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TÓPICOS ESPECIAIS DE FILOSOFIA MODERNA - CAPÍTULO 14º - LEITURA SUPLEMENTAR - ANTÔNIO PAIM: "ROTEIRO PARA O ESTUDO INICIAL DA CRÍTICA DA RAZÃO PURA DE KANT".

TÓPICOS ESPECIAIS DE FILOSOFIA MODERNA - CAPÍTULO 14º - LEITURA SUPLEMENTAR - ANTÔNIO PAIM:

ANTÔNIO PAIM (1927-) O MAIS IMPORTANTE HISTORIADOR DAS IDEIAS FILOSÓFICAS NO BRASIL

(Maio de 1985)



Sumário

1 . Plano geral de leitura.

2 . Estética transcendental.

3 . Introdução à segunda Parte da Doutrina Transcendental dos Elementos – (Ideia de uma Lógica Transcendental).

4 . Analítica Transcendental.

4.1 – Analítica dos conceitos.

4.2 – Analítica dos princípios.

4.3 – O fundamento da distinção entre fenômenos e noûmenos.

5.0 – Dialética transcendental.

6.0 – Problemas legados à posteridade pela obra de Kant e significação do kantismo.

Apresentação.

A Crítica da razão pura (1781) de Immanuel Kant (1724-1804) constitui um dos textos fundamentais do pensamento ocidental. A rigor, todo homem culto, independentemente das suas pretensões de aprofundar-se no conhecimento da filosofia, precisaria dispor de uma ideia geral do conteúdo desse livro.

A Crítica da razão pura ganhou fama como obra inacessível, o que corresponde a uma injustiça, se bem o próprio Kant haja contribuído nesse sentido, ao publicar um outro livro com a pretensão de explica-la (Prolegômenos a toda metafísica futura que possa apresentar-se como ciência, 1783). A dificuldade verdadeira reside na aquisição da atitude crítica, isto é, em habituar-se a distinguir aquilo que falamos das coisas mesmas.

Tampouco o autor se preocupou em produzir texto acessível a grande número. Ao contrário disto, sua exposição é sobrecarregada com questões não resolvidas ou simplesmente mal dispostas, ou melhor, antecipadas indevidamente.

Por essa razão justifica-se que nos tenhamos proposto a elaborar o presente roteiro.

A proposta de estudo aqui contida não pretende esgotar a Crítica da razão pura e, muito menos, o pensamento de Kant. A intenção maior reside em apontar um caminho através do qual quem o siga chegue a compreender, de maneira correta, aquilo que se denomina perspectiva transcendental. Esta perspectiva é uma criação moderna e contrapõe-se, frontalmente, à perspectiva clássica, denominada transcendente. Enquanto esta acredita na possibilidade de acesso às coisas como seriam em si mesmas - donde constituir-se a ideia de substância na categoria fundamental, a perspectiva transcendental supõe que temos acesso apenas aos fenômenos. Questões tais como a existência de Deus, a sobrevivência da alma ou a infinitude do mundo não podem ser resolvidas de forma racional.

A perspectiva transcendental não pretende refutar a perspectiva transcendente. As perspectivas filosóficas são, em si mesmas, irrefutáveis e não prescindem de um elemento arbitrário de escolha.

Contudo, a familiaridade com a perspectiva transcendental é imprescindível a quem se disponha a estudar a filosofia moderna e, portanto, as filosofias nacionais, todas posteriores a esse período. Os idealistas alemães tiveram-na em conta, do mesmo modo que Marx, Husserl ou Cohen. Os equívocos de muitas das interpretações contemporâneas do marxismo ou da fenomenologia decorrem, precisamente, do desconhecimento ou da negligência em relação a tal circunstância.

O estudo ora proposto não dispensa o conhecimento integral do livro nem impede ou dificulta o aprofundamento posterior. De sorte que se recomenda a todos quantos queiram estudar a Crítica da razão pura, como passo inicial capaz de facilitar enormemente a tarefa.

1 . Plano geral de leitura.

Kant dividiu a Crítica da razão pura em dois grandes blocos, denominando o primeiro de “Doutrina transcendental dos elementos” e o segundo de “Doutrina transcendental do método”. Esta corresponde, na verdade, a uma espécie de plano para elaboração do sistema. Kant supunha, como muitos dos filósofos do seu tempo e até posteriores, que a filosofia precisa ser exposta em forma de sistema. Embora ainda se encontre partidários dessa hipótese, semelhante ideia não tem curso no período contemporâneo. De todos os modos não esclarece grande coisa quanto à perspectiva transcendental, podendo ser dispensada a sua leitura na presente etapa.

