CAPA DA PRIMEIRA EDIÇÃO DA OBRA DO PADRE FRANCISCO SUÁREZ, INTITULADA: "DE LEGIBUS AC DEO LEGISLATORE" (1617)
METAFÍSICA MODERNA E SOBERANIA POPULAR NA OBRA DO PADRE FRANCISCO SUÁREZ (1548-1617).
Francisco Suárez representa, no contexto da Segunda Escolástica espanhola, o esforço mais sistemático em prol da busca de um contato com a modernidade. A sua preocupação fundamental consistiu em elaborar uma metafísica da substância compatível com a ciência moderna. Não poderíamos entender a real dimensão do jesuíta Francisco Suárez, sem situá-lo no contexto do rico movimento de renovação da filosofia espanhola nos séculos XVI e XVII.
Acompanhando a nova oikouméne ensejada pelo grande período das navegações ibéricas dos séculos XV e XVI, surgiu, na Espanha, um movimento de renovação intelectual que visava a dar fundamentação à nova ordem mundial, num Império em que "não se põe o sol", como se dizia na época. Não há dúvida de que o pioneirismo da renovação intelectual hispânica se deu ao ensejo da criação, pelo arcebispo de Toledo, Raymond (1126-1151), da “Escola de Tradutores de Toledo”, que divulgaram as principais obras da ciência e da cultura antigas, tendo passado pelos seus bancos grandes tradutores como Michael Scot (1175-1232) e Gerardo de Cremona (1114-1187), que verteram para o latim ou para as línguas vernáculas, em especial o castelhano, as obras dos filósofos gregos e dos cientistas da Antiguidade.
O segundo grande esforço de renovação consistiu na formação, em Paris, de uma nova geração de pensadores que sofreram a influência do nominalismo, a nova filosofia que pretendia se abrir ao conhecimento do concreto e ao experimental, em contraposição à contemplatio medieval. Presididos pela figura pioneira do sacerdote toledado Jacobo Magnus, que chegou a ser pregador na corte do rei francês Carlos VI, no período compreendido entre 1381 e 1422, encontramos, no final do século XV e ao longo do século XVI, importantes filósofos de inspiração nominalista que receberam a sua formação em Paris ou que sofreram a influência dessa escola. Mencionemos os nomes de alguns deles: Andrés Limos, Agustín Pérez de Oliván, Alvaro Thomas (português), Jerônimo Pardo, os irmãos Luis e Antonio Núñez Coronel, Gaspar Lax, Juan Dolz, Juan Lorenzo de Celaya, Juan de Gélida, Juan de Oria, Gonzalo Gil, Bartolomé de Castro, Juan Martínez Silíceo, Domingo de San Juan, Pedro Margalho (português), Cristobal de Medina, etc. O nominalismo, nesses autores, correspondia, geralmente, ao estabelecimento de uma teoria do conhecimento que possibilitasse a apreensão experimental do mundo, mas que não excluía, de forma alguma, muito pelo contrário a integrava, a rica herança do humanismo clássico, amalgamando-a com uma versão mitigada do tomismo [Cf. Fraile, 1985, I: 327 ss.].
Em Salamanca, onde desenvolveu boa parte da sua docência, Francisco Suárez recebeu essa rica influência e teve oportunidade de confrontá-la com as tentativas de reedição do tomismo, de inspiração tradicionalista com Domingo Báñez (1528-1604) e Juan de Santo Tomás (1589-1644). A nova doutrina, formulada por Suárez e alguns outros autores, estava aberta a outras correntes filosóficas, incluída a escola nominalista, com Francisco de Vitoria (1492-1546), Melchor Cano (1509-1560), Domingo de Soto (1495-1560), Pedro de Sotomayor (1511-1564), Bartolomé de Medina (1527-1580) e Luis de Molina (1536-1600).
Diríamos que o problema com que se defrontava Suárez, na sua cátedra na Universidade de Salamanca, era o de formular uma nova filosofia que respondesse aos requerimentos da ciência moderna, estabelecendo, no entanto, uma ponte entre o que havia de aproveitável na metafísica do século XIII e no humanismo renascentista [cf. Fraile, 1985, I: 380-384; Enes, 1992, IV: 308-317].
