Introdução: a Herança Renascentista.
Cinco itens integram esta Introdução [cf. Paim, Prota, Vélez: 2002]: A – Principais contribuições da Renascença. B – Uma visão de conjunto. C – O hermetismo e a nova abordagem da natureza. D – A formalização do novo método científico. E – Uma nova acepção de pessoa.
A. Principais contribuições da Renascença.
O Renascimento consiste no movimento literário, artístico e filosófico que se inicia em fins do século XIV e prossegue até fins do século XVI, difundindo-se em vários países europeus a partir da Itália. Nesse ciclo lançam-se as bases da Época Moderna, notadamente por haver desembocado na Reforma Protestante e definido o programa a partir do qual se constituiu a Ciência Moderna. Esses dois ingredientes fixaram os contornos mais gerais de que se revestiu o novo ciclo da Civilização Ocidental. Com efeito, a Reforma Protestante mudou, substancialmente, a atitude diante do trabalho. E a ciência moderna proporcionou às novas gerações uma modalidade para extrair, do seu esforço físico, resultados surpreendentes: a técnica.
O desconforto surgido no seio da Igreja com o rumo que o Papado tinha tomado não buscava a ruptura, mas a simples mudança de comportamento, centrado naquilo que foi entendido como ostentação de riqueza, em detrimento da dimensão religiosa. Os críticos entendiam que a venda de indulgências, imposta pela mencionada política, constituía um flagrante atentado à sua missão fundamental. O Papado optou, entretanto, por manter inalterada a política em curso. Os incidentes com Martin Lutero (1483-1546) explicitam claramente essa opção. O monge alemão imaginou que havia ambiente para discutir a questão nos marcos da própria Igreja, mas o seu intento foi abruptamente rejeitado pelo Vaticano, que contra ele instituiu processo em 1518.
Não podendo prescindir do apoio militar dos príncipes alemães para conter a invasão muçulmana, o Imperador do Sacro Império, Carlos V (1500-1558) assinou, junto com a Liga Esmacalda, em setembro de 1555, a Paz de Augsburg, que consagrava o princípio segundo o qual os habitantes de determinado território eram obrigados a seguir a religião do monarca (cujus régio, eius religio). Desde então, surgiram outras igrejas protestantes, fenômeno que acabaria selando o destino da outra dimensão emergente: a ciência moderna. Contudo, a plena configuração desta não se consumou no ciclo compreendido pelo Renascimento, não obstante que, nele, se lançaram os seus fundamentos essenciais.
Mesmo no seio do Catolicismo, a Renascença encontrou forte eco, no terreno da espiritualidade. A fé cristã passou, das escuras catedrais góticas, onde o Absoluto se escondia no além das sombras, para uma espiritualidade centralizada na figura de Cristo, Deus que se fez homem. É a espiritualidade da “Imitação de Cristo”, que constituiu o título da obra mais importante de frei Tomás de Kempis (1379-1471), e que se tornou muito popular na Renascença europeia. Frei Tomás viveu na Holanda. O professor Márcio Ruben, na sua História da Igreja, sintetizou da seguinte forma os ideais espirituais da Congregação dos Irmãos Regulares Agostinianos, à qual pertencia o autor de A imitação de Cristo: “(Kempis) é o melhor representante da chamada ‘devotio moderna’, movimento religioso iniciado por Gerard Groot (1340-1384), fundador dos Irmãos da vida comum. Esse movimento, que se estende por toda a Europa ao longo dos séculos XV-XVI, põe sua ênfase: a) na meditação e na vida interior; b) dá pouca ou menos importância às obras rituais e externas; c) não atende o aspecto especulativo da espiritualidade escolástica dos séculos XIII-XIV, para incidir no aspecto prático da vida cristã. Um movimento que influirá de forma decisiva em leigos e religiosos, principalmente na época imediatamente anterior e posterior à Reforma. Insiste sobretudo na conversão interior, na meditação da vida e paixão de Cristo e na freqüência aos sacramentos” [Ruben, s/d. https://historiadaigreja-com.webnode.com/p/tomas-de-kempis-1379-1471-/].
A Bíblia frisa que Deus “fez o homem à sua imagem e semelhança”. A arte renascentista, podemos afirmar sem exagero, “fez Deus à imagem e semelhança do homem”. Estão aí as inumeráveis obras de arte sacra criadas pela miríade de geniais artistas da Renascença italiana, que espraiou as suas cores sobre o resto da Europa. Artistas da talha de Leonardo da Vinci, Rafael Sanzio de Urbino, Ticiano, Fra Angélico, Caravaggio, Rafael Esteban Murillo, Velásquez, Miguel Angelo Buonarruti, etc. embelezaram igrejas, espaços públicos e museus com obras que perpetuaram a memória da Renascença, como um clarão de luz colorida que iluminou Europa e o mundo.
No terreno da literatura, o relato dos mitos da tradição greco-romana foi ocupado pelo relato do mito judaico-cristão de Dante Aliguieri (1265-1321) na sua Divina Comédia, na qual, paradoxalmente, o mundo do além corresponde às expectativas da criação da “cidade dos homens” por parte deles mesmos. Dante não vacila em colocar no Inferno aqueles que, a começar pelo Papa, obstinadamente se opuseram à racional organização da República de Florença. Vê-se, aqui, uma releitura dos antigos mitos latinos. Em lugar de o herói ser, como escrevia, na Eneida, o poeta Virgílio (70-19 a.C.), referindo-se a Enéas, “joguete nas mãos do destino” (“vi Superum jactatus”), o herói renascentista, como deixa claro Maquiavel (1469-1527), centrará a atenção na organização do Estado “como obra de arte”, segundo a perspicaz apreciação de um estudioso do período, Jacob Burckhardt (1818-1897).
A busca do prazer, para os renascentistas, “non é peccato” como grita, alegre, um dos personagens de Boccaccio (1313-1385) no seu Decamenrone, ou como candidamente sugerem os poemas populares cantados por frades aventureiros no final da Idade Média, os “goliardos”, debochados apreciadores da boa mesa e das belas mulheres, em textos que foram musicados genialmente por Karl Orf (1895-1982) em Carmina Burana.
B. Uma visão de conjunto.
Costuma-se tomar como ponto de referência inicial do Renascimento a obra de Francisco Petrarca (1304-1374) e de seu contemporâneo Giovanni Bocaccio, que viveram e trabalharam em Florença, na Itália. Ambos se dedicaram à recuperação das obras clássicas, não apenas para divulgá-las, como se dera em séculos anteriores, mas sobretudo para exaltá-las e tomá-las como padrão de estilo literário. Espelha essa circunstância O Decamerão, de Giovanni Bocaccio, livro sucessivamente reeditado no Brasil. No que respeita ao amadurecimento da nova física, contudo, o apogeu desse movimento em prol de um método renovado do estudo da natureza, somente apareceu no fim do século XV e começos do XVI.
No terreno da literatura, o Renascimento produziu grandes escritores como Rabelais (1495-1553), consagrado autor de Gargântua e Pantagruel; Montaigne (1533-1592), cujos Ensaios continuam a ser publicados. O maior de todos os escritores renascentistas foi, contudo, William Shakespeare (1564-1616), cuja dramaturgia mergulhou nos porões da psique do homem renascentista. Em Portugal, o Renascimento registrou a presença de alguns escritores notáveis como Luís de Camões (1524-1579), extraordinário poeta, criador da língua literária portuguesa. Talvez se possa atribuir maior amplitude à renovação artística, em especial no terreno da pintura e da escultura. Entre os grandes mestres da renovação da pintura destacaram-se Leonardo da Vinci (1452-1519), Miguel Ângelo Buonarruti (1475-1564), Rafael Sanzio de Urbino (1484-1520) e Ticiano Vecelio (1490-1576).
No que respeita aos outros aspectos da vida cultural, o Renascimento correspondeu a um nítido trânsito para a Época Moderna. Assim, teve lugar o aparecimento da nova temática do pensamento político, com a obra de Nicolau Maquiavel, que visava a garantir a organização racional da cidade-estado de Florença. Essa renovação da temática política foi enriquecida com o surgimento, nas cidades italianas, da ciência da accountability (a fim de garantir a tributação racional continuada, base da política de segurança das pequenas Repúblicas) e com a questão da laicidade no trato da coisa pública, tema caro a Maquiavel e a Erasmo (1460-1536), ambos críticos do papel temporal do Papado. Erasmo de Rotterdam, embora não se tivesse envolvido com a Reforma, desenvolveu esclarecida crítica às pretensões temporais da Igreja de Roma.
É ainda na Renascença que se encontra o impulso inicial para a constituição da ciência moderna. Embora o Renascimento consistisse, no seu aspecto mais evidente, numa tentativa de reencontro com a época clássica, não se resume apenas a isto. Desprovida da intenção crítica, essa redescoberta do pensamento greco-romano teria consistido apenas na continuidade do movimento análogo dos séculos XII e XIII, que desembocou na renovação da filosofia cristã, com base em Aristóteles. No último desses séculos já se dispunha de traduções latinas não só das obras deste pensador, mas também de Euclides, Galeno etc. Assim, em que pese tal elemento de continuidade, como observa Nicola Abbagnano (1901-1990), “O Renascimento foi levado a sublinhar, polemicamente, sua própria diferença de orientação da idade medieval, no seio da tentativa de se ligar novamente à idade clássica e de haurir, diretamente dela, a inspiração para suas próprias atividades”.
Essa atitude crítica resulta, em grande medida, dos descobrimentos. Por isto pode-se afirmar que o Renascimento está de certa forma ligado à queda de Constantinopla, em 1453, que torna imperativo o encontro de uma alternativa para a manutenção do comércio com o Oriente. Foram os descobrimentos, com efeito, que provocaram uma primeira grande cisão na perspectiva medieval acerca da configuração do mundo. No contexto medieval, além da colocação do nosso planeta no centro do universo, com o denominado geocentrismo, essa perspectiva se completava pela geografia de Claudio Ptolomeu (90-168), na qual o Mediterrâneo era uma espécie de centro da Terra. A geografia de Ptolomeu sistematizava o conhecimento existente em seu tempo, acumulado pelos viajantes. Na medida em que se ampliava o raio de ação dos navegadores da segunda metade do século XV, o quadro traçado por Ptolomeu caía por terra.
Algumas invenções tiveram, no mesmo período, um grande impacto sobre a vida política e cultural, entre as quais a bússola. Trazida da China, onde se sabia que uma agulha imantada assinalava, invariavelmente, o Norte, foi aperfeiçoada, nos começos do século XV, pelo italiano Flávio Gioia, de Nápoles. A bússola colocou a navegação em bases inteiramente novas. Outra invenção de grandes conseqüências corresponde ao uso da pólvora em armas de fogo – igualmente uma criação chinesa, aplicada inicialmente apenas a fogos de artifício –. O uso militar da pólvora foi efetivado pelos árabes, nos começos do século XIV, na Espanha. Na chamada Guerra dos 100 Anos, que se deu entre a França e a Inglaterra (cujo ápice acontece entre 1380 e 1453), aparecem na Europa os primeiros canhões. O passo seguinte foi representado pela imprensa. Aperfeiçoando sua máquina durante muitos anos, Johannes Gutemberg (1400-1468) conseguiu realizar, em 1455, a primeira edição impressa da Bíblia. Calcula-se que, no meio século transcorrido entre a edição da primeira Bíblia e os começos do século XVI, imprimiram-se nos principais centros europeus nada menos que cinco milhões de livros.