A Doutrina transcendental dos elementos foi precedida de uma Introdução. Na segunda edição o autor acrescentou-lhe um Prefácio. Ambos os textos pressupõem uma grande familiaridade tanto com a terminologia kantiana, como em relação aos problemas suscitados pela publicação do livro. Por essa razão, a leitura inicial deve começar pela Primeira Parte da Doutrina Transcendental dos Elementos, denominada Estética Transcendental.

Além desta, o estudo deve concentrar-se na Analítica Transcendental, que é a primeira divisão da Parte Segunda. Esta denomina-se Lógica Transcendental e, no que se refere à parte introdutória, o importante é ter presente a reordenação da lógica clássica empreendida por Kant, como indicaremos oportunamente.

A segunda divisão da Parte Segunda intitula-se: ”Dialética Transcendental”. Nesta leitura inicial é suficiente formar-se uma ideia geral do seu conceito. Em resumo, a leitura inicial concentra-se na Estética Transcendental (pgs. 39 a 56 da edição de “Os Pensadores”) e na Analítica Transcendental (pgs. 67 a 166 da edição citada). Da Dialética Transcendental será suficiente o estudo da Introdução (pgs. 177-184) e do Livro Primeiro (pgs. 185-198). Essa tradução brasileira comete alguns lapsos. Sugere-se, portanto, que ao deparar-se com passagens obscuras seria conveniente consultar a tradução francesa (Tremesaygues e Pacaud, Presses Universitaires de France).

Como instrumento auxiliar de leitura recomendamos apenas a consulta a um Dicionário de Filosofia. O mais adequado ao caso é o Vocabulaire Technique et Critique de la Philosophie, de André Lalande, desde que se limita a definir os conceitos na forma como os entenderam os diferentes filósofos. Há vários dicionários de filosofia editados em português que atendem perfeitamente ao objetivo. Existe, inclusive, um vocabulário da terminologia kantiana, Le Vocabulaire de Kant, da autoria de Roger Vernaux, Paris, Aubier-Montaigne, 1967), dispensável na presente etapa.

Sugerimos evitar a consulta às exposições constantes das histórias da filosofia porquanto se trata, agora, de compreender os conceitos fundamentais apresentados na Crítica da razão pura, questão em geral negligenciada por aquelas histórias. Para ter uma ideia da obra geral e da evolução do pensamento de Kant, o melhor texto é da autoria de Ernst Cassirer, elaborado como introdução para a edição das Obras Completas (1912-1922, 11 volumes), de que se dispõe de tradução espanhola (Kant, vida y doctrina, México, Fondo de Cultura, Breviarios, vol. 201, 2ª edição, 1968).

2. Estética Transcendental.

Kant toma o termo “estética” no sentido clássico e não no moderno, que o popularizou como “teoria do belo”. Aísthesis é a denominação dada à sensibilidade pelos filósofos gregos.

A Estética Transcendental trata dos conceitos de espaço e tempo. Kant está preocupado, sobretudo, em demonstrar que esses conceitos não vêm da experiência.

Muitas pessoas relutam em aceitar que as noções de espaço e tempo não se tenham formado no contato com as coisas. Para o estudioso da Crítica da Razão Pura é essencial, entretanto, dar-se conta de que a questão, no plano conceitual, é bastante complexa. Sugere-se consultar um dicionário de filosofia a fim de conhecer as hipóteses acerca do problema.

Além disto, nesta parte da obra Kant apresenta um conjunto de conceitos que são muito importantes. A título de exemplo apresentamos, a seguir, o tipo de elaboração que precisaria ser feita em relação a cada um deles, com o propósito de situar o que é de fato peculiar à acepção kantiana:

Sensibilidade e sensação. Com a noção de sensibilidade Kant não deseja tecer nenhuma consideração de ordem fisiológica ou psicológica. Quer apenas distingui-la como simples passividade (capacidade de receber representações), para enfatizar que o espírito tem outra característica (capacidade de criar sínteses). É o pressuposto inicial do conhecimento. A sensação será a impressão de um objeto sobre a nossa faculdade representativa, enquanto somos por ele afetados.

Intuição – Apreensão imediata (sem mediação, portanto; vale dizer: prescindindo de elementos discursivos). Descartes emprega esse termo no sentido de evidência, plena clareza intelectual. Em Kant, a intuição relaciona-se diretamente como objeto e é singular. Husserl fala em intuição eidética como um dos instrumentos da fenomenologia mas não guarda, senão remotamente, relação com as acepções precedentes. Trata-se de um procedimento. A acepção em que a toma Kant tem o mérito de estabelecer, de pronto, o essencial, isto é, a intuição intelectual deve provar-se.

