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TÓPICOS ESPECIAIS DE FILOSOFIA MODERNA - CAPÍTULO 17º - O PENSAMENTO DE SAINT-SIMON E O MESSIANISMO POLÍTICO MODERNO.

TÓPICOS ESPECIAIS DE FILOSOFIA MODERNA - CAPÍTULO 17º - O PENSAMENTO DE SAINT-SIMON E O MESSIANISMO POLÍTICO MODERNO.

CLAUDE-HENRI DE SAINT-SIMON (1760-1825)

Neste capítulo serão desenvolvidos os seguintes itens: I - Atualidade do conde Claude-Henri de Saint-Simon (1760-1825). II – Caráter teatral do estilo saint-simoniano. III – Três experiências na formação de Saint-Simon, que definiram o seu estilo messiânico. IV - O amadurecimento da obra de Saint-Simon concentrou-se ao redor de sua concepção religiosa, que constitui a versão do seu messianismo político. V - Saint-Simon afirma, enfaticamente, que o advento do sistema industrial é a única forma de materializar a existência do ser social. VI – Uma Religião Vital: o Novo Cristianismo. VII - Conclusão: a influência de Saint-Simon.

I - Atualidade do conde Claude-Henri de Saint-Simon (1760-1825).

O Messianismo Político: esta é a ideia central da meditação de Saint-Simon. Esta característica é inegável [cf. Vélez, 1981: 15 ss.]. Temas que interessam ao mundo de hoje como os da aproximação entre teoria e prática, da possibilidade de uma religião universal, da organização da sociedade a partir do saber e não simplesmente do poder, das características e funções do “poder operário” e da “nação trabalhadora”, etc., são de inspiração saint-simoniana. Fenômenos tão contemporâneos como o da “revolução cultural”, ou a organização totalizante da sociedade deitam raízes na sua obra. Preocupações como a da interdisciplinaridade foram por ele acalentadas: o polifacético conde chegou a propor a criação de um “Instituto Internacional da Pesquisa Científica Interdisciplinar”. E um fato tão latino-americano como a “teologia da libertação” inspira-se no “novo cristianismo” sistematizado e apregoado por Saint-Simon e os seus discípulos. A leitura da sua obra é, quando menos, interessante para o leitor contemporâneo.

Para o público brasileiro existem razões adicionais que recomendam a leitura de Saint-Simon. A nossa propaganda republicana, ao longo do século XIX, alicerçou-se em boa medida no fervor político-religioso que os saint-simonianos difundiram após a morte do mestre em 1825. Uma prova dessa influência, recebida no Brasil através da obra de Augusto Comte (1798-1857), o fundador da “Religião da Humanidade”, foram os ideais da ética absoluta e da regeneração social cultuados pela Igreja Positivista Brasileira, criada no Rio de Janeiro, em 1881, por Miguel Lemos (1854-1917) e Raimundo Teixeira Mendes (1855-1927). Outra prova foi a orientação cientificista e o rigor ético que empolgaram a formação dos militares brasileiros, no decorrer do século XIX, na Academia Militar e na Escola Politécnica, como também a mística republicana que inspirou a atuação de Júlio de Castilhos (1860-1903) e seus seguidores; peça representativa dessa concepção sacral da República é a Carta-Testamento de Getúlio Vargas (1883-1954). Na minha obra intitulada: A ditadura republicana segundo o Apostolado positivista, fiz uma análise aprofundada das raízes saint-simonianas do comtismo [cf. Vélez, 1982 e 1994].

O próprio Augusto Comte, que foi secretário particular de Saint-Simon em 1817 e 1818 salientou assim a importância da obra do mestre: “Pela cooperação e amizade com um desses homens que vêm longe nos domínios da filosofia política, aprendi uma multidão de coisas, que em vão procuraria nos livros; e no meio ano durante o qual estive associado a ele, meu espírito fez maiores progressos do que faria em três anos, se eu estivesse sozinho; o trabalho desses seis meses desenvolveu minha concepção das ciências políticas e, indiretamente, tornou mais sólidas minhas ideias sobre as demais ciências” [Comte, 1973: 646-647].

II – Caráter teatral do estilo saint-simoniano.