C. O hermetismo e a nova abordagem da natureza.
Ao longo do século XVI difundiu-se, amplamente, na Itália, o chamado hermetismo. Ainda que a rigor não tivesse, como se chegou a supor, maior significado científico, contribuiu para popularizar a ideia de que a natureza se achava “escrita” em linguagem matemática. Essa hipótese circulou, de igual modo, como sendo proveniente de Platão (428-348 a.C.), cuja redescoberta ocorre também no Renascimento. Os escritos atribuídos ao filósofo egípcio Hermes Trimegisto “três vezes grande” (que viveu por volta de 1330 a.C.) chegaram à Academia Florentina com a indicação de que seriam originários do Egito, da época de Moisés, tendo sido inspirados na divindade egípcia Thor, deus do cálculo e do aprendizado, conselheiro de outros deuses.
Como mais tarde, no século XVII, veio a ser refutada tal origem remota, perdeu-se de vista a sua significação no contexto histórico da Renascença. A doutrina denominada de “hermetismo”, em meio a ensinamentos mágicos e iniciáticos, afirmava a crença na concepção quantitativa do universo e encorajava o uso da matemática para mostrar relacionamentos e demonstrar verdades essenciais.
Se esses princípios já eram conhecidos através do neoplatonismo, a descoberta de sua antiguidade incendiou a imaginação de muitos humanistas do Renascimento, entre estes Marsílio Ficino (1433-1499). Serviam também para nutrir a suspeita de que Platão frequentara os sábios do Egito. Entre as acusações que pesaram contra Giordano Bruno (1548-1600) encontra-se a de que seria adepto da doutrina do hermetismo.
D. A formalização do novo método científico.
A formulação do método científico moderno deve-se a Galileu Galilei (1564-1642), que sistematizou as suas ideias na obra intitulada: O Ensaiador (1632). Galileu revelou enorme interesse pela matemática. Sua competência na matéria acabou sendo reconhecida, em razão do qual foi admitido como professor da disciplina na Universidade de Pisa, em 1589, aos 25 anos de idade. Nos começos do novo século, já se tornara conhecido por sua habilidade na confecção de instrumentos científicos e pela exatidão nas observações astronômicas. Graças a estas, progressivamente refutou as teorias do movimento adotadas na época, que constituíam o cerne da física de Aristóteles (384-322 a.C.), encampada pela Escolástica.
A par disto, acompanhando a evolução técnica do telescópio na Holanda, Galileu dedicou-se a aperfeiçoar o modelo que possuía duas lentes. Assim, observou muito mais estrelas do que as visíveis a olho nu. Registrou que o planeta Júpiter era acompanhado, em sua órbita, por quatro pequenas luas. Concluiu que, se um planeta podia arrastar os seus próprios satélites, não era correta a inferência de que se a Terra se movesse, como supunha Nicolau Copérnico (1473-1543), a Lua seria deixada para trás.
Essa conclusão e mais os resultados dos seus aperfeiçoamentos no telescópio, sugeriam que as observações herdadas do Museu de Alexandria, no mundo antigo, deixavam a desejar, o que favorecia aos partidários da teoria heliocêntrica, que contrariava frontalmente a geocêntrica, preferida pela Igreja. Galileu – que aderiu ao heliocentrismo de Nicolau Copérnico - ingressava num terreno deveras perigoso. Admite-se que, tendo presente a circunstância, haja se decidido a abandonar Florença e radicar-se em Veneza, onde, supunha, contaria com a proteção da influente casa dos Médici. A iniciativa, entretanto, não o salvou de ser denunciado à Inquisição em 1615. Galileu mantém-se em silêncio, porém, em 1623, publica O Ensaiador, contendo uma exposição sistemática daquilo que passou à história como o novo método científico, base da física moderna. Em 1632 deu outro passo expressivo na mesma direção, publicando Diálogo sobre os dois maiores sistemas do mundo, em que confronta os sistemas aristotélico e copernicano. A obra em que Copérnico expunha o sistema heliocêntrico (Das revoluções dos corpos celestes, 1543) havia sido condenada pela Igreja, mas Galileu entendia que aquela condenação não era absoluta. O Papa teria recomendado que evitasse qualquer conclusão, naquele confronto; e assim o fez. Em que pese a precaução, a obra foi condenada pela Inquisição.
Galileu afirmava em O Ensaiador: “A filosofia está escrita neste grandíssimo livro que continuamente está aberto ante nossos olhos (digo: o universo), mas não pode ser entendido, se antes não se procura entender sua linguagem e conhecer os caracteres nos quais está escrita. Este livro está escrito em linguagem matemática, e seus caracteres são triângulos, círculos e outras formas geométricas, sem as quais é totalmente impossível entender humanamente uma palavra e sem as quais nos agitamos de modo vão num labirinto escuro”.
E. Uma nova acepção de pessoa.
Rodolfo Mondolfo (1877-1976) mostrou que o Renascimento, ao exaltar a pessoa humana, não desejava apenas repetir um tema clássico, mas valer-se da cultura antiga para contrapor-se ao conceito negativo de homem vigente ainda no final da Idade Média. Indica que, em 1448, aparece De dignitate et excellentia hominis, do diplomata florentino Ginozzo Manetti (1396-1459), escrito para refutar o pensamento do Papa Inocêncio III – Lotário de Segni (1161-1216) - segundo o qual o ser humano não passa de um pouco de lodo e tendências pecaminosas.
O pensamento de Galileu situava-se na longa tradição de outros humanistas da Renascença como Marsílio Ficino; Pico da Mirandola (1463-1494); Giordano Bruno; Tomás Campanela (1568-1639) e tantos outros. Não apenas por haver facultado criações imorredouras na arte e na literatura, mas também por haver reivindicado a dignidade da pessoa humana, o Renascimento ocupa um lugar destacado na cultura ocidental.
Este capítulo é integrado por sete partes: 1 – Da ordem estática medieval à descoberta do Humanismo (faremos uma análise dos principais aspectos que diferenciam a Renascença da Idade Média, no terreno da concepção do homem e do mundo). 2 – Nicolau de Cusa (1401-1464): entre o ockhamismo e o neoplatonismo. 3 – Judá Abravanel (1464-1530), pseudônimo Leão Hebreu: neoplatonismo e judaísmo. 4 – Giordano Bruno (1546-1600): neoplatonismo e liberdade de pensamento. 5 – Tomás Campanella (1568-1639): neoplatonismo e messianismo. 6 – Leonardo da Vinci (1452-1519): arte e experiência. 7 – Galileu Galilei (1564-1642): método científico e experiência.
Duas grandes tendências apontam no panorama do pensamento renascentista: uma, de inspiração neoplatônica, representada por Nicolau de Cusa, Leão Hebreu, Giordano Bruno e Tomás Campanella; outra, de inspiração científico-experimental, representada por Leonardo da Vinci e Galileu Galilei. Como teremos oportunidade de mostrar no texto, ambas as tendências não se encontram desentrosadas, pois vários pontos comuns aparecem entre elas, decorrentes do paradoxal ambiente místico-experimental que caracterizou a Renascença.
1 – Da ordem estática medieval à descoberta do Humanismo.
A meditação filosófica da Renascença é rica e variada. Poderíamos destacar uma característica marcante do pensamento nesse período: a sua ânsia de renovação e de expansão, livre já do controle teológico que vingou na Idade Média, notadamente durante o século XIII. A filosofia, a arte, a ciência, a política sentem-se desimpedidas para trilhar o seu próprio caminho. A Renascença é o eclodir desse surto de criatividade e de liberdade.
Os ideais desse período são sintetizados no chamado Humanismo. Em que consiste esse fenômeno? Ivan Lins Monteiro de Barros (1904-1975) responde: “Consiste no estudo das boas letras e, particularmente, das letras gregas e latinas. Deve-se, entretanto, notar, com Franz Brentano (1838-1917), que, em fins do século XV, quando adquiriu pleno surto, consistiu o humanismo, essencialmente, no cultivo dos conhecimentos que visavam à felicidade e ao aperfeiçoamento do homem, em oposição às cogitações dos teólogos, os quais, voltados para Deus, consideravam a Terra passageiro exílio. Dessa oposição típica entre o homem e Deus, entre a Terra e o Céu, tirou o humanismo o seu nome” [Lins, 1967: 96].
Em que pese o fato de a Renascença ter sintetizado os seus ideais no Humanismo, é típica da época, outrossim, como lembra Rodolfo Mondolfo (1877-1976), a presença de tendências inconciliáveis. Elas são, no sentir do pensador italiano, “(...) características de toda a Renascença que é, sim, uma idade de despertar, porém também, e necessariamente, de transição. Aliás, precisamente por isso foi uma idade gloriosa e fecunda, que teve a missão de abrir as portas ao livre desenvolvimento do pensamento moderno” [Mondolfo, 1967: 179].
Justamente por se tratar de uma época de transição, a filosofia do período reveste-se do singular paradoxo de retomar o neoplatonismo como arquétipo interpretativo de um mundo que é desvendado pela ciência experimental. Mas a volta do platonismo, conforme frisa Émile Bréhier (1876-1952), convence os pensadores renascentistas de que “(...) a grande tarefa da filosofia consiste em ordenar as coisas e os espíritos entre Deus como princípio e Deus como fim. O contraste entre esse velho esquema e a nova filosofia da natureza, que intercalam no seu sistema, origina a grande dificuldade da sua doutrina” [Bréhier, 1948: II, 465-466].
Lembremos rapidamente o espírito da Idade Média. Bréhier assinalou, com propriedade, o ambiente de teocentrismo característico desse período: “(...). Apesar de todas as divergências e diversidades, não houve durante toda a Idade Média mais do que uma única imagem ou, se quisermos, um único esquema no qual viriam a se enquadrar, naturalmente, todas as imagens possíveis do universo. É o que chamamos de teocentrismo: de Deus como princípio a Deus como fim e término, passando pelos seres finitos. Eis aqui uma fórmula que pode convir à mais ortodoxa das Sumas, assim como à mais heterodoxa das místicas. A ordem da natureza e a da conduta humana colocam-se, com uma espécie de necessidade, entre esse princípio e esse fim” [Bréhier, 1948: II, 464].
Contrastando com a organicidade da sociedade medieval, fortemente atrelada à tradição religiosa, ciosa da hierarquia e da permanência da ordem cósmica, o homem da Renascença é, ante tudo, um espírito individualista que quer abarcar e dominar o mundo com o seu pensamento. O cardeal Nicolau de Cusa deu testemunho desse estado de espírito, ao escrever, ao redor de 1433, as seguintes palavras: “Vemos em todas partes como os espíritos dos homens mais dados ao estudo das artes liberais e mecânicas volta-se à Antiguidade com extrema avidez, como se esperassem ver muito em breve a culminação do ciclo da revolução” [Bréhier, 1948, ibid.].
