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TÓPICOS ESPECIAIS DE FILOSOFIA MODERNA - CAPÍTULO 12º - DAVID HUME (1711-1776) E A FORMULAÇÃO DA PERSPECTIVA TRANSCENDENTAL.

TÓPICOS ESPECIAIS DE FILOSOFIA MODERNA - CAPÍTULO 12º - DAVID HUME (1711-1776) E A FORMULAÇÃO DA PERSPECTIVA TRANSCENDENTAL.

DAVID HUME (1711-1776), CHAMADO PELOS SEUS INIMIGOS DE

Um pensador de bem com a vida e de mal com aqueles que a negam. Esse seria o perfil prático de David Hume, que suscitou – e ainda desperta – iradas respostas daqueles que não concordam com ele. Considero Hume um disciplinador da filosofia, no que tange à crítica a todos os dogmatismos, bem como no relacionado à formulação da perspectiva transcendental, que passou a balizar, doravante, o conhecimento científico, num contexto de abertura à verificação crítica das teorias.

O nosso pensador nasceu em 7 de maio de 1711 em Edimburgo, na Escócia. Em 1733 ingressou na Universidade da cidade natal. Contrariando as expectativas da família (de origem nobre, embora não fosse rica) que assinalavam o caminho de uma profissão de alto nível, como a jurisprudência, o nosso autor preferiu os estudos humanísticos, com aprofundamento em Literatura e Filosofia. A respeito das origens familiares e da sua situação econômica, escreve nosso autor no seu ensaio autobiográfico: “(...). Pertenci a uma boa família, tanto por parte de pai como de mãe. A família do meu pai é uma rama dos Earl of Home’s; e os meus antecessores foram proprietários deste título, que agora possui meu irmão, durante várias gerações. A minha mãe era filha de Sir David Falconar, Presidente do College of Justice: o título de Lorde Halkerton recaiu por sucessão no seu irmão. A minha família, no entanto, não era rica. E sendo eu um irmão menor, o meu patrimônio, de acordo aos usos do meu país, foi, logicamente escasso. O meu pai, que passou por ser um homem de boas capacidades, morreu quando eu era criança, tendo-me deixado, junto com o meu irmão mais velho e uma irmã, sob os cuidados da nossa mãe, mulher de um mérito singular, a qual, em que pese o fato de ser jovem e bela, entregou-se por inteiro à formação e educação dos seus filhos. Eu passei o normal período educativo com sucesso e muito cedo nasceu, em mim, a paixão pela literatura, que tem sido a paixão dominante na minha vida e fonte principal das minhas satisfações” [Hume, 1985: 13-14].

A respeito da sua opção intelectual, frisa o nosso autor: “(...). A minha disposição estudiosa, a minha sobriedade e a minha indústria fizeram pensar à minha família que o Direito seria a adequada profissão para mim; mas eu tinha uma insuperável aversão em relação a tudo que não fossem as tarefas da filosofia e o conhecimento em geral; e enquanto eles supunham que eu estava escarafunchando os textos de (juristas famosos como os holandeses Paul) Voet (1619-1667) e (Arnold) Vinnius (1588-1657), Cicero (106-43 a.C.) e Virgílio (70-19 a.C) eram os autores que eu devorava em segredo” [Hume, 1985: 14]. O nosso autor identificou-se, certamente, não com o Cícero jurista, advogado e político de sucesso, mas com o filósofo que resgatou a paixão pelo estudo da filosofia e a cultura gregas entre os Romanos, tendo sido essa variante da atividade do grande pensador da República Romana a veia que, no quatrocento italiano, Petrarca (1304-1374) explorou e que passou a constituir uma das fontes do Renascimento.

Cícero e Virgílio. Mas, principalmente, Cícero. Essa foi a grande fonte do saber humanístico de Hume. A sua preocupação consistiu em fundamentar a Cultura Britânica do seu tempo numa proposta humanística, de forma semelhante a como Cícero foi o pensador que deu alicerces à República Romana, inserindo-a na tradição filosófica grega. Não foi à toa que o pensador latino deu coroamento à sua meditação com a escrita de duas obras intituladas: A República e As Leis, à sombra renovada do “querido Platão”. O fio condutor, aliás, que colocou os clássicos greco-romanos na ordem do dia da Civilização Renascentista, foi justamente Cícero, como já foi apontado [cf. Rocha Pereira, 1989: 1, 961-969].

Em busca de uma atividade lucrativa na área econômica, em 1734 Hume viajou para Bristol, com algumas cartas de recomendação para comerciantes locais. No entanto, percebendo que essa atividade não correspondia às suas tendências naturais, o nosso autor viajou para França, “com o propósito de continuar os meus estudos num retiro campestre” [Hume, 1985: 14]. Viu-se obrigado a elaborar um plano espartano de vida, a fim de poder estudar as amadas Humanidades, sem precisar dedicar o tempo às atividades lucrativas, vivendo somente com o escasso dinheiro garantido pela família. O nosso autor confessava a respeito: “vivi de acordo com esse plano de vida que tenho conseguido manter invariável. Resolvi adotar uma rígida frugalidade, para compensar os meus parcos recursos econômicos, manter incólume a minha independência e desprezar tudo, com exceção do desenvolvimento dos meus talentos no terreno das letras” [Hume, 1985: 14-15].

