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TOCQUEVILLE, MORALISTA DOS TEMPOS MODERNOS

TOCQUEVILLE, MORALISTA DOS TEMPOS MODERNOS

OS GRANDES TOCQUEVILLE E ARON, MORALISTAS DOS TEMPOS MODERNOS (SÉCULOS XIX E XX).

Com a finalidade de estimular o debate acerca do pensamento tocquevilliano sintetizo, em tradução livre, o 2º capítulo da obra de Françoise Mélonio intitulada: Tocqueville et les Français (Paris: Aubier, 1993, 408 págs.). A historiadora dedica esse texto que leva como título "Tocqueville, moralista dos tempos modernos, os anos quarenta" (pp. 81-121),  à análise da elaboração do pensamento moral do autor.

A Primeira Democracia tinha constituído um sucesso. Depois de completar os trinta anos, eis o célebre e resoluto autor de novo entrando em cena. Mas o que escrever? Acontece que a necessidade de uma continuação da Democracia não era esperada pelos primeiros leitores, que julgavam Tocqueville ocupado em outros escritos os quais, em se tratando de um bom discípulo de Montesquieu (1689-1755), tangeriam um tema correlato, como por exemplo uma grande obra sobre a Inglaterra.

No entanto, Tocqueville havia previsto uma continuação da sua pesquisa americana, prudentemente anunciada desde 1835. “O meu propósito – escrevia – era o de aprofundar, numa segunda parte, a influência que na América exercem a igualdade de condições e o governo da democracia para a sociedade civil, sobre os hábitos, as ideias e os costumes; mas começo a me sentir com menos entusiasmo para levar a bom termo esse esboço” (I, p. 12).

Tocqueville ostenta um hábil jeito para preservar o futuro. A correspondência do nosso autor é mais explícita. Da Inglaterra, escreve ao seu primo Molé: “Eu te diria que o meu único projeto, neste momento, seria conferir à minha obra sobre a democracia o último desenvolvimento que sempre tive a intenção de lhe dar, caso o livro tivesse o sucesso que de fato teve. Tratava-se de que eu cuidasse de inserir, no final da introdução, a semente que eu teria cuidadosamente plantado para que se desenvolvesse. Com essa finalidade, tive a intenção de mencionar, de entrada, essa semente no final da introdução” .

Tudo parecia simples no início. Desde fins de 1835, Tocqueville concebeu um plano do qual suprimiria aquilo que fosse muito complicado como a educação ou o desenvolvimento das ciências morais. Ora, o tempo apremiava. Tocqueville já entrava numa idade na qual, segundo as expectativas, deveria se eleger deputado. Os primeiros esboços somente apresentavam subdivisões convencionais. Tocqueville enxergava, de início, um duplo caminho: a influência da democracia sobre as ideias e os sentimentos. Mas essa bipartição não permitia tratar acerca das atitudes e dos costumes. Desde o fim do ano, essa divisão de assuntos foi descartada, em benefício de uma tripartição que abarcaria as seguintes variáveis: efeitos da democracia sobre o pensamento, sobre o coração e sobre os hábitos. Tudo anunciava uma rápida conclusão. Mas os incidentes, as mortes, as doenças e as viagens se multiplicaram. O editor, os tradutores e os leitores começaram a ficar impacientes. A redação iria exigir mais de quatro anos, durante os quais Tocqueville lutaria contra as palavras rebeldes. “Veja bem, escrevia, desanimado, a Gustave de Beaumont (1802-1866), em 1839: é necessário terminar este livro de qualquer jeito. Entre mim e ele declarou-se um duelo à morte: é necessário que eu o termine ou que ele termine comigo”. Como fazer frente a essa alternativa?

A América e o tipo de sua democracia.

Tocqueville havia, num início, tratado de estudar a sociedade americana, trazendo, para as ciências do homem, o paradigma paleontológico de Georges Cuvier (1769-1832). Existe, frisava este historiador das ciências da natureza, uma relação necessária entre as partes dos corpos organizados, de forma tal que aquele que descobrir uma porção destacada de um deles, seria capaz de reconstruir o conjunto. Um trabalho analítico semelhante poderia servir para conhecer a maior parte das leis gerais que regulam qualquer coisa. Ora, a sociedade é como um grande indivíduo, onde há correlação de formas entre as leis e os comportamentos. Este tipo de organicismo não deixava de ter precedentes na literatura científica francesa. François Guizot (1787-1874), por exemplo, já tinha tentado comparar a pesquisa dos fatos com uma anatomia e tinha procedido à determinação das leis, com se se tratasse de uma fisiologia.

