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TÓPICOS ESPECIAIS DE FILOSOFIA MODERNA - CAPÍTULO 4º - LEIBNIZ, ENTRE A TRADIÇÃO E A MODERNIDADE

TÓPICOS ESPECIAIS DE FILOSOFIA MODERNA - CAPÍTULO 4º - LEIBNIZ, ENTRE A TRADIÇÃO E A MODERNIDADE

GOTTFRIED WILHELM LEIBNIZ (1646-1716) - UM DOS PRINCIPAIS SISTEMATIZADORES DA FILOSOFIA RACIONALISTA

Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716) é um dos grandes representantes da filosofia moderna: ele sistematizou a metafísica que melhor respondeu às preocupações de conciliação entre razão e fé, tradição e modernidade, filosofia e teologia, num momento em que muitos espíritos queriam voltar as costas, definitivamente, à Idade Média. Leibniz é um conciliador, mas não um eclético superficial. Foi profundo conhecedor da ciência do seu tempo, desde a física e a matemática até a geologia e o direito. Assimilou com afinco o pensamento medieval e as escolásticas espanhola e portuguesa. E era um estudioso da teologia na vertente platônico-agostiniana. Nasceu em Leipzig e faleceu em Hannover. Fez os seus primeiros estudos na Nikolaischule de Leipzig, onde muito cedo aprendeu a dominar as línguas clássicas. Aos quinze anos ingressou na Universidade de Leipzig, para frequentar os cursos de jurisprudência e filosofia com o neo-aristotélico Christian Thomasius (1655-1728). Dominava a filosofia antiga e medieval, assim como a escolástica ibérica, especialmente a dos jesuítas espanhóis Francisco Suárez (1548-1617) e Luís de Molina (1535-1600), e a do português Pedro da Fonseca (1528-1599) [cf. Suárez, 2004].

A sua formação não ficou restrita, contudo, ao campo da filosofia antiga e medieval. Estudou, também, a nova filosofia aberta à ciência moderna, de autores como Francis Bacon (1651-1626), René Descartes (1596-1650), Thomas Hobbes (1588-1679), os astrônomos Johannes Kepler (1571-1630) e Galileu Galilei (1564-1642), o filósofo dominicano Tomás Campanela (1568-1639) e o médico e matemático Girolamo Cardano (1501-1576). Conheceu em profundidade a filosofia de Baruch Espinosa (1632-1677). Empreendeu, de outro lado, o estudo das matemáticas na Universidade de Jena (na Turíngia, Alemanha), sob a orientação do matemático e astrônomo Erhard Weigel (1625-1699). Em novembro de 1666 recebia o título de Doutor em Leis, conferido pela Universidade de Altdorf, na Baviera.

Na cidade de Nuremberg foi nomeado secretário da Sociedade Alquimista. Conheceu ali o eleitor de Mogúncia, Christian von Boynebur (1622-1672), em cujo serviço entrou, tendo chegado a desempenhar, ao seu lado, importantes missões diplomáticas. Em 1672 viajou a Paris, provavelmente com a missão de dissuadir Luís XIV (1638-1715) da sua política agressiva na Europa. Leibniz teria proposto ao Monarca francês que dirigisse essa política contra o Egito, a fim de enfraquecer o poderio holandês. Cento e trinta anos depois, Napoleão Bonaparte (1769-1821) estudou com atenção esse plano. Em Paris, Leibniz entrou em contato com os mais influentes intelectuais da França, entre eles os padres e filósofos Nicolas Malebranche (1638-1715) e Antoine Arnaud (1612-1694). Entrou também em contato com o célebre físico e astrônomo holandês Christian Huygens (1629-1695).

