ocidental. Nesta, o contato com a civilização grega levou, sucessivamente, ao empenho de promover distinções entre moral e religião. Enquanto na tradição judaica, os grandes eruditos como Maimônides (1138-1204) ou Espinosa não cogitaram de empreender esse caminho, mas apenas de proporcionar uma versão do judaísmo adequada à cultura do seu tempo, sem, no entanto, renegar a tradição no que tinha de essencial: a indissolubilidade, a verdadeira simbiose entre moral e religião. Isso sem prejuízo da distinção que se pode estabelecer no posicionamento deles. Enquanto Maimônides descobre no Antigo Testamento uma filosofia, Espinosa encontrará, nele, mais uma religião e uma política [cf. Paim, Prota, Vélez, 1999: 12-42; Domínguez, 1986: 24].

II - Contexto histórico-cultural do pensamento de Baruch Espinosa.

Baruch Espinosa nasceu em 1632, na cidade de Amsterdã e morreu em 1677 em Haia. Em novembro desse mesmo ano foi publicada a maior parte dos seus escritos, sob o título de Obras Póstumas. Joaquim de Carvalho esclareceu, com precisão, as origens judaico-portuguesas de Baruch Espinosa. Era filho de Miguel Espinosa (natural de Vidigueira, Portugal) e de Hanna Debora Espinosa, segunda mulher de Miguel. Hanna Debora muito provavelmente era portuguesa. Tendo falecido quando Baruch tinha apenas cinco anos de idade, a educação da criança ficou a cargo da madrasta, Ester Espinosa, natural de Lisboa. Embora o nosso autor conhecesse vários idiomas, foi o português a sua língua familiar. A respeito, escreve Joaquim de Carvalho: “O hebreu, o latim e o holandês foram sem dúvida os instrumentos da sua formação filosófica e científica; mas temos por certo que a língua familiar da puerícia e adolescência foi o português”.

A situação dos judeus da Península Ibérica manteve-se num clima de relativa tolerância até o final do século XIV. Os reis, de origem visigótica, toleraram a presença deles, com alguns momentos de constrangimento, em que os israelitas eram forçados à conversão, dando ensejo à praxe do “criptojudaísmo”. Um exemplo desses momentos de constrangimento foram, sem dúvida, os massacres de 1391. Mas, em que pese o clima negativo desses momentos de perseguição, o ambiente vivido pelos judeus da Península Ibérica era bem diferente do enfrentado por eles nas regiões banhadas pelo rio Reno, nos principados alemães notadamente, onde a perseguição contra os descendentes do Povo de Israel, denominados de asquenazes, era constante. Essa relativa tolerância ibérica talvez explique o fato de os judeus espanhóis e portugueses, denominados de sefarditas, se considerarem cidadãos dos seus respectivos países, bem como o fato, também indiscutível, da participação deles em altos escalões da administração.

Os Reis Católicos, no entanto, complicaram a situação dos judeus peninsulares, ao obrigá-los a adotar a conversão ou a optar pelo exílio. Alguns judeus espanhóis se refugiaram em Portugal, mas essa opção tornou-se breve, em decorrência do fato de que, em 1497, medidas semelhantes foram adotadas neste reino, embora com maior tolerância em face dos judeus conversos. Estes, na Espanha, enfrentavam crescentes preconceitos que os isolavam da vida pública, sendo comuns, no decorrer do século XV (a partir da legislação conhecida como Sentencia Estatuto de 1449), as inquirições genealógicas em busca da “pureza racial” de um candidato a cargos públicos ou às universidades.

A dinastia dos Áustrias chegou ao poder na Espanha, em 1520, com Carlos V (1500-1558), inspirada num projeto de império católico que fez frente ao protestantismo, ao islamismo e ao judaísmo. Em 1556, herdou o trono espanhol Filipe II (1527-1598). Com a anexação à Espanha do Reino de Portugal (que se estendeu ao longo do período compreendido entre 1580 e 1640), as perseguições contra os judeus peninsulares se exacerbaram. Tendo sido publicado por Henrique IV da França (1553-1610) o Edito de Nantes em 1598, os judeus espanhóis e portugueses refugiaram-se nessa e em outras cidades francesas. Com o fim da vigência do Edito de Nantes em 1685, revogado por Luís XIV (1638-1715), os protestantes e os judeus que tinham se acolhido a essa trégua, passaram a se refugiar, maciçamente, na Holanda.

Convém destacar que as Províncias do Norte da Coroa espanhola – Bélgica e os Países Baixos – tinham-se rebelado contra o jovem rei Filipe II (1527-1598) em 1556, tendo adotado o calvinismo e proclamado a liberdade religiosa. Essa rebelião foi se estendendo e ganhando vulto até a Proclamação da República das Províncias Unidas, em 1579. A cidade de Amsterdã passou a constituir o centro desse espaço de liberdade e de progresso mercantil e científico, que conheceu grandes investigadores da natureza, como o astrônomo e físico Christian Huygens (1629-1695). A república das Províncias Unidas acolheu os cientistas perseguidos como foi o caso de Galileu Galilei (1564-1642) e de todos aqueles que, pelas suas idéias, eram discriminados na sua pátria de origem. Entre esses beneficiados pela liberalidade holandesa contava-se John Locke (1623-1704), o ideólogo da burguesia inglesa, capitaneada, no Parlamento, pelo primeiro conde de Shaftesbury, lorde Antony Ashley Cooper (1621-1683), de quem Locke era secretário e a quem acompanhou no exílio.

Os judeus portugueses encontraram em Amsterdã, certamente, o seu novo lar. Nas autoridades holandesas eles reconheciam os seus salvadores. Eis o que um desses judeus escrevia, se referindo ao príncipe Guilherme de Orange (1626-1650), líder da nascente Monarquia: “É graças à virtude dos pais da vossa pátria que o céu forçou esses tiranos [os espanhóis] a reconhecer como soberanos aqueles que eles pretendiam tratar como escravos. É graças a eles, como novos Moisés e Josués, que o céu faz ver o povo de Deus passando por meio do mar, enquanto as ondas tragaram os exércitos e inundaram as terras desses faraós. É assim que se vê o novo Israel triunfar sobre um número infinito de seus inimigos e se multiplicar, na pequena Canaã, como as estrelas do céu” [Carvalho, 1978: 367].

O pai de Baruch Espinosa emigrou de Portugal e se estabeleceu em Amsterdã desde fins de 1623, tendo falecido em 28 de Março de 1654. Baruch teve duas irmãs, Rebeca e Miriam, sendo que esta, a mais nova, casou com Samuel Cárceres, judeu português, com quem teve um filho, Daniel Cárceres, que se apresentou, junto com a sua tia Rebeca, como herdeiro do espólio do filósofo, segundo foi informado pelo pastor Johann Köhler ou Colerus (1647-1707). Era grande o ramo dos Espinosas portugueses (os havia também espanhóis): ao longo dos séculos XVI e XVII encontravam-se famílias com esse sobrenome em Viana do Castelo, Guimarães, Lamego, Leiria, Faro, Açores, Porto, Lisboa e Évora.

Cristãos-novos, os Espinosas portugueses foram sempre acusados de cripto-judaísmo, conforme escreve Joaquim de Carvalho: “Em todas as províncias de Portugal viveram, nos séculos XVI e XVII, indivíduos de apelido Espinosa – apelido este que caiu em desuso do século XVIII em diante, talvez porque os impérios contra o Maledictus importassem para os seus portadores a suspeita de cripto-judaísmo. Se alguns se apresentavam como cristãos-velhos, e até enobrecidos pela prosápia dos Espinosas castelhanos, a maioria, porém, mal pôde velar a ascendência israelita e a prática secreta do judaísmo. Miguel de Espinosa pertencia, sem dúvida, a uma família de marranos, porque só demandavam Amsterdã os corajosos a quem a forçada dissimulação interiormente vexava e publicamente aspiravam a invocar o Eterno e a viver segundo a Lei” [Carvalho, 1978: I, 398].

Os biógrafos de Espinosa concordam em afirmar as suas origens judaico-portuguesas, bem como a sua naturalidade holandesa (Amsterdã), desde os mais antigos, Jean Maximilien Lucas (1647-1697) e o pastor Johann Köhler, passando pelo filósofo francês Pierre Bayle (1647-1706) e chegando até os portugueses António Ribeiro dos Santos (1745-1818), José Agostinho de Macedo (1761-1631) e Inocêncio Francisco da Silva (1810-1876). Jean Maximilien Lucas, na Vie de Feu Monsieur de Spinoza (1677) esclarece que Baruch era versado nos idiomas hebraico, italiano, espanhol, alemão, flamengo e português. Johann Köhler, por sua vez, apresenta Baruch de Espinosa como “(...) descendente de honrados judeus portugueses, os quais viviam com certa largueza, habitando uma linda casa, onde tinham o seu comércio, no Burgwall, perto da velha sinagoga portuguesa” [Carvalho, 1978: I, 369].