Na França, mais precisamente na histórica localidade de La Flèche (Anjou), onde tinha estudado o filósofo René Descartes (1596-1650), Hume escreveu o seu Tratado sobre a natureza humana, que foi publicado em Londres, em 1638. A obra, no entanto, foi sumariamente desconhecida pelo público. Assim confessava o nosso autor o seu desapontamento: “Jamais um intento literário tem sido tão pouco feliz como foi o meu Treatise of Human Nature. Nasceu morto da imprensa, sem receber, ao menos, a distinção de suscitar um murmúrio entre os fanáticos” [Hume, 1985: 15]. A fim de continuar com as suas atividades intelectuais, o nosso autor decidiu ir morar, na Escócia, com a sua mãe e irmão, na propriedade rural da família.

A propósito, frisava assim Hume: “Mas sendo eu de um temperamento entusiasta e jovial. Logo recuperei o ânimo e prossegui, com grande ardor os meus estudos no campo. Em 1742 imprimi, em Edimburgo, a primeira parte dos meus Essays, Moral & Political: a obra foi recebida favoravelmente e logo me fez esquecer, por completo, o meu primeiro desapontamento. Continuei no campo com a minha mãe e o meu irmão e, por aquele tempo, recuperei o conhecimento da Língua Grega, à qual apenas tinha prestado alguma atenção nos primeiros anos da minha juventude” [Hume, 1985: ibid.].

Devido às críticas que o nosso autor fez, nos seus Essays, Moral & Political, aos dogmáticos que pretendiam dominar os outros, em 1744 foi acusado de ateísmo, ao tentar obter a cátedra de filosofia moral na Universidade de Edimburgo. Essa cátedra tinha ficado vacante com a demissão do seu titular, o médico militar Dr. John Pringle (1707-1782). O Conselho da Universidade deveria nomear o sucessor. De entrada, o nome de David Hume foi barrado pelos conselheiros, em que pese o fato de ser apoiado pelo Presidente da instituição, o empresário John Coutts (1699-1750). Nessa oportunidade, antes de que a decisão do Conselho fosse tomada, o nosso autor escreveu uma defesa anônima de si próprio, intitulada: “Carta de um Cavaleiro ao seu amigo de Edimburgo, na qual se contêm algumas observações sobre um Extrato dos Princípios que se referem à Religião e à Moral e que se diz são mantidos num livro publicado ultimamente sob o título de Tratado da Natureza Humana”. Em vão o nosso autor tentou convencer os conselheiros de que o candidato não atentava contra a religião nem contra os bons costumes, somente se limitando a criticar aqueles que, com aparência de saber, tentavam semear o medo nas pessoas, a fim de melhor dominá-las.

O escolhido para o cargo de professor de moral foi o teólogo presbiteriano Francis Hutcheson (1694-1746), que terminou não aceitando a nomeação. Derrotado na sua pretensão de ser professor universitário, Hume tentou, pouco tempo depois, obter a Cátedra de Lógica na Universidade de Glasgow. Como frisa o historiador Carlos Mellizo, “(...) também esta pretensão, como a anterior, foi condenada ao fracasso, e Hume teve de permanecer sempre à margem do mundo universitário do país que o tinha visto nascer” [Mellizo, 1985: 29].

O nosso filósofo teve melhor sorte com a função de tutor ou acompanhante de alguma família nobre (em 1745 o Marquês de Annabale, de idade avançada, o convidou, por exemplo, para ser o seu acompanhante na Inglaterra), ou com o desempenho de atividades públicas avulsas, como as eventuais representações de autoridades conhecidas que requeriam os seus serviços, na diplomacia ou em funções de caráter político. Acompanhou, em 1746, na qualidade de secretário particular o General Saint-Clair, numa expedição militar realizada às costas da França e foi, também, no ano seguinte, o seu secretário, na embaixada militar nas Cortes de Viena e Turim, tendo vestido, então, uniforme de oficial, para ser apresentado como ajudante de Campo do General. Essas viagens extemporâneas em nada o incomodaram, pois foram apenas breves interrupções do seu trabalho intelectual. O balanço dessas ocupações é positivo. A respeito, escreveu Hume: “Esses dois anos foram quase as únicas interrupções que experimentaram os meus estudos durante o curso da minha vida: passei esses períodos agradavelmente e em boa companhia; e os meus cargos, junto com a minha frugalidade, fizeram com que chegasse a possuir uma fortuna, que eu denominava independente, embora muitos dos meus amigos riam ao me ouvirem falar assim. Em resumo, cheguei a juntar umas quatro mil libras” [Hume, 1985: 16].

Em 1748, Hume publicou, na Inglaterra, a sua Investigação sobre o entendimento humano, completando o seu Tratado de 1734. O nosso autor conferiu à nova obra um estilo mais popular, tentando explicar, mais detalhadamente, os conceitos e fazendo referências da aplicação das normas morais à vida diária. Conseguiu algum êxito, pois a obra foi vendida, sem que chegasse a ter, como ele esperava, um sucesso estrondoso. Em 1752, Hume tornou-se Conservador da Biblioteca dos Advogados de Edimburgo, graças à influência do seu amigo Adam Smith (1723-1790), reitor da Universidade dessa cidade. Nesse cargo de bibliotecário, o pensador documentou-se, fartamente, para a escrita dos quatro volumes da História da Inglaterra, que publicou dois anos depois.