Para a eclosão desse espírito renovador contribuíram, sem dúvida, as múltiplas influências sofridas pelo Ocidente cristão a partir do mundo árabe, notadamente no que se refere às traduções das obras da ciência antiga, efetivadas nas Universidades ibéricas por homens como Miguel Scot (1175-1232), Guilherme de Moerbecke (1215-1286), etc. Outro fator importante foi a divulgação, pela Europa afora, ao longo da Idade Média, das cópias dos tratados antigos de ciência e filosofia que integravam as Bibliotecas de Pérgamo e Bizâncio que constituíram, no Mundo Antigo, um autêntico back-up do patrimônio bibliográfico que foi salvo dos incêndios que acabaram com a Biblioteca de Alexandria, no IV século da era cristã [cf. Goughenheim, 2008; Escolar Sobrino, 2001].
Devemos mencionar mais um fator que incidiu na renovação dos estudos no período renascentista: a descoberta do Novo Mundo, no final do século XV. As leituras dos autores clássicos foram, de outro lado, mais um fator que colaborou para a eclosão da liberdade de pensamento. A fome de saber abarcava todos os temas. O conhecimento do passado aumentou significativamente graças à ação dos Humanistas, que liam os textos gregos e latinos e que começaram a estudar, no século XVI, as línguas orientais. Bréhier sintetizou o papel dessas leituras, bem como dos outros fatores que contribuíram à mudança renascentista, nos seguintes termos:
“Não se trata agora de acomodar essas leituras à explicação da Escritura, mas de compreendê-las em si mesmas. Aumenta a experiência no espaço quando se superam os limites da oikoumene (terra habitada), assinalados pela cristandade de acordo aos dados da Antiguidade, pois se descobrem não só novas terras que alargam os horizontes da bacia do Mediterrâneo, mas também novos tipos de humanidade cuja religião e costumes se desconhecem. Aumentam as técnicas, não só graças à bússola, à pólvora e à imprensa, mas também devido às invenções industriais e mecânicas, muitas das quais se devem aos artistas italianos que eram simultaneamente artesões. Os homens dessa época, mesmo os apegados à tradição, têm a impressão de que a vida, por largo tempo suspendida, recomeça, que o destino da humanidade se renova” [Bréhier, 1948: II, 464].
Devemos, de outro lado, assinalar o importante papel desempenhado pela imprensa na difusão do humanismo renascentista. A propósito, Ivan Lins frisa que: “Os progressos industriais realizados entre os séculos XI e XV facilitaram, em fins deste último, a difusão dos clássicos gregos e romanos, dando aos observadores superficiais a falsa impressão de renascimento de uma cultura que, na verdade, nunca morrera, bastando lembrar a enorme influência dos autores antigos sobre Dante Alighieri (1265-1321)” [Lins, 1967: 100].
Outra característica é essencial ao período renascentista: nasce na Itália, como lembra Jacob Burckhardt (1828-1897) um ideal prático de homem: o uomo singolare, o uomo único, que se estrutura na luta pela sobrevivência num mundo cheio de perigos e de realidades maravilhosas, em que nem as instâncias comunitárias medievais protegiam o indivíduo, nem a luz da fé guiava mais os seus passos com a inocente segurança de antes. O historiador suíço caracteriza assim esse ideal, no contexto da tarefa de construção do Estado como obra de arte, no momento em que cai o véu de crenças que cobria os olhos do homem medieval. Frisa Burckhardt:
“Esse véu estava tecido de fé, timidez infantil e ilusão; o mundo e a história apareciam através dele maravilhosamente coloridos e o homem se reconhecia a si mesmo somente como raça, povo, partido, corporação, família ou outra forma qualquer do coletivo. É na Itália onde pela primeira vez o vento levanta esse véu. Acorda assim, uma consideração objetiva do Estado, e com ela um manejo objetivo das coisas do Estado e de todas as coisas do mundo em geral. E ao lado disso ergue-se, com pleno poder, o subjetivo: o homem se converte em indivíduo espiritual e como tal se reconhece” [Burckhardt, 1984: 99].
Nesse contexto, passam a ser admiradas figuras que se ajustam ao ideal do uomo singolare vigente. O arquétipo será, já não o monge, mas a personalidade multifacetada do gênio militar que ao mesmo tempo é comerciante, artista, filólogo e pensador. A respeito, escreve Bréhier: “Os nomes dos filósofos propriamente ditos (...) têm muito pouco sucesso ao lado dos grandes capitães e grandes artistas. Tudo o que então se aprecia é técnico em qualquer sentido que for; o seu tipo acabado é Leonardo da Vinci, pintor, engenheiro, matemático e físico ao mesmo tempo. E apenas se encontra um filósofo que não seja também médico ou pelo menos, astrólogo e ocultista. A política de Maquiavel é uma técnica destinada aos príncipes italianos; os humanistas, antes de serem pensadores, são filólogos praticantes, zelosos dos métodos que lhes permitem reconstruir as formas e pensamentos dos antigos” [Bréhier, 1948: II, 465].
Mas esse ideal do uomo singolare, que configura o arquétipo do humanismo renascentista, não constitui um modelo acabado. Trata-se, pelo contrário, de um ideal dinâmico, em que a insatisfação de quem busca as perfeição está sempre presente. Leonardo da Vinci exprime bem esse modelo: “Quando a obra permanece no mesmo nível do próprio juízo crítico é mau indício em semelhante juízo; e quando a obra se coloca acima do juízo, é péssimo indício, assim como acontece a quem se assombra por haver trabalhado de maneira tão perfeita. Quando, porém, o julgamento supera a obra, então, sim, é indício perfeito (...), porque então (...) a obra nunca termina de aperfeiçoar-se, pois não o impede a avareza. Portanto (...) é mau mestre aquele cuja obra se coloca acima do seu próprio juízo crítico, e somente se dirige para a perfeição da arte aquele cuja obra é superada pelo juízo” [apud Mondolfo, 1967: 13].
2 – Nicolau de Cusa (1401-1464): entre o ockhamismo e o neoplatonismo.
Considerado o maior dos pensadores do século XV, o cardeal Nicolau de Cusa apresenta, na sua obra, uma curiosa mistura “entre o occamismo, cuja tradição recebeu de seus mestres de Heidelberg e o neoplatonismo que conhecia a fundo”, conforme Bréhier [1948: II, 467]. Dos autores neoplatônicos, sem dúvida que é Proclo (412-485) quem mais influi no nosso autor, que tinha amplo conhecimento dos seus escritos: Elementos de teologia, Comentário a Parmênides e Teologia platônica.
Eis, em palavras de Bréhier, a síntese do pensamento de Proclo: “Cada grau da hierarquia (do universo) contém toda a realidade possível, ainda que em aspecto diferente: o Uno contém todas as coisas, a Inteligência também e a Alma igualmente, assim como o mundo sensível, mas cada hipóstasis à sua maneira. No Uno são indistintas; na Inteligência penetram-se graças a uma visão intuitiva que as vê todas em cada uma; na Alma não estão unidas senão pelos laços da razão discursiva; no mundo se mantêm externas entre si. Pode, portanto, exprimir-se, em termos de conhecimento, melhor do que em termos de ser, a diferença que há entre um e outro. O neoplatônico representa a passagem de uma hipóstasis à superior, menos como passagem de uma realidade a outra, do que como visão cada vez mais aprofundada, cada vez mais una, de um mesmo universo” [Bréhier, 1948: II, 468].
O principal escrito de Nicolau de Cusa, a Docta Ignorantia (1440), reproduz essa concepção neoplatônica, sendo que o cardeal enfatiza a busca de um método que lhe permita passar do plano superior da representação do universo ao da razão e ao dos sentidos, de maneira a ver as coisas de forma intelectual (intellectualiter) e não apenas racional (rationaliter). A primeira abarca os contrários e se estende até o limite do irracional (abrangendo, portanto, a totalidade do real), enquanto a segunda fica restrita ao conhecimento racional. A Docta Ignorantia é, segundo Nicolau de Cusa, o estado de espírito de quem desconfia dos limites da razão e almeja um tipo superior de conhecimento, o intelectual, que se estende até os contrários. Trata-se de voltar à unidade primordial, em que tudo coexistia sem exclusões. Em decorrência dessa busca da unidade total, Nicolau de Cusa rejeitava as contraposições, que constituíam a cosmologia aristotélico-escolástica (especialmente o binômio mundo estelar / mundo sublunar) e a pressuposição de que a Terra fosse o centro do cosmo, pois sendo este infinito, qualquer ponto poderia ser tomado como centro.
Os aspectos fundamentais da metafísica cusana são os seguintes: o estado de união dos neoplatônicos é chamado de complicatio. O estado de dispersão equivale à explicatio. No estado de complicatio, “Deus é todas as coisas”. No estado de explicatio, o mundo é todas as coisas. Deus e o universo, juntos, são um máximo de localidades que contêm todo ser possível; mas Deus é o máximo absoluto, Possest (o possuidor), em quem todo poder (posse) é ser (est). O universo é o máximo contractum (concreto), e se caracteriza porque nele a realidade composta e sucessiva passa da potência ao ato. Em palavras de Nicolau de Cusa, “Deus é a quididade (quidditas) absoluta do mundo e o universo a sua quididade contracta”. O universo é a explicatio em vias de realização, não uma coisa acabada.
Os aspectos fundamentais da teoria do conhecimento de Nicolau de Cusa são os seguintes: o ato de conhecer consiste na busca da unidade, portanto é um movimento contrário à explicatio. No entanto, há no conhecimento dois momentos diferentes: um, o da complicatio, no qual a alma é, à sua maneira, todas as coisas no estado de visão total e unitária; outro, a explicatio, no qual a alma vai, rationaliter, explicitando pouco a pouco o que nela há. No sentir de Bréhier, parece que a teoria do conhecimento cusana tivesse formulado a doutrina dos movimentos inversos de análise e síntese, que a filosofia posterior se encarregaria de desenvolver plenamente [cf. Bréhier, 1948: I, 470].
No que toca às relações entre razão e fé, a posição de Nicolau de Cusa parece oscilar entre o princípio formulado por Guilherme de Ockham, de que os dogmas religiosos pairam acima da capacidade humana e o princípio neoplatônico que pretende uma descrição da mesma realidade divina. Embora Cusa faça asserções de sabor imanentista como esta: “Posto que a criatura foi criada pelo ser máximo e posto que, no máximo, são uma mesma coisa ser, fazer e criar, não significa criar senão que Deus é tudo?” [Cusa, apud Bréhier, 1948: II, 470], no entanto, parece em outros textos se afastar dessa concepção, como quando recusa a validade de um princípio que obrigue o múltiplo a provir do uno: “é impossível – frisa o cardeal – compreender como uma forma infinita única é participada, de maneira diversa, em criaturas diversas” [Cusa, apud Bréhier, 1948: ibid.]. De qualquer forma, vale a anotação de Bréhier: “Ainda aqui vê-se que o Cusano é um moderno que tenta extrair do neoplatonismo menos uma metafísica que explique, em conjunto, o universo, do que um método e um espírito que desaguem em problemas concretos e limitados” [Bréhier, 1948: II, 470].