Grande foi a atividade diplomática e política desenvolvida por Leibniz, visando a unificar os cristãos. Dignos de menção são os esforços do filósofo a fim de convencer Luís XIV e o czar Pedro o Grande (1672-1725) da Rússia, para materializar uma aliança dos Estados cristãos contra os muçulmanos. Paralelamente a esse esforço no terreno da diplomacia, Leibniz tentou aproximar as igrejas cristãs, constituindo-se, assim, em precursor do hodierno ecumenismo. No ano de 1672 morria o protetor de Leibniz, o príncipe de Mogúncia. O filósofo viajou, então, para Londres, onde conheceu importantes personalidades da intelectualidade, como sir Isaac Newton (1643-1727), Samuel Clarke (1675-1729), Robert Boyle, Henry Oldenburg (1618-1677) e John Pell (1611-1685).

Em 1676 Leibniz chegou à ideia de cálculo infinitesimal, tendo publicado anos depois, em 1684, os resultados de suas pesquisas. Paralela e independentemente, Newton chegava à mesma descoberta. Mas, em decorrência do fato de o físico inglês ter publicado as suas pesquisas em 1687, ensejou-se, entre os partidários de Leibniz e de Newton, aguda polêmica acerca de quem teria descoberto primeiro o cálculo infinitesimal. O certo é que ambos chegaram por vias diferentes a esse resultado, sem que, nesse ponto, tivesse havido influência recíproca.

A serviço do duque João Frederico Brunshwick Löneburg, em 1673, Leibniz recebeu a incumbência de redigir a história da casa de Brunshwick, à qual serviu até a sua morte. Em 1682, o pensador fundou as Acta Eruditorum e em 1700 foi nomeado primeiro presidente da Sociedade de Ciências de Berlim, que posteriormente se converteria na Academia de Ciências da Prússia (a famosa Preussische Akademie der Wissenschaften). Leibniz foi também membro da Academia de Paris e da Real Sociedade de Ciências de Londres.

Os seus escritos, em grande parte inéditos, abarcam aproximadamente 40 volumes. As principais obras filosóficas de Leibniz, em ordem cronológica, são as seguintes: Disputatio metaphysica de principio individuali (1663); De arte combinatoria (1666); Confessio naturae contra atheistas (1668); Epistola ad Jacobum Thomasium (1669); Dissertatio de stylo philosophico Nizolii (1670); Theoria motus abstracti et hypothesis de phisica nova (1671); Confessio philosophi (1673); Meditationes de cognitione, veritate et ideis (1648); Discours de métaphysique (1686); Gesetz der kontinuität (1687); De primae philosophiae emendatione et de notione substantiae (1694); Specimen dynamicum, Systhème nouveau de la nature et de la communication des substances, De l´harmonie preétablie (1695); De rerum originatione radicali (1697); De ipsa natura sive de vi insita actionibusque creaturarum (1698); Considérations sur la doctrine d´un esprit universel (1702). Nouveaux essais sur entendement humain (1704); Considérations sur le principe de la vie et sur les natures plastiques (1705); Essais de theodicée sur la bonté de Dieu, la liberté de l´homme et l´origine du mal (1710); Monadologie e Principes de la nature et de la grâce (1714).

Quatro pontos serão desenvolvidos em relação ao pensamento filosófico de Leibniz: I – A ideia de harmonia. II – A ideia de universalidade. III – A ideia de mônada. IV – Algumas teses de Leibniz para serem lembradas.

I – A ideia de harmonia.