O filósofo freqüentou a Escola da Sinagoga de Amsterdã, cuja língua oficial era o português, se bem que o espanhol era também usado. A influência das obras da literatura espanhola revela-se na Ética, onde Espinosa faz uma velada referência ao poeta dom Luis de Góngora y Argote (1561-1627) e no inventário da sua biblioteca (entre os 161 livros inventariados, encontraram-se dezesseis em espanhol e nenhum em português, o que confirma o caráter exclusivamente familiar e religioso desta língua). Quanto às obras filosóficas constantes do inventário, é digna de menção a do judeu português Judá Abravanel (1464-1530), pseudônimo Leão Hebreu, Diálogos de amor, em espanhol [cf. Hebreu, 1983].

O jovem Baruch tinha uma mentalidade aberta ao mundo moderno. Embora fiel seguidor da Torah e do Talmud, a sua religiosidade, no entanto, não apagou as luzes da inteligência. Ele não poderia deixar de entender a modernidade, tanto no que se refere às ciências, quanto no relativo à economia e à filosofia. Testemunho dessa abertura à compreensão da época e ao que a República Holandesa significava em termos de liberdade econômica e política, é o seguinte trecho, tirado do capítulo XX do seu Tratado Teológico-político: “Não experimentou, por acaso, a cidade de Amsterdã os progressos de uma grande liberdade? Isso não a impede, certamente, de se desenvolver sem parar, em todos os domínios, sob os olhares de admiração de outros povos. Nessa florescente república e nessa cidade esplêndida, os homens – de todas as origens nacionais e pertencendo a todos os tipos de seitas religiosas - vivem na concórdia mais perfeita! No momento de fazer um negócio, os cidadãos preocupam-se unicamente em saber se o homem com o qual tratam é rico ou pobre, se é confiável ou se a sua reputação é a de um trambiqueiro. Uma vez esclarecidos estes aspectos, não lhes interessa saber qual é a sua religião ou a qual seita pertence a contraparte, pois, supondo que algum dia forem todos parar diante do juiz, essa consideração não teria nenhuma serventia, no que tange a ganhar ou a perder um processo” [Espinosa, cit. por Méchoulan, 1991: 21]

A língua portuguesa era oficial na Sinagoga de Amsterdã. Testemunho esclarecedor acerca da importância que tinha o português na comunidade judaica de Amsterdã é fornecido por Joaquim Mendes dos Remédios (1867-1932), para quem “(...) a língua portuguesa perdurou durante largo período, não só como a língua usada pelos literatos e homens cultos, mas ainda no seio das famílias como a língua própria e habitual. Nos livros, como nos seus cartões para não importa que convite de festa ou de cerimônia, nas inscrições epigráficas dos seus monumentos tumulares, a língua que empregavam era, de facto, a portuguesa” [Remédios apud Carvalho, 1978: I, 373].

A respeito do mesmo ponto, Joaquim de Carvalho frisa: “Nas lápidas tumulares do cemitério Ouderkerk, nas participações de casamento, nas resoluções e avisos da comunidade, nos sermões, nas numerosas apologias do Judaísmo e nos escritos destinados a fortalecer a fé dos emigrados. empregava-se comumente a língua portuguesa, e foi em português, que não castelhano, que em 1656 foi posto no Herem pelos senhores de Mahmad, nessa sentença que se não lê sem um estremecimento de horror” [Carvalho, 1978: I, 373].

É realmente de arrepiar o tom inquisitorial da excomunhão de que foi vítima o grande pensador, em 27 de Julho de 1656. Eis o teor da mesma, segundo Van Vloten (1740-1809): “Os Chefes do Conselho Eclesiástico fazem saber por meio da presente que já tendo se certificado das opiniões e atos maléficos de Baruch de Espinosa, tentaram de diversos modos e por variadas promessas desviá-lo de sua conduta maléfica. Mas não tendo conseguido convencê-lo a abraçar uma melhor forma de pensamento, e, pelo contrário, tendo se conhecido ainda mais das terríveis heresias sustentadas e confessadas por ele e da insolência com a qual essas heresias são promulgadas e espalhadas no exterior, e tendo muitas pessoas dignas de crédito prestado testemunho disso em presença do dito Espinosa, foi ele considerado plenamente culpado das mesmas. Feito portanto um relatório de todo o assunto diante dos Chefes do Conselho Eclesiástico, decidiu-se, concordando os Conselheiros com isso, anatematizar o dito Espinosa e desligá-lo do povo de Israel, com a seguinte maldição: Com o julgamento dos anjos e a sentença dos santos, anatematizamos, execramos, amaldiçoamos e expulsamos Baruch de Espinosa, estando de acordo toda a sagrada comunidade, reunida diante dos livros sagrados, contendo seiscentos e treze preceitos, e pronunciamos contra ele a maldição que Elias lançou sobre os filhos rebeldes e todas as maldições escritas no Livro da Lei. Que ele seja execrado durante o dia e execrado à noite; seja execrado ao deitar-se e execrado ao levantar-se; execrado ao sair e execrado ao entrar. Que o Senhor nunca mais o perdoe ou aceite; que a ira e o desfavor do Senhor, de agora em diante, recaiam sobre este homem, carreguem-no com todas as maldições escritas no Livro do Senhor e apaguem seu nome de sob o firmamento; que o Senhor o aparte de todas as tribos de Israel e o marque para o mal; oprima-o com todas as maldições do firmamento contidas no Livro da Lei; e que todos vós que obedeceis ao Senhor vosso Deus sejais salvos nesse dia. Por meio desse documento ficais, portanto, todos avisados de que ninguém poderá manter conversação com ele pela palavra oral, ter comunicação com ele por escrito; de que ninguém poderá lhe prestar nenhum serviço, habitar sob o mesmo teto que ele, aproximar-se dele a uma distância de quatro cúbitos e de que ninguém poderá ler qualquer papel ditado por ele ou escrito por sua mão” [Van Vloten, apud Durant, s/d: 25-26].

Não podemos deixar de registrar, aqui, o paradoxo da intolerância dos dirigentes da Sinagoga de Amsterdã, justamente numa cidade e numa cultura que prevaleciam pela sua liberalidade, que lhes garantiu, aliás, a eles, judeus, a possibilidade de prestarem livremente culto à divindade, preservando as suas tradições. Fenômeno que talvez nos remeta à preservação, na mentalidade judaica portuguesa, de uma atitude de seita e de defesa acirrada dos seus princípios, esquecendo que era outro o contexto em que viviam. Já não estavam mais confinados no meio peninsular, caracterizado pela mentalidade de “cruzada” contra todo aquele que divergisse! Cruel paradoxo que terminou colocando fora da comunidade judaica o mais promissor dos seus membros, nesse conturbado século XVII.

O ponto de partida do pensamento filosófico espinosano deve ser entendido à luz do fato marcante da excomunhão sofrida pelo jovem Baruch. Nada de mais essencial, para a mentalidade judaica, do que a salvação prometida pela Torah. Tolhida a via da inserção na comunidade para dar ensejo a esse desideratum, somente restava a Espinosa o caminho da razão. A grande preocupação do pensador é com a questão da bem-aventurança, que repousa no fundo da idéia de salvação. Ora, essa vivência, que poderíamos chamar, hodiernamente, de existencial, está ligada a uma comoção interna profunda. Joaquim de Carvalho identificou, nestes termos, a problemática vivida pelo jovem pensador judeu: “É que o problema primário e fundamental que Espinosa se propôs, pode formular-se da seguinte maneira: como proceder por forma que eu tenha a certeza de que serei feliz? Os problemas desta natureza, quando sentidos e pensados com a intensidade com que Espinosa viveu o que foi objecto constante de sua meditação, estão ligados à vivência de uma comoção profunda. É legítimo, por isso, admitir que ele está ligado à excomunhão que em 1656, aos vinte e quatro anos, o expulsou da comunidade israelita (...). No terrível transe, para o qual é crível que tivessem concorrido pensamentos e ditos inspirados em opiniões de Uriel da Costa (1585-1640) e Juan do Prado (1563-1631), a consciência de Espinosa não foi pedir amparo a qualquer outra confissão religiosa. Expulso de Israel, morto para a família, somente se encontrou consigo mesmo, pedindo à sua razão e só à sua razão – a lei certa e o norte infalível do pensamento e de conduta. Teoria e prática de vida irrompe, assim, como imperativo vital da consciência solitária e amargurada; por isso, quaisquer que tenham sido os sulcos dos Principes de Philosophie e das Méditations Métaphysiques no pensamento do autor da Ética, o impulso que conduziu Espinosa à filosofia é independente da problemática puramente teorética do fundamento incontrovertível do saber, que excitou o gênio de Descartes” [Carvalho, 1981: II, 236-237].