Situada nesse contexto, a obra de Francisco Suárez pode ser apreciada em toda a sua originalidade. O pensamento do filósofo espanhol deve ser aglutinado em torno a três grandes pontos: metafísica, antropologia filosófica e filosofia política.
No que tange à metafísica, a obra mais importante são as Disputationes Metaphysicae, escritas em 1597 e publicadas, pela primeira vez, em 1608. Com esta obra, o pensador espanhol possui o mérito de ter sido o primeiro autor europeu a formular uma sistematização metafísica rigorosa, aberta à ciência moderna, portanto passível de explicar um mundo regido pela apreensão realista dos fenômenos, abandonando a perspectiva universalista das metafísicas do século XIII, que privilegiavam a idéia de substância ou quidditas, e que eram caudatárias da tradição, seja mediante o ensino filosófico calcado, unicamente, sobre a lectio dos clássicos (Aristóteles e São Tomas), seja através da discussão de assuntos rigorosamente emergentes da problemática teológica (nas chamadas quaestiones disputatae).
Suárez partiu do pressuposto (tipicamente moderno, porquanto emergente de uma perspectiva antropocêntrica) de que, como ponto de partida, a filosofia deve criar a sua própria metodologia e assinalar o âmbito da sua validade, mediante a formulação de uma metafísica sistemática acorde unicamente com as exigências lógicas da razão. Somente assim, ponderava o pensador espanhol, poderia ser empreendido, numa segunda etapa, com segurança e rigor, o estudo da Teologia. A sua concepção aproximava-se mais da apreensão da essência do concreto ou estidade (haecceitas), postulada pelos nominalistas ingleses Duns Scot (1266-1308) e Guilherme de Ockham (1285-1347).
A respeito, frisa o historiador das idéias G. Fraile: "Uma nota caraterística de Suárez é a sua preocupação pelo real e concreto, evitando o conceitualismo e o abstracionismo. Esforça-se por fazer uma filosofia realista, baseada nas coisas tal como são, estudando-as em si mesmas e não em abstrações mentais. Por isso, insiste em que a metafísica não somente trata de conceitos, mas que versa sobre seres reais. A idéia central da metafísica suareziana consiste na contraposição entre dois grandes classes de seres reais: o infinito e o finito, com a finalidade de estabelecer uma relação de dependência essencial e total das criaturas em relação ao seu criador" [Fraile, 1985, I: 381]. O pensador espanhol deitou, assim, as bases para as metafísicas racionalistas do século XVII, de Descartes (1596-1650), Leibniz (1646-1716) e Espinosa (1632-1677).
No terreno da antropologia filosófica, as obras mais importantes de Suárez são o tratado De Anima (cujo manuscrito data de 1572, tendo sido publicado em 1621) e De ultimo fine hominis ac Beatitudine (publicado em 1613). Contrastando com a perspectiva teocêntrica medieval, que colocava o homem numa dimensão eminentemente religiosa e universal, Suárez parte para estruturar, alicerçado na sua metafísica da realidade concreta, uma antropologia filosófica, cujas duas notas caraterísticas seriam as seguintes: em primeiro lugar, que respondesse a uma rigorosa experiência do que é o homem de carne e osso, tal como se apresentava à experiência das ciências positivas e, em segundo lugar, que explicasse as caraterísticas humanas diversificadas, que estavam, na época, sendo postas em evidência graças às descobertas de novas terras.
No que diz relação à primeira exigência, o pensador salmantino parte, com desassombro, para a formulação de uma filosofia do homem que reflita os conhecimentos que sobre a constituição humana emergem das ciências positivas, notadamente da Medicina (Suárez discute, por exemplo, a problemática da unidade corpo-alma, à luz da hipótese dos transplantes de órgãos). No que tange à segunda exigência, o mestre espanhol interessou-se, sobremaneira, pelo fenômeno humano em outras culturas, tendo destacado que o norte das suas investigações, nesse terreno, era a sua razão experimental (per viam propriae inventionis), mais do que a tradição, embora não rejeitasse os ensinamentos da filosofia medieval, antes tentasse conciliá-los com o estado atual do conhecimento. Isso confere à obra de Suárez, no terreno antropológico, uma grande originalidade, bem como uma tensão conceitual relevante, fazendo dele um escritor dramaticamente ancorado na modernidade.