A priori” – Não se trata da anterioridade cronológica. [É] o pressuposto na experiência. A experiência não explica. Na Escolástica, consistia no raciocínio que partia da causa (antecedente) ao efeito; do princípio à consequência. No raciocínio “a posteriori”, inversamente (das consequências à causa, do que é condicionado por natureza ao que é incondicionado). Kant toma-o no sentido de formal (na lógica tradicional, a forma é a relação entre dois termos, abstração feita do que designam, isto é, sem referência a objetos do conhecimento): leis do pensamento, que estabelecem, entre os dados múltiplos dos sentidos, relações que permitem percebê-los e compreendê-los.

Compete ao estudioso completar esta relação, com base na leitura da Estética Transcendental e da consulta a um Dicionário de Filosofia.

3. Introdução à 2ª parte da Doutrina Transcendental dos Elementos (Ideia de uma lógica transcendental).

Na Introdução em epígrafe (pgs. 57 a 63 da edição de “Os Pensadores), Kant pressupõe alguma familiaridade com a Lógica Clássica. Embora não seja o caso de interromper a leitura para adquiri-la, cumpre levar em conta as indicações adiante. Segundo Kant, a lógica transcendental é uma ciência do entendimento puro, incumbindo-lhe determinar a origem, a extensão e o valor objetivo do conhecimento. Para Kant só existe conhecimento em presença de dois elementos: as intuições e os conceitos. Como a intuição só pode ser sensível, não existe conhecimento a partir, unicamente, dos conceitos.

A estética transcendental estabeleceu as condições segundo as quais são possíveis as intuições sensíveis, isto é, a partir das formas “a priori” da sensibilidade (o espaço e o tempo). Trata-se agora de investigar, no plano do entendimento, quais são as suas formas puras. Essa precisamente é a tarefa da LógicaKant denominou-a de Lógica Transcendental para distingui-la da lógica clássica – a partir dele classificada como FORMAL – criada por Aristóteles. Em síntese, o Estagirita partia da hipótese de que a ciência se constituía de um conjunto de proposições (enunciados), incontestavelmente válidas e que poderiam ser divididas em duas grandes classes: os princípios ou axiomas (proposições que prescindem de demonstrações) e os teoremas (proposições demonstradas). A Lógica Formal ocupa-se daquelas proposições para as quais seja possível estabelecer as regras da dedução. Tais regras contêm três formas perfeitas F¹, F² e F³, de sorte que sendo verdadeiras F¹ e F², também F³ o será. A Lógica Formal interessa-se, inteiramente, pelo conteúdo. \por isto mesmo, não é o método adequado para averiguar-se a veracidade de qualquer afirmativa, mas apenas a forma correta (lógica) de apresenta-la.

O problema para Kant é inteiramente diverso, porquanto sua investigação versa precisamente sobre as condições e os limites do conhecimento. Assim, ao denominar de Lógica esta segunda parte de sua pesquisa, teve obrigatoriamente que se defrontar com a problemática suscitada pela adequada conceituação da lógica clássica. A primeira questão diz respeito ao conceito de Organon. As obras lógicas de Aristóteles foram agrupadas sob essa denominação. Bacon chamou de Novum Organon (1620) o tratado em que procurou estabelecer as regras da indução. Organon seria, pois, uma espécie de lógica válida para todas as ciências.

Kant irá invocar o conceito de Canon, ao que se supõe popularizado por Leibniz, com vistas a dispor de uma noção mais restrita de Organon. Segundo entende, Organon é a maneira de chegar-se a um conhecimento determinado. Para tanto seria necessário dispor, previamente, de uma noção precisa do objeto da ciência em apreço. Deixaria, portanto, de revestir-se da pretendida generalidade. Para alcança-la, isto é, para chegar-se a uma propedêutica de todo o entendimento e da razão em geral, requer-se um Canon, que é uma arte universal da razão.

Assim, na Crítica da Razão Pura, Kant identifica Lógica de uso geral com Canon e Lógica de uso particular como Organon. O Canon (Lógica Geral), por sua vez, pode ser Lógica Pura ou Lógica Aplicada. Esta última poderia ser também denominada psicologia, entendida como investigação das condições subjetivas empíricas do uso do entendimento. Somente a primeira seria uma ciência no sentido estrito do termo, porquanto apta a fornecer princípios de validade universal (necessários). As regras da segunda (psicologia) seriam contingentes.

Tais são as questões do primeiro parágrafo. O segundo contém o conceito de Lógica Transcendental.