A verdade é que as Universidades das Ilhas Britânicas ainda estavam muito ligadas ao escolasticismo. Aqueles que, como John Locke ou David Hume, se aventurassem na defesa da ciência, da experimentação e da crítica ao dogmatismo metafísico, tinham fechadas as portas. O próprio Locke terminou abandonando a Universidade de Oxford, em decorrência da perseguição desencadeada pelos seguidores do rei Jaime II Stuart (1633-1701), que pretendiam manter a ortodoxia tradicional e a defesa do absolutismo. Lembremos que, em praça pública, os funcionários reais realizaram, perto da Biblioteca da Universidade, o retardatário espetáculo da queima de livros considerados inadequados pelos censores reais, tendo o próprio Locke assistido, estupefato, à obscurantista cena, que acelerou a sua decisão de partir para o exílio na Holanda, em companhia do seu protetor, Lorde Shaftesbury.

Hume, como Locke, sofreu as agruras da sua abertura intelectual e das críticas por ele realizadas ao dogmatismo dos metafísicos. Lembremos as palavras que Hume escreveu na sua Investigação sobre o entendimento humano: “Se cair nas nossas mãos um volume de teologia ou de metafísica escolástica, por exemplo, devemos nos perguntar: ‘Contém um arrazoado abstrato referente à quantidade ou ao número? Não. Contém algum arrazoado experimental referente às questões de fato e à existência?’ Não. Joguemo-lo, então, às chamas, porque não pode conter outra coisa que não seja sofistaria e ilusão” (Investigação sobre o entendimento humano, Seção XII, Parte III) [Apud Mellizo, 1985: 31].

No ano de 1763, o nosso autor passou a residir em Paris, como Secretário da Embaixada Inglesa, tendo retornado a Londres em 1766, ano em que recebeu, na sua casa, na capital inglesa, o seu amigo Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), que se dizia vítima de perseguições na França; no entanto, as constantes diatribes do desajustado amigo fizeram com que a amizade que os unia entrasse em colapso. Em 1769 o nosso pensador regressou a Edimburgo. Faleceu no dia 25 de agosto de 1776, meses depois de ter composto a sua Vida de David Hume, escrita por ele mesmo.

Testemunho do espírito jovial do pensador foi dado pelo seu amigo Adam Smith (1723-1790), em carta que escreveu ao publicista e deputado da Câmara dos Comuns, William Strahan (1715-1785). Estas são as palavras do autor de A riqueza das Nações: “Com grande prazer, embora também com imensa melancolia, tomo a pena para dar a você um breve informe da conduta do nosso excelente amigo, o senhor Hume, durante a sua última doença. Embora, a seu ver, o mal que o afetava fosse mortal e incurável, cumprindo a vontade dos seus amigos empreendeu uma longa viagem, a fim de ver que efeitos positivos poderia isso lhe trazer... Já de regresso em Edimburgo, encontrou-se muito mais debilitado; mas o seu bom humor não diminuiu e continuou a se distrair como de costume, corrigindo as suas obras para uma nova edição, ou lendo livros de passatempo, ou conversando com os seus amigos. Algumas vezes, ao cair da tarde, jogava uma partida de whist, o seu jogo predileto. O seu bom humor era tal, e as suas conversações e entretenimentos pareciam-se tanto com o que era costumeiro nele que, apesar de todos os maus sintomas, muitos não podiam acreditar que estivesse morrendo (...)” [Smith, apud Mellizo, 1985: 69].

Estas são as principais obras de David Hume: Tratado sobre a natureza humana (edição parcial, 1739; edição completa, publicada em 1748, com o título de: Investigação sobre o entendimento humano); Ensaios morais e políticos (1741); Investigação sobre os princípios da moral (1751); Discursos políticos (1752); História da Inglaterra – 4 volumes (1754); Quatro dissertações (1757); Vida e obra de David Hume, escrita por ele mesmo (1776). Vale a pena destacar que todas as obras de David Hume foram colocadas no Index Librorum Prohibitorum (Índice dos Livros Proibidos) da Igreja Católica, em 1761.

Destacarei, a seguir, em sete pontos, os aspectos fundamentais da teoria do conhecimento de Hume contidos na sua obra: Investigação sobre o entendimento humano.

1 – Existem, segundo Hume, duas formas de abordagem da Filosofia Moral: vivencial e prática e intelectualista e abstrata.

Cada uma das formas mencionadas, esclarece de entrada nosso autor, “tem o seu mérito particular e pode contribuir para o entretenimento, a instrução e a reforma da humanidade” [Hume, 1973: 129]. A primeira, denominada de “filosofia prática”, tem maior sucesso na opinião pública, pelo fato de estar ligada à vida cotidiana dos homens. A segunda, denominada de “filosofia abstrusa”, tem maior sucesso entre os intelectuais, acostumados ao rigor da lógica.