Não podemos considerar Saint-Simon como um escritor sistemático. A sua obra não obedece a um plano que se desenvolva coerentemente. Também não é um orador. Os seus escritos foram geralmente difundidos em edições limitadas, que às vezes os refundiam, e estiveram submetidos à diligência mais ou menos reticente dos seus secretários ocasionais. Henri Desroche (1914-1994) considera que o seu estilo é mais teatral: ”Ele gosta de encenar e de se colocar em cena. Gosta de falar e de fazer falar e, por isso, parceiro nenhum consegue ser suficientemente grande para fazer uma réplica, ou principalmente para pronunciar em seu nome os presságios que Saint-Simon se esforça ardentemente por anunciar (...). Carlos Magno, Bacon, Lutero, Deus, recebem, assim, a palavra por seu turno” [Desroche, 1969: 14].

O caráter não sistemático e a índole teatral tornam de difícil leitura a obra de Saint-Simon, sobretudo quando é lida com a preocupação de descobrir nela as linhas mestras do seu pensamento. Isso, contudo, não significa que ele não tenha chegado a expressar uma concepção sociológica e filosófica, com predomínio, aliás, “da filosofia da História e da Sociologia”, como acertadamente observa Georges Gurvitch (1894-1965) [Gurvitch, 1965: 33].

Talvez a teatralidade de Saint-Simon seja condicionada pelo profundo sentimento apocalíptico que o empolgava. Ele estava convencido de viver num período crítico da humanidade. A sua obra é entendida por ele, assim, como revelação profética das origens dessa crise, bem como do horizonte que se vislumbra após a tempestade. O filósofo entrevê o nascimento de uma religião universal que imporá a organização pacífica da sociedade. Eis um trecho de Saint-Simon, citado por Jacob Leib Talmon (1916-1980), que expressa essa convicção:

“Isto é o que dizemos sem dilação: os dias das soluções incompletas chegaram ao fim. É necessário dirigir-se, resolutamente, em direção ao bem geral. É a verdade, na sua totalidade, que deve ser salientada perante as circunstâncias atuais: é chegado o momento da crise. Essa crise profetizada por muitos dos textos do Antigo Testamento e para a qual, durante muitos anos, têm-se preparado ativamente as sociedades bíblicas. É a crise cuja existência acaba de demonstrar a instituição da Santa Aliança, união fundada nos mais generosos princípios de moralidade e religião. Esta é a crise que os judeus esperaram desde quando, expulsos do seu país, têm andado errantes, vítimas de perseguições, sem renunciar nunca à esperança de ver o dia em que os homens conviveriam como irmãos. Finalmente, essa crise tende, diretamente, ao estabelecimento de uma religião auténticamente universal e a impor a todos os povos uma organização pacífica da sociedade” [apud Talmon, 1969: 21].

III – Três experiências na formação de Saint-Simon, que definiram o seu estilo messiânico.

Henri Desroche considera que três experiências marcaram a juventude de Saint-Simon e foram sintetizadas na última parte da sua obra, quando o filósofo formulou o seu nouveau christianisme. Essa tripla experiência abarca o período compreendido entre 1760 e 1803 e foi representada, em primeiro lugar, pela sua formação, na infância e na adolescência, sob a inspiração do saber enciclopédico.

Em segundo lugar, vem a experiência da “prática libertadora”, havida durante a Revolução Americana (1776) na qual tomou parte Saint-Simon com a idade de 17 anos, como voluntário da brigada francesa comandada pelo general La Fayette (1757-1834). Anos mais tarde, afirmava com indisfarçável orgulho: “eu posso me considerar como um dos fundadores da liberdade nos Estados Unidos”.

A terceira experiência da sua juventude esteve marcada pela Revolução Francesa (1789), da qual participou como observador arguto. Em relação a essa tríplice experiência, a nostalgia da Enciclopédia, a libertação da América do Norte e a ambiguidade da Revolução Francesa, salienta Henri Desroche: “Da primeira ele tirou a sua veneração por um humanismo do homo sapiens. Da segunda, a valorização do humanismo do homo faber. Da terceira, a sua abjuração à revivescência de um homo ludens” [Desroche, 1969: 17]. O citado autor destaca que, correspondentes a essas três tendências, pode-se identificar também um triplo movimento na sociologia saint-simoniana: “uma sociologia da ciência baseada no fisicismo e posteriormente na fisiologia social; uma sociologia da ação baseada no industrialismo da nação trabalhadora, uma sociologia do homem e do mundo baseada na paixão geral, cuja orquestração será solicitada ao Nouveau Christianisme” [Desroche, 1969: ibid.].