Foi, pois, com a finalidade de estudar o germe inglês dos costumes americanos que Tocqueville se transladou à Inglaterra, para redigir a, no verão de 1835. Ali ele se comportou como se estivesse tomando parte numa representação teatral, a fim de ver morrer a aristocracia nas convulsões de uma revolução. O nosso autor chega ali com a convicção de que a Inglaterra encaminha-se para a democracia, seguindo o caminho aberto pelo Continente. A propósito, frisa: “As precedentes revoluções que sofreram os ingleses eram essencialmente inglesas, tanto pelo fundo quanto pela forma (...). Nada há de mais idêntico ao que acontece hoje: é a revolução européia que continua na história dos Ingleses”. Na primeira Democracia, a Inglaterra encarnava um passado, aliás totalmente insular. Eis que ela muda o estatuto e que Tocqueville descobre ali traços universais da modernidade democrática que lhe tinham escapado, como a ameaça do pauperismo e a tendência à centralização.

Na América, aliás, Tocqueville não tinha desfrutado do sossego ou o do desejo de visitar as fábricas. Na Inglaterra, ao contrário, ele frequentou os mítines dos radicais, cavoucou nas usinas de Birmingham e nos toldos de Manchester. Legou-nos um relato horrorizado dessa experiência – mas é claro que desde Montalembert a Engels não faltam as descrições sinistras de Manchester. O essencial está nas conclusões que ele tira. Contrariamente a Charles de Montalembert (1810-1870) e aos legitimistas sociais, ele não se satisfaz com uma apologia do patronato tradicional. Diferentemente de Friedrich Engels (1820-1895), ele rejeita a pauperização das classes operárias como uma lei da história. Sem reconhecer a miséria operária ou o risco de emergência de uma aristocracia capitalista, considera as classes operárias menos duráveis que o instinto democrático da igualdade e não lhes consagrará, na sua obra, mais do que um espaço limitado.

A descoberta da questão social importa, pois, menos do que o crescimento inevitável do Estado. Na Primeira Democracia, Tocqueville tinha achado que a centralização, específica na França, resultava da apropriação acidental do poder por parte dos reis. Na Inglaterra, estudando a lei da assistência aos pobres em fevereiro de 1834, descobre a universalidade da centralização, à qual América só escapa por acidente. Nas suas notas de viagem, escreve em 11 de maio de 1835: “Por que a centralização está mais nos hábitos da democracia? Tal é a grande questão a enfrentar... questão capital”.

As observações feitas por Tocqueville em relação à questão da riqueza e da sua distribuição na Inglaterra, pode ser complementada com os comentários em relação à posição dos seus mestres diante desse ponto. O velho mestre doutrinário Pierre Paul Royer Collard (1763-1845), o advogado católico com quem o nosso autor tinha uma estreita amizade, colocou-se para Tocqueville, em 1835, quando contava com 72 anos, como uma espécie de diretor espiritual em face das suas preocupações éticas com a riqueza e o processo de defesa da liberdade. Junto a Royer Collard, Tocqueville confirma o seu gosto pela especulação filosófica aplicada à política. Sem dialogar diretamente com os clássicos, fazendo-o através do seu mestre jurisconsulto, Tocqueville tira a limpo as suas conclusões sobre a problemática da democratização da riqueza. Pierre-Paul Royer-Collard apreende melhor os limites do modelo americano e a dificuldade de sintetizar o que é verdadeiramente democrático. A respeito, dizia Tocqueville: “A grande dificuldade no estudo da democracia consiste em distinguir o que é democrático daquilo que não passa de revolucionário. (...) Isso é bem difícil porque faltam os exemplos. Não há povo europeu no qual a democracia tenha conseguido um lugar seguro e a América, em contraste, encontra-se numa situação excepcional”.

Em 1835-1836 Tocqueville esbarra, pois, com a impossibilidade de achar no mundo empírico o tipo puro do regime democrático. A América é excepcional; a Inglaterra é uma mistura de aristocracia e de democracia; a França é revolucionária. E, no entanto, essas três sociedades participam da mesma monocultura democrática. Tendo tomado assim uma consciência mais clara, que em 1835, da falta de identidade entre o objeto construído e o objeto achado, Tocqueville ascende ao nível da ideia da correlação necessária das formas. As sociedades empíricas não são, possivelmente, coerentes, mas elas reforçam a coerência de suas partes ao se consolidarem, sempre antes, segundo o mesmo tipo: “Não se saberia conceber – escreve Tocqueville - homens eternamente desiguais entre eles sobre um só ponto e iguais nos outros; eles chegarão, pois, num tempo determinado, a sê-lo em todos”. Tocqueville volta, sempre, sobre essa circularidade das causas e dos efeitos: a igualdade favorece o materialismo que, por sua vez, a favorece. Círculo fatal! A democracia tende a acrescentar o poder estatal que, em contrapartida, acentúa o nivelamento.

A dificuldade está em que, na descrição do tipo, Tocqueville não é mais guiado pela ordem das coisas, da forma vigente na Primeira Democracia, onde ele estudava as instituições americanas na sua ordem de aparição. O plano inicial somente subsiste como um quadro inadequado. “Há momentos – escreve Tocqueville – em que me sinto presa de um tipo de terror pânico. Na primeira parte da minha obra atinha-me às leis, que eram pontos fixos e visíveis. Aqui, parece-me que, às vezes, estou no ar e que vou desabar irremediavelmente sem poder parar de cair naquilo que é comum, absurdo e intragável”. Levado a abandonar a ordem das coisas pela ordem das razões, Tocqueville se esforça por desviar a atenção em direção ao universo da contingência das regularidades, que permite afirmar que as coisas se organizam longe de se combaterem e que não são tão incoerentes como se supõe. Ele não escapa ao abuso das fórmulas dedutivas que dominarão os leitores de maneira crescente ao longo do século XIX. Émile Boutmy (1835-1906) e Gustave d’Eichthal (1804-1886) frisam, igualmente, que para Tocqueville as coisas não são assim, mas que, pressupondo o ponto de partida, elas serão necessariamente tais.