Isso posto, é lógico que também devamos inquirir acerca das influências filosóficas recebidas, além do cartesianismo, pelo nosso autor. Pois se bem é certo que a problemática existencial acima apontada é o ponto de partida da sua meditação metafísica, no entanto, também é igualmente certo que toda a problemática suscitada pelo jovem Espinosa junto à comunidade judaica de Amsterdã decorreu, como provam as fontes biográficas, do interesse do pensador pela problemática da filosofia e da ciência modernas. Essa sua insaciável curiosidade levou-o a entrar em atrito com os conservadores dirigentes da comunidade judaica. É indubitável a inspiração que Espinosa recebeu do neoplatonismo judaizado de Leão Hebreu (1464-1530), cujos Diálogos de Amor integravam, como vimos, a sua biblioteca. A concepção unificadora do Universo à luz do princípio do amor, que empolgava o pensamento de Judá Abravanel, encontrou repercussão, sem dúvida, na busca de um princípio imanente de união dos fenômenos, que aparece no pensamento do filósofo de Amsterdã. Dos filósofos escolásticos Espinosa aproveitou a terminologia e o método geométrico da exposição (axioma, definição, proposição, prova, escólio e corolário). A concepção metafísica, que em Espinosa tenta superar o dualismo cartesiano da res extensa e da res cogitans, mediante a postulação de uma única substância infinita, cujos modos se manifestam na dualidade pensamento e extensão, insere-se numa intuição metafísica próxima do Ser Essente de Parmênides (530-460 a.C.). Insere-se, outrossim, numa concepção próxima do curso eterno da fenomenalidade do Universo de Heráclito (500-450 a.C.), da concepção estóica do Cosmo, do panteísmo de Plotino (205-270) e da idéia da Natureza una e infinita de alguns filósofos renascentistas, notadamente Giordano Bruno (1548-1600). Como afirma Joaquim de Carvalho (1892-1958), Espinosa está perto “(...) de uma atitude perante a Vida, que se nutre de anelos e de sentimentos que propendem para o enlevo teopático dos místicos de todos os credos” [Carvalho, 1981: II, 225]. Nessa trilha, o cardeal Henry de Lubac (1896-1991) descobriu influências do imanentismo escatológico de Joaquim de Fiore (1135-1202) no pensamento espinosano [Lubac, 1979: I, 414].

Mas a influência de autores ocidentais fora precedida, na formação de Espinosa, pelo conhecimento sistemático dos filósofos judaicos, que o jovem estudante assimilou antes da excomunhão. Além de Leão Hebreu, o nosso pensador conheceu os escritos de Moisés Maimônides (1138-1204), Guia dos perplexos, notadamente, Hasdai Crescas (1340-1410), Levi Ben Gerson (1288-1344), Ibn Ezra (1089-1167), etc. O estudo dos autores judaicos ensejou, no espírito do jovem pensador, mais dúvidas do que respostas, o que, no sentir de Will Durant (1885-1981), levou Espinosa ao conhecimento dos autores ocidentais.

De outro lado, a situação política e econômica da Holanda, na segunda metade do século XVII, foi o cenário imediato em que se desenvolveu o trabalho filosófico de Espinosa. Mais adiante, ao desenvolver as teses fundamentais da filosofia política de Baruch Espinosa, voltarei sobre este ponto.

Mencionemos as principais obras do nosso pensador: Breve tratado (1660), Tratado da correção do entendimento (1660), Ética demonstrada à maneira dos geômetras (1663), Tratado teológico-político (1670) e Tratado político (1677).

III – As teses fundamentais de Espinosa na Ética.

Hegel, como frisei no início desta exposição, fez de Espinosa um elogio que não repete em relação a nenhum outro filósofo: “Spinoza ist Hauptpunkt der modernen Philosophie”. Quais as razões que teriam levado o pensador alemão a rasgar tamanho elogio do nosso autor? Poderíamos apontar duas, alicerçadas nas apropriadas análises de Joaquim de Carvalho: em primeiro lugar, o rigor racional da construção espinosana, tecida ao redor da suprema aventura do espírito: a criação da sua síntese. Em segundo lugar, o estrito caráter sistemático da obra do filósofo luso-holandês.

Quanto ao primeiro aspecto, escreve o notável crítico: “A Ethica more geométrico demonstrata (...) proporcionou a resposta definitiva, cujo teor ele se esforçou por pensar e exprimir com a mente fria de quem somente aceita por verdadeiro o que a humana compreensão demonstra racionalmente, olhos postos na necessidade lógica da Matemática, mas também com o calor da inquietude emotiva de quem sente apostada, na inquirição, a pulsação dos mais íntimos anelos e o risco do próprio destino. A resposta de Espinosa assinala uma das mais profundas e impressionantes criações do gênio filosófico de todos os tempos, que cumpre ser presente a quem queira conhecer a história do pensador metafísico, ou pretenda tomar posição reflectida e conscienciosa sobre os problemas de sempre” [Carvalho, 1978: II, 224].

Em relação ao caráter sistemático da filosofia espinosana, escreve Joaquim de Carvalho: “Toda a construção filosófica sistemática – e a Filosofia, como tal, isto é, sem mescla de confusão com o discorrer literário ou com a análise conceptual e psicológica, não é pensável sem o alento da intenção sistemática – assenta, por intrínseco ditame, num ponto de partida que dê ao sistema a configuração do alicerce bem fundado e, para além da travação lógica que estabeleça a coerência interna e a conexão das diferentes partes, nutre-se de uma intuição fundamental ou da atração de um objectivo mais ou menos explícito. Para Espinosa, o ponto de partida foi Deus, e o desiderato supremo, a justificação racional da fruição da eternidade, que não do anelo da imortalidade. Vulgus philosophicum incipere a creaturis, Cartesium incepisse a mente, se incipere a Deo, foram as palavras com que Leibniz (1646-1716) anotou este passo da sua conversação com Tshirnhaus acerca da Ética; e, com efeito, a obra máxima em que o filósofo sistematizou a sua concepção do Mundo e da vida parte de uma noção de Deus e obedece ao ritmo interno de um como que movimento de processão de Deus para a alma humana e de reintegração total da alma humana em Deus, por forma que a especulação metafísica se remata em regeneração, ou talvez mais propriamente, em redenção moral” [Carvalho, 1978: II, 228].

Resumirei, a seguir, as teses fundamentais da Ética de Espinosa.

1 - No Apêndice à primeira parte, o filósofo estabelece uma distinção – como faria Parmênides – entre a via e a não-via, entre o caminho das aparências e o da verdade.

Do caminho das aparências provém, no sentir de Espinosa, os preconceitos que impedem “os homens de apreender o encadeamento das coisas” [Espinosa, 1985: 43]; esse caminho é percorrido à luz da imaginação e engendra um preconceito de onde provêm os outros. Tal preconceito consiste no fato “de que os homens supõem comumente que todas as coisas naturais agem, como eles mesmos, por um fim” [Espinosa, 1985: 43]. O caminho da verdade, pelo contrário, é o da razão e ele, como frisa Joaquim de Carvalho: “É o universo da inteligibilidade, e é inteligível, não por ser considerado em vista ou em função de um fim ou de um valor, isto é, de uma apreciação subjetiva, mas porque é a manifestação de Deus, que é logos e essência actuosa, isto é, a um tempo, razão de ser do pensamento e Natureza naturante. Nesta concepção do Mundo, tudo o que existe e acontece necessariamente em virtude da natureza de Deus, ou por outras palavras, das leis eternas e necessárias imanentes ao ser das coisas” [Carvalho, 1978: II, 229].

O próprio Espinosa sintetizou, no mencionado Apêndice à Primeira Parte da Ética, a sua concepção nestes termos: “Com isto tenho explicado a natureza de Deus e as suas propriedades, ou seja, que existe necessariamente, que é único; que é e age pela única necessidade da sua natureza; que é causa livre de todas as coisas, e como; que todas as coisas são em Deus e d’Ele dependem, de tal forma, que sem Ele não podem nem ser nem serem concebidas, e, enfim, que todas elas foram pré-determinadas por Deus não, certamente, pela liberdade ou vontade ou por absoluta deliberação, mas pela natureza absoluta ou a potência infinita de Deus” [Espinosa, 1985: 43].

2 - Espinosa chegou à formulação do seu modelo metafísico imanentista, tratando de superar a metafísica dualística cartesiana, que tinha postulado duas substâncias irreconciliáveis: extensão e pensamento.