Em relação à “filosofia prática”, David Hume escreve: “(...) considera o homem, acima de tudo, como nascido para agir e como sendo influenciado em suas decisões pelo gosto e pelo sentimento; buscando este objeto e evitando aquele outro de acordo com o valor que parecem possuir e com a luz sob a qual se apresentam. Como se admite que a virtude é, de todos os objetos, o mais valioso, esta espécie de filósofos a pinta com as cores mais atraentes, pedindo emprestadas todas as flores da poesia e da eloquência e versando o seu assunto de maneira fácil e clara, a mais talhada para encantar a imaginação e cativar as afeições. Escolhem as observações e exemplos mais notáveis da vida ordinária, colocam os caracteres opostos no devido contraste e, aliciando-nos para os caminhos da virtude com visões de glória e de felicidade, dirigem-nos os passos, ao longo desses caminhos, com os mais sólidos preceitos e os mais ilustres exemplos. Fazem-nos sentir a diferença entre o vício e a virtude; excitam e regulam os nossos sentimentos; e, se logram inclinar nossos corações para o amor da probidade e da verdadeira honra, pensam ter alcançado, plenamente, o objetivo dos seus esforços” [Hume, 1973: 129].

Em relação à filosofia abstrata, assim escreve Hume: “A outra espécie de filósofos encara o homem mais como um ser racional do que como um ser ativo, e antes procura formar-lhe o entendimento do que cultivar-lhe os costumes. Para eles, a natureza humana é um objeto de especulação; e a examinam detidamente a fim de encontrar os princípios que regem nosso entendimento, excitam nossos sentimentos e nos levam a aprovar ou censurar este ou aquele objeto, esta ou aquela ação ou linha de conduta. Aos seus olhos, é um desdouro para toda a literatura o fato de a filosofia não haver fixado até hoje, de modo incontrovertível, os fundamentos da moral, do raciocínio e da crítica, e continue a falar, eternamente, sobre a verdade e a falsidade, o vício e a virtude, a beleza e a fealdade, sem poder determinar a origem dessas distinções. Na prossecução de sua árdua empresa não se deixam desalentar por nenhuma dificuldade, mas, partindo dos exemplos particulares para os princípios gerais, levam sempre avante as suas investigações, em busca de princípios mais gerais ainda, e não se dão por satisfeitos enquanto não chegam àqueles princípios primeiros que, em cada ciência, forçosamente delimitam a curiosidade humana. Se bem que as suas especulações pareçam abstratas e mesmo ininteligíveis aos leitores comuns, o que eles têm em mira é a aprovação dos sábios e instruídos; e consideram-se suficientemente compensados de uma vida inteira de trabalho, quando vêm a descobrir algumas verdades ocultas que possam contribuir para a instrução da posteridade” [Hume, 1973: 129].

Hume valorizava ambas as formas de reflexão: a concreta, que partia da vida diária, a fim de assinalar, prazerosamente, o caminho da virtude em meio aos negócios e à vida diária, e a abstrata, que partia da intelecção de princípios gerais que, depois, seriam logicamente aplicados aos casos particulares. Imaginava que seria possível realizar uma mistura entre ambos tipos de reflexão filosófica. A propósito dessas ideias, o nosso autor escreve: “(...) Supõe-se que o tipo mais perfeito se encontre no meio caminho entre esses dois extremos, dando provas de igual capacidade e gosto pelos livros, pela sociedade e pelos negócios; mostrando na conversa esse discernimento e delicadeza que decorrem das belas-letras; e nos negócios, essa probidade e exatidão que são o resultado natural de uma justa filosofia. Para difundir e cultivar um caráter dotado de tantas perfeições, nada pode ser mais útil do que as composições na maneira e estilo fácil que não esmiúcem por demais a vida, não exijam excessiva aplicação e isolamento para serem compreendidas e façam voltar o estudante, para o meio dos homens, cheio de sentimentos nobres e sábios preceitos, aplicáveis a todas as contingências da vida humana. Essas obras têm o dom de tornar a virtude amável, a ciência agradável, a companhia instrutiva e a solidão interessante” [Hume, 1973: 130].

Para Hume, tanto o nosso entendimento como nossas inclinações para a ação devem ser levados em consideração. “(...). Dir-se-ia – frisa o nosso autor – que a natureza apontou um gênero misto de vida como o mais adequado à raza humana e secretamente advertiu para que não se deixasse levar longe demais por nenhuma dessas disposições, ao ponto de ficar incapacitada para outras ocupações e entretenimentos. Cultiva tua paixão pela ciência, diz ela, mas que a tua ciência seja humana e tenha aplicação direta à ação e à sociedade. Quanto ao pensamento abstruso e às investigações profundas, eu os proíbo e os castigarei severamente com a cismadora melancolia que eles provocam, coma interminável incerteza de que nunca te poderá livrar, e com a fria acolhida que terão as tuas pretensas descobertas quando as quiseres comunicar. Sê filósofo, mas, em meio de toda a tua filosofia, não te esqueças de ser homem” [Hume, 1973: 130].