A Lógica Transcendental é uma esfera rigorosamente delimitada da Lógica Geral (Canon). Esta se aplicaria aos objetos em geral (conhecimentos de razão, empíricos ou puros, sem distinção), enquanto a Lógica Transcendental é uma ciência do entendimento puro e do conhecimento racional, pelo qual pensamos os objetos completamente “a priori”. A Lógica Transcendental comporta, finalmente, a distinção entre analítica e dialética transcendentais, apresentada no parágrafo IV, distinção que se aplicaria também à Lógica Geral (III). Para estabelece-la, Kant introduz mais uma noção, isto é, a de limite em que a Lógica Transcendental poderia ser aplicada legitimamente. Para tanto, retoma a definição clássica de verdade (acordo do conhecimento com o seu objeto). Infere-se tal limite da própria conceituação de conhecimento, que requer a interveniência tanto da sensibilidade como do entendimento. A Lógica Transcendental considera apenas aquela parcela do conhecimento que tem origem no entendimento. Mas parte do pressuposto de que os objetos aos quais se possam aplicar sejam dados na intuição. A Dialética Transcendental em Kant corresponde à tentativa de fundar o conhecimento a partir dos puros conceitos, equivalendo portanto ao uso ilegítimo da Lógica Transcendental.

A rigor, os conceitos lançados nesta Introdução, somente se esclarecerão ao longo da Crítica da Razão Pura. É importante compreender a definição kantiana de dialética e os conceitos a este vinculados, como as noções de ideia e ideal. Contudo, isto só é possível ao estudar-se a parte que lhe é especialmente dedicada. E quanto à noção de Canon ou Arquitetônica geral da Razão Pura, não é essencial porquanto associada à hipótese de construção de um sistema. O tema só é abordado no bloco final do livro (II. Teoria transcendental do método), que se considera dispensável neta primeira leitura.

4. Analítica Transcendental.

A Analítica é a parte fundamental da Crítica da Razão Pura. Nesta fica estabelecido o padrão de investigação que mais tarde se denominou de epistemologia. Kant aparentemente ainda está preso à antiga gnoseologia – entendida como uma descrição do conhecimento que seria válida para todas as suas espécies, podendo-se, a esse propósito, estabelecer o paralelo indicado no Esquema I, a seguir. Contudo, ultrapassa essa postura e inaugura um novo procedimento, voltado para a análise do discurso, dos enunciados. De certa forma a Analítica radicaliza a diferença entre saber e ser, entre conhecimento humano e coisa em si.

A Analítica compõe-se de dois livros. No primeiro (Analítica dos Conceitos) procede a uma reformulação radical das Categorias da Lógica Clássica e no segundo (Analítica dos princípios) demonstra como os conceitos puros do entendimento é que sustentam a física newtoniana. Requer uma leitura atenta, recomendando-se que seja feita uma caracterização de todos os conceitos fundamentais, a exemplo do modelo sugerido no item 2 – Estética Transcendental, com a ajuda de um dicionário de filosofia. Nessa leitura cumpre, entretanto, levar em conta os aspectos adiante destacados.

4.1 – Analítica dos conceitos.

Na Analítica dos conceitos (pgs. 67-100, da Edição “Os Pensadores”), Kant apresenta uma nova tábua das categorias, reformulando inteiramente a maneira como Aristóteles estuda a questão. Além disto, trata da possibilidade da experiência em geral, onde suscita noções fundamentais como a de síntese, produzidas pelo entendimento, e que constituem os elementos ordenadores do real (mundo fenomênico e não o das coisas em si). Para a primeira parte do problema, a fim de prescindir da consulta a algum manual de lógica, damos a seguir algumas indicações para confronto da lógica clássica e do ordenamento kantiano. Quanto à temática subsequente da Analítica dos conceitos, deve-se proceder da forma antes recomendada (separar os conceitos básicos e defini-los, segundo a acepção kantiana, sempre que possível fixando, desde logo, em que se distingue de outros filósofos).

Para fundar a Lógica Tanscendental, Kant leva a cabo uma crítica à lógica aristotélica e à sua tábua de categorias. Estabelece, em primeiro lugar, que não se trata de decompor os conceitos, mas o poder do entendimento (coerentemente com a sua conceituação e com aquilo que distingue as duas lógicas). Qual é o poder do entendimento? Agrupar diversas representações numa representação comum. O entendimento apoia-se em funções e não em intuições. Função é a unidade do ato que reúne e congrega representações (síntese, capacidade sintética, em suma). Como as representações não se relacionam imediatamente, mas mediatamente aos objetos, define o juízo como o conhecimento mediato de um objeto. Os juízos são funções de unidade entre nossas representações. Na lógica tradicional, o juízo é o lugar da verdade, desde que nesse ato é que se afirma ou se nega alguma coisa. O termo juízo é reservado a essa operação. As demais operações que têm lugar quando se relacionam sujeito e predicado são denominadas proposições. A tábua dos juízos de Kant corresponde a uma reordenação das classes de proposições da Lógica Aristotélica.