3 – Judá Abravanel (1464-1530), pseudônimo Leão Hebreu: neoplatonismo e judaísmo.
Prosseguindo na meditação inspirada pelo neoplatonismo, o pensador judaico-português Leão Hebreu, autor do livro intitulado: Diálogos de amor (publicado postumamente em 1535, em italiano), realizou uma síntese dessa corrente com o judaísmo [cf. Hebreu, 1983]. Filho do rabino lisbonense Isaac Abravanel (1437-1508) sofreu a influência do seu pai, autor de importantes obras em que exaltava a grandeza do povo de Israel, num contexto de messianismo que anunciava o Quinto Império, emergente dos destroços do Império Romano. As principais obras de Isaac Abravanel foram: Coroa dos Anciãos (1557), Das obras de Deus (1592), Céus novos (1828) e Comentário ao Guia dos Perplexos (1831-1832) [cf. Calafate, 1989: I, 19-20].
Segundo testemunho de Jesué Pinharanda Gomes (1939-2019), além das filosofias árabe e hebraica, Leão Hebreu estudou medicina. Teve raptado um filho em 1492, quando residia em Sevilha. Radicou-se em Nápoles, onde exerceu a medicina. A sua presença na Itália deu fundamento para que estudiosos enxergassem a influência do seu pensamento em João Pico della Mirandola (1463-1494) e Giordano Bruno (1546-1600) [cf. Gomes, 1981: 197].
Para Leão Hebreu, o universo é movido por uma única força: o amor, que conhece três níveis: o natural, o sensitivo e o voluntário ou racional. A respeito, destacando a forma em que os vários níveis de amor acompanham vários tipos de conhecimento, assim escrevia Leão Hebreu nos seus Diálogos de amor: “Fílon: O conhecimento, apetite ou amor natural é aquele que se encontra nos corpos não-sensitivos, como são os elementos e os corpos mistos de elementos insensíveis, quais os metais e espécies de pedras e ainda as plantas, ervas e árvores: todos eles têm conhecimento natural do seu fim e natural inclinação para ele (...).O conhecimento e apetite ou amor sensitivo é o que se encontra nos animais irracionais, para seguirem o que lhes convém, fugindo do que lhes não convém (...). O conhecimento e o amor voluntário e racional encontra-se unicamente nos homens, porque brota da razão e é orientado pela razão, a qual, entre todos os corpos geráveis e corruptíveis, somente aos homens é concedida” [Hebreu, 1983: II, 60-61].
O movimento do amor, que é a força do Universo, possui a sua origem em Deus. O Ser Supremo não é formado, não tem forma e em si mesmo é a sua forma. No seguinte texto, Leão Hebreu junta à tradição neoplatônica que imaginava o cosmo proveniente do caos, a asserção da fé judaica da anterioridade de Deus a tudo. Contra resta, no entanto, o autor a sua ideia, com uma afirmação intermediária, no relacionado ao aparecimento do mundo: o Caos e as suas partes recebem de Deus, ab aeterno, a sua parte de forma, que é a substância ou “alma do mundo”. Da união desta com o Caos provêm as criaturas que povoam o Universo. A respeito, frisa:
“Fílon: Deus não é formado, nem tem forma, mas em si mesmo é a sua forma. O Caos e cada uma das partes recebem d´Ele a sua parte de forma, e de ambos se fez o mundo formado e cada uma das suas partes formadas: é seu pai aquela divina formalidade, e mãe o Caos, ambos ab aeterno. Mas o perfeito pai produziu de si apenas a substância, mãe imperfeita, e de ambos são feitos e formados ‘ex novo’ todos os filhos mundanos, os quais recebem com a matéria a formalidade paterna. Logo, por esta razão não fútil, afirma Platão que o Caos foi criado ab aeterno por Deus, e que o mundo com as suas partes foi feito e formado por Ele ‘ex novo’ no acto da criação” [Hebreu, 1983: II, 218].
O Universo, gerado a partir de Deus, origem do amor, desenvolve-se em meio a uma cosmogonia que poderíamos chamar de conjugal ou erótica. De forma bastante original, Leão Hebreu retoma, na sua explanação sobre a organização dos seres, as imagens gregas de Uranos (Céu) e Gaia (Terra), de cuja união surge o cosmo: “Sofía: admirável é o amor conjugal e recíproco da Terra e do Céu, bem como tudo quanto a Terra tem de propriedade de mulher e o Céu de marido, com os seus sete planetas correspondentes aos membros que concorrem na geração do esperma do homem. E já percebi que, segundo os astrólogos, cada um dos sete planetas está relacionado com um dos membros do homem, porém não com aqueles que não são apropriados à geração, mas sim com os membros exteriores da cabeça, feitos para servir à cognição sensível e interior” [Hebreu, 1983: II, 75].
Nesse contexto de “cosmogonia conjugal”, a Terra é “mãe” que dá vida a todos os seres - inanimados e animados – que a habitam, graças à fecundação recebida do “corpo celeste”. A respeito, escreve o nosso autor: “Fílon: embora a Terra, por ficar muitíssimo longe do Céu, seja em si própria a mais massuda, fria e baixa, e a mais pobre de vida, todavia, por ser compacta no centro recebe compactamente em si todas as influências e os raios de todas as estrelas, planetas e corpos celestes (...). Na Terra unem-se todas (as influências celestes), ao passo que pelos outros elementos apenas perpassam. Não se detêm senão na Terra, pela sua espessura e por se encontrar no centro, e assim nela mais fortemente incidem os raios. De forma que é esta a própria e legítima mulher do corpo celeste, e os outros elementos são suas concubinas, pois é nela que o Céu engendra toda ou a maior parte da sua geração; e ela torna-se ornada de tantas e tão diversas coisas (...). As pedras e os metais gerados pela Terra, quando se encontram fora dela, velozmente a procuram (...) como os filhos buscam as mães (...). E é também com amor que a Terra os gera, mantém e conserva. E as plantas, as ervas, as árvores têm tanto amor à Terra, sua mãe e geratriz, que jamais se querem afastar dela, salvo por corrupção (...)” [Hebreu, 1983: II, 66-67].
No contexto da “cosmogonia conjugal” apontada, a Terra é também fêmea do Céu. Retomando a ideia aristotélica da próte hyle (matéria primeira), Leão Hebreu identifica a Terra como corpo desta: “Fílon: a Terra é o corpo da matéria primeira, receptáculo de todas as influências do seu macho, que é o Céu. A água é a umidade que a nutre. O ar é o espírito que a penetra. O fogo é o calor natural que a tempera e vivifica (...). Todo o corpo do Céu é o macho que a cobre e rodeia com movimento contínuo. Ela, embora esteja quieta, sempre se move um pouco, devido ao movimento do seu macho (...)” [Hebreu, 1983: II, 72].
O homem, por ser alma espiritual, possui um estatuto ontológico que o coloca por cima da cosmogonia apontada. Consequente com a tradição judaica, Leão Hebreu, ao tratar da alma humana, a faz provir da própria divindade. Deus, no sentir do pensador português, produziu as almas intelectivas à sua imagem, razão pela qual o homem tem uma propensão a buscar a beleza divina, através da afinidade que sente diante das pessoas belas. A pessoa amada, quando buscada “sem apego a coisas materiais”, espelha magnificamente a divindade. Eis as palavras do nosso autor a respeito: ”Fílon: a disposição à sapiência é a beleza que Deus participou às almas intelectivas: quando as produziu, e tanto mais bela formou a alma quanto mais disposta a ela a fez (...). Sendo a nossa alma imagem pintada da Suma Beleza e desejando, naturalmente, voltar à própria Divindade, está sempre grávida dela por natural desejo; por isso, quando vê uma pessoa de per si bela duma beleza que se lhe ajusta, reconhece nela e por ela a Beleza divina, porque também aquela pessoa é imagem da divina Beleza (...). Mas quando a pessoa amada, muito bela, é amada por uma alma preclara, sem apego a coisas materiais, na qual resplandece sobremodo a suprema Beleza divina, então se deifica nela grandemente, adora-a e honra-a como divina, e o seu amor por ela é extraordinariamente intenso, eficaz e ardente” [Hebreu, 1983: II, 349-350].
Mas a origem da alma humana em Deus a torna desejosa da união perfeita com Ele. Recordando as palavras do Profeta quando diz: “Manda-nos, ó Deus, regressar a Ti, e regressaremos” e de Davi ao exclamar: “Com a tua luz vemos a luz”, Leão Hebreu aplica à busca amorosa da alma as palavras de Salomão no seu Cântico: “Recolhe-me e correremos atrás de ti, se o Rei me levar para os seus aposentos, deleitar-nos-emos e alegrar-nos-emos em ti; recordaremos os teus amores mais que o vinho: amam-te as virtudes da rectidão”. Comentando este último texto, o nosso autor escreve: “Repara em como primeiro a alma intelectiva roga que seja atraída pelo amor da Divindade, e então com o seu ardentíssimo (amor) correrá atrás dela; e diz que, sendo levada por mão do Rei para os seus aposentos, isto é, sendo unida por raça divina ao âmago da divina beleza do Rei, conseguirá nela a suprema deleitação que é o fim do seu amor a Deus; e diz que recordaria os seus amores mais que o vinho, isto é que o amor divino estaria nela sempre presente, relembrando na memória, bem diversamente do amor das coisas mundanas, as quais são da feição do amor do vinho, que embriaga o homem e lhe rouba a rectidão da mente; e por isso remata: Amam-te as virtudes da rectidão, que quer dizer: Tu não és amado por falta de rectidão de ânimo, como acontece com os amores carnais, mas é a própria direitura da alma aquela que te ama” [Hebreu, 1983: II, 346].
O símil do relacionamento macho-fêmea é retomado por Leão Hebreu a essa altura, num nível diferente da “cosmogonia conjugal” mas, nem por isso, desvinculado dela. A alma, resplendor procedente do entendimento divino, enamora-se da sua origem como a fêmea se enamora do seu macho. Paralelamente, a alma junta-se ao mundo corpóreo, inferior a ela, como se fosse macho dele, a fim de imprimir nele a beleza haurida do seu primeiro amor. Processa-se, assim, um movimento que poderíamos chamar de espiritualização do mundo, precursor, sem dúvida, das modernas filosofias da cultura. No texto que aparece a seguir, Leão Hebreu assinala esse processo, tanto a partir da “alma do mundo”, quanto a partir do próprio homem:
“Fílon: Como a suma e perfeita beleza reside no intelecto divino, a alma, que é um resplendor procedente dele, enamora-se daquela suma beleza intelectual, que é sua fonte superior, assim como a fêmea imperfeita se enamora do seu macho que a completa, e deseja tornar-se feliz na união perpétua com ele. Junta-se com este um segundo amor gêmeo, o da alma ao mundo corpóreo que lhe é inferior, como de macho à fêmea, para o tornar perfeito imprimindo nele a formosura que aufere do intelecto mediante o primeiro amor: a alma, como se estivesse grávida da beleza do intelecto, deseja pari-lo no mundo corpóreo (...); e isto não só acontece na alma do mundo, mas também ocorre à alma do homem com o seu intelecto no mundo pequeno” [Hebreu, 1983: II, 175].