IV - O amadurecimento da obra de Saint-Simon concentrou-se ao redor de sua concepção religiosa, que constitui a versão do seu messianismo político.

Perante a crise em que mergulhara o Ancien Régime na Europa, nas revoluções industrial e francesa, Saint-Simon era consciente de ser a peça-chave para a redenção da humanidade. A respeito, frisa Talmon: “Estava convencido de ser um Napoleão da ciência e da indústria, pela promessa que lhe fez Carlomagno, durante um sonho que teve quando esteve preso na cadeia de Luxemburgo, em 1794, de que conseguiria tanta gloria como filósofo, quanto o seu famoso antecessor tinha alcançado nas artes da guerra e do governo” [Talmon, 1969: 22-23]. Em 1813, no seu ensaio intitulado: Trabalho sobre a gravitação universal, escrevia Saint-Simon: “Historiador nenhum colocou-se, ainda, no ponto de vista geral; ninguém fez até agora a História da Espécie (...)” [apud Saint-Simon, 1965: 33].

Na busca de um princípio total que permitisse a explicação racional do Universo, Saint-Simon terminou professando uma concepção determinística do homem, que conspira contra a complexidade que ele mesmo tinha reconhecido à realidade social, e contra o seu interesse em estudar o exercício da liberdade, em face dos condicionamentos sociais. Georges Gurvitch identificou esse determinismo utópico nestes termos: “O fundamento das soluções utópicas sugeridas por Saint-Simon é sempre o mesmo: é a impossibilidade das antinomias efetivas no mundo social, como no mundo simplesmente, tendo o esforço humano como única vocação salientar a harmonia pré-estabelecida e realiza-la plenamente” [Gurvitch, 1965: 25].

Nesse contexto, a sociedade é concebida como “verdadeira máquina organizada” ou como um organismo que, ao longo dos tempos, criou os próprios órgãos para adaptar-se às diferentes situações. A unidade inteligível da História não é nem o Estado, nem a Nação, mas a Sociedade organicamente considerada. As suas forças e processos não são criação deliberada de ninguém, mas fruto do Organismo Social. Os sistemas filosóficos seriam, para Saint-Simon, a expressão do esforço de adaptação do Organismo Social às diferentes épocas. Como frisa Talmon, todo Sistema social é, assim, “(...) a aplicação de um sistema filosófico. A religião, a política, a moral, a instrução pública não são mais do que o reflexo e aplicação de um sistema de ideias, de uma Weltanschauung (...)” [Talmon, 1969: 30].

Levando em consideração o caráter orgânico da sociedade, a expressão dos sistemas de ideias corresponde, nas diferentes épocas, a uma cabeça que pensa pelo todo social. Como escreve Émile Bréhier (1876-1952), “Saint-Simon é aristocrata demais para poder acreditar que o povo, em cujo favor trabalha, seja capaz de fazer alguma coisa em prol da sua renovação” [Bréhier, 1948: II, 712].

Assim, cumpre identificar a quem estava encomendada a tarefa de explicitar o novo sistema de ideias que regeneraria a sociedade após a Revolução Francesa. Analisando as mudanças ocorridas na Europa ao longo do século XVIII, Saint-Simon considera que o organismo social caminha, inexoravelmente, rumo à organização científica, com a emergência da Sociedade Industrial. Tal sociedade caracterizava-se, basicamente, por duas notas: em primeiro lugar, o esforço produtivo industrial é objetivo, pois os seus elementos são mensuráveis e tangíveis para todos, e o seu funcionamento é uma questão de precisão e de disciplina do caráter científico. Não há lugar para opiniões no campo da química ou das matemáticas: ou são conhecidas ou não. Em segundo lugar, trata-se de uma organização com um grau máximo de coesão e integração, o que realça, justamente, o caráter orgânico da sociedade. No seu escrito La Physiologie Sociale (1813) afirmava Saint-Simon a respeito que: “A reunião dos homens constitui um verdadeiro Ser, cuja existência é mais ou menos vigorosa ou fraca, segundo os seus órgãos assumam, mais ou menos regularmente, as funções que lhes são confiadas” [Saint-Simon, 1965: 57].