Kant vai retirar a sua tábua das categorias a partir da ordenação la Lógica de Aristóteles. Ao realizar essa operação (parte final do Cap. I) empreende uma crítica às categorias de Aristóteles, a meu ver improcedente, desde que se coloca em plano diverso. Para Aristóteles, as categorias referem-se ao ser. Para Kant, são categorias do saber. Discussão no mesmo plano é a empreendida por Hegel, cuja “Lógica” corresponde a uma reordenação crítica da Lógica Transcendental.

4.2 – Analítica dos princípios.

A Analítica dos Princípios (pgs. 101-152) contém algumas das partes mais obscuras da Crítica da Razão Pura. Contudo, essa obscuridade prende-se a uma dificuldade real. Kant partiu do pressuposto de que a universalidade da física newtoniana era devida ao fato de que seu arcabouço fundamental está dado por um conjunto de fórmulas que não provêm da experiência. Ao invés de simplesmente partir da física de Newton para a determinação daqueles elementos “a priori”, quis, como vimos, dotá-los de prévia consistência lógica. Depois de imaginar tê-lo conseguido, resolve perguntar-se como pode ocorrer que esses princípios puros possam aplicar-se à experiência. A rigor, a pergunta era dispensável já que os encontrara aplicados à experiência, exatamente na física newtoniana.

A dificuldade é, portanto, real e resulta da circunstância de que não se sabe exatamente como se dá que a matemática se aplique à experiência e seja a quantificação um método privilegiado de estabelecer-se determinado nível de objetividade. Kant tinha certamente presente tais dificuldades, a ponto de ter reescrito e ampliado, significativamente, essa parte do livro na segunda edição. A solução kantiana está contida nos capítulos I e II(primeira e segunda seção) e foi abandonada pelos idealistas pós-kantianos, só tendo sido retomada por Herman Cohen (1842-1918). No nosso caso, não se trata de aceitá-la ou avaliá-la, mas de buscar ter dela uma compreensão apropriada. A terceira seção do capítulo II (pgs. 113 a 152) acha-se associada à física de Newton. Nos axiomas da intuição e nas antecipações da percepção procura indicar que a hipótese em que se baseia a física, de que os fenômenos têm uma quantidade (quantidade extensiva) mas igualmente um grau (quantidade intensiva) não provém da experiência. As analogias da experiência pretendem identificar o substrato “a priori” das três leis de Newton.

A respeito dessa parte da Crítica da Razão Pura é essencial ter presente as considerações que se seguem. Tecnicamente, a pergunta kantiana se formula do seguinte modo: como se constitui a objetividade? Duas são as questões nucleares de sua resposta: I) Valorização da hipótese e, II) Reivindicação do papel das sínteses ordenadoras do real. Quanto ao papel da hipótese, a magnitude que lhe atribui aparece na forma como avalia o método de investigação de Galileu. Diz, a propósito, no prefácio da 2ª edição da Crítica da Razão Pura: “Quando Galileu fez rolar as suas esferas sob um plano inclinado com um grau de aceleração devido ao peso determinado por sua vontade (...) foi uma revelação luminosa para todos os físicos. Compreenderam que a razão não vê senão o que produz ela mesma segundo seus próprios planos (...), que ela deve obrigar a natureza a responder às suas questões e não se deixar por ela conduzir”.

Desta forma, Kant reivindica a significação da hipótese, que a moderna epistemologia iria consagrar, e o procedimento segundo modelos (tipos ideais, em Weber), plenamente formalizado contemporaneamente. Quanto ao papel das sínteses ordenadoras do real, pode ser avaliado à luz do que diz a respeito da física de Newton. Para compreendê-lo deve-se ter presente as principais leis - ou princípios fundamentais – da física newtoniana e que são as seguintes:

INÉRCIA – “Todo corpo permanece no seu estado de repouso ou de movimento uniforme retilíneo, a menos que atue sobre ele alguma força”.

Fórmula de Aristóteles: “Se não há força atuando, não há movimento”.

Fórmula de Newton: “Se não há força atuando não há mudança de movimento”.

No primeiro caso, a força é a causa do movimento; no segundo, da mudança de movimento (aceleração; desaceleração ou mudança de direção).

FORÇA – (aceleração” “Atuando sobre um corpo uma força comunica-lhe uma aceleração que lhe é proporcional”.

A força é a influência de um corpo sobre outro corpo e não algo que existiria independente dos corpos.

AÇÃO E REAÇÃO – “Toda força, agindo sobre um corpo, dá origem a outra força que lhe é igual e contrária”.