Como salienta Bréhier, “Leibniz nunca separou esses três objetivos: religião, física e vida civil Tudo fez por eliminar as divergências, aparentemente muito grandes, entre a descontinuidade da vida cristã, do universo e do seu próprio continuísmo” [Bréhier, 1977: II, 236]. O mencionado historiador da filosofia destaca que praticamente toda a vida de Leibniz girou ao redor da preocupação com o triunfo da cristandade, num momento histórico em que a unidade da fé era ameaçada, na Europa, pelas invasões muçulmanas. Esse triunfo só poderia ser garantido mediante um retorno dos cristãos à unidade, que deveria começar pela união dos luteranos e calvinistas e, posteriormente, continuar pela reunião dos protestantes da Alemanha à Igreja Católica. Fez tentativas nesse sentido e entrou em contato com o historiador oficial da França, Paul Pellisson (1624-1693), buscando chegar até o pregador oficial de Luís XIV, o bispo e teólogo católico, defensor do absolutismo real, Jacques-Benigne Bossuet (1627-1704). Em 1686 escreveu o Systema theologicum, no qual propunha um formulário de reconciliação entre os cristãos. Uma carta de Leibniz a Madame de Brinon (1631-1701) traduz muito bem o real sentido das suas aspirações ecumênicas, bem como a profundidade da sua fé: “Tendes razão, senhora, de julgar-me católico de coração. A essência da catolicidade não consiste em comungar, exteriormente, com Roma; senão, os que são excomungados injustamente deixariam de ser católicos e sem culpa própria. A comunhão verdadeira e essencial, que faz que participemos do corpo de Jesus, é a caridade” [Leibniz apud Bréhier, 1977: II, 237].

Ferrater Mora aprecia, da seguinte forma, esse aspecto da busca da harmonia entre religião, filosofia da natureza e vida civil por parte de Leibniz: “Estas múltiplas atividades e interesses de Leibniz acham-se em estreita relação com a natureza do seu próprio pensamento filosófico. Este é dominado por várias ideias centrais, entre as quais mencionaremos as seguintes: a harmonia, a continuidade e a universalidade. Longe de rejeitar a tradição, Leibniz aspirou a incorporá-la às ideias propostas pela filosofia e a ciência modernas. Assim, por exemplo, Leibniz desenvolveu o mecanicismo, mas tentou harmonizá-lo com a doutrina das formas substanciais; salientou a importância da ideia de substância, mas não sem detrimento da ideia de relação, etc. Como o próprio Leibniz falou numa ocasião: ‘je ne méprise presque rien’ – nada ou quase nada deve ser desprezado; tudo ou quase tudo pode ser integrado e harmonizado; o mundo melhor é, de qualquer forma, o mundo mais pleno. Por isso Leibniz aspirou a ser o herdeiro de uma philosophia perennis, uma filosofia que muda, mas de uma forma contínua, e onde cada momento sucede ao anterior e anuncia o posterior. Nada de estranho que, no seu tempo, Leibniz fosse tido como um filósofo eclético” [Ferrater Mora, 1968: II, 26].

Se a ideia de harmonizar religião, natureza física e vida civil faz de Leibniz um pensador conciliador e eclético, que estendeu uma ponte entre a cultura medieval e o pensamento moderno, a sua meditação filosófica é, também, harmônica, porquanto se alicerça em pressupostos que a reduzem à unidade. Quais seriam esses pressupostos? Dois, a meu modo de ver. Em primeiro lugar, a suposição de que Deus criou o melhor dos mundos possíveis, um mundo necessariamente harmônico. À ideia de Deus como substância omnisciente e onipotente, Leibniz vincula, na sua obra A profissão de fé do filósofo (Confessio philosophi, 1673), a ideia de justiça. Ser justo – observa o pensador – consiste, para Deus, em amar a todos os homens. Amar consiste em se deleitar na felicidade do outro. Deleitar-se consiste em sentir a harmonia. E esta consiste na “semelhança na variedade, ou bem na diversidade compensada pela identidade”. Deus, portanto, ser onisciente e onipotente, fez o universo harmônico.

O segundo pressuposto leibniziano é o de que o homem está chamado a tomar conhecimento da harmonia do Universo e que nisso consiste a máxima felicidade do espírito. A respeito, escreve Leibniz na Profissão de fé do filósofo: “Portanto, a felicidade consistirá no estado de espírito o mais harmônico possível. A natureza do espírito é pensar; a harmonia do espírito consistirá, pois, em pensar a harmonia; e a máxima harmonia ou felicidade do espírito consistirá na concentração da harmonia universal, quer dizer, de Deus, no espírito” [Leibniz, 1978: 38 ss.]. O nosso autor conclui: “Tenho cumprido, pois, com o que me tinha proposto: demonstrar que toda felicidade é harmônica”.