A existência de Deus, como criador do Universo era, para Descartes, garantia do exercício do pensamento e fundamento da teoria do saber. A respeito, Joaquim de Carvalho escreve: “A heterogeneidade radical destas duas substâncias, cada uma das quais possuía essência e existência próprias, implicava metafisicamente a existência do Ser sumamente perfeito que as houvesse criado existentes em si, mas não subsistentes por si (o que fundou a teoria cartesiana da criação contínua), e tivesse ainda estabelecido a possibilidade de o pensamento, essencialmente inextenso, poder conhecer com exatidão os corpos, essencialmente extensos” [Carvalho, 1978: II, 43].

A metafísica espinosana superou o dualismo cartesiano, de forma diferente em relação à solução dada por Leibniz, que concebeu um universo finalisticamente organizado pelo Supremo Arquiteto, em ordem a uma escatologia transcendente: Deus e o Mundo são distintos, este criatura d’Ele, mas formando parte de um plano salvífico universal. Já para o nosso pensador, Deus é a única substância infinita, conforme salienta nas primeiras definições da sua Ética: “Por Deus entendo o Ente absolutamente infinito, isto é, uma substância que consta de infinitos atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e infinita” [Espinosa, 1985: 11]. Quanto à unicidade e infinitude da substância divina, Espinosa frisa: “Não existe senão uma única substância de um mesmo atributo, e à sua natureza pertence existir. Logo será próprio da sua natureza existir, já como finita, já como infinita. Mas não pode existir como finita, pois deveria ser limitada por outra da mesma natureza, que também deveria existir necessariamente; portanto, dar-se-iam duas substâncias do mesmo atributo, o que é um absurdo. Logo, existe como infinita” [Espinosa, 1985: 14-15].

3 - Na tentativa em prol de superar o dualismo cartesiano, Espinosa formulou um panteísmo, na trilha assinalada pelo crítico português Joaquim de Carvalho.

Tal "Panteísmo" é entendido por Joaquim de Carvalho, que neste ponto segue o filósofo católico Victor Delbos (1862-1916) – como “a identidade de Deus com a unidade de todos os gêneros de seres inteligíveis, ou ainda, como o que na natureza é inteligível e racionalmente explicável pelo entendimento puro” [Carvalho, 1978: II, 234-235]. Isso leva o crítico português a concluir ser o panteísmo espinosano “um panteísmo de razão, e não de intuição sensível, de imaginação ou de representação”. Nós divergimos desta interpretação, como destacaremos mais adiante.

4 - Da metafísica imanentista adotada decorrem quatro consequências importantes, no seio do pensamento espinosano.

Joaquim de Carvalho identificou-as em quatro pontos. Em primeiro lugar, “Resulta que a relação entre o ser infinito e eterno e os seres e eventos finitos e transitórios não é transcendente, isto é, procedente de uma causa ou ser extrínseco ao universo, mas a relação imanente ao próprio universo de uma ação eterna e infinita, da qual tudo dimana com a mesma necessidade e razão de ser com que, da definição de triângulo, resultam as respectivas propriedades” [Carvalho, 1978: II, 233-234]. Para Espinosa é evidente que o mundo não é criação da vontade divina. “É o que é, em virtude da razão que liga a consequência ao princípio de que ela procede; por isso, cada coisa é o que é e não pode ser diversa, nem podia tê-lo sido” [Carvalho, 1978: II, 234].

Em segundo lugar, salienta Joaquim de Carvalho, resulta que, para Espinosa, “(...) O Universo fenomênico, ou mais propriamente a Natureza naturada, somente é pensável como sistema de relações modo-substanciais, isto é, como manifestação de um ser único, ontologicamente infinito de atributos, dos quais somente apreendemos dois: o Pensamento, ou atividade espiritual, e a Extensão, ou a realidade material enquanto pensável como objecto de uma Física que se exprima em termos de Geometria” [Carvalho, 1978: II, 234].

Em outras palavras, os fenômenos do Universo existem em virtude dos atributos da Natureza divina, de forma tal que de Deus, enquanto Pensamento, é gerada a inteligência infinita de onde derivam as ideias, que outra coisa não são do que modos do Pensamento; e de Deus, enquanto extensão, procedem os corpos e os eventos, cuja essência consiste em serem modos da Extensão.

Em terceiro lugar, “tudo o que ocorre é absolutamente necessário, isto é, não é nem pode ser ou ter sido casual ou contingente” [Carvalho, 1978, II, 234]. Deus que não é, como temos visto, realidade transcendente ao mundo, é a razão de ser de tudo quanto existe, e é livre “(...) No sentido de que sobre ele não atua qualquer força que lhe seja extrínseca, como a fatalidade, nem ele se orienta por qualquer consideração de fim, visto que somente age segundo a lei da sua própria essência. Daqui a negação do antropomorfismo e de toda e qualquer consideração ou causa final, como contrárias à essência de Deus e à explicação racional do Universo” [Carvalho, 1978: II, 234].

Em quarto lugar, qual é o espaço que, em quarto lugar, fica aberto para a liberdade humana? O homem é concebido por Espinosa não como indivíduo capaz de elaborar o seu próprio projeto existencial, nem como natureza individuada a partir da qual se legitimasse uma autenticidade. Espinosa pretende transformar o homem, a partir da sua proposta racional-salvífica. Ele pode, pela razão, apreender a racionalidade que pauta o Universo, e que aponta para a descoberta desse Deus imanente ao mundo. Essa descoberta e a plena inserção, pela razão, no fundamento de tudo, Deus, em quem “vivemos, nos movimentamos e existimos” (conforme à expressão paulina), constitui a salvação, tema-chave da filosofia espinosana.

Referindo-se às relações entre experiência sensível e liberdade de espírito, Ferdinand Alquié (1906-1985) explica, assim, o sentido imanentista da libertação-salvação espinosana: “Ora, Espinosa quer transformar o homem e, de um ser que sofre os acontecimentos do mundo, fazer um ser livre e, por consequência, feliz. Tendo sido rejeitado o livre arbítrio e tendo sido definida a liberdade pelo fato de não ser determinada a agir senão por si mesma, este projeto só se pode realizar no nível de alguma coincidência entre o conhecimento de Deus, que é essencialmente ativo, e o conhecimento humano: de mim, então, parecerá decorrer tudo o que me acontecer. Não se trata, no entanto, para Espinosa, de nos conduzir à resignação, à aceitação passiva da necessidade. Esta necessidade, ao contrário, deve ser recriada livremente e querida da forma como Deus se quer a si mesmo. Enquanto eu penso por intermédio de ideias adequadas, não experimento a necessidade: eu a faço, eu coincido com ela e, nesse sentido, pode-se dizer que Deus pensa na minha alma. Pois a necessidade é a lei mais íntima da minha razão ativa, daquilo que, no meu espírito, é a razão mesma de Deus” [Alquié, 1981: 198-199].

IV – As teses fundamentais de Espinosa no Tratado Político.

Não pretendo fazer, aqui, um apanhado da influência que, no terreno da filosofia política, decorre do pensamento espinosano. Trabalhos significativos existem a respeito, como os de Lubac, Salazar, Matheron, Millet, Poliakov, Wolfson, Batelli, Belaief, Bobbio e Bovero, Feruer, Domínguez, Chauí, Carvalho, Pinharanda Gomes, Alcântara Nogueira, etc., que aparecem citados na Bibliografia final. No entanto, podemos situar Espinosa no contexto da filosofia política ocidental, salientando os pontos em que se aproxima dos pensadores clássicos, como também os aspectos em que se afasta deles. O filósofo judeu-holandês, no que tange à sua concepção política, inspira-se no naturalismo de Thomas Hobbes (1588-1679) e em algumas ideias acerca da lei e do direito natural, cuja linhagem remonta a Aristóteles, os Estoicos, o padre Francisco Suárez (1548-1617) y Hugo Grócio (1583-1645), ao passo que critica conceitos de cunho religioso e moral provenientes da tradição cristã, como os relacionados às ideias de paixão, vício e pecado [cf. Domínguez, 1986: 54-56].

Espinosa concorda com Aristóteles, mais do que com Platão, ao colocar, no primeiro plano da política, a natureza e a lei como obra da razão, deixando em segundo lugar a honestidade, bem como a família e a propriedade. De outro lado, em que pese o fato de a metafísica espinosana tentar deduzir todas as coisas naturais dos atributos divinos, a política não se inspira na religião, mas alicerça-se no pacto social e na utilidade pública, ou seja, no voto popular. A política de Espinosa opõe-se, assim, à teocracia judaica, bem como à concepção cristã (de Santo Agostinho ou de São Tomás de Aquino), decorrente da ideia de Civitas Dei, que pressupõe Deus como monarca e a existência de uma autoridade religiosa capaz de interferir nos assuntos políticos. Espinosa continua, destarte, a tradição laicista iniciada por Marsílio de Pádua (1275-1342), no Defensor Pacis, e retomada no pensamento de Thomas Hobbes (no Leviatã), que influirá, posteriormente, na concepção da Vontade Geral de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), no Contrato Social.