Mas esse determinismo é também erosionado pela introdução de graus, de tal forma que um mesmo estado social pode ter consequências opostas, embora inegavelmente prováveis: assim, a igualdade entranha seja a servidão, seja a liberdade, seja o panteísmo ou o misticismo. A linguagem tocquevilliana parte da hipérbole para acabar se restringindo. No termo do processo de erosão, o tipo aparece como redundante face às observações nas quais ele enuncia a regra das variações. Isso permite deduzir tendências, inclinações ou pontes de um “estado social”. Tendências ocultas e pontes secretas, que Tocqueville designa com o nome de “o indistinto”; costumes convertidos em natureza ao ensejo de atores cada vez mais irresistíveis. Este vocabulário nos remete ao cálculo das probabilidades inventado por Blaise Pascal (1623-1662) e introduzido nos fatos sociais em 1835, pelo Ensaio de física social do astrónomo Jacques Quetelet (1796-1874), acerca do qual Tocqueville pensava que constituía o único caminho seguro para o conhecimento. A Democracia de Tocqueville oferece, pois, uma espécie de teoria probabilística, embora não seja formulada de modo matemático e não se veja, sempre, exposta à contradição. Mas o recurso ao léxico das ladeiras conduz também a inserir Tocqueville nas linha dos moralistas. O movimento argumentativo parece reproduzir a extensão caótica da reflexão do autor ao analisar as “contrariedades” humanas. Assim, enquanto Tocqueville se esforça por discernir os efeitos da democracia sobre a ambição, ele pensa, de entrada - é a opinião comum –, que a democracia gera a ambição universal das pequenas coisas; pois quanto mais se divisa a existência de ambições colossais depois da Revolução, como conciliar a experiência de uma turba de ambições mesquinhas e de uma minoria à la Rastignac [o famoso personagem do genial Honoré de Balzac (1799-1850) na Comédia Humana?]. Esse movimento é típico de uma reflexão que se alimenta de remorsos e do tormento e aproxima Tocqueville de Pascal, não o calculador mas o moralista.

Como Pascal, Tocqueville se obriga e obriga o seu leitor a uma tarefa incessante de pensar ao longo da navegação aventurosa: “Eu me prendo pela pena com a intenção disfarçada de seguir um sistema”, escrevia Tocqueville ao seu amigo John Stuart Mill (1806-1873). “Me entrego ao movimento natural das minhas ideias, me deixando levar de boa fé de uma consequência a outra. Disso resulta que, enquanto a obra não está terminada, eu não sei precisamente aonde eu vou ou se eu chegarei algum dia”, puxado por encontros não cumpridos. Na primavera de 1836, Tocqueville se dá conta de que ainda faltam dois volumes. Em novembro de 1836 assegura ao seu tradutor inglês Reeve: “Jamais teria imaginado que um tema que tenho trabalhado de tantas maneiras pudesse apresentar tantas faces novas”. A doença, logo uma primeira campanha eleitoral, em novembro de 1837, fazem reprogramar o término da obra para 1838: sinal da dificuldade experimentada por Tocqueville para definir e concretizar a definição com um estudo dos costumes americanos e com a elaboração de uma tabela da cultura democrática, mudança de cuja envergadura ele não imagina o tamanho, senão no momento da releitura conjunta de todas as peças. “É agora que eu posso ver, pouco a pouco, o conjunto do livro, escreve ele a Royer Collard em 1838; percebo que se trata mais de um conjunto de efeitos gerais da igualdade sobre os costumes, que de efeitos particulares que a liberdade causa na América”.

Do medo da anarquia ao medo da inércia.

Então, em 1838, produz-se uma segunda inflexão, não do método, mas no sentido político da obra. Entrando na arena da política, Tocqueville toma subitamente as suas distâncias com os doutrinários. Em 1836, depois dos distúrbios que marcaram os primeiros anos da Monarquia de Julho, a revolução permanente, como já se dizia, parecia encerrada. Tocqueville esperava que esta melhoria momentânea possibilitasse uma liberalização do regime. Em 1838 julga que esta esperanza não foi concretizada. Guizot agita, sem trégua, o espantalho revolucionário para levar adiante uma política repressiva; enlameia o caminho da imprensa e reprime a vontade dos eleitores mediante pressões administrativas.

Qual é o resultado? Na França de Julho, o espírito público se degrada e se perde a imaginação das coisas grandes. A vida pública não é mais do que um meio para se enriquecer. A burguesia