Leibniz retoma, em termos modernos, a perspectiva de pensamento platônico-agostiniana, que tanto empolgou a meditação filosófica portuguesa. Saímos de Deus e a Deus voltaremos. A nossa felicidade, nesta terra, consiste em contemplarmos a harmonia que espelha a Unidade de Deus. Se o bispo de Hipona tinha exclamado, com verdadeira saudade metafísica: “Fecisti nos ad Te et inquietum est cor nostrum donec requiescat in Te" ("Criastes-nos para vós e o nosso coração vive inquieto enquanto não repousar em Vós”, Confissões, Livro I, Capítulo 1), o pensador alemão, mais otimista, mas na mesma linha de busca da unidade originária, dirá, no Discurso de Metafísica: “Deus, que vê sempre a maior perfeição em geral, terá o maior cuidado dos espíritos e lhes dará, não só em geral, mas também a cada um em particular, a maior perfeição que for permitida pela harmonia universal” [Leibniz, 1980: 25-26].

No entanto, surge aqui a implacável questão: como conciliar a harmonia universal – que pressupõe a presciência divina de todos os atos humanos – e a liberdade das mônadas espirituais? Analisaremos a questão um pouco mais adiante, à luz da doutrina leibniziana sobre a monadologia.

II – A Ideia de Universalidade.

Como vimos, a ideia de harmonia está ligada, no pensamento leibniziano, à ideia de continuidade. Estas duas ideias, por sua vez, estão ligadas à ideia de universalidade, na medida em que ela expressa o projeto de elaboração de uma ciência e de uma linguagem universais, que tornem possível a comunicação entre todos os seres humanos. Nesse contexto deve explicar-se o esforço desenvolvido por Leibniz, no início de sua carreira, em prol da descoberta de uma ars combinatoria e de uma characteristica universalis. A primeira consistiria num sistema dedutivo que tornasse possível, a todo mundo, elaborar combinações dedutivas dos símbolos, a fim de que, como o próprio Leibniz frisava, “pudessem terminar essas cansativas polêmicas com que as pessoas se cansam umas às outras” [Leibniz, 1978: 60-61].

Mas, para isso se tornar possível, seria necessário converter os raciocínios em alguma coisa observável. Leibniz apela, então, para uma materialização deles, a fim de que fiquem tão apreensíveis como os das matemáticas, de forma que possamos descobrir um erro a olho nu, a fim de que, quando aconteçam disputas entre as pessoas, posamos dizer: “calculemos, para ver quem tem a razão” [Leibniz, apud Ferrater Mora, 1968: II, 26]. A ciência universal almejada por Leibniz procederia de forma semelhante à lógica e à matemática, embora estas constituam partes daquela. Leibniz explica assim a possibilidade dessa ciência universal: “(...). O corpo inteiro das ciências pode ser comparado a um oceano, que é contínuo em todas as partes, sem hiatos ou divisões, mesmo que os homens pensem que existem partes nele e lhes deem nome segundo a sua conveniência” [Leibniz, apud Ferrater Mora, 1968: II, 26-27].

Em que pese o caráter arbitrário dos tipos ou caracteres empregados na fundação dessa ciência universal, Leibniz, contudo, esclarece que “há, na sua aplicação e contexto, algo que não é arbitrário, quer dizer, uma relação que existe entre os caracteres e as coisas”; em decorrência disso, “a verdade não se baseia no que é arbitrário nos caracteres, mas no que é permanente neles, quer dizer, na relação que há entre os caracteres e as coisas” [Leibniz apud Ferrater Mora, 1968: II, 27].