A filosofia política de Espinosa concorda com Nicolau Maquiavel (1469-1527) num ponto, principalmente: o realismo político, que concebe o Estado como status, ou seja, instituição dotada de firmeza e estabilidade. Discorda, porém, do secretário florentino ao criticar o seu pessimismo e a defesa por ele empreendida do direito de guerra e da ditadura. Concorda Espinosa com Hobbes, ao tratar da ideia de Estado como poder absoluto e supremo; mas rejeita o pessimismo antropológico (todos somos egoístas) do autor do Leviatã, bem como a sua separação entre direito natural e direito político.

Com o pai do liberalismo político, John Locke (1632-1704), Espinosa concorda no que tange aos ideais de liberdade e democracia, mas dele se diferencia na ideia de estado natural, bem como na importância conferida pelo pensador inglês à família e à propriedade. Rousseau, de outro lado, parece ter se inspirado no pensamento espinosano, ao formular os seus conceitos de civitas, cives, liberdade como vida pautada pela razão, democracia como governo de todos, obediência a si mesmo, etc. Concorda, outrossim, o nosso autor com o filósofo de Genebra, ao identificar Maquiavel como pensador republicano e liberal. No entanto, Espinosa diferencia-se dele quanto aos conceitos de estado natural (que, para Rousseau, é de paz e liberdade) e de aristocracia eletiva (a forma de governo preferida pelo genebrino).

A seguir, destacarei os pontos fundamentais de Espinosa no seu Tratado político. Antes, porém, convém chamar a atenção para uma incoerência que afeta o seu pensamento. Atilano Domínguez exprimiu, nestes termos, esse problema: “A anomalia ou enigma de Espinosa é que, partindo de uma metafísica panteísta e determinista, deduz, com toda lógica, uma política humanista, pluralista e liberal e que, se inspirando num filósofo materialista e absolutista defende, sobre tudo, a liberdade de pensamento e quer conciliar o poder da multidão com a segurança do Estado. Essa anomalia, ou melhor, esse enigma histórico e teórico, é o que suscita paixão pelo seu pensamento e o que faz dele um cadinho entre o pai do absolutismo, Hobbes, e os pais da democracia liberal, (Locke e Rousseau). Por isso a sua obra goza hoje de plena atualidade” [Domínguez, 1986: 56].

Em que pese a anomalia apontada, a política está presente em toda a obra de Espinosa, não de forma acidental, mas profunda. No sentir de Atilano Domínguez, “A Ética está escrita do ponto de vista ético ou moral e demonstra que a sociedade e o Estado são necessários para que o homem se realize plenamente; o Tratado teológico-político está escrito do ponto de vista religioso e demonstra que a religião deixa livre o Estado e o Estado o indivíduo; o Tratado político está escrito do ponto de vista estritamente político e demonstra que a segurança do Estado não só é compatível, mas só pode ser eficaz, se se coordena com a liberdade individual; pois se alguma coisa é totalmente condenada e rejeitada nesse tratado, é a monarquia absoluta, a ditadura e a tirania, ou seja, formas de governo orientadas à guerra e não à paz e à liberdade” [Domínguez, 1986: 53].

As teses fundamentais de Espinosa no seu Tratado político, são as seguintes:

1 – Posto que a política é uma ciência prática, os homens devem ser tomados como são e não como gostaríamos que fossem.

Espinosa retoma, aqui, a concepção tradicional de Aristóteles, bem como a feição moderna de política apregoada por Maquiavel, que se contrapõe ao utopismo medieval e cristão.

2 – O homem possui tanto direito quanto for o seu poder.

Levando em consideração que o poder das coisas é o mesmo poder de Deus, (em decorrência da concepção panteísta espinosana – concepção panenteísta, pensamos nós - que concebe o mundo como modos que espelham os atributos divinos) e, de outro lado, pressupondo que, em Deus, poder e direito se identificam, qualquer coisa particular, e também o homem, possuem tanto direito quanto for o seu poder.

3 – O homem, na concepção política espinosana, insere-se estritamente, numa concepção naturista.

As paixões levam o homem a perseguir, necessariamente, os seus desejos. A liberdade é entendida como necessidade aceita livremente. Isso consiste em se adaptar à ordem necessária pré-fixada e em não se contrapor a ela.

4 – Em que pese o fato de direito e poder se identificarem no homem, o poder do indivíduo é limitado pelo poder que exercem os demais homens.

Assim, os direitos individuais pressupõem o direito social, que os garante. A respeito, Espinosa escreveu: “No estado natural, cada indivíduo é autônomo enquanto puder evitar ser oprimido por outrem (...). De onde se deduz que, na medida em que o direito humano natural de cada indivíduo se determina pelo seu poder e é o de um só, não é direito algum; consiste numa opinião mais do que numa realidade, posto que a sua garantia de sucesso é nula” [Espinosa, 1986: 92].

5 – O direito social, definido pelo poder da multidão e que garante o direito individual, é o Estado.

A respeito, Espinosa frisa: “Esse direito que se define pelo poder da multidão, costuma ser chamado de Estado. Possui esse direito, sem restrição alguma, quem, por acordo unânime, é encarregado dos assuntos públicos, ou seja, de estabelecer, interpretar e abolir os direitos, de fortificar as cidades, de decidir sobre a guerra e a paz, etc. Se essa função incumbe a um conselho, que é formado pela multidão toda, então o Estado chama-se democracia; se só é formado por alguns escolhidos, aristocracia; e se, finalmente, o cuidado dos assuntos públicos e, portanto, o Estado, estiver a cargo de um, chama-se monarquia” [Espinosa, 1986: 93-94].

6 - Somente o Estado é verdadeiramente autônomo.

Esta característica decorre do fato de o Estado ser, unicamente, quem determina o que é bom e o que é mau, o justo e o injusto. A única alternativa dos súditos é obedecer, mesmo que a legislação pareça absurda. Esta alternativa é aceitável, para o nosso pensador, à luz do princípio utilitarista: ruim com o Estado, pior sem ele [Espinosa, 1986: 102-103].

7 – As relações entre os Estados determinam-se a partir da feição absoluta do direito natural.

A respeito, Espinosa frisa que “(...) dado que o direito da potestade suprema (...) não é senão o mesmo direito natural, segue-se que dois Estados relacionam-se entre si como dois homens no estado natural” [Espinosa, 1986: 107-108]. O nosso pensador encarava as relações internacionais com uma certa dose de pessimismo, fato que o coloca numa perspectiva realista de inegável atualidade.

A respeito, Atilano Domínguez escreve: “Em que pese o fato de Espinosa saber bem que as alianças são tanto mais sólidas quanto mais numerosas forem as nações aliadas; que as diferenças entre as nações não são raciais, mas puramente históricas e estruturais; que o comércio exterior é vital para a vida de todo o Estado; e que é melhor limitar-se a conservar os próprios territórios que intentar conquistar outros, o seu realismo político o faz mostrar-se bastante receoso perante a verdadeira eficácia do chamado direito internacional. E, infelizmente, a história lhe dá a razão” [Domínguez, 1986: 33].

8 – O Estado possui a sua própria natureza e age de acordo com ela.

Se o Estado errar, age contra a razão. Espinosa considera que a forma de evitar os erros do Estado, consiste no controle que sobre ele exerce a sociedade. O bom governo é aquele estabelecido por meios humanos e aceitos pela maioria. A questão das várias formas de governo (monarquia, aristocracia, democracia), das que não tratarei aqui, decorre, fundamentalmente, do seguinte princípio enunciado, assim, pelo nosso pensador: “É necessário organizar de tal forma o Estado que todos, tanto os que governam quanto os governados, queiram ou não queiram, façam o que exige o bem-estar comum” [Espinosa, 1986: 123].

9 – O princípio fundamental que pauta o pensamento político de Espinosa consiste na valorização da democracia como ideal supremo do convívio social.

Atilano Domínguez exprimiu, com propriedade, esse aspecto do pensamento espinosano, nestes termos: “Espinosa está convencido de que o bem estar público só se atinge mediante um acordo da multidão em relação às leis. Mais do que ciência e honestidade nos governantes exige, pois, um número elevado em todos os conselhos. Consoante com essa convicção teórica, sustenta que a primeira forma histórica de Estado foi a democracia. Pois como todos os homens são iguais por natureza e todos preferem mandar a serem mandados, somente por circunstâncias históricas terão sido impostos regimes não democráticos” [Domínguez, 1986: 46].