O filósofo escocês arrolava entre os enganadores profissionais aqueles que utilizavam a “filosofia abstrusa” para exercer o poder entre os seus semelhantes. Esses enganadores são, basicamente, os padres e os médicos. Os primeiros, porque nos ameaçam com a condenação eterna e nos vendem a salvação. Os segundos, porque nos ameaçam com a doença e a morte e nos vendem a cura. David Hume situa-se, assim, entre os pensadores modernos que retomam a velha temática de epicuristas e estóicos, acerca da busca da paz interior, ameaçada pelos vendedores de bugigangas metafísicas. Lembremos que o primeiro passo, para os seguidores dessas duas correntes helenísticas, consistia em esconjurar os temores que nos paralisam, o temor à doença e à morte e o temor à desgraça eterna.

2 – Termo meio almejado por Hume: uma “Geografia Moral”, ou Filosofia que, partindo da vida, teorize em função dela, não para negá-la como faz a “filosofia abstrusa”, mas para estar a serviço dela.

Essa “Geografia Moral” teria os aspectos positivos da “filosofia prática” (comprometimento com a vida cotidiana) e da “filosofia teórica” (respeito à lógica), sem, no entanto, partilhar dos defeitos dessas duas formas de pensamento, a saber: menosprezo pela lógica (“filosofia prática”) e distanciamento da vida prática (“filosofia abstrusa”). O caminho para sair da metafísica dogmática consiste, segundo Hume, em investigar a natureza do entendimento humano.

A respeito, o nosso autor frisa: “(...). O único meio de libertar a instrução, uma vez por todas, dessas questões abstrusas é investigar seriamente a natureza do entendimento humano e mostrar, mediante uma análise exata de seus poderes e capacidade, que ele não se ajusta de modo algum a assuntos tão abstrusos e remotos. Devemos submeter-nos a essa fadiga a fim de vivermos tranquilos daí em diante, e cultivar a metafísica com algum zelo para destruir as ideias falsas e adulteradas. (...). O raciocínio exato e justo é o único remédio universal apropriado a todas as pessoas e a todas as disposições; e só ele pode subverter essa filosofia abstrusa e esse jargão metafísico que, misturado à superstição popular, a torna de certo modo impenetrável aos raciocinadores incautos e lhe dá um ar de ciência e de sabedoria” [Hume, 1973: 132]

3 – Método da “Geografia Moral” proposta: delineamento, pela razão, das diferentes partes e poderes da mente, a partir de um processo de reflexão.

O nosso pensador apregoa a volta do homem sobre si mesmo, à maneira de Sócrates (469-399 a.C.), dos estóicos, dos epicuristas e de Descartes (1596-1650). Justamente essa volta tem como finalidade fazer um balanço das molas secretas que comandam o funcionamento da nossa mente.

É tarefa difícil, frisa o nosso autor, essa busca das molas que comandam a mente, pois toda busca sobre a forma em que pensamos perde-se nas névoas da reflexão sobre a própria identidade. O nosso pensador expõe assim esse problema: “No tocante às operações da mente, é estranho observar que, apesar de nos serem tão íntimas, sempre que se tornam objeto de reflexão parecem envoltas em obscuridade; e não é fácil encontrar as linhas e fronteiras que as separam e distinguem. Os objetos são demasiadamente sutis para manterem durante muito tempo o mesmo aspecto e situação; e devem ser apreendidos num rápido instante por uma penetração superior, derivada da natureza e aperfeiçoada pelo hábito e pela reflexão. E, assim, vem a ser uma parte não insignificante da ciência conhecer simplesmente as diversas operações do intelecto, separá-las umas das outras, classifica-las nas categorias apropriadas e corrigir toda essa desordem aparente que as envolve, quando as tomamos como objeto de reflexão e pesquisa. Essa tarefa de ordenar e distinguir, que nenhum mérito tem quando se volta para os objetos exteriores, os objetos de nossos sentidos, cresce de valor quando se dirige para as operações do intelecto, em proporção com a dificuldade e o trabalho que nos impõe. E se não pudermos ir além dessa geografia moral ou delineação das distintas partes e poderes do intelecto, será pelo menos uma satisfação ir até aí; quanto mais óbvia essa ciência possa parecer (o que em absoluto não é), mais desprezível será estimada a sua ignorância em todos os pretendentes à instrução e à filosofia” [Hume, 1973: 132].

O nosso pensador ressalta, portanto, o caráter difícil dos estudos sobre o entendimento humano. A respeito, escreve: “Não é muito provável que aquilo que, até hoje, escapou a tantos filósofos e sábios profundos seja muito fácil e evidente” [Hume, 1973: 133]. Hume parte para uma aventura difícil, já tentada por Descartes (1596-1650): a viagem ao interior de si mesmo, a fim de desvendar as molas secretas do conhecimento. Ora, escapava ao nosso autor (como, aliás, também a Descartes), que Aristóteles (384-322 a.C.) já tinha assinalado um caminho seguro para essa tarefa intelectual: como a linguagem é a roupagem do pensamento, a melhor forma de pesquisar as molas secretas deste consiste em estudar as estruturas da linguagem, que revelariam os lineamentos profundos da razão humana. Esse caminho só seria redescoberto e sistematizado, um pouco depois de Hume, por um profundo conhecedor da filosofia aristotélica, Immanuel Kant (1724-1804). John Locke, com a sua teoria do juízo, antecipou, de forma esquemática, o caminho seguido pelo filósofo de Königsberg, embora tenha ficado preso, ainda, a uma ideia metafísica de substância, pensada na trilha de ousía de Aristóteles.