Referindo-se à abrangência ontológica das noções de universalidade e continuidade, Ferrater Mora frisa: “As noções de universalidade e continuidade, na ideia da ciência universal postulada por Leibniz, correspondem à universalidade e continuidade que se encontram na mesma realidade. O cálculo infinitesimal não é, por isso, uma simples série de convenções: é a melhor forma de conceitualizar e matematizar a continuidade da realidade inteira e do movimento. Pode ser considerado este cálculo como o instrumento, ou, quando menos, um dos instrumentos conceituais (e calculatórios), cujo uso foi sugerido a Leibniz pela sua ideia da perfeita continuidade do real” [Ferrater Mora, 1968: II, 27].

Em síntese, a ideia leibniziana de universalidade repousa na continuidade e esta, por sua vez, tem fundamentum in re na continuidade do real. Em que consistirá essa continuidade? Certamente não é um atributo da res extensa, como na concepção de Descartes, que é duramente criticado por Leibniz, na medida em que ela enseja o dualismo espírito – matéria. Também não é uma continuidade ontológica de tipo imanente, como a que inspira o panenteísmo de Espinosa – alcunhado de panteísta tout-court por Leibniz. Trata-se, como mostraremos a seguir, ao explicarmos a concepção do monadismo leibniziano, de uma continuidade presidida pela ideia de causalidade final e colocando, como analogado principal do ser, o ente espiritual.

III – A ideia de mônada.

Qual foi o caminho trilhado por Leibniz para a formulação da ideia de mônada, que constitui o cerne da sua metafísica? Certamente, como mostrou Martial Guéroult (1891-1976), o nosso autor passou das exigências teóricas da ciência da natureza à formulação dos princípios metafísicos implícitos na monadologia. O próprio Leibniz, perplexo ante o incomensurável conjunto de forças do universo, confessava, assim, a abertura do seu pensamento à metafísica: “Para sair do labirinto, não achava outro fio de Ariadne diferente da avaliação das forças, sob a suposição do princípio metafísico de que o efeito total é sempre igual à causa plena” [Leibniz, apud Guéroult, 1977: 26; cf. Leibniz, 1981: 24].

A concepção das mônadas, finalisticamente organizadas sob o princípio da harmonia preestabelecida, constitui o cerne da metafísica leibniziana. O historiador da filosofia Walter Brugger (1904-1990) definiu, claramente, nestes termos, o conceito de mônada leibniziana: “No relativo à sua essência, a mônada é o portador ou sujeito primitivo simples e absolutamente fechado em si mesmo do ser substancial; é concebida como uma entidade de natureza psíquica, na qual tem também o corpóreo o seu fundamento. As mônadas finitas foram criadas por Deus, mônada infinita, ilimitada no que tange à plenitude do ser e à visão do universo. As mônadas criadas abarcam, outrossim, a plenitude do ser e espelham o universo, mas só na medida do seu ponto de vista, graças ao qual se explicam a sua finitude e pluralidade” [Brugger, 1975: 35].

Analisemos alguns aspectos fundamentais da monadologia leibniziana, sem pretender, nestas páginas, abarcar toda essa doutrina filosófica. Em primeiro lugar, a ideia de que a raiz ôntica de tudo quanto existe no universo é a mônada, não redutível à extensão e definível somente como força, coloca a metafísica leibniziana bem perto da física contemporânea, que se manifestou claramente incompatível com uma noção estática de substância.

Em segundo lugar, cabe salientar o caráter da monadologia de Leibniz: tudo, no universo, está orientado a construir a cidade de Deus, que é o reino das mônadas espirituais sob o comando da mônada infinita. Ora, Deus vigia como pai providente para que tudo de bom aconteça aos seus filhos. Esse providencialismo leibniziano, exposto no Discurso de metafísica, teve grande repercussão no pensamento português.