V - Saint-Simon afirma, enfaticamente, que o advento do sistema industrial é a única forma de materializar a existência do ser social.

Ele explica, nos seguintes termos, o caráter irreversível desse advento: “Todos os povos do mundo avançam em direção de uma mesma meta: a transição do sistema governamental, feudal e militar, ao administrativo, industrial e pacífico (...). Não há força capaz de se opor a essa marcha (...). O nosso plano de organização social provém diretamente do avanço do espírito humano e a sua adoção é consequência inevitável do passado político da sociedade europeia” [apud Talmon, 1969: 42].

Cabe aos industriais, que figuram à frente da implantação do sistema industrial, presidirem, como cabeça, o corpo social. A sua gestão na sociedade não revestirá mais o caráter coercitivo de épocas passadas, pois prevalecerá não a força, mas a razão das coisas. Todo o trabalho a ser feito consistirá, portanto, em explicar a cada um o lugar que deve ocupar no corpo da sociedade industrial.

Apesar do caráter irreversível da sociedade industrial, Saint-Simon considera que o seu advento deve ser induzido por uma outra elite esclarecida: os savants positifs, a cuja frente ele próprio se coloca. O papel deles consiste em pregar a grande revolução que será a passagem da sociedade tradicional para a industrial. O papel da elite intelectual é eminentemente persuasivo, não violento, devendo limitar-se a mostrar aos reis, povos, aristocracias e governos a inevitabilidade do advento do sistema industrial. Assim advirá a nova sociedade.

No caso concreto da França, Saint-Simon considerava que o processo deveria ser acelerado convertendo o rei para o novo sistema, já que ele tinha poder suficiente para modificar toda a estrutura social e fazê-la ingressar na etapa industrial, com um simples decreto. Esse é o sentido da petição feita pelo filósofo ao rei Bourbon para que tomasse a iniciativa e se declarasse cabeça da ditadura “encarregada de aniquilar o regime teológico feudal e estabelecer o sistema científico industrial”, tornando-se ele, assim, o primeiro dos industriais. Esperança semelhante empolgou a Augusto Comte (1798-1857), quando da usurpação de Luís Napoleão (1808-1873), e aos positivistas brasileiros quando da Proclamação da República pelo Governo Provisório (1889).

VI – Uma Religião Vital: o Novo Cristianismo.

Apesar do papel de liderança atribuído por Saint-Simon aos industriais e aos savants positifs, aos poucos foi reconhecendo a necessidade de alicerçar o comportamento coletivo harmônico numa base mais ampla do que a pura ciência, a fim de abranger os sentimentos humanos, que jogam um papel tão importante na conduta dos homens. O filósofo procurou, assim, forças mais profundas numa religião vital. Saint-Simon encontrou que o fator religioso desempenhava um papel de primeira ordem na organização social. A propósito, frisava: “A religião tem servido e servirá sempre como base da organização social (...). A humanidade tem atravessado crises científicas, morais e políticas, sempre que a ideologia religiosa tem experimentado algum câmbio” [apud Talmon, 1969: 50]. E dedicou a última parte da sua vida à procura desse embasamento religioso para a sociedade industrial.

Georges Gurvitch frisa que a religião saint-simoniana “(...) refere-se, em particular, à atividade coletiva da sociedade, ao surgimento da sua nova moral do amor e do trabalho combinados, própria do regime industrial. A sociedade, a humanidade, não somente têm inventado Deus e descoberto a sua presença no mundo natural e social, mas elas mesmas tornam-se cada vez mais divinas. No seu esforço por reconciliar o panteísmo naturalista e o panteísmo humanista, Saint-Simon chega à preponderância deste último, realizada pela moralidade coletiva considerada como Deus” [Gurvitch, 1965: 24].

Podemos assinalar os seguintes traços característicos do Novo Cristianismo saint-simoniano:

1 - Ele deve garantir uma visão do mundo coerente e progressista (Weltanschauung). Tal concepção deve oferecer aos homens um quadro do lugar que ocupam no universo, bem como o código de conduta correspondente.