Destaquemos que nessa proposta de reflexão sobre a estrutura da mente, o nosso autor já supera o ceticismo, porquanto reconhece uma realidade existente, de forma independente, em face dos nossos caprichos subjetivos, embalados numa “ciência incerta e quimérica”. A propósito, Hume frisa: “Tampouco poderá restar qualquer suspeita de que essa ciência seja incerta e quimérica, a menos que alberguemos um ceticismo tão extremo a ponto de subverter toda especulação e mesmo toda ação. Não se pode duvidar de que a mente seja dotada de vários poderes e faculdades, de que esses poderes sejam distintos uns dos outros, e o que realmente se apresenta como distinto à percepção imediata deve ser distinguido pela reflexão; e, por conseguinte, de que há uma verdade e uma falsidade em todas as proposições relativas a este assunto, e uma verdade e uma falsidade que não são inacessíveis ao entendimento humano. Há muitas distinções óbvias desta espécie, como por exemplo as que fazemos entre vontade e entendimento, entre a imaginação e as paixões, e que toda criatura humana pode compreender; e as distinções mais sutis e mais filosóficas não são menos reais e certas, embora mais difíceis de apreender” [Hume, 1973: 132-133].

4 – Paralelo entre a “Geografia Moral” proposta por Hume e a “Filosofia da Natureza” sistematizada por Sir Isaac Newton (1643-1727).

Hume considerava que, assim como Newton conseguiu formular as suas leis da gravitação universal, a fim de colocar ordem na observação do Universo, de forma análoga não se poderia menosprezar o esforço dos que, à luz da razão, partem, corajosamente, para o estudo da estrutura da nossa mente a partir da reflexão. Assim como esse filósofo da natureza determinou as leis e as forças que governam as revoluções dos planetas, sucesso igual pode haver em nossas pesquisas sobre as faculdades e a economia mental. A propósito, o nosso autor pergunta: “(...). E reputaremos digno dos esforços de um filósofo dar-nos um sistema verdadeiro dos planetas e ajustar a posição e a ordem desses corpos longínquos, ao mesmo tempo que afetamos desdenhar aqueles que com tanto êxito delineiam as partes da mente, que nos tocam tão de perto?” [Hume, 1973: 133].

A ciência da natureza, conforme a formulação feita por Newton, abriu legitimamente as portas para aplicar a observação sistemática dos fenômenos ao estudo da nossa mente e dos seus mecanismos. Em relação a este ponto, pergunta Hume: “Mas não será de esperar que a filosofia, cuidadosamente cultivada e estimulada pela atenção do público, possa levar ainda mais longe as suas buscas e descobrir, pelo menos em parte, as molas e princípios secretos pelos quais é atuada a mente humana em suas operações?” [Hume, 1973: 133].

Hume destaca, com claridade, que assim como Newton determinou, pela atenta observação da natureza, as leis e as forças que governam as revoluções dos planetas, sucesso igual pode haver em nossas pesquisas sobre as faculdades e a economia mental. A propósito, o nosso pensador afirma: “Por muito tempo os astrônomos se haviam contentado em provar, com base nos fenômenos, os verdadeiros movimentos, ordem e grandeza dos corpos celestes; até que por fim surgiu um filósofo que parece, elo mais feliz dos raciocínios, ter também determinado as leis e as forças que governam e dirigem as revoluções dos planetas. Um trabalho semelhante foi realizado no que diz respeito a outras partes da natureza. E não há motivo para desesperarmos de um sucesso igual em nossas pesquisas sobre as faculdades e a economia mental, se as realizarmos com a mesma proficiência e a mesma cautela. É provável que as operações e princípios da mente dependam uns dos outros e que, por outro lado, possam resolver-se num princípio mais geral e mais universal; e antes, ou quem sabe se mesmo depois de uma tentativa cuidadosa, nos será difícil determinar até que ponto podem ser conduzidas essas investigações” [Hume, 1973: 133].

Para o nosso pensador, o estudo da estrutura íntima da mente e as leis que comandam o seu funcionamento deveria ser feito sobre o pano de fundo da evolução das ciências da sua época, tanto as relativas ao estudo da natureza física, quanto as que se debruçavam sobre o comportamento humano na economia e na política, que eram levadas em consideração, sobretudo, pelos “moralistas”, ou seja, pelos estudiosos do comportamento humano na sociedade. O panorama era muito amplo e sujeito a afirmações que precisavam ser checadas na sua objetividade.