A propósito, frisa Salvador Castellote (1932-), na Introdução à edição espanhola do tratado de S. Tomás, De Anima [1978, I: LXXI-LXXII]: "A Antropologia filosófica fundamentaria as ciências, não lhes dando, certamente, de forma literal, o método que deveriam seguir - isso seria suprimir as ciências - mas exercendo uma função crítica, advertindo que todo o discurso científico deve versar, em última instância, sobre a totalidade do homem. Destarte, seria talvez possível para a Antropologia filosófica proporcionar hipóteses abstratas de trabalho antropológico, deixando às ciências a sua concepção positiva. E, de outro lado, as ciências determinariam a Antropologia filosófica, fazendo-lhe entender que não é possível conhecer bem o todo sem o conhecimento prévio das partes, da mesma forma que é impossível integrar as partes sem um prévio conhecimento do todo". O mestre espanhol sintetizava esse ponto de vista no seguinte princípio: "De hominibus autem obscurum est ad quam scientiam pertineant" (”No que tange à natureza humana, é obscura a pergunta acerca de a qual ciência ela pertença”]. Suárez emerge, assim, como o primeiro formulador moderno de uma antropologia filosófica em diálogo com as ciências positivas, abrindo caminho para a formulação ulterior, já no século XVIII, com Hume (1711-1776) e Kant (1724-1804), da filosofia como crítica das ciências.
A rica abrangência da antropologia filosófica pensada por Suárez salta à vista no pensador metafísico que, no século XVII, melhor recebeu o seu benfazejo influxo: Gottlieb Wilhelm Leibniz (1646-1716). O pensador alemão partiu para realizar o que Suárez tinha planejado: uma filosofia do homem alicerçada numa metafísica teodiceica rigorosamente racional, em constante diálogo com as ciências e aberta às novas manifestações culturais reveladas pelos descobrimentos. É significativa dessa inspiração ecumênica a abertura de Leibniz à cultura chinesa da sua época, estudada a partir do diálogo estreito com os missionários jesuítas. Para o pensador alemão, seria possível tentar uma amálgama criativa entre cristianismo e confucionismo, como forma de dotar o mundo de dois pólos de moderação, que garantissem a paz universal e o progresso: a Europa cristã, no Ocidente, e a China convertida ao cristianismo, mas sem perder o élan moral do confucionismo, no Oriente [cf. Leibniz, 1994].
No que respeita à filosofia política, são representativas duas obras de Francisco Suárez: De legibus ac Deo Legislatore (1612) e Defensor Fidei contra Jacobum Regem Angliae (1613). O cerne da sua concepção consiste na formulação do princípio da soberania popular que, difundido nas Universidades que a Espanha criou nas suas colônias americanas, ensejou o primeiro surto moderno de liberalismo autóctone, a partir do qual se iniciaram os movimentos independentistas dos comuneros (nas últimas décadas do século XVIII) e da independência (nas primeiras décadas do século XIX). Sobre essa base netamente ibérica iriam ser assimiladas, posteriormente, as idéias do liberalismo anglo-saxão e francês.
A respeito da concepção política de Suárez, escreveu Alain Guy (1918-1998), na sua Historia de la Filosofía Española [1985: 113-114]: "A análise do princípio de soberania é muito mais avançada (em Suárez) do que nos autores anteriores. Aqui, o poder é dado por Deus a toda a comunidade política e não somente a tal ou qual pessoa. Contra o cesarismo e os legistas, o maquiavelismo e o luteranismo, Suárez elabora, em síntese, a teoria da democracia, que aprofundou ainda mais no seu Defensor Fidei. A noção de pacto ou de contrato social aparece já no doctor eximius. A comunidade política é constituída a partir de um primeiro consenso entre indivíduos ou famílias; ela pode delegar o poder a um grupo ou a uma só pessoa, mediante um segundo pacto, que Deus deixa à nossa discrição. Por regra geral a democracia, ou seja, o governo direto do povo pelo povo, será a forma mais natural de governo, e não carece de uma instituição particular, pois é conforme à espontaneidade do nosso ser. Mas pode ocorrer que não seja capaz de exercer essa administração sem intermediário e que seja necessário recorrer a um mandatário, investido então do poder público por transferência: este pode ser um rei ou uma oligarquia.