No contexto desse movimento de amor, Leão Hebreu formula a sua teoria do conhecimento, reconhecendo nos homens duas formas de razão: a ordinária ou estritamente racional (que Nicolau de Cusa chamou de rationaliter), ou aberta ao amor, (que o Cusano tinha identificado como intellectualiter). Frisa Leão Hebreu a respeito: “Fílon: (...) há nos homens duas espécies de razão: chamaremos à uma ordinária, à outra extraordinária. A primeira propõe-se orientar e conservar o homem na vida honrada. É essa razão que eu te disse não poder regular, nem manter em justos limites o amor perfeito, porque tal amor prejudica e afronta a própria pessoa, a vida e o bem-estar, com danos insustentáveis, para seguir a pessoa amada. Pelo contrário, o intento da razão extraordinária é o de alcançar o objeto amado; e não liga importância à conservação das coisas próprias, antes as pretere, para adquirir o bem amado. – Sofia: Qual dessas duas espécies de razão julgas tu, ó Fílon, que se deve seguir? – Fílon: a segunda é mais digna e de grau mais eminente. E um homem, que, em homenagem à razão, se encerra num amor digno e excelente, sem o gozar, parece-se com uma árvore de folhagem sempre verde, alentada e de copiosos ramos, mas sem nenhum fruto: uma árvore que deveras se pode dizer estéril. E não há dúvida que, a quem lhe falta um amor excelente, poucas virtudes o acompanham” [Hebreu, 1983: II, 51-52].
4 – Giordano Bruno (1546-1600): neoplatonismo e liberdade de pensamento.
A vida do frade dominicano Giordano Bruno pode ser caracterizada como uma luta heróica em prol da liberdade de pensamento. A sua preocupação fundamental era a de conciliar a “nova ciência” com a tradição metafísica clássica não aristotélica e com a revelação judaico-cristã, conforme observa Eduardo Abranches de Soveral (1927-2003), para quem “A perspectiva de um cosmo infinito leva-o, naturalmente, à tese da existência de inumeráveis sóis e mundos (já defendida, aliás, por Nicolau de Cusa, que cita) e a uma doutrina astronômica que ultrapassa o limitado plano das disputas entre as teorias geocêntricas e heliocêntricas. A visão da grandeza do homem, cidadão de tal universo, condu-lo a sentimentos de exaltação no que tange à sua dignidade, que não deve sofrer limitações. Tais disposições de espírito o inclinaram, compreensivelmente, a não apoiar a linha mais intransigente da Contrarreforma e a solidarizar-se com todos os movimentos de emancipação e unificação dos Estados italianos” [Soveral, 1989: I, 772].
As obras filosóficas de Giordano Bruno são as seguintes: De compendiosa architectura et complemento artis (1580), De umbris idearum et arte memoriae (1582), Del´infinito, universo e mondi (1584), A degli eroici furori (1585), De triplici numero et mensura ad trium speculativarum scientiarum et multarum artium principia libri quinque (1591), De monade, numero et figura liber, item de inumerabilis, imenso et infigurabili seu de universo et mundis libri octo (1591) [cf. Soveral, 1989: I, 774].
Perseguido, sem descanso, pelas autoridades eclesiásticas, que o condenaram à fogueira em 1600, Bruno viveu “uma existência aventurosa itinerante” que o conduziu, sucessivamente, a Siena, Milão, Genebra, Lião, Avinhão, Toulouse, Paris, Oxford, Londres, Wittenberg, Frankfurt, Zurique Veneza e Roma. Rodolfo Mondolfo exprimiu a sua admiração diante da luta travada por Bruno em prol da liberdade de pensamento: “Arauto e mártir da nova e livre filosofia, assim foi chamado por Bertrando Spaventa; e certamente entre os filósofos da Renascença, que, não obstante, na sua maioria lutaram constante e vigorosamente em favor da liberdade filosófica contra o tradicional princípio de autoridade, não há outro que possa merecer tal denominação em grau mais alto. A pesquisa intrépida da verdade, livre de todo preconceito, constitui para ele uma missão a que se entrega todo, apesar de ter e manifestar muito amiúde a consciência dos perigos que arrosta por ela e o destino sombrio que o espera em espreita” [Mondolfo, 1967: 58-59].
Muitas foram as críticas endereçadas por Bruno contra a falta de liberdade de pensamento. Apenas para ilustrar a sua posição a respeito, citemos uma: “Nunca deve valer como argumento a autoridade de qualquer homem, por excelente e ilustre que seja. (...). É sumamente injusto submeter o próprio sentimento a uma reverência submetida a outros; é digno de mercenários ou escravos e contrário à dignidade humana sujeitar-se e submeter-se; é suma estupidez crer por costume inveterado; é cousa irracional conformar-se com uma opinião devido ao número dos que a tem (...). É necessário procurar sempre, em compensação, uma razão verdadeira e necessária (...) e ouvir a voz da natureza” [Bruno apud Mondolfo, 1967: 59-60].
No texto anterior, Bruno reivindica o valor do conhecimento da natureza, contrário ao argumento de autoridade. Em carta endereçada ao Reitor da Universidade de Paris, o nosso autor defendia a liberdade de pensamento em filosofia, nestes termos: “Se alguma razão, por nova que seja, nos estimula ou impele por sua força interior, seja lícito a qualquer um pensar filosoficamente em filosofia com plena liberdade, e tornar manifesta a sua opinião” [Bruno apud Mondolfo, 1967: 60].
O conhecimento da natureza, a liberdade de pensamento e a conquista da verdade estavam, para Bruno, em íntima relação, conforme salienta Mondolfo: “Bruno assevera energicamente que a natureza deve ser lei para a razão humana e não esta para aquela. Acrescenta, porém, uma exigência complementar, reivindicando a franca manifestação de todo pensamento livre como condição necessária à conquista da verdade; o que está em oposição direta com a regra de prudência acomodável, pelo que Bacon considerará necessário conformar-se com as oportunidades e não se tornar duro e resistente contra o meio ambiente. Em compensação, Bruno declara que não pode conseguir um conhecimento genuíno da natureza nem uma conquista da verdade, se não houver liberdade para todos no exercício e na manifestação do pensamento” [Bruno apud Mondolfo, 1967: ibid.].
O nosso pensador identificava, claramente, a função da religião: dar ensejo ao consenso moral de que a sociedade precisa. Poder-se-ia situar Giordano Bruno como um dos precursores da religião civil (interpretada no contexto consensual defendido pelos utilitaristas ingleses, e não no sentido unanimista que terminou vingando, graças à Rousseau, no continente europeu). A respeito do papel desempenhado pela religião no pensamento brunense, escreve Mondolfo: “A tarefa da religião para Bruno – que por essa razão dá a preferência sobre as demais igrejas ao catolicismo, que reconhece e afirma o valor das obras e o livre arbítrio – é sobretudo de caráter moral. A revelação divina expressa nas Sagradas Escrituras, não quer, conforme a sua opinião, ministrar ensinamentos teóricos ‘como se fosse filosofia’, mas fundamentar e orientar as normas éticas para todos aqueles – que são em grande maioria – que necessitam de uma autoridade e uma sanção externas para observar a lei moral e praticar o bem. O que implica uma dupla exigência simultânea: primeiro, que a religião deva entender-se coo princípio de união e vinculação de amor; segundo, que os sábios devam praticamente manter-se unidos à Igreja do país onde vivem, justamente para terem mais profunda consciência do prejuízo que trazem consigo as discórdias e os cismas” [Mondolfo, 1967: 61].
No entanto, o afirmado anteriormente não significa uma limitação à liberdade de pensamento, na forma de uma tutoria sobre os filósofos. Bruno reconhece, efetivamente, a existência de dois planos no conhecimento humano: o teorético (próprio da filosofia) e o ético-prático (da religião). Essa convicção o levava a afirmar que se “(...) os verdadeiros filósofos, civis e bem acostumados, sempre favoreceram as religiões (...), por outro lado os teólogos, cuja doutrina não era inferior à sua religiosidade, jamais quiseram prejudicar a liberdade dos filósofos” [Bruno, apud Mondolfo, 1967: 61].
No que diz respeito à metafísica, Bruno situa-se na linha do neoplatonismo interpretado à luz da tradição judaico-cristã, aproximando-se, portanto, das posições assumidas por Nicolau de Cusa e Leão Hebreu. É clara a sua ideia da presença imanentista da mente divina, que eclode em todos os seres; essa presença tem aspectos orgânicos e progressivos que culminam, no caso da mente humana, na união intelectual do sujeito pensante com o objeto (Deus). Esse ponto de chegada não é, contudo, aniquilação mística, mas exaltação do valor do sujeito. Toda a natureza é animada por Deus através da alma universal, que enseja a presença de todo o universo em cada ser particular. Se todas as coisas estão penetradas pela alma universal, podemos atuar sobre elas relacionando-as, de forma indiscriminada, mediante a prática da magia. De outro lado, se a natureza é Deus nas coisas, o Universo deve ser infinito. Bruno quebra, destarte, a imagem do Cosmo fechado aristotélico. Se a alma universal, outrossim, é a forma do Universo, deduz-se a ideia de coincidência da unidade da forma com a unidade da matéria, dando lugar a uma concepção monística. Encontramos, aqui, a raiz da concepção espinosana da substância. Ao discutir o problema do uno e do múltiplo, a metafísica de Bruno lembra a de Nicolau de Cusa, ao sustentar que a unidade da substância infinita, que está presente em todas as coisas (complicatio) exige a explicatio, ou relacionamento delas com a substância infinita [cf. Mondolfo, 1967: 66-84].
Já no terreno da ética, podemos definir a moral brunense como consciência e vontade de uma norma de ação que se pode traduzir em uma lei universal. Bruno teria, aqui, no sentir de Mondolfo, pressentido o universalismo que posteriormente seria tematizado pela moral kantiana [cf. Mondolfo, 1967: 96-100]. Se inspirando, possivelmente, em Leão Hebreu, o nosso autor reconhece três espécies de amor (sensual, moral e intelectual), decorrentes do movimento dos entes em direção à alma universal. Bruno destaca o valor essencial na escala do amor: a unidade universal do ser. A busca da unidade metafísica pelo homem, através da contemplação intelectual do infinito, não pode ser êxtase imóvel e quietude de posse, mas consiste em absoluto propósito ou caçada metafísica. Decorre daí, para Bruno, a ideia de infinito progresso no curso da história humana. Neste ponto, Mondolfo frisa que Bruno “(...) antecipa-se, aqui, a Vico, e assenta-se o fundamento e o germe de toda a filosofia da cultura. Por essa antecipação da nova intuição do homem, pela vigorosa afirmação da nova concepção do universo e da unidade da natureza e do ser universais, Bruno é, verdadeiramente, o maior representante da filosofia da Renascença, que abre as portas à filosofia moderna” [Mondolfo, 1967: 100].
5 – Tomás Campanela (1568-1639): neoplatonismo e messianismo.