O verdadeiro teor da democracia espinosana é pautado pela ideia de igualdade de direitos entre todos os cidadãos. Somente o crime ou a infâmia podem afastar alguém do convívio democrático. A respeito, frisa Espinosa: “No Estado democrático, todos os que nasceram de pais cidadãos ou no solo pátrio, ou os que são beneméritos do Estado ou que devem ter direito de cidadania por causas legalmente previstas, todos eles, repito, com justiça reclamam o direito de votar no Conselho Supremo e de ocupar cargos no Estado, e não se lhes pode negar, a não ser por um crime ou infâmia” [Espinosa, 1986: 220].

10 - Somente a democracia é compatível com a busca da paz. A sua negação acarretará, portanto, o risco da violência e da guerra.

Eleger alguém para fazer a guerra é uma tolice. Nesse sentido, o pensamento de Espinosa difere do de Maquiavel. A característica fundamental do Estado democrático consiste em que sua força é muito mais eficaz em tempos de paz, do que na guerra [cf. Espinosa, 1986: 144].

11 - O ideal democrático espinosano deitou os alicerces para a formulação da teoria do governo representativo.

Ora, essa formulação foi feita por John Locke durante o seu exílio na Holanda, no final do século XVII, quando escreveu, na clandestinidade, os seus Dois tratados sobre o governo civil. Locke foi influenciado pelo ideal de tolerância, que antes das suas Cartas sobre a Tolerância já tinha sido defendido por vítimas da intolerância como Pierre Bayle (1647-1706) e o próprio Espinosa. Para o filósofo luso-holandês, somente o ideal democrático garante o gozo, pelos cidadãos, dos seus direitos inalienáveis à vida, à liberdade e às posses. Unicamente esse ideal é compatível, outrossim, com a insaciável busca da felicidade. E deve abarcar a totalidade dos cidadãos.

12 – O Tratado Político espelha os dois graves problemas políticos sofridos pela Holanda na época de Espinosa: autoritarismo e intolerância.

O Tratado político de Espinosa espelha os problemas sofridos pela Holanda, o mais importante país das Províncias Unidas, ao longo do século XVII. Tal problemática, no nosso entender, abarcava, fundamentalmente, a luta contra dois males: o autoritarismo e a intolerância. A Holanda tinha-se tornado refúgio para milhares de refugiados (judeus espanhóis e portugueses, bem como da Inglaterra e da Europa central), que no próprio pais que os acolheu sofriam com as tendências autoritárias das próprias comunidades judaicas. Os judeus sefarditas, prósperos comerciantes originários do sul da Europa e da Península Ibérica, discriminavam os provenientes do oriente e do centro da Europa, denominados de asquenazes, que só tinham acesso a atividades secundárias como serventes e funcionários de baixa categoria. E nas próprias comunidades de sefarditas, como era o caso de Espinosa, havia forte discriminação contra aqueles que se abriam à cultura ocidental, misturando-a com as tradições rabínicas e da Torah.

Dois episódios de intolerância marcaram profundamente a vida de Baruch Espinosa: a condenação e posterior suicídio do seu correligionário portugués Uriel da Costa (1585-1640), “sem dúvida conhecido da família” [cf. Domínguez, 1986: 10] e a sua própria excomunhão – à qual já nos referimos, em 1656 -.

A sociedade holandesa, espremida por Estados católicos e absolutistas como a França, a Espanha (que lutava por retomar as Províncias dissidentes dos Países Baixos) e a própria Inglaterra, em mãos, ao longo do século XVII, de soberanos Stuart, católicos e absolutistas, buscava um princípio de ordem, que garantisse a liberdade de todos os seus cidadãos. O assassinato do líder republicano liberal Jan de Witt (1625-1672) e a sua substituição pelo príncipe Guilherme de Orange (1650-1702) colocaram o nosso autor diante de um grave impasse: como conciliar autoridade forte e liberdade?

13 – A fidelidade à tradição judaica moderna, o caminho adotado por Espinosa para responder à problemática ensejada pela situação holandesa.

O entroncamento do pensamento espinosano com a tradição judaica moderna, foi sistematizado pelo nosso autor no Tratado teológico-político. A obra consta de duas partes, a primeira de cunho teológico, em que o nosso autor defende a liberdade de interpretar a Escritura; a segunda, de caráter político, em que é defendida a liberdade de expressão. No que diz respeito à primeira parte, estas são as ideias fundamentais de Espinosa: levando em consideração que, nos nossos dias, já não existem profetas, a Escritura é o único meio para conhecermos o que é a Religião. Ora, a Escritura é, na sua essência, um fato histórico que deve ser examinado com instrumentos adequados: o conhecimento da língua e da história hebraica. Tornou-se Espinosa, mediante esta tese, o precursor da Escola da História das Formas (ou Formgeschichtemethode) proposta pelos fundadores da ciência da exegese, os irmãos Bauer, discípulos de Hegel.

Atilano Domínguez sintetizou, da seguinte forma, o cerne do Antigo Testamento, na versão de Espinosa: “Assim abordado, o Antigo Testamento (e algo semelhante escreve sobre o Novo Testamento) apresenta-se como uma coleção de textos, redigidos ao longo de aproximadamente dois milênios e colecionados, primeiro, por Esdras, depois do desterro (aproximadamente 539 a.C.), e, finalmente pelos fariseus que, na época dos Macabeus, fixaram o cânone (por volta de 135 a.C.). (...). Em última análise o conteúdo desses livros é uma história do povo hebreu, desde os patriarcas até a destruição do Segundo Templo na época romana (...). Em outros termos, a maior parte dos textos proféticos relata a história dos milagres mediante os quais Jahvé teria dirigido e conservado o povo hebreu (...). Mas, se despidos de toda a bagagem imaginativa com que os profetas os revestiam para mover o povo à obediência (...), só resta um núcleo de verdades muito simples, que podem ser sistematizadas na fórmula de que quem pratica a justiça e a caridade, se salva. Em consequência, quem conservar essa verdade, que é a essência da religião judaico-cristã e da religião católica ou universal, é piedoso e goza, portanto, de plena liberdade para opinar sobre todos os demais temas religiosos” [Domínguez, 1986: 24].

No que diz relação à segunda parte do Tratado teológico-político, o nosso pensador insiste na supremacia do Estado, que deve abarcar o aspecto religioso. Em que pese o fato de se assemelhar, nesse ponto, à proposta do poder único apregoado por Hobbes no Leviatã, Espinosa contrapõe-se ao filósofo do absolutismo, ao enfatizar que o poder do Estado é perfeitamente compatível com a paz, a piedade e a liberdade individual. Parece como se a salvação humana na sociedade dependesse de o homem se inserir no todo social.

A respeito, frisa Espinosa: “Pode-se formar uma sociedade e conseguir que todo pacto seja sempre observado com a máxima fidelidade, sem que isso contradiga o direito natural, com a condição de que cada um transfira à sociedade todo o direito que possui, de sorte que ela sozinha conserve o supremo direito da natureza a tudo, ou seja, a potestade suprema, à qual todo mundo deve obedecer, já por própria iniciativa, já por temor ao máximo suplício” [Espinosa, 1983: 193].

No entanto, essa entrega total ao Estado não nega a liberdade humana, porquanto o poder social foi estabelecido em função de garantir a felicidade e a paz. A única forma de conquistar a salvação é, no sentir do nosso pensador, praticar a justiça e a caridade. E o Estado é o meio através do qual é possível, ao homem, pôr em prática essas virtudes. Essa é a lição que tiramos do povo judeu na Escritura e constitui a síntese da espiritualidade judaica moderna, na versão de Espinosa. Para o pensador, virtude e religião coincidem e estas se tornam realidade através do Estado. Moral, religião e política coincidem, assim, na mesma manifestação histórica.

V – Conclusão: Os pontos centrais da filosofia espinosana, em face da espiritualidade judaica moderna.

Em 10 itens serão sintetizados os pontos fulcrais da filosofia espinosana, face à espiritualidade judaica moderna: 1 – A Razão, caminho da salvação. 2 – Espinosa partiu da radicalização da noção aristotélica de Substância. 3 – O que são o Homem (Pensamento) e o Mundo (Extensão)? Eles são, segundo Espinosa, “afecções da substância infinita” ou “natura naturata” (“natureza naturada”). 4 – Conseqüência no terreno do conhecimento: “Tudo o que existe, existe em Deus, e sem Deus nada pode existir nem ser concebido”. 5 – Conseqüência no terreno da liberdade: Ser livre consiste, para Espinosa, em existir exclusivamente pela necessidade de sua natureza. 6 – Conseqüência no terreno da antropologia: corpo e alma são duas manifestações acidentais da substância divina, sendo um a idéia do outro: o corpo é a idéia da alma, a sua representação. 7 - No terreno da filosofia política, Espinosa formulou o ideal da democracia, que poderia ser sintetizado assim: o melhor regime político é aquele no qual todos os seres humanos (cada um deles sendo manifestação acidental da Substância Divina), sem exceção, possam ver defendidos os seus interesses. 8 – Síntese da espiritualidade judaica moderna na versão de Espinosa. 9 – Papel hermenêutico da Razão Humana em face das Religiões. 10 – O homem, na concepção política espinosana, insere-se, estritamente, numa perspectiva naturista.