Em terceiro e último lugar, destacamos o modelo matemático que serve a Leibniz, para explicar a interrelação das forças despendidas pelas mônadas no Universo. Contrariando o ocasionalismo de Malebranche, que negava a realidade ôntica ao mundo físico e o reduzia a vácua aparência, Leibniz considera que as mônadas (hierarquizadas em não espirituais e espirituais) são entes reais portadores de uma representação do universo, mas interagem não em virtude de uma causalidade eficiente que as coloque umas acima de outras. Alicerçado num modelo matemático-finalístico que hoje chamaríamos cibernético, Leibniz concebe a mônada infinita como sapientíssima programadora da interrelação das ações que se passam entre as mônadas finitas, de forma tal que umas correspondam perfeitissimamente a outras.

A questão da liberdade é resolvida, em A profissão de fé do filósofo, mediante o seguinte raciocínio: “Deus, mesmo sendo a razão dos pecados, não é, contudo, o autor deles e, se me fosse permitido falar de forma escolástica, diria que a causa última dos pecados, bem como a de todas as criaturas, está em Deus, e a causa moral no pecador” [Leibniz, 1978: 26]. Para o racionalista Leibniz, o pecado, o mal moral, não é nenhuma entidade. É uma falta de conhecimento, por parte da mônada espiritual finita, da ordem harmônica que Deus imprimiu no universo. Deus, contudo, permite o mal moral do pecado em virtude da lex melioris, frisa Leibniz na Profissão de fé do filósofo: “Deus está essencialmente forçado à eleição do melhor: por isso cria o homem livre, pois caso contrário ele não poderia realizar o bem moral” [Leibniz, 1978: ibid.].

Temos seguido os passos do pensamento leibniziano, ao redor de três pontos fundamentais: as ideias de harmonia, de universalidade e de mônada. A figura de Gottfried Wilhelm Leibniz surge como um pensador conciliador, espiritualista, que sistematizou uma metafísica moderna, porquanto formulada a partir das exigências teóricas da nova ciência da natureza, mas ao mesmo tempo tradicional, no sentido de permanecer fiel à problemática ao redor da qual foi proposta a metafísica escolástica: responder às questões da liberdade humana e do absoluto. E justamente esse tom conciliador entre a tradição e a modernidade, bem como essa feição eclética de Leibniz (que o levava a valorizar o que de aproveitável houvesse nos diferentes sistemas), os fatores que fizeram dele o inspirador da moderna teodiceia portuguesa, especialmente com Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846), Pedro Amorim Viana (1822-1901) e José Maria da Cunha Seixas (1836-1895).

Surgido da confluência de três vertentes filosóficas que privilegiavam o tema do absoluto, a cristã, a muçulmana e a hebraica, o pensamento português seria eclético por natureza e teodiceico por vocação. Leibniz, ao ancorar no contexto da filosofia platônico-agostiniana, coloca-se de direito entre os mentores da primeira dessas correntes, como Baruch Espinosa (1632-1677) o fora em relação à vertente hebraico-portuguesa.

A importância que a filosofia de Leibniz representa em face do pensamento brasileiro é secundária, toda vez que a nossa meditação girou, desde o século XIX, - como bem salientou Antônio Paim na História das ideias filosóficas no Brasil - ao redor de temática bem definida e diversa da que vingou em Portugal: as questões da consciência e da liberdade. No entanto, o estudo de Leibniz é importante no nosso meio para avaliarmos devidamente, no seu nascedouro, as diferenças fundamentais que medeiam entre a meditação filosófica em Portugal e no Brasil, e para compreendermos algumas características do romantismo de Domingos Gonçalves de Magalhães (1811-1882), que ancora, firmemente, num espiritualismo de cunho eclético, aberto à ideia providencialista.