Frade dominicano, como Bruno, Campanela herda do ambiente renascentista italiano a inquietação que o leva a valorizar a “nova ciência”, a buscar uma razão de unidade para o Universo, a elaborar um plano regenerador para a humanidade, enfim, a se sentir chamado a encarnar uma missão messiânica, na trilha aberta pelo frade calabrês Joaquim de Fiore (1145-1202).
De um lado, Campanela valoriza, sobremaneira, o estudo da natureza. Frisava, a respeito, em 1607, em carta dirigida a monsenhor Querengo: “Eu aprendo mais da anatomia de uma formiga ou de uma erva – (para não falar do mundo que é sumamente admirável), do que de todos os livros que se escreveram desde o começo dos séculos até hoje, pois aprendi a filosofar e a ler no livro de Deus. Olhando no seu exemplar, corrijo os livros humanos que o copiam mal e de modo caprichoso, não de acordo com o que está no livro original do universo” [Campanella, apud Mondolfo, 1967: 143].
Quanto ao ambiente renascentista italiano favorável ao messianismo, escreve Mondolfo: “Ao aproximar-se o fim de século, as profecias astrológicas anunciavam o ano de 1600 como um ano fatal; todas as crenças e superstições, o ocultismo, a magia, a astrologia, a profecia, cooperavam na formação de uma atmosfera de expectativa milenária. E em Campanella esta se acentua ainda mais, quando, em 1589, volta a Nápoles e daí à Calábria. Ali não se haviam extinguido, ainda, desde os tempos de Joaquim de Fiore (1135-1202), as aspirações messiânicas, mas que se intensificaram ante a desolação e o terror produzido pelo mau governo hispânico, as violências e lutas sangrentas dos patrícios e do clero, a ameaça dos saques turcos. Campanela encontra ali um meio disposto, mais do que qualquer outro, a escutar a sua prédica: os povos entusiasmam-se ante o anúncio de uma próxima libertação da humanidade e de um retorno à primeira idade de ouro” [Mondolfo, 1967: 144].
Os escritos filosóficos mais importantes de Campanela são a sua Metaphysica ou Universalis Philosophia (1602-1603) e A cidade do sol (1603). Outras obras são: De sensu rerum et magia (1590), De forma monarchia Christianorum (1595), De regimine Ecclesiae (1595). Discorsi universali del governo ecclesiastico (1595), Diálogo político contra lutherani (1595), Monarchia di Spagna (1599-1601), Monarchia Messiae (1605), Atheismus triumphatus (1605), Memoriales (1606-1607), Antiveneti (1606), Astrologicorum libri VII (1613-1614), Epistola antilutherana (1613), Prodromus philosophiae instaurandae (1617), De sensu rerum (1620), Apologia pro Galileo (1622), Realis philosophiae epilogisticae (1623), Instauratio scientiarum (1636-1638).
No que tange à teoria do conhecimento, Campanela antecipa-se a Descartes (1596-1650), ao considerar a Metafísica e a Ética como dependentes da Gnoseologia. Este aspecto de sua reflexão filosófica parte da dúvida e da tentativa de superar o ceticismo. Ao tratar dos motivos deste, não os arrola sistematicamente, como depois fará Descartes. Antecipa-se a ele na descoberta do caminho que conduzirá à superação do ceticismo, à luz do argumento de Santo Agostinho (354-430) de que a dúvida e o erro confirmam a certeza da nossa existência. O cogito é entendido por Campanela como uma intuição ou conhecimento imediato de si mesmo; a partir de tal conhecimento, que é uma perpétua presença da alma ante si mesma, firma-se o princípio de toda certeza. Somente deste conhecimento primeiro (chamado por Campanela notitia innata, numa antecipação ao apriorismo categorial kantiano) pode derivar qualquer outro conhecimento adicionado (chamado pelo nosso autor de notitia illata).
A respeito deste aspecto, escreve, com propriedade, Mondolfo: “A notitia innata de Campanela, então, é como o a priori de Kant: que é conditio sine qua non para qualquer experiência, mas revela-se na apresentação efetiva desta. O próprio Campanela manifestou, na sua Metafísica, a relação entre a experiência fluente (scientia illata) e as ideias inatas (scientia innata) da seguinte maneira: a experiência não dá ao sujeito cognoscente a ideia inata, mas oferece a esta noção fundamental a ocasião de se manifestar (...)” [Mondolfo, 1967: 146-147]. O conhecimento do eu, portanto, na concepção de Campanela, pressupõe o conhecimento do não-eu.
No terreno da metafísica, Campanela atrela-se à concepção imanentista típica do neoplatonismo renascentista. Nisto, segue as pegadas de Bruno e de Leão Hebreu. Mondolfo chamou de naturalismo meio panteísta a metafísica de Campanela, nos seguintes termos: “A ideia de Deus flutua em Campanela, como em Bruno, entre a imanência e a transcendência; e de maneira parecida, a imortalidade da alma individual, mesmo quando quer afirmar-se no sentido ortodoxo, converte-se em imortalidade da alma universal de cuja divindade participa o homem; e a afirmação do livre arbítrio, oposta ao arbítrio escravo de Lutero, reduz-se à asseveração de uma necessidade interior (da natureza de cada ser, que não quer mudar-se em outra), que luta contra toda necessidade exterior. Non inesse libertatem contra fatum, sed pro fato, diz Campanela, com fórmula entre estoica e espinosana ou leibniziana; nossa liberdade não é oposta, mas conforme com o nosso destino” [Mondolfo, 1967: 146].
Na trilha aberta por Santo Agostinho, para encontrar “no homem interior” a verdade, Campanela insiste em que três são as nossas grandes certezas: que existimos, que sabemos, que queremos. O próprio eu encontra também em si mesmo limitações e paixões, ou seja, a presença de alguma realidade que o limita e modifica. Essa perceptio passionis, ao mesmo tempo que revela à consciência humana o próprio ser, revela também o ser alheio, que, no entanto, não é totalmente estranho, porquanto seria impossível a modificação do não eu sobre o eu, se não possuíssem ambos uma comunhão de natureza. “Os objetos nos movem – diz Campanela – enquanto têm algo de nossa natureza” [Campanela apud Mondolfo, 1967: 161].
Comentando este aspecto do pensamento do nosso autor, escreve Mondolfo: “De maneira que o eu pode, por meio da analogia, derivar do conhecimento dos outros seres, ao reconhecer que todos (assim como ele) são constituídos por graus distintos das mesmas três primalidades: potestas, sapientia, amor. Este conhecimento da natureza das coisas consegue-se, segundo Campanela, sem sair de nós e do nosso conhecimento inato da natureza do eu: a ciência illata que adquirimos na experiência das coisas pode engrandecer-se cada vez mais; eleva-se, porém, unicamente, pelo engrandecimento da ciência inata do eu” [Mondolfo, 1967: 161-162].
Do que acabamos de expor, fica claro que, no pensamento de Campanela, a metafísica firma os seus princípios no terreno da Gnoseologia. Este aspecto revela um traço verdadeiramente moderno do nosso autor, que encontrará ampla repercussão, notadamente, na filosofia kantiana.
Pelo fato de que apreender o ser alheio é um assimilar-se a ele, determinam-se os infinitamente variados choques entre as coisas, num contexto de luta de cada uma para conservar-se a si “contra toas as outras que exercem sobre ela a sua ação modificadora” [Mondolfo, 1967: 163]. Desse conjunto de conflitos emerge a harmonia universal; adianta-se aqui Campanela à ideia de “harmonia pré-estabelecida” de Leibniz (1646-1716) [cf. Vélez, 1984: 5]. Essa harmonia universal exprime, no sentir do nosso autor, uma religio ou religatio entre as coisas, que constitui uma religião natural. Vários graus de amor vivificam a harmonia universal, desde a tendência à conservação da existência individual dos seres inorgânicos, passando pela conservação na história, nos homens. A propósito deste aspecto da doutrina campaneliana, observa Mondolfo: “Com esta escala do amor, comum aos neoplatônicos renascentistas de Leão Hebreu a Giordano Bruno, vincula-se em Campanela a sua teoria da religião natural” [Mondolfo, 1967: 164].
A harmonia entre os seres do universo, que ocorre por fora da religião natural apontada, deve traduzir-se, no plano social, na unificação política do gênero humano numa teocracia universal. A construção de tal regime é, essencialmente, um problema de educação, embora Campanela não descarte a ideia de uma ação compulsiva para a unidade, o que confere ao seu pensamento político uma tonalidade de absolutismo. Ao tentar definir os traços da sua Cidade do Sol, Campanela não foge a um inelutável paradoxo: em contraste com a exigência de respeito à personalidade individual, o regime de harmonia política implica, conforme Mondolfo: “Uma regulamentação rigorosa de toda atividade humana que não permita liberdade nem mesmo aos sentimentos mais íntimos e ao amor, porque o Estado deve prover ao melhoramento da espécie: para os homens não menos que para os cavalos e cães” [Campanela apud Mondolfo, 1967: 174].
A filosofia social de Campanela situa-se, assim, como precursora das modernas filosofias sociais de Thomas Hobbes (1588-1679), Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), Claude-Henry de Saint-Simon (1760-1825) e Augusto Comte (1798-1857), notadamente no que tange à formulação do ideal do messianismo político, que ninguém, mais do que Campanela, vivenciou com maior profundidade.
Terminemos a exposição do pensamento de Campanela, reproduzindo o quadro da sua concepção messiânico-política, na síntese apresentada por Mondolfo: “Na sua opinião, o gênero humano, nas suas origens, achava-se unido em uma teocracia universal sob a religião e a lei da natureza, mas depois rompeu-se a unidade, substituindo-se à única religião e lei verdadeira, a multiplicidade de religiões e leis diversas e falsas: daí as discórdias, guerras, tiranias e perdição da humanidade. Agora, porém, tinha que voltar às origens, e já havia sinais premonitórios nos acontecimentos, na astrologia e nas profecias: ele, Campanela, era um novo Messias da nova teocracia solar. A sua prédica arrastava as multidões: a quem lhe disse que ele anunciava a República de Platão, que nunca se poderá realizar, respondeu que sim, que se deverá chegar a ela, porque as necessidades dos homens o querem e as profecias o anunciam” [Mondolfo, 1967: 144-145].
6 – Leonardo da Vinci (1452-1519): arte e experiência.
Leonardo exprime, de forma especial, o ideal renascentista do uomo singolare, como salientamos no primeiro item desta exposição. Os seus contemporâneos deram-lhe o nome de “divino”, para traduzir a admiração que a sua vida irradiava. Mas, como dissemos, não se tratava, de forma alguma, de um ideal estático. A respeito, frisa Mondolfo: “Divino (...), pela excelência das suas criações imortais que, não obstante, não significavam, para ele, consciência e gozo de uma perfeição acabada e satisfeita de si mesma, como a que se costuma atribuir aos deuses, mas insatisfação constante do realizado, exigência contínua de superação, mas ânsia de pesquisa do desconhecido, para captar, entender os mistérios da natureza, tormento de uma aspiração inextinguível para o intangível infinito” [Mondolfo, 1967: 13].