Os três princípios newtonianos formam uma unidade e visam possibilitar a medida do movimento. Completam o processo de separação entre física e metafísica. O primeiro postulado é entretanto indemonstrável, em vista da impossibilidade de dispor de um corpo sobre o qual não estivesse atuando nenhuma força. Não é nesse sentido que Kant afirma a dependência entre a ciência física e os “a prioris”. Trata-se de que:

a – O primeiro princípio não poderia ser pensado sem a categoria de substância (permanência).

b – A ideia de que uma força pode atuar sobre outra sem a categoria de causalidade.

c – O princípio de ação recíproca pode ser pensado sem a categoria de comunidade (simultaneidade).

A problemática da Analítica dos Princípios inspira-se, portanto, na física de Newton.

4.3 - O fundamento da distinção entre fenômenos e noûmenos.

O tema considerado acha-se estudado no capítulo III (pgs. 153 a 162). Corresponde a uma questão fundamental no que respeita à perspectiva transcendental. Alguns estudiosos entendem que a noção de coisa em si seria pré-crítica. Concluída esta, a noção não mais se sustenta, emergindo em seu lugar a de número. Concordando ou não com essa interpretação, trata-se de um conceito chave a ser devidamente esclarecido.

O Apêndice e a Nota subsequentes têm em vista apresentar esclarecimentos adicionais acerca da natureza do entendimento, que não pode prescindir do elemento empírico para exercitar-se, ao contrário do que supunham Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716) e Christian Wolf (1679-1754), cujo sistema reunia as preferências da maioria em vida de Kant e mesmo no período que de imediato se seguiu à sua morte.

5.0 - Dialética transcendental.

Na cultura grega, a dialética corresponde à arte da discussão. No período medieval essa arte foi paulatinamente associada às disputationes, que se transformaram talvez na principal forma de cultuar e preservar o saber em geral. O termo dialética não desaparece, mas está restrito ao emprego lógico que lhe atribuiu Aristóteles. O Estagirita é o autor da distinção entre Analítica e Dialética. A primeira tem por objeto o binômio demonstração – dedução, a partir de premissas verdadeiras, enquanto a segunda ocupa-se dos raciocínios apoiados em opiniões prováveis. Kant de certa forma retoma essa acepção. Na Crítica da Razão Pura são dialéticos todos os raciocínios ilusórios.

Há, entretanto, um aspecto muito importante a destacar: Kant atribui papel essencial na cultura às ideias e ideais, embora os problemas que suscitam não possam ser solucionados em conformidade com as suposições da metafísica dogmática. Ao proclamar a legitimidade de tais problemas e haver indicado, em sua obra posterior, novos procedimentos para considera-los, Kant ultrapassa o campo da epistemologia. Assim, é certamente um dos responsáveis pela tendência a confinar a filosofia ao vetor epistemológico. Ao mesmo tempo, contudo, abriu o caminho ao renascimento da metafísica.

Para a presente leitura, é suficiente ter clareza quanto aos conceitos fundamentais (dialética, ideia, ideal, limite da razão, etc.), sem deter-se nas minúcias dos paralogismos, antinomias, etc. A dialética em Kant se compõe apenas de tese e antítese. A proposta no sentido de conduzi-la até às sínteses é devida a Fichte (1762-1814). Quando apareceu a primeira versão do seus sistemas do saber (Princípios da doutrina da ciência, 1794), o livro se publicou sem assinatura, tendo sido de início atribuído ao próprio Kant.

O tratamento acabado desse novo entendimento da dialética – que seria a forma pela qual passaria a ser compreendida contemporaneamente – seria obra de Georg W. Hegel (1770-1831). Segundo esta, o movimento do pensamento dá-se através da formulação de teses, a emergência de antíteses que a elas se opõem e, finalmente, o surgimento de sínteses superadoras. No afã de tudo subordinar a esse princípio, Hegel violou e empobreceu o próprio princípio, que é sem dúvida de grande fecundidade. Análise conclusiva desse aspecto se contém no livro de Benedetto Croce (1866-1952), O que é vivo e o que é morto na filosofia de Hegel (1907), (trad. portuguesa, Coimbra, 1933). Muitas correntes do marxismo contemporâneo confundem a categoria de síntese com a de ação recíproca, consoante advertência de Rodolfo Mondolfo (1877-1976).