Do ângulo da filosofia política, o pensamento de Leibniz terminou influenciando na ideia de poder neutro, que Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846) hauriu dos doutrinários franceses e dos seus precursores. Refiro-me, especificamente a Jacques Necker (1732-1804), ministro das Finanças de Luís XVI (1754-1793) com a ideia, inspirada em Leibniz, da monarquia como força promotora da moderação e da ordem no corpo político. Refiro-me, também, ao conceito de “poder neutro” presente na obra Princípios de Política (1810) do pensador suíço-francês Benjamin Constant de Rebecque (1767-1830), da qual emergirá, pela lavra de Silvestre Pinheiro Ferreira, a instituição imperial do “poder moderador”.

IV – Algumas teses de Leibniz para serem lembradas.

1 – Ponto de partida: crítica à metafísica dualística de Descartes. Deus, que é perfeição infinita, não pode ter criado um universo bitolado em duas substâncias irreconciliáveis (res extensa e res cogitans), na forma em que foi pensado por Descartes.

2 – Deus, portanto, criou o “melhor dos mundos possíveis”. Deus, como ser perfeitíssimo, não poderia ter criado senão “o melhor dos mundos possíveis”, caracterizado pelo princípio da “harmonia preestabelecida”.

3 – O homem está chamado a tomar conhecimento da “harmonia preestabelecida” do Universo. Nisso consiste a verdade e a máxima felicidade do espírito. A nossa bem-aventurança, na Terra, consiste em contemplarmos a harmonia do Cosmo, que espelha a perfeição divina.

4 – O homem apreende, pelo seu conhecimento, a harmonia do Universo em dois níveis: matemático (pela ciência da natureza) e metafísico (pela filosofia). A Filosofia constitui a apreensão mais completa da “harmonia preestabelecida”. Nas ciências, apreendemos a harmonia com a ajuda das matemáticas. Nelas, joga um papel importante o “cálculo infinitesimal”, que nos habilita a apreendermos a harmonia cósmica no contexto de uma infinita quantidade de variáveis. Na filosofia, apreendemo-la com a ajuda dos conceitos metafísicos, que exprimem a harmonia da totalidade. A Ars Combinatoria (que é a Lógica Matemática) constitui, para as ciências e a filosofia, poderoso instrumento lógico que nos possibilita superar as contradições decorrentes dos significados equívocos das palavras (“calculemos para que nos entendamos”, afirmava Leibniz).

5 – Cerne da metafísica leibniziana: a monadologia. O universo foi formado mediante a criação, por Deus, de infinitas unidades substanciais de energia ou mônadas. Essas unidades estão rigorosamente hierarquizadas e organizadas pelo Supremo Arquiteto do Universo (Deus) que age à maneira de Causa Final, no contexto de um modelo que hoje caracterizaríamos como finalistico-cibernético. A matéria, em si, não existe. Ela é apenas manifestação aparente da única realidade existente: a força ou energia, constituída pelas mônadas. Estas podem, portanto, expandir no espaço a sua essência, ou contraí-la num ponto (à maneira dos buracos negros postulados pela astrofísica contemporânea). Cada uma das mônadas encerra, dentro de si, uma representação da harmonia do Cosmo. Essa representação, nos seres humanos, é consciente, sendo que os demais seres não possuem essa consciência, o que torna o homem o Rei da Criação, não para atrapalhar a ordem da “harmonia preestabelecida”, mas para, com a luz da razão, reconhecer essa ordem harmônica e louvar a Deus.