Mas o trabalho, frisa com coragem o nosso pensador, deve ser feito: “É certo que tentativas dessa espécie são feitas todos os dias, mesmo por aqueles que filosofam com mais negligência. E nada pode ser mais necessário do que empreender a tarefa com meticuloso cuidado e atenção, a fim de que, se isso está ao alcance do entendimento humano, possa ser finalmente levado a um feliz acabamento; e, se não, possa ser rejeitado com algum grau de certeza e de confiança. Esta última conclusão não é, sem dúvida, desejável, nem deveria ser adotada com excessiva precipitação. Pois considere-se o quanto uma tal suposição detrairia do valor e da beleza dessa espécie de filosofia! Os moralistas, quando consideram a imensa multidão e diversidade daquelas ações que excitam a nossa aprovação ou o nosso desagrado, costumavam até agora buscar algum princípio comum de que talvez dependesse essa variedade de sentimentos. E, embora tenham por vezes levado a coisa longe demais, no seu afã de encontrar um princípio geral, deve-se no entanto confessar que é bem compreensível essa esperança de encontrar princípios a que se possam reduzir todos os vícios e virtudes. Nem outra coisa têm procurado fazer os críticos, os lógicos e mesmo os políticos, e tampouco se pode dizer que suas tentativas tenham sido completamente infrutíferas, se bem que talvez um tempo mais longo, uma exatidão maior e uma aplicação mais fervorosa possam levar essas ciências a um grau mais alto de perfeição. A renúncia a todas as pretensões dessa espécie pareceria com justiça mais temerária, mais precipitada e dogmática do que a mais audaciosa e afirmativa das filosofias que já tentaram impor os seus crus ditames e princípios à humanidade” [Hume, 1973: 133].

Quando Kant confessava ter sido Hume quem o tirou do seu “sonho dogmático” calcado sobre a metafísica leibniziana, levava em consideração estas reflexões do pensador escocês. A filosofia como “critica do conhecimento” estava sendo formulada nos seus primórdios.

O nosso autor confessava, com honestidade intelectual, a dificuldade que acompanha o empreendimento proposto de estudar a mente humana com toda a amplitude colocada nas páginas da sua Investigação sobre o entendimento humano. É o que Hume expressa com as seguintes palavras: “Mas como, afinal de contas, o caráter abstrato dessas especulações não as recomenda, mas antes representa uma desvantagem, e como essa dificuldade pode ser talvez superada mercê da diligência e da arte e mediante o afastamento de todo detalhe desnecessário, procuramos, na investigação que segue, lançar alguma luz sobre assuntos cuja incerteza tem até agora desencorajado os sábios e cuja obscuridade tem repelido os ignorantes. Por muito felizes nos daremos se pudermos unir as fronteiras das diferentes espécies de filosofia, reconciliando a investigação profunda com a clareza, e a verdade com a novidade! E ainda mais felizes seremos se, raciocinando de tão fácil maneira, conseguirmos solapar os fundamentos de uma filosofia abstrusa, que até agora só parece ter servido de abrigo para a superstição e de manto para o erro e o absurdo!” [Hume, 1973: 133].

 5 – Valorização da sensação como ponto de partida do processo cognitivo.

Há, no sentir de Hume, uma considerável diferença entre as percepções da mente na sensação e na lembrança da sensação. A percepção da mente na sensação é mais forte e na lembrança da sensação é mais fraca. “Todos admitirão sem hesitar – frisa o pensador – que existe uma considerável diferença entre as percepções da mente quando o homem sente a dor de um calor excessivo ou o prazer de um ar moderadamente tépido e quando relembra mais tarde essa sensação ou a antecipa pela imaginação. Essas faculdades podem remediar ou copiar as percepções dos sentidos, mas jamais atingirão a força e a vivacidade do sentimento original. O máximo que podemos dizer delas, mesmo quando operam com todo o seu vigor, é que representam o seu objeto de maneira tão viva que quase se poderia dizer que os vemos ou sentimos. Mas, a não ser que a mente esteja afetada por uma doença ou pela loucura, nunca podem chegar a um tal diapasão de vivacidade que seja completamente impossível distinguir entre essas percepções. (..). Já em relação à lembrança dos nossos sentimentos e afeições passados, “o nosso pensamento é um espelho fiel e copia com exatidão os objetos; mas as cores que emprega são opacas e esmaecidas em comparação com as de que se revestiam as nossas percepções originais. Não se faz mister um discernimento sutil nem uma cabeça metafísica para marcar a distinção entre eles” [Hume, 1973: 134].

6 – Duas classes de percepções (pensamentos e ideias) e limites do poder criador da mente.

Temos duas classes de percepções: pensamentos ou ideias, que são as menos fortes e impressões, que são as mais fortes. Nada parece mais ilimitado do que o nosso pensamento. De entrada, “não só escapa a todo poder e autoridade humana, mas não se restringe sequer aos limites da natureza e da realidade. (...). Embora o corpo esteja preso a um planeta sobre o qual se arrasta com dor e dificuldade, o pensamento nos pode transportar no espaço de um instante às mais longínquas regiões do universo – e mesmo além do universo, no caos sem fronteiras, em que se diz que a natureza jaz em total confusão. (...) É possível conceber o que nunca foi visto ou ouvido (...)” [Hume, 1973: 134].

Embora o poder da mente pareça ilimitado, se olharmos para mais de perto veremos que as coisas não são bem assim. O nosso pensamento é essencialmente limitado. “(...) Em realidade – frisa Hume – ele se acha encerrado dentro de limites muito estreitos e todo o poder criador da mente se reduz à simples faculdade de combinar, transpor, aumentar ou diminuir os materiais fornecidos pelos sentidos e pela experiência. (...). Em resumo, todos os materiais do pensamento derivam da sensação interna ou externa; só a mistura e composição destas dependem da mente e da vontade. (...). Em linguagem filosófica, todas as nossas ideias ou percepções mais fracas são cópias de nossas impressões, ou percepções mais vivas” [Hume, 1973: 134-135]. Nessa mesma linha de pensamento, Kant dirá, um pouco mais adiante, na Crítica da razão pura (1785), que a nossa razão é a “faculdade ordenadora do real”.