1 – A Razão, caminho da salvação.

Expulso da Sinagoga de Amsterdã, Baruch Espinosa viu se fechar a via da Tradição Religiosa, que lhe garantia, como judeu, a salvação. Somente lhe restou um caminho: o de procurar a salvação na Razão. E dedicou-se, com afinco, a buscá-la na sua meditação filosófica.

2 – Espinosa partiu da radicalização da noção aristotélica de Substância.

Passou a definir a ousía ou substância, na sua Ética demonstrada à maneira dos geômetras, como: “O que existe em si e por si é concebido, isto é, aquilo cujo conceito não carece do conceito de outra coisa do qual deva ser formado”.

Ora, radicalmente só pode haver uma substância: Deus, que se dá a si mesmo a existência, sem depender de outrem. Essa substância, a única que existe, é denominada por Espinosa de “natura naturans”, ou “natureza naturante”.

3 – O que são o Homem (Pensamento) e o Mundo (Extensão)?

Eles são, segundo Espinosa, “afecções da substância infinita” ou “natura naturata” (“natureza naturada”).

“Afecções” ou “modos” são entendidos por Espinosa como “o que existe numa outra coisa pela qual também é concebido”. Assim, para o filósofo, Pensamento e Extensão não seriam nada mais do que afecções (ou acidentes, na terminologia aristotélica) da Substância Divina. Nela, como dizia São Paulo se referindo a Deus, nós e o Cosmo “vivemos, nos movimentamos e existimos”. Poderíamos dizer que o Homem e o Mundo, para Espinosa, “navegam em Deus”. O Mundo é manifestação finita dos infinitos atributos divinos. O Homem, idem. Não são duas substâncias antagônicas, apenas “afecções” ou acidentes da única realidade plenamente existente, a Substância Divina.

Está, portanto, superado, na filosofia de Espinosa, o problema do dualismo metafísico cartesiano. O sistema espinosano não é, ao nosso modo de ver, propriamente, um panteísmo (pois, nele, Deus e Mundo se identificam tout-court), mas um panenteísmo (pois, para o filósofo, o Homem e o Cosmo “navegam” em Deus, como acidentes da Substância Divina, sem se identificarem com ela). Esta interpretação foi sugerida, nas suas aulas, pelo saudoso professor Eduardo Abranches de Soveral (1927-2003). Espinosa teria adotado uma posição panenteísta (Pánta en to Theo: Tudo em Deus), não uma posição simplesmente panteísta (Pánta estín Theós: Tudo é Deus).

4 – Conseqüência no terreno do conhecimento: “Tudo o que existe, existe em Deus, e sem Deus nada pode existir nem ser concebido”.

A verdade consiste em enxergar tudo o que existe em Deus, que é a sua condição de presença no Ser. O pensador elabora uma filosofia radicalmente monista, como fizera Parmênides. Fora do Ser, nada há. Tudo deve ser referido a ele. Essa radicalidade inspirará a outros pensadores, notadamente a Hegel, com o seu conceito arquetípico de Idéia.

5 – Conseqüência no terreno da liberdade: Ser livre consiste, para Espinosa, em existir exclusivamente pela necessidade de sua natureza.

Plenamente livre, em sentido rigoroso, somente é Deus, que “existe, exclusivamente, pela necessidade de sua natureza e por si só é determinado a agir”. Podemos dizer que o homem é livre, não no sentido do livre arbítrio, mas no sentido ontognosiológico, ou seja, quando se reconhece como necessariamente existindo e agindo em Deus. Liberdade, para Espinosa, seria, portanto, do ângulo antropológico, “reconhecimento da necessidade”. Karl Marx (1818-1883) aderiu a essa noção na sua obra A Ideologia alemã (1846) [cf. Salazar, 1986].

O homem é concebido por Espinosa não como indivíduo capaz de elaborar o seu próprio projeto existencial, nem como natureza individuada a partir da qual se legitimasse uma autenticidade. Espinosa pretende transformar o homem a partir da sua proposta racional-salvífica. O homem pode, pela razão, apreender a racionalidade que pauta o universo e que aponta para a descoberta do Deus imanente no mundo. Esta descoberta e a plena inserção, pela razão, em Deus, que é o fundamento de tudo, em quem “vivemos, nos movimentamos e existimos”, constitui a salvação, tema-chave da filosofia espinosana.

Referindo-se às relações entre experiência sensível e liberdade de espírito, Ferdinand Alquié (1906-1985) explica assim o sentido imanentista da libertação-salvação espinosana: “Ora, Espinosa quer transformar o homem e, de um ser que sofre os acontecimentos do mundo, fazer um ser livre e, por conseqüência, feliz. Tendo sido rejeitado o livre-arbítrio e tendo sido definida a liberdade pelo fato de não ser determinada a agir senão por si mesma, este projeto só se pode realizar, no nível de alguma coincidência entre o conhecimento de Deus, que é essencialmente ativo, e o conhecimento humano: de mim, então, parecerá decorrer tudo quanto me acontecer. Não se trata, no entanto, para Espinosa, de nos conduzir à resignação, à aceitação passiva da necessidade. Esta necessidade, pelo contrário, deve ser recriada livremente e querida, da forma como Deus se quer a si mesmo. Enquanto eu penso por intermédio de idéias adequadas, não experimento a necessidade: eu a faço, eu coincido com ela e, nesse sentido, pode-se dizer que Deus pensa na minha alma. Pois a necessidade é a lei mais íntima da minha razão ativa, daquilo que, no meu espírito, é a razão mesma de Deus” [Alquié, 1981: 198-199].

6 – Conseqüência no terreno da antropologia: corpo e alma são duas manifestações acidentais da substância divina, sendo um a idéia do outro: o corpo é a idéia da alma, a sua representação.

Está superado, destarte, o dualismo antropológico cartesiano. Espinosa funda, de outro lado, a teoria do psicossoma, que tanta importância terá no desenvolvimento da psicologia e da psicanálise, ao longo do século XX. O controle das nossas paixões advirá do fato de projetarmos a luz da inteligência sobre a vivência primordial que deu ensejo a elas. Sigmund Freud (1856-1939), evidentemente, inspirou-se neste aspecto da filosofia espinosana.

7 - No terreno da filosofia política, Espinosa formulou o ideal da democracia, que poderia ser sintetizado assim: o melhor regime político é aquele no qual todos os seres humanos (cada um deles sendo manifestação acidental da Substância Divina), sem exceção, possam ver defendidos os seus interesses.

Não há interesses espúrios, pois cada um de nós é manifestação da Substância Divina. O único limite para a defesa dos nossos interesses consiste no desconhecimento, por nós, dos interesses dos outros. O meu direito termina onde começa o direito do outro. Lembremos, aqui, a proximidade dessa visão com a ensejada por Alexis de Tocqueville (1805-1859), ao formular o seu conceito de “interesse bem compreendido” [cf. Thiers, 2003]. Levando em consideração que a política é uma ciência prática, os homens devem ser tomados como são e não como gostaríamos que fossem: Espinosa retoma, aqui, de um lado o realismo aristotélico e, de outro, a feição moderna de política apregoada por Nicolau Maquiavel (1469-1527), em contraposição ao utopismo medieval cristão.

O homem, na concepção espinosana, insere-se estritamente numa concepção naturista. As paixões levam o ser humano a perseguir necessariamente os seus desejos. A liberdade é entendida como livre necessidade, que consiste em se adaptar à ordem necessária pré-fixada e não em se contrapor a ela. Em que pese o fato de direito e poder se identificarem no homem, o poder do indivíduo é limitado pelo poder que exercem os demais homens. Destarte, os direitos individuais pressupõem o direito social, que os garante.

A respeito, Espinosa escreveu no seu Tratado político: “No estado natural, cada indivíduo é autônomo, enquanto puder evitar ser oprimido por outrem (...). De onde se deduz que, na medida em que o direito humano natural de cada indivíduo se determina pelo seu poder e é o de um só, não é direito algum; consiste numa opinião, mais do que numa realidade, posto que a sua garantia de sucesso é nula”.