Leonardo, no entanto, não buscava uma compreensão racionalista do universo. Diríamos que para ele a imagem precede ao conceito. A arte da pintura, que mediante formas plásticas consegue exprimir o mundo, foi a que possibilitou a compreensão científica do mesmo. A representação geométrica do universo não seria possível sem aquela. Esse é o princípio fundamental que inspira a sua obra intitulada: Tratado o da pintura [cf. Vinci, 1944]. A respeito dessa inspiração estética (bem próxima, aliás, do ambiente de neoplatonismo que se respirava na Renascença, como fica evidenciado a partir da análise dos pensadores que estudamos atrás), escreve F. M. Bongiovanni, na obra Leonardo pensatore: “As exigências pictóricas converteram-se, para ele, em exigências especulativas. Sem sair da pintura, Leonardo entrava na epistemologia e na metafísica. Filósofo, cientista, Leonardo é sempre pintor” [Bongiovanni, apud Mondolfo, 1967: 14].
Alicerçada a compreensão da ciência no contexto estético apontado, Leonardo valoriza, claramente, o conhecimento haurido da experiência e critica o dogmatismo dos que pensam a partir do argumento de autoridade. A razão, para Leonardo, prova as suas descobertas; mas é a experiência que as confirma. O papel desta é essencial à construção do edifício do conhecimento. “Antes que eu confirme tal proposição – segundo nosso autor – farei experiência com ela. (...). Formula as tuas proposições e cita as coisas mencionadas como exemplos e não como proposições, o que seria muito simples. E dirás da maneira seguinte: experiência” [Mondolfo, 1967: 25].
Na natureza encontramos os seres no seu estado de “primários naturais”. A respeito, frisa o estudioso Carmelo Distante: “(...) E o próprio homem é um ‘primário natural’, que produz outros ‘primários naturais’. É evidente que na natureza, segundo Leonardo, está implícita uma alma vegetativa que o homem nunca pode reproduzir. Mas fiquemos bem atentos: ele concebia a alma vegetativa como um espírito que é ‘uma potência unida ao corpo, porque por si mesmo não pode governar-se, nem ter nenhum tipo de movimento’. Portanto, entendia a alma vegetativa como um espírito que nunca está separado dos elementos naturais aos quais está incorporado, ou com os quais se incorpora” [Distante, apud Vinci, 1997: 20].
Porém, se na natureza encontramos os seres no estado de “primários naturais”, isso não significa que a nossa razão possa perscrutar todos os mistérios que ela abarca. Leonardo reconhecia que não podemos extrair da natureza todos os seus segredos, mas, ao mesmo tempo, firmava o princípio de que só a partir da experiência podemos conhece-la. Em relação a este ponto, Carmelo Distante frisa: “Pode-se dizer que o tormento que sempre acompanhou o seu processo cognoscitivo, na busca do que move a natureza, foi precisamente o de não poder extrair dela o segredo último e misterioso (aquilo a que chamamos de quinta-essência), que a move e a faz viver. Sabia que ‘a natureza está repleta de infinitas razões que nunca foram captadas pela experiência’. Porém, sabia ainda que era impossível ao homem chegar ao conhecimento acerca da natureza sem a experiência” [Distante apud Vinci, 1997: 19].
Leonardo da Vinci firma-se, assim, como o precursor renascentista da valorização da ideia de experiência, que será retomada por pensadores posteriores como Francis Bacon (1561-1626), ou por homens de ciência como o próprio Galileu (de quem trataremos a seguir), Roberto Boyle (1627-1691) ou Isaac Newton (1642-1727). Um precursor, diga-se de passagem, que tem como virtude, para alimentar a indagação, aquilo que hoje chamamos de “modéstia epistemológica”, em diálogo constante com o que a natureza revela, tentando interpretar melhor os seus sinais.
Como frisa Eduardo Carreira, “De fato, Leonardo ‘falava’ com seu caderno como se de um espelho maravilhoso se tratasse, no qual ele podia se ver refletido e dar asas a uma imaginação que, podemos supor, dificilmente deveria encontrar interlocutores. Com muita naturalidade ele fazia perguntas técnicas para si mesmo e se questionava sobre o que fazer a respeito de problemas pessoais, procurando meditar sobre pensamentos que ia fixando no papel. No canto de uma folha cheia de observações acrescentava, como se despedindo do trabalho: ‘E etc., porque a sopa está esfriando’ – permitindo-nos vê-lo em seus próprios afazeres prosaicos e dando-nos uma ideia de como tratava seus cadernos. Assim, nos rabiscos que se iniciam a partir do teste com a ponta da pena, que todo desenhista ou escritor deve fazer constantemente antes de se lançar ao desenho ou ao texto que quer começar, vemo-lo sempre aproveitar a ocasião para, em vez de experimentar a pena com garatujas ou traços aleatórios, escrever ao contrário, ‘diga-me’, ‘diga-me’, ‘diga-me’, quase que numa escritura automática, a qual às vezes passa do teste para verdadeiras notas nas quais ele continua: ‘Diga-me isso ou aquilo sobre esse ou aquele assunto’ “ [Carreira apud Vinci, 2000: 11-12].
Assim, a característica que ressalta dessa dinâmica intelectual rigorosamente atrelada à experiência, é o inacabamento do texto, que vai sendo construído aos poucos e que, por vezes, revela a ideia clara, mas depois de muito lutar com os dados avulsos dos experimentos e observações. A propósito desse estilo sui generis, in fieri, diríamos, escreve Eduardo Carreira: “De caderno para caderno, de folha para folha, em todo o material deixado, enfim, encontramos intensas variações de caráter estilístico que indicam não só as diferenças de propósitos, mas também a pluralidade de situações e períodos cronológicos em que foram tomados os apontamentos. Isso pode ser verificado com facilidade nos dois documentos espanhóis: o Códice Madri I, com a sua elegância, ordem e desenhos harmoniosos, sua diagramação equilibrada de textos e paginação bem disposta; e o Códice Madri II, que traz folhas puladas, direções opostas nas escrituras, rasuras, correções, sobreposições. De fato, como as notas que traziam, os cadernos não eram iguais e se destinavam a finalidades diferentes, tendo sido confeccionados em épocas distintas, com melhores e piores papéis, e encadernados ou não. Sobre suas datações e cronologias, sobretudo quanto aos anos a partir dos quais Leonardo teria começado a montá-los com vistas a uma futura edição, pouco sabemos, continuando em aberto vários elementos sobre a sequência que ele teria percorrido. Só quando temos notícias seguras de seus passos, seus textos se iluminam mais. Assim, aquilo que ele escreve nos primeiros tempos de Milão, isto é, em meados da década de 1480, - quando ele tem pouco mais de trinta anos – está carregado de comentários sobre máquinas e soluções mecânicas, problemas de engenharia, com um discurso cuja ‘tecnicidade’ exagerada denuncia as intenções do artista na corte milanesa. Pois bem, essa é uma época muito documentada, em que ele perambula por canteiros de obras, frequentando os mestres mais importantes da cidade,, interrogando-os acerca de novos truques e soluções. Nesse período, Leonardo assume plenamente o papel de engenheiro pela primeira vez. Muitas notas do período tornam-se logo explicáveis. É o que ocorre em relação àqueles cadernos referentes à mesma Milão, mas de 14 anos depois, por volta de 1496, quando as circunstâncias da vida de Leonardo são totalmente diferentes (...). Podemos entender, perfeitamente, que nesse momento Leonardo estava envolvido com questões filosóficas, maravilhado com a matemática, que se lhe apresentavam com todo esplendor; o que nos facilita, assim, a compreensão de por que é aí quando ele sistematiza suas teorias sobre pintura. Assim, em um e em outro caso, esse tipo de cruzamento de dados biográficos, documentos terceiros e a produção escrita de Leonardo reforçam as possibilidades de sentido contidas nesta última, e, sem eles, muitas vezes não podemos compreender onde se encaixam certas peças desse quebra-cabeça que é interpretar o seu legado (...)” [Carreira, apud Vinci, 2000: 12-15].
7 – Galileu Galilei (1564-1642): método científico e experiência.
Galileu Galilei nasceu em Pisa, em 1564. Matriculou-se na Escola de Artes da sua cidade, em 1581, com a finalidade de estudar medicina. Contudo, não terminou o curso e dedicou-se aos estudos da matemática, que eram os seus prediletos, ao lado da observação dos fenômenos físicos. Em 1589 foi nomeado catedrático de matemática na Universidade de Pisa. Em 1604, após longos períodos de experimentação na Torre Inclinada da cidade natal, Galileu formulou a lei da queda livre dos corpos, elemento básico para a mecânica racional. Em 1610 deu início às suas observações astronômicas e passou a trabalhar em Florença, sendo protegido de Cosimo II de Médici. A descoberta, por Galileu, das manchas solares, acarretou para ele a ira dos teólogos, porquanto a hipótese do nosso autor colocava em risco a suposição da harmonia cósmica e da perfeição dos corpos que integravam as camadas superiores do Céu, que deveriam ser constituídos de “matéria pura”, sem manchas. As autoridades vaticanas obrigaram-no a não mais ensinar as teorias de Copérnico, bem como as hipóteses levantadas sobre as manchas solares. Durante algum tempo Galileu ficou calado. Mas, em 1623, após polêmica com um padre jesuíta acerca da natureza dos cometas, Galileu voltou a insistir nas suas observações, criticando acirradamente as observações de Aristóteles acerca do cosmo. Os teólogos romanos voltaram à carga, obrigando Galileu a se apresentar no Tribunal do Santo Ofício. Condenado pela Inquisição romana em junho de 1633, nosso autor foi obrigado a abjurar acerca das suas teorias científicas, a fim de não sofrer a tortura a que tinha sido submetido, em 1600, outro grande cientista e pensador, Giordano Bruno. Recolhido à sua casa, o nosso autor dedicou-se, nos últimos anos de vida, a reescrever alguns dos seus livros. Faleceu em 1642.
Estas são as principais obras de Galileu: Defesa contra as calúnias e imposturas de Baldessar Capra (1607), Mensageiro celeste (1610), Discurso sobre as coisas que estão sobre a água (1612), História e demonstrações sobre as manchas solares (1612), Discurso sobre o fluxo e refluxo do mar (1616), Diálogo sobre os dois maiores sistemas (1623), O Ensaiador (1623), Discurso sobre duas ciências novas (1638).
Elementos fundamentais da filosofia galileana acerca do conhecimento.
Em seis pontos podem ser resumidos os aspectos fundamentais da Teoria do Conhecimento de Galileu:
A. Aspecto fundamental da contribuição de Galileu: a fundamentação do método científico. Este teria, no sentir do pensador, quatro passos básicos, que seriam, em primeiro lugar, a observação dos fenômenos, tal como estes são apreendidos pelo observador, afastados os preconceitos extra científicos; em segundo lugar, a formulação da hipótese, como explicação tentativa que deveria ser confirmada; em terceiro lugar, a experimentação, em virtude da qual toda afirmação sobre fenômenos naturais deveria ser verificada, mediante a produção do fenômeno em determinadas circunstâncias, ou mediante a observação sistemática dos fatos objeto da ciência e, em quarto lugar, a formulação da lei, que seria possível graças à identificação de regularidades matemáticas na natureza.