De todas as formas, a autoridade do governo fica restrita a certos limites. Se o soberano abusar da sua potestas, converte-se num tirano, contra quem é legítimo lutar. Em caso extremo, é permitido matá-lo, "uma vez esgotados todos os meios para induzi-lo ao arrependimento". Destaquemos a ideia muito atual de “soberania limitada” emergente do contrato social que, nestes conturbados tempos de neo-populismo e neo-bonapartismo, precisa ser de novo lembrada, como outrora fez, na França emergente da Revolução de 1789, o grande Benjamin Constant de Rebecque (1767-1830) na sua obra clássica Princípios de Política (1810) [cf. Constant, 1970: 7-18].
Conclusão.
Os séculos XIV e XV desenham-se como O ocaso da Idade Média, na feliz expressão de Huizinga (1872-1945), que deu título ao seu clássico livro. Mas a Renascença não aparece como uma novidade que brilha de um momento para outro. Há o lusco-fusco do entardecer, que prenuncia a noite, e o amanhecer que revela, entre névoas e sombras, os raios do sol do novo dia. O fim da Idade Média veio na trilha do desgaste das formas de pensar e de sentir a vida. O Nominalismo levou, gradativamente, ao interesse pelo conhecimento do concreto. A releitura da Literatura Greco-Romana e a revivescência das Artes Plásticas e da Pintura desse belo período, abriram a porta para a valorização deste mundo, libertado já o espírito da dinâmica mítica pagã, que tornava o herói joguete nas mãos do trágico destino traçado pelos Fatos Primordiais.
A Renascença abre-se caminho na releitura do Mito Judaico-Cristão do Inferno, Purgatório e Paraíso, cultuado na Idade Média, mas revisitado à luz dos interesses dos cidadãos de Florença, que Dante Alighieri (1265-1321), genialmente, coloca como pano de fundo da viagem ao Além, na sua Divina Comédia (1472). A História que Dante conta é, ao mesmo tempo, Divina, pois ainda valem os temas do Inferno, Paraíso e Purgatório, mas não como visão do Mistério perante o qual somente cabe o silêncio e a crença, mas como realidade que pode ser experimentada sensorialmente. Daí a característica de Comédia do relato florentino.
Essa tênue linha de transição entre um momento e outro, entre a Idade Média e a Renascença, é magistralmente apresentada por Johan Huizinga, no prefácio à primeira edição do seu clássico O outono da Idade Média, em 1919, com as seguintes palavras: “A origem do novo é o que geralmente nosso espírito procura no passado. Deseja-se saber como os novos pensamentos e as novas formas de vida, que mais tarde brilharão em toda a sua plenitude, foram despertados; observa-se esse período sobretudo quanto às crenças que continuam no tempo seguinte. Com quanto zelo procurou-se na civilização da Idade Média pelos embriões da cultura moderna; com tanto empenho, que às vezes era como se a história cultural da Idade Média não passasse de um advento da Renascença. Apesar disso, em todo lugar naquela época, uma vez considerada morta e enterrada, já se via o novo germinar, e tudo parecia apontar para uma futura perfeição. No entanto, na busca pela nova vida que surgia, era fácil esquecer que no passado, assim como na natureza, a morte e a vida andam sempre lado a lado. Antigas formas de civilização morrem enquanto, ao mesmo tempo e no mesmo solo, o novo encontra alimento para florescer”.
“Isso prova que se deve considerar os séculos XIV e XV – continua Huizinga - não como o anúncio da Renascença, mas como o final da Idade Média, o último sopro da civilização medieval, como uma árvore com frutos muito maduros, completamente desenvolvida. O fervilhar de formas de pensamento antigas e coercivas em lugar do germe vivo do período histórico seguinte, o fenecimento e o enrijecimento de uma civilização rica – esse é o conteúdo principal destas páginas. Ao escrever este livro, era como se meu olhar estivesse voltado para as profundezas de um céu noturno, mas de um céu tomado de vermelho-sangue, pesado e desértico, de um cinza-chumbo ameaçador, revestido de um falso brilho cúprico. (...). Com a atenção sempre voltada para o declínio, o esgotamento e o fenecimento, é muito fácil deixar que os matizes da sombra da morte tomem todo o trabalho”. [Huizinga, 2013: 6].
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