6. Problemas legados à posteridade pela obra de Kant e significação do kantismo.

Os denominados idealistas pós-kantianos (Fichte, Schelling e Hegel) abandonaram a noção de coisa em si e buscaram alçar-se ao plano noumenal. Educados na atitude crítica, é pouco provável, contudo, que tivessem chegado a confundir o saber com o processo real. Ainda assim, a geração subsequente – Ludwig Feuerbach (1804-1872), os irmãos Bruno Bauer (1809-1882) e Edgar Bauer (1820-1886), David Strauss (1804-1872), que é o autor da classificação dos discípulos de Hegel em direita e esquerda hegelianas, Carlos Marx (1818-1883), para citar apenas os principais – entendeu haver chegado o momento de implantar a sociedade racional, achando-se constituído o sistema do saber. Dividiram-se ao supor uns que a tarefa incumbia ao próprio Príncipe, outros aos funcionários (ao Estado, mais precisamente) e Marx ao proletariado, porém estiveram quase todos unidos na estruturação do Partido Social-Democrata, que se constituiu nos fins da década de sessenta mas requereria alguns decênios até se consolidar (Joseph Rovan, História da social-democracia alemã, tradução portuguesa, Lisboa, 1979). Do ângulo estritamente filosófico, essa questão acha-se estudada por François Chatelet, em Logos e praxis, tradução portuguesa, Paz e Terra, 1972.

O marxismo destacou-se desse conjunto para constituir-se em corrente autônoma, através pelo menos de três grandes linhas de interpretação, a saber: italiana, com Antonio Labriola (1843-1904); Antonio Gramsci (1891-1937) e Rodolfo Mondolfo (1877-a976); alemã com grande número de teóricos entre os quais desenvolveram obra sistemática Karl Kautzki (1854-1938) e Gyorgy Lukacs (1885-1971), desdobrando-se na chamada Escola de Frankfurt, que muitos estudiosos consideram grandemente distanciada de suas origens, em especial pela vinculação à obra de Sigmund Freud (1856-1939); e a chamada versão ortodoxa, representada pelos soviéticos, que transformaram a doutrina num saber compendiado, expurgado dos problemas que atestavam a sua vitalidade e mantiveram a presença do marxismo na filosofia contemporânea.

Apesar da reconhecida autonomia, o marxismo é incompreensível sem referência ao idealismo clássico e à obra de Kant. Em relação a esta última, o princípio: “Não explorarás o trabalho alheio”, presente ao marxismo, decorre diretamente do imperativo categórico da moral kantiana, segundo o qual o homem é um fim em si mesmo e não pode ser usado como meio. É pouco provável que o conceito de praxis de Marx seja distinto do de Kant. O kantismo viria a fecundar o pensamento ocidental ainda uma segunda vez, através do movimento de volta a Kant, iniciado na Alemanha na década de sessenta do século dezenove e que se coroa com a obra de Hermann Cohen (1842-1918). Graças a isto o neokantismo seria a corrente dominante na Alemanha de fins do século XIX à época da primeira guerra mundial. Do movimento neokantiano é que iriam destacar-se a fenomenologia, o existencialismo, pensadores como Max Scheler (1874-1928) e Nicolai Hartmann (1882-1950). A publicação em que os principais representantes da filosofia alemã da primeira metade do século XX, discutiram os grandes temas contemporâneos, chamou-se Kant-Studien.

O kantismo ainda não esgotou integralmente suas virtualidades, desde que os postulados da sua ética não foram explorados em sua totalidade. A fecundidade dessa vertente é comprovada pelas análises que Max Weber (1864-1920) lhe dedicou, com vistas à constituição do que chamou de “ética da responsabilidade”. Esta continua sendo uma possibilidade em aberto. Considerando a questão do ângulo dos problemas e não apenas das correntes originadas da meditação de Kant, Miguel Reale dedicou-lhe o primeiro capítulo de Experiência e Cultura (1977). Parece-lhe que a suposição de que haveria uma tábua fixa e conclusa de categorias não se sustenta, embora as premissas fundamentais de Kant devam ser preservadas na consideração do que denominou de condicionalidade histórico-social do conhecimento. Ao invés de valorizar a dedução de caráter lógico, buscada por Kant, Reale irá vincular ao kantismo a ideia de mundo da vida (Lebenswelt) de Edmund Husserl (1859-1938), despojando-a das implicações que lhe atribuiu seu autor com o propósito de restaurar a intuição intelectual, negada por Kant.

Outra questão crucial do kantismo é o aparente fosso criado entre natureza e espírito pela parte da obra de Kant dedicada à moral. Na filosofia contemporânea, esse tema só tem sido desenvolvido sem menosprezo das premissas kantianas – isto é, sem violar as imposições da perspectiva transcendental – pelos culturalistas brasileiros, em especial o próprio Reale e Djacir Menezes (1907-1996).

7. Questões acerca do texto "Roteiro para o estudo da Crítica da Razão Pura", de Antônio Paim.

1 – Em que fator reside a dificuldade verdadeira para a leitura da Crítica da Razão Pura?

2 – Em que consiste a “perspectiva transcendental”?