2 – A nova religião é indissociável da política. Ela é o chão em que devem ancorar as instituições sociais, bem como a organização política; não cabe, portanto, a divisão entre o poder espiritual e o temporal, entre igrejas e Estado.

3 – A vivência religiosa deve nos tornar dependentes de alguma realidade objetiva, exterior a nós mesmos. Ela impede a dominação egoísta sobre os outros, bem como os conflitos de interesses. Não é fruto do capricho individual, mas é uma realidade superior às nossas veleidades e caprichos.

4 – Essa religião vital é o cristianismo renovado. Os fatores de renovação consistem em todos os adiantamentos científicos e a sua identificação com o impulso construtivo da classe produtora, substituindo as ideias metafísicas e as esperanças transcendentes por ideais sociais e assumindo o encargo de “melhorar prontamente a situação moral e física da classe mais numerosa (...) e evitar que os ricos e poderosos continuem tiranizando os pobres”.

5 - O Novo Cristianismo será vivido por uma nova Igreja. Esta deve tomar a iniciativa, a fim de que o sistema industrial dê os seus frutos, mediante a mobilização dos cientistas, dos artistas e dos industriais, para que elaborem planos que desenvolvam ao máximo a inteligência e a produtividade.

Saint-Simon sintetizava assim, na sua obra Le nouveau christianisme (1825), essa missão esclarecedora e redentora da nova Igreja, que faz lembrar, aliás, os ideais dos positivistas ilustrados brasileiros e dos filósofos utilitaristas ingleses: “Os novos cristãos devem desenvolver o mesmo caráter e seguir o mesmo caminho da Igreja primitiva; eles só devem empregar as forças da sua inteligência para fazer adotar a sua doutrina. É somente com a persuasão e com a demonstração que devem trabalhar na conversão dos católicos e dos protestantes” [Saint-Simon, 1969: 178].

Logo após a morte de Saint-Simon, em 1825, os seus discípulos, entre os quais se contavam jovens judeus ricos de ascendência portuguesa, como Olinde Rodrigues (1795-1851) e os irmãos Pereira, Émile (1800-1875) e Isaac (1806-1880), encarregaram-se, com verdadeiro fervor religioso, de continuar a obra do mestre, instaurando a Igreja almejada. Talmon destaca que “(...) Os seus componentes se consideravam uma comunidade de apóstolos, uma reprodução daquela reduzida confraternidade que, uns mil e oitocentos anos antes, formou-se em Jerusalém, com uma missão análoga e um futuro semelhante diante deles” [Talmon, 1969: 55].

Os discípulos não duvidavam, a essa altura, do caráter messiânico de Saint-Simon. Eis as palavras que pronunciou o principal deles, Olinde Rodrigues, logo após o enterro do mestre: “O mundo tem esperado um salvador (...): Saint-Simon apareceu. Orfeu e Numa organizaram os trabalhos materiais e Jesus Cristo, o esforço espiritual. Saint-Simon organizou a empresa religiosa e, portanto, tem dado forma a uma síntese de Jesús e Moisés. No futuro, Moisés será a cabeça do culto, Jesus Cristo do dogma e Saint-Simon da religião, quer dizer, o Papa” [apud Talmon, 1969: 55].

6 – Inspiração do “Novo Cristianismo” de Saint-Simon na “Religião Civil” de Rousseau (1712-1778). O “Nouveau Christianisme” de Saint-Simon inspira-se na “Religião Civil” que Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) tinha proposto na última parte do seu ensaio intitulado Du contrat social (1762). Partindo do fato da desigualdade humana criada pela sociedade, que Rousseau explica em A origem da desigualdade entre os homens (1753), o filósofo salienta que, só no surgimento de uma religião civil que unifique as mentes e as vontades ao redor do Estado, poderá ser conseguida a ordem social e política. Como o próprio Rousseau reconhece, ele é inspirado, em parte, pela proposta do poder único e indivisível em mãos do Estado que Thomas Hobbes (1588-1679) tinha formulado um século atrás no Leviatã (1651), para superar o estado de “guerra permanente”, ou de insegurança coletiva.