José Américo Motta Peçanha sintetizou, da seguinte forma, o alcance da contribuição galileana, no terreno da ciência e da filosofia: “Formulando esses princípios, Galileu estruturou todo o conhecimento científico da natureza e abalou os alicerces que fundamentavam a concepção medieval do mundo. Destruiu a idéia de que o mundo possui uma estrutura finita, hierarquicamente ordenada, e substituiu-a pela visão de um universo aberto, indefinido e até mesmo infinito. Em lugar de conceber o mundo como dividido em duas partes, uma superior, constituída pelo Céu, e outra inferior, a Terra em que vive o homem, mostrou que todos os objetos físicos devem ser concebidos como sendo da natureza e tratados de modo idêntico, pelo menos por aqueles que desejam conhecer cientificamente o Universo. Pôs de lado o finalismo aristotélico, segundo o qual tudo aquilo que ocorre na natureza ocorre para cumprir desígnios superiores; e mostrou que a natureza é, fundamentalmente, um conjunto de fenômenos mecânicos, tal como afirmara Demócrito na Antigüidade. Demonstrou o engano do espírito puramente lógico e dedutivo da filosofia aristotélico-escolástica, quando aplicado à explicação dos fenômenos físicos. E mostrou, finalmente, que o livro do universo está escrito em caracteres matemáticos e que sem um conhecimento dos mesmos, os homens não poderão compreendê-lo” [Peçanha, 1987: VIII-IX].
B. Adoção do ponto de vista cinemático, que antecipava a perspectiva transcendental kantiana, o que tornou Galileu o fundador da física moderna. O ponto de vista cinemático é caracterizado pelo físico e filósofo belga Jean Ladrière em dois pontos: em primeiro lugar, interesse centrado no estudo dos fenômenos observados, mediante o método experimental e a matematização dos dados obtidos; em segundo lugar, abandono definitivo da preocupação em torno às causas dos fenômenos, que remeteria à existência de uma substância oculta sob os mesmos.
Galileu firmou, no terreno das ciências, uma nova maneira de abordar os fenômenos, não como véus que ocultam a substância, na busca de uma pretensa realidade metafísica (tá metà tà fysikà), mas como algo que deve ser observado e que constitui o real apreendido pelos nossos sentidos. A propósito dessa contribuição galileana, escreveu José Américo Motta Peçanha: “Galileu tornou-se o criador da física moderna, quando enunciou as leis fundamentais do movimento; foi também um dos maiores astrônomos de todos os tempos, pelas observações pioneiras que fez com o telescópio. Essas descobertas, contudo, foram resultado de uma nova maneira de abordar os fenômenos da natureza, e nisso reside sua importância dentro da história da filosofia. No campo das idéias filosóficas, Galileu é mais importante pelas contribuições que fez ao método científico, do que propriamente pelas revelações físicas e astronômicas encontradas em suas obras” [Motta Peçanha, ob cit., p. IX].
C. Valorização das matemáticas como instrumento para o conhecimento científico: Galileu estabeleceu um nexo indissolúvel entre ciência e matematização da natureza. As matemáticas, segundo o pensador, aproximariam a nossa razão do entendimento divino, numa retomada da via mística dos pitagóricos e do neoplatonismo. No entanto, tanto em Galileu como posteriormente em Newton (1643-1727), as matemáticas estavam também inseridas numa exigência epistemológica diferente da cultuada na Antigüidade: se bem esse tipo de conhecimento nos aproximasse da Inteligência Divina, no entanto, elas permitiam a tradução exata dos fenômenos naturais apreendidos pela experiência.
Em relação a essa valorização do conhecimento matemático, Galileu frisava: “O intelecto humano compreende algumas proposições tão perfeitamente e tem tão absoluta certeza, quanto pode ter a própria natureza; e isso ocorre nas ciências matemáticas puras das que o intelecto divino sabe, não obstante, infinitas proposições a mais, pois as sabe todas; mas das poucas entendidas pelo intelecto humano, creio que o seu conhecimento iguala-se à certeza objetiva divina, porque chega a compreender a necessidade, sobre a qual não parece poder existir segurança maior” [Galileu apud Mondolfo, 1967: 130].
Rodolfo Mondolfo destacou, por sua vez, o caráter de exatidão que as matemáticas possuem segundo Galileu, insistindo em que nesse aspecto, bem como na possibilidade de todos os homens terem acesso a esse tipo de conhecimento, consiste propriamente a “divindade” postulada. A respeito, afirma Mondolfo: “Ao privilégio atribuído pelos místicos aos poucos eleitos que podem chegar ao arroubo do êxtase, substitui-se (...) uma possibilidade aberta a todos os que submetem a sua mente aos processos e métodos do pensamento científico” [Mondolfo, ob. cit., p. 130].
D. Exaltação da liberdade de pensamento, como condição necessária para a ciência. Galileu, bem como os restantes filósofos do período Renascentista, notadamente Giordano Bruno, Leão Hebreu e Leonardo da Vinci, insiste em que, sem liberdade, perde-se o maior bem que um homem pode ter na face da Terra: o conhecimento das leis da natureza como manifestações da presença divina no Cosmo e o reconhecimento, no próprio homem, de que na luz da razão, livremente exercida, reside a sua maior dignidade.
E. Defesa da ética do cientista: buscar diuturnamente a verdade científica e comunicá-la com fidelidade aos seus semelhantes. Esse é o tema que prevalece na obra de Galileu, O Ensaiador. No seguinte trecho dessa obra, o pensador e cientista italiano deixa claro que, para fazer ciência, é necessário se afastar do argumento de autoridade e da busca pura e simples da popularidade, a fim de partir, com coragem, para a exploração da natureza, para interpretar os fenômenos da mesma com a ajuda da matemática. Frisa a respeito Galileu, ao rebater as maquinações de Lotário Sarsi, um dos seus detratores: “Parece-me também perceber em Sarsi sólida crença que, para filosofar, seja necessário apoiar-se nas opiniões de algum célebre autor, de tal forma que o nosso raciocínio, quando não concordasse com as demonstrações de outro, tivesse que permanecer estéril e infecundo. Talvez considere a filosofia como um livro e fantasia de um homem, como a Ilíada e Orlando Furioso, livros em que a coisa menos importante é a verdade daquilo que apresentam escrito. Senhor Sarsi, a coisa não é assim. A filosofia encontra-se escrita neste grande livro que continuamente se abre perante nossos olhos (isto é, o universo), que não se pode compreender antes de entender a língua e conhecer os caracteres com os quais está escrito. Ele está escrito em língua matemática, os caracteres são triângulos, circunferências e outras figuras geométricas, sem cujos meios é impossível entender humanamente as palavras; sem eles nós vagamos perdidos dentro de um obscuro labirinto” [Galileu, 1987: 21].
F. Uma contribuição podemos assinalar de Galileu Galilei à filosofia da Renascença: a sua fundamentação do método experimental. A respeito, escreve José Américo Motta Peçanha (1932-): “Galileu tornou-se o criador da física moderna, quando enunciou as leis fundamentais do movimento; foi também um dos maiores astrônomos de todos os tempos, pelas observações pioneiras que fez com o telescópio. Essas descobertas, contudo, foram resultado de uma nova maneira de abordar os fenômenos da natureza e nisso reside sua importância dentro da história da filosofia. No campo das ideias filosóficas, Galileu é mais importante pelas contribuições que fez ao método científico, do que propriamente pelas revelações físicas e astronômicas encontradas em suas obras” [Pessanha, 1987: IX].
Três princípios constituem a essência do método científico galileano: a – A observação dos fenômenos, tais como eles ocorrem, afastados os preconceitos extra científicos. b – A experimentação, em virtude da qual toda afirmação sobre fenômenos naturais deve ser verificada, mediante a produção do fenômeno em determinadas circunstâncias. c – A descoberta da regularidade matemática da natureza. Motta Peçanha sintetizou da seguinte forma o alcance da contribuição galileana, no terreno da ciência e da filosofia: “Formulando esses princípios, Galileu estruturou todo o conhecimento científico da natureza e abalou os alicerces que fundamentavam a concepção medieval do mundo. Destruiu a ideia de que o mundo possui uma estrutura finita, hierarquicamente ordenada e substituiu-a pela visão de um universo aberto, indefinido e até mesmo infinito. Em lugar de conceber o mundo como dividido em duas partes, uma superior, constituída pelo céu, e a outra inferior, a Terra em que vive o homem, mostrou que todos os objetos físicos devem ser concebidos como sendo da natureza e tratados de modo idêntico, pelo menos por aqueles que desejam conhecer cientificamente o Universo. Pôs de lado o finalismo aristotélico, segundo o qual tudo aquilo que ocorre na natureza ocorre para cumprir desígnios superiores; e mostrou que a natureza é fundamentalmente um conjunto de fenômenos mecânicos, tal como afirmara Demócrito na Antiguidade. Demonstrou o engano do espírito puramente lógico e dedutivo da filosofia aristotélico-escolástica quando aplicado à explicação dos fenômenos físicos. E mostrou, finalmente, que o livro da natureza está escrito em caracteres matemáticos e que sem um conhecimento dos mesmos, os homens não poderão compreendê-lo” [Pessanha, 1987: ibid.].
Jean Ladrière (1921-2007), por sua vez, considera que uma das mais importantes contribuições de Galileu ao pensamento ocidental, consistiu na adoção do ponto de vista cinemático (que se interessa pelo estudo dos fenômenos observados, mediante a utilização do método experimental e das matemáticas) e o definitivo abandono da perspectiva dinâmica (que indaga pelas causas últimas dos fenômenos). O novo método científico apregoado por Galileu estava direcionado à busca da necessidade racional, base da certeza científica [cf. Ladrière, 1966]. A certeza matemática pode-se igualar ao conhecimento divino, conforme frisa Galileu: “O intelecto humano compreende algumas proposições tão perfeitamente e tem tão absoluta certeza, quanto pode ter a própria natureza; e isso ocorre nas ciências matemáticas puras das que o intelecto divino sabe, não obstante, infinitas proposições a mais, pois as sabe todas; mas das poucas entendidas pelo intelecto humano, creio que o seu conhecimento iguala-se à certeza objetiva divina, porque chega a compreender a necessidade, sobre a qual não parece poder existir segurança maior” [Galileu, apud Mondolfo, 1967:130].
A afirmação da divindade do intelecto humano (pressuposta na afirmação de que a certeza matemática pode se igualar ao conhecimento divino), coloca o pensamento de Galileu bem próximo do imanentismo, que apontamos nos pensadores renascentistas estudados acima. Mondolfo observou a respeito: “Ao privilégio atribuído pelos místicos aos poucos eleitos que podem chegar ao arroubo do êxtase substitui-se (...) uma possibilidade aberta a todos os que submetem a sua mente aos processos e métodos do pensamento científico” [Mondolfo, 1967: 130, nota].
Encontra-se, destarte, no pensamento galileano, a tendência empírica da meditação renascentista, com a outra tendência, a do imanentismo unitário de inspiração neoplatônica, que inspirou a Cusa, Bruno, Leão Hebreu e Campanela. Mas efetiva-se esse encontro das duas tendências após a formulação, por Galileu, do método científico, através do qual podemos compreender e nos apropriarmos das forças que comandam o universo.
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