3 – Em que consiste a “perspectiva transcendente”?

4 – É possível refutar a “perspectiva transcendente”?

5 – Para quem é indispensável a familiaridade com a “perspectiva transcendental”?

6 – Enumere os dois grandes blocos em que Kant dividiu a Crítica da Razão Pura.

7 – Quais as partes da Crítica da Razão Pura que devem ser levadas em consideração, numa leitura inicial?

8 – Em que sentido toma Kant o termo “estética”?

9 – De que trata a “estética transcendental”?

10 – O que entende Kant por “sensibilidade” e “sensação”?

11 – O que entende Kant por “intuição”?

12 – Em que se diferencia a noção de “intuição” em Kant, da adotada por Descartes e Husserl?

13 – Em que sentido toma Kant o termo “a priori”?

14 – Estabeleça a diferença entre a forma em que Kant toma o termo “a priori” e o sentido dado ao mesmo pela Escolástica.

15 – Que tipo de ciência é, para Kant, a “lógica transcendental”?

16 - Que incumbência assinala Kant à “lógica transcendental”?

17 – Quais são os dois elementos perante os quais, segundo Kant, existe o conhecimento?

18 - Que função desempenha, para Kant, a “estética transcendental”?

19 – Qual é a tarefa assinalada por Kant à “lógica transcendental”?

20 – Em que se distinguem a “lógica transcendental” kantiana e a “lógica formal” aristotélica?

21 – Em que consistia o “Novum Organon” de Bacon?

22 – O que entende Kant por “Organon”?

23 – O que entende Kant por “Canon”?

24 – O que entende Kant por “psicologia” ou “lógica aplicada”?

25 – Por que, para Kant, a “lógica pura” é ciência em sentido estrito?

26 – O que entende Kant por “lógica transcendental”?

27 – Explique a distinção estabelecida por Kant entre “analítica transcendental” e “dialética transcendental”.

28 – Por que a “analítica transcendental” é a parte fundamental da Crítica da Razão Pura?

29 – Indique de que forma Kant ultrapassa a postura da antiga gnoseologia.

30 – Enuncie as partes de que se compõe a “analítica transcendental”.

31 – Enuncie os elementos de que Kant trata na “analítica dos conceitos”.

32 – O que fez Kant para fundar a “lógica transcendental”?

33 – Em que consiste, para Kant, o poder do entendimento?

34 – O que entende Kant por “função”?

35 – Como define Kant o juízo?

36 – Como era entendido o juízo pela lógica tradicional?

37 – A que corresponde a tábua dos juízos de Kant?

38 – De onde retirou Kant a sua “tábua das categorias”?

39 – O que entendia Kant por “categorias”?

40 – Em que se diferenciam as “categorias” kantianas das aristotélicas?

41 – De que pressuposto partiu Kant na “analítica dos princípios”?

42 – Que pergunta formula Kant diante da física de Newton?

43 – Em que consiste a principal dificuldade enfrentada pela “analítica dos princípios” de Kant?

44 – O que Kant procurou indicar nos “axiomas da intuição” e nas “antecipações da percepção”?

45 – O que pretendem identificar, segundo Kant, as “analogias da experiência”?

46 – Quais são as questões nucleares da resposta dada por Kant à seguinte pergunta: “como se constitui a objetividade”?

47 – Que papel foi atribuído por Kant à hipótese científica?

48 – De que forma pode ser avaliado, no sentir de Kant, o papel das “sínteses ordenadoras do real”?

49 – Em que sentido Kant afirma a dependência entre “ciência física” e os “a prioris”?

50 – Onde se inspira a “analítica dos princípios” de Kant?

51 – Qual era o sistema filosófico que gozava da preferência da maioria, na época de Kant?

52 – Qual é a finalidade que perseguem o “Apêndice” e a “Nota” da Crítica da Razão Pura?

53 – Identifique a significação dada ao termo “dialética” na cultura grega e no período medieval.

54 – Explique a distinção, estabelecida por Aristóteles, entre analítica e dialética.

55 – Que tipo de raciocínios são “dialéticos” na Crítica da Razão Pura?

56 – De que maneira Kant ultrapassou o plano da epistemologia, em relação às “ideias” e aos “ideais”?

57 – De que elementos se compõe a “dialética” kantiana?

58 – Em que consistiu o novo entendimento da dialética, segundo Hegel?

59 – Enumere os problemas legados à posteridade pela obra de Kant.

60 – De que forma o kantismo viria a fecundar o pensamento ocidental, ainda uma segunda vez?

61 – Por que o kantismo não esgotou integralmente, ainda, as suas virtuosidades?

62 – Qual é o aspecto do pensamento kantiano que Miguel Reale mais valoriza?

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