Esse direito social, definido pelo poder da multidão e que garante o direito individual é o Estado. A respeito, Espinosa frisa, lembrando a teoria política aristotélica: “Esse direito que se define como poder da multidão costuma ser chamado de Estado. Possui esse direito, sem restrição alguma, quem, por acordo unânime, é encarregado dos assuntos públicos, ou seja, de estabelecer, interpretar e abolir os direitos, de fortificar as cidades, de decidir sobre a guerra e a paz, etc. Se essa função incumbe a um conselho que é formado pela multidão toda, então o Estado chama-se democracia; se só é formado por alguns escolhidos, aristocracia; e se, finalmente, o cuidado dos assuntos públicos e, portanto, o Estado, estiver a cargo de um, chama-se monarquia”. Somente o Estado é verdadeiramente autônomo, pois só ele determina o que é bom e o que é mau, o justo e o injusto. A única alternativa dos súditos é obedecer, mesmo que a legislação pareça absurda. Esta alternativa é aceitável, para o nosso pensador, à luz do princípio utilitarista: “ruim como Estado, pior sem ele”.

As relações entre os Estados determinam-se a partir da feição absoluta do direito natural. A respeito, Espinosa frisa que “(...) dado que o direito da potestade suprema (...) não é senão o mesmo direito natural, segue-se que dois Estados relacionam-se entre si como dois homens no estado natural”. O nosso pensador encarava as relações internacionais com certa dose de pessimismo, fato que o coloca numa perspectiva realista de inegável atualidade. Em relação a este ponto, o estudioso espanhol Atilano Domínguez (1934-) escreve: “Em que pese o fato de Espinosa saber bem que as alianças são tanto mais sólidas quanto mais numerosas forem as nações aliadas; que as diferenças entre as nações não são raciais, mas puramente históricas e estruturais; que o comércio exterior é vital para a vida de todo o Estado; e que é melhor limitar-se a conservar os próprios territórios que intentar conquistar outros, o seu realismo político o faz mostrar-se bastante receoso perante a verdadeira eficácia do chamado direito internacional. E, infelizmente, a história lhe dá a razão” [Domínguez, 1986: 33].

O Estado, segundo Espinosa, possui a sua própria natureza e age de acordo com ela. Se errar, age contra a razão. Espinosa considerava que a forma de evitar os erros do Estado consistia no controle que sobre ele exercesse a sociedade. O bom governo, pensava o filósofo, é aquele estabelecido por meios humanos e aceitos pela maioria. A questão das várias formas de governo (monarquia, aristocracia, democracia), decorre fundamentalmente do seguinte princípio enunciado pelo autor: “É necessário organizar de tal forma o Estado que todos, tantos os que governam quanto os governados, queiram ou não queiram, façam o que exige o bem-estar comum” . Neste ponto, o nosso pensador revela-se seguidor da teoria aristotélica.

O princípio fundamental que pauta o pensamento político de Espinosa consiste na valorização da democracia como ideal supremo do convívio social. Atilano Domínguez exprimiu, com propriedade, este aspecto do pensamento espinosano, assim: “Espinosa está convencido de que o bem-estar público só se atinge mediante um acordo da multidão em relação às leis. Mais do que ciência e honestidade nos governantes exige, pois, um número elevado em todos os conselhos. Consoante com essa convicção teórica, sustenta que a primeira forma histórica de Estado foi a democracia. Pois como todos os homens são iguais por natureza e todos preferem mandar a serem mandados, somente por circunstâncias históricas terão sido impostos regimes não democráticos”.

O verdadeiro teor da democracia espinosana é pautado pela idéia de igualdade de direitos entre todos os cidadãos. Somente o crime ou a infâmia podem afastar alguém do convívio democrático. A propósito, afirmava o filósofo: “No Estado democrático, todos os que nasceram de pais cidadãos ou no solo pátrio, ou os que são beneméritos do Estado, ou que devem ter direito de cidadania por causas legalmente previstas, todos eles, repito, com justiça reclamam o direito de votar no Conselho Supremo e de ocupar cargos no Estado, e não se lhes pode negar, a não ser por um crime ou infâmia” [Espinosa, 1986: 220].

Somente a democracia é compatível com a busca da paz. A sua negação acarretará, portanto, o risco da violência e da guerra. Eleger alguém para fazer a guerra é uma tolice. Nesse sentido o pensamento de Espinosa diverge do de Maquiavel. A característica fundamental do Estado democrático consiste em que sua força é muito mais eficaz na paz do que na guerra.

O ideal democrático espinosano deitou indubitavelmente os alicerces para a formulação da teoria do governo representativo, feita inicialmente por Locke durante o seu exílio na Holanda, no final do século XVII, e aperfeiçoada pelos pensadores ingleses e pelos doutrinários franceses ao longo dos séculos XVIII e XIX. Somente o ideal democrático garante o gozo, pelos cidadãos, dos seus direitos inalienáveis à vida, à liberdade e às posses. Somente esse ideal é compatível, outrossim, com a insaciável busca da felicidade. E deve abarcar a totalidade dos cidadãos.

Não há dúvida quanto ao fato de que o Tratado político de Espinosa espelha o problema político sofrido pela Holanda, no decorrer do século XVII. Tal problemática, ao nosso entender, abarcava as seguintes variáveis: em primeiro lugar, a luta contra o absolutismo e a intolerância, que tinha levado à Holanda milhares de refugiados (judeus portugueses e espanhóis; judeus provenientes dos principados alemães e da Europa central; ingleses perseguidos pelos soberanos absolutistas da dinastia Stuart, etc.). Essa luta travou-se no interior do próprio país, mais especificamente no seio da comunidade judaica. Dois episódios de intolerância marcaram profundamente a vida de Espinosa: a condenação e posterior suicídio do seu correligionário e “sem dúvida, conhecido da família” [Domínguez, 1986:10] , Uriel da Costa (1640) e a sua própria excomunhão, à qual já foi feita referência (em 1656). Em segundo lugar, a problemática política vivida por Espinosa abarca a busca de um princípio de ordem que garantisse a liberdade dos cidadãos. Neste aspecto, o assassinato do líder liberal e republicano holandês Jan de Witt (1672) e sua substituição pelo príncipe Guilherme III de Orange (1650-1702), colocaram o nosso autor diante de um grave impasse: como conciliar autoridade forte e liberdade?

8 – Síntese da espiritualidade judaica moderna na versão de Espinosa.

Para o nosso pensador, em face da vivência religiosa vale o seguinte princípio: todas as manifestações são válidas, na medida em que cada crente espelha uma manifestação finita da essência infinita. A tolerância religiosa será o corolário natural deste princípio.

O entroncamento do pensamento espinosano com a tradição judaica foi sistematizado pelo filósofo no Tratado teológico-político. A obra consta de duas partes: a primeira, de cunho teológico, em que o autor defende a liberdade de interpretar a Sagrada Escritura; a segunda, de caráter político, em que é defendida a liberdade de expressão no Estado.

No que diz respeito à primeira parte, estas são as idéias fundamentais de Espinosa: levando em consideração que, nos nossos dias, já não existem profetas, a Escritura é o único meio para conhecermos o que é a Religião. Ora, a Escritura, na sua essência, é um fato histórico que deve ser examinado com instrumento adequado: o conhecimento da língua e da história hebraicas.

Tornou-se Espinosa, mediante esta tese, o precursor do Método da Escola das Formas (Formgeschichtemethode), proposto pelos fundadores da ciência da exegese, os irmãos Bauer, Bruno (1809-1882) e Edgar (1820-1886), discípulos de Hegel e pertencentes à chamada Esquerda Hegeliana, da qual foi membro, também, Karl Marx. Esse método foi assumido pelos exegetas bíblicos no decorrer dos séculos XIX e XX (a Bíblia de Jerusalém, publicada na segunda metade do século passado, é exemplo claro da prática dessa metodologia hermenêutica).

9 – Papel hermenêutico da Razão Humana em face das Religiões.

Diante de qualquer Tradição Religiosa (o filósofo pensava, inicialmente, na Tradição Judaica encarnada na Torah e no Talmud), o papel do filósofo consiste em se perguntar em virtude de quais vivências das comunidades e dos indivíduos foram se formatando as Tradições Religiosas. Assim, por exemplo, a crença dos cristãos na ressurreição de Cristo, deveria conduzir os estudiosos a mergulharem nas razões que teriam levado os primitivos cristãos a postularem, como fato revelado, a Ressurreição do Mestre. Baruch Espinosa situa-se, assim, nas origens da ciência da hermenêutica.

10 – O homem, na concepção política espinosana, insere-se, estritamente, numa perspectiva naturista.

As paixões levam o homem a perseguir, necessariamente, os seus desejos. A liberdade é entendida como livre necessidade, que consiste em se adaptar à ordem necessária pré-fixada e não em se contrapor a ela.

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