O arrazoado de Hume é escorado, por ele, em dois argumentos. Em primeiro lugar, os nossos pensamentos e ideias se resolvem em ideias simples, que são cópias de uma sensação ou percepção anterior. Em segundo lugar, como frisa o filósofo, “(...) se sucede que, por defeito de um órgão, um homem não é suscetível de determinada espécie de sensação, verificamos sempre que ele é igualmente incapaz de formar as ideias correspondentes” [Hume, 1973: 135].

As nossas idéias simples não derivam sempre das correspondentes impressões (lembremos o fenômeno do “fecho” ou da “generalização psicológica”, por exemplo, no caso da apreensão de matizes nas cores). Esse fato revelaria a capacidade criativa da razão humana, a partir dos dados da experiência.

Vale, para Hume, o Princípio da referência da idéia à impressão. A propósito, escreve: “Quando suspeitarmos que um termo filosófico seja empregado sem qualquer significação ou idéia, bastará perguntar: De que impressão deriva essa suposta idéia? E, se for impossível casá-la com uma impressão qualquer, isso servirá para confirmar a nossa suspeita. Colocando as idéias sob uma luz tão clara, temos boas razões para nutrir a esperança de remover todas as disputas que possam surgir a respeito de sua natureza e realidade” [Hume, 1973: 136].

Registremos, como esclarecimento, que Hume tem do termo “inato” um entendimento totalmente inserido no contexto do empirismo. A respeito, frisa: “ “(...) Entendendo por inato o que é original e não a cópia de uma impressão anterior, podemos afirmar que todas as nossas percepções são inatas e que nenhuma de nossas ideias o é” [Hume, 1973: 136, nota 1].

7 – Existência, em todos os seres humanos, de um mecanismo universal de união entre as idéias.

Segundo Hume, há sempre uma conexão entre as diferentes idéias que sucedem umas às outras, na nossa mente. Este ponto ficará muito mais claro em Kant, que partirá da análise da linguagem, no juízo, seguindo a trilha aberta por Aristóteles nos seus Tópicos, ao ensejo da classificação dos juízos. O mestre alemão mostrará que a conexão entre as nossas idéias se realiza quando afirmamos ou negamos algo de algo. Neste ponto, Hume parece ter se distanciado dos ensinamentos de Locke, que valorizava a classificação dos nossos conhecimentos a partir dos juízos. Esse princípio é postulado pela presença, na nossa mente, de idéias simples compreendidas nas idéias mais complexas.

O mecanismo universal de união entre as idéias funciona, segundo Hume, a partir de três princípios de conexão entre elas. Esse mecanismo está enraizado na nossa natureza, como uma espécie de instinto a-priori (de ordem psicológica para Hume, mas que é, essencialmente, ontognosiológico)[cf. Reale, 1977: passim] e que tem como finalidade a preservação da vida. Os princípios que comandam o mecanismo mencionado são estes: de semelhança, de proximidade (ou contiguidade) e de causalidade. A razão humana, no contexto desta concepção, age a partir dos dados hauridos da experiência. Nisso consiste a sua grandeza e a sua limitação.

Não temos acesso, considerava Hume, à essência das coisas em si mesmas. A natureza, como diriam os pré-socráticos, “gosta de se esconder”. Unicamente temos acesso aos fenômenos. Mas as nossas mentes estão constituídas pela natureza de tal forma que os princípios, a partir dos quais organizamos os dados da experiência, valem para todos nós. Nos entendemos porque a nossa razão está configurada ontognosiologicamente de forma semelhante. Diríamos hoje, falando em linguajar cibernético, que apreendemos a verdade por consenso, graças a que estamos dotados do mesmo software. Anomalias podem acontecer (nos loucos, por exemplo, aos quais não falta a lógica, mas a formatação do seu software é diferente da dos seus semelhantes).

Este é o ponto fundamental da visão gnosiológica de David Hume e constituiu, como ele próprio reconhecia, uma autêntica “revolução copernicana” no terreno do conhecimento. Efetivamente, os objetos, ao redor dos quais anteriormente girava o conhecimento, foram deixados de lado como fonte da formatação do mesmo, contando, deles, apenas a apreensão fenomênica dada pelos nossos sentidos. Mas o conhecimento passou a girar, formalmente, em torno à estrutura ontognosiológica do sujeito, dotado de um a-priori que permite a todos os seres humanos pôr ordem nos dados da experiência. Foi a formulação da perspectiva transcendental, concebida por Hume nos termos em que acaba de ser resumida, que tirou Immanuel Kant do seu “sonho dogmático”, como o filósofo de Königsberg denominava a perspectiva metafísica (transcendente) em que, ao longo de muitos anos, ele mergulhara. Elogio sem par saído da boca do mais importante sistematizador da nova filosofia crítica.

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