VII - Conclusão: a influência de Saint-Simon.

A doutrina messiânico-política de Saint-Simon influenciou, no decorrer do século XIX, as restantes manifestações do messianismo político, que empolgou o pensamento de autores tão variados como Augusto Comte, Michelet (1798-1874), Mazzini (1805-1872) e o próprio Marx (1818-1883).

O mundo português não permaneceu alheio ao influxo do messianismo político de cunho rousseauniano e saint-simoniano. A geração intelectual de Teófilo Braga (1843-1924), Oliveira Martins (1845-1894), Antero de Quental (1842-1891), Eça de Queirós (1845-1900), Sampaio Bruno (1857-1915), etc. foi fortemente influenciada por essa tendência. Baste-nos mencionar, por exemplo, o indisfarçável panteísmo social e moralizante que empolga a Antero no seu ensaio intitulado: Tendências gerais da filosofia na segunda metade do século XIX [cf. Quental, 1923, III]. Para não falar na antiquíssima tradição sebastianista, que deita raízes no pensamento helenístico e da Idade Média.

Esse influxo da religião civil como meio para garantir a estabilidade política vingou, ao longo da América Latina, no decorrer do século XIX, deitando os alicerces culturais para a adoção, no século XX, de novas formas de messianismo identificadas com as ideologias totalitárias, ou próximas delas. Nos países em que se desenvolveu a tradição positivista, como no México, no Brasil e no Chile, o messianismo político percorreu o caminho das “ditaduras científicas”, com todo um embasamento religioso-dogmático; tal o caso, por exemplo, do Castilhismo gaúcho [cf. Vélez, 1980] ou do Porfiriato mexicano. Nos restantes países hispano-americanos vingaria uma mistura entre a tendência rousseauniana à religião civil e a secular tendência do Estado patrimonial espanhol a se alicerçar na tradição religiosa católica [cf. Vélez, 1978]. No caso do Castilhismo, destaquemos, en passant, que Getúlio Vargas (1883-1954) fundamentou o seu projeto modernizador na doutrina saint-simoniana, que o líder gaúcho conhecia, através das obras literárias de Émile Zola (1840-1902).

Nas últimas décadas, uma nova variável de messianismo político apareceu no meio latino-americano, ao ensejo dos populismos que têm vingado nesta parte do mundo e que pressupõem, sempre, um componente soteriológico a ser encarnado nas novas figuras que prometem salvação para os deserdados. Remeto aos recentes estudos realizados a respeito por Gloria Alvarez (1985), Axel Kayser (1981), Enrique Krause (1947) e Benjamin Teitelbaum (1983).

No Caso deste último autor, há a apresentação de um novo messianismo transnacional e com características globais, ensejado pela versão dos chamados populismos de direita, tanto na América Latina como em outras latitudes. Pano de fundo doutrinário: a visão dos grupos concernidos é, messianicamente, mantida como a única verdadeira. Consequência: desconhecimento ontológico e epistémico dos que divirjam. É o saint-simonismo em estado puro, inspirando, entre outros, a turma do Olavo de Carvalho (1947-), o “Guru da Virgínia”, com as consequências desastrosas que tal inspiração acarreta para a prática democrática. Bolsonaro teve de colocar em banho maria o Guru e as “Olavettes”, como se denominam os militantes do Olavo de Carvalho [cf. Teitelbaum, 2020]; mas, antes de serem enquadrados, fizeram estragos apreciáveis no seu governo, se indispondo com os civis (entre os quais eu me incluo) que não tínhamos essa inspiração e com os militares. Afinal de contas, não dá para integrar uma equipe de trabalho pluralista, com representantes diretos do “Espírito Absoluto”. Este incidente mostra até que ponto é forte, ainda, no Brasil, a tradição do “messianismo político”, do autoritarismo tradicionalista, e de esquerda alucinada.

A rápida difusão, ao longo das últimas décadas, da Teologia da Libertação, que é uma ideologia totalizante visando à redenção do homem latino-americano das cadeias da dependência, mediante a implantação da ditadura do proletariado é uma prova da tremenda força que ainda tem, entre nós, o messianismo político de inspiração saint-simoniana [cf. Vélez, 1987].

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