6 – A liberdade humana é um postulado teológico que se depreende da tese do “melhor dos mundos possíveis”. Se Deus não tivesse criado o homem livre, faltaria ao Cosmo uma perfeição importante, a mais exímia entre as perfeições finitas: a liberdade. Como conciliar a liberdade com a “presciência divina?” – Ao praticar o mal, o homem não está dando ensejo a um ser: o mal moral é entendido por Leibniz como ignorância (carência de conhecimento) de parte do homem, da “harmonia preestabelecida” por Deus no Cosmo. O pecador é um ignorante. A sua infelicidade consiste em desconhecer a ordem cósmica. Para Leibniz, “Deus escreve certo com linhas tortas”. Ele, na sua infinita sabedoria, antecipa-se a todos os nossos comportamentos, certos ou errados. Permite os errados, como decorrentes da nossa liberdade. Mas, tomando conhecimento do contexto em que eles acontecem, minimiza-os mediante uma ação providencial, que coloca as más ações dos pecadores junto às boas ações dos homens virtuosos, a fim de que o conjunto de todas as ações humanas seja harmonioso, como num grande mosaico bizantino. As pedrinhas escuras, irregulares, seriam as más ações. Mas estas praticamente desaparecem, ofuscadas pelo brilho das pedrinhas que representam, reluzentes e coloridas, os inumeráveis atos virtuosos dos homens bons. Assim, a ação dos maus serve como pano de fundo que ressalta a beleza das boas ações. No contexto deste arrazoado, Leibniz formula o seu “providencialismo ou lex melioris”, que se estende a todos os seres do Cosmo. Nada foi criado para ser aniquilado. Isto iria contra a bondade infinita de Deus. Todos os seres foram criados para integrarem o Universo definitivamente liberto do Mal, na Parusia, à maneira como, no século XX, o padre jesuíta Teilhard de Chardin (1881-1955) imaginou a caminhada de toda a criação em direção ao Ponto Ômega. As unidades de energia, que são as mônadas, revestir-se-ão da mais maravilhosa materialização que poderíamos imaginar, a fim de toda a criação testemunhar a grandeza e a sabedoria infinitas do Criador.

7 – A sociedade humana, na sua organização política, deve refletir a harmonia cósmica. Isso deve ocorrer mediante a estruturação harmônica das instituições a serviço do bem comum dos cidadãos, preservado graças à sabedoria previdente do Rei, que constitui uma espécie de poder moderador entre todas as forças sociais e os indivíduos, a fim de que o bem de todos se realize. As teorias do poder moderador ou do poder neutro, que foram formuladas no século XIX por Jacques Necker, Benjamin Constant de Rebecque, François Guizot, Silvestre Pinheiro Ferreira, Domingos Gonçalves de Magalhães, Paulino Soares de Sousa, etc., encontram em Leibniz o seu inspirador.

8 – Do ponto de vista religioso, Leibniz apelava para o ecumenismo entre todas as Igrejas cristãs. Essa nova realidade permitiria superar o trágico período das guerras de religião, que ocorreram na Europa ao longo dos séculos XVI e XVII. O filósofo imaginava que esse ecumenismo poderia ser construído por um Monarca cristão ilustrado (Luis XIV, da França), que faria uma espécie de pacto moderador entre as várias igrejas, incluídos os católicos e os outros príncipes e soberanos europeus, a fim de fazer frente à ameaça do Islã. Leibniz chegou a cogitar numa ordem político-religiosa universal, que incluísse a China, mediante a relação de diálogo e de atividades conjuntas entre cristãos ocidentais e budistas tibetanos [cf. Leibniz, 1994].

9 – Do ângulo antropológico, Leibniz considerava que os seres humanos, criados por Deus à sua imagem e semelhança, davam ensejo a culturas variadas. Tais culturas deveriam ser conhecidas na sua origem e nas suas manifestações, não se restringindo isso à cultura européia. Para apreendermos o fenômeno humano, pensava Leibniz, seria necessário abordarmos todas as culturas, respeitando a sua identidade, num esforço de abertura às criações humanas. Este aspecto contrastava, evidentemente, com as reservas que o filósofo tinha em face do Islamismo.

10 – O filósofo desenvolveu amplo trabalho de aconselhamento a reis e príncipes europeus, na tentativa de consolidar a unidade continental. Essa idéia da Europa Unida seria retomada, no início do século XIX, por Napoleão Bonaparte e, no século XX, pelos idealizadores do Mercado Comum Europeu e, ulteriormente, da União Europeia. Nesse contexto situa-se a obrinha de Leibniz intitulada: Filosofia para princesas [cf. Leibniz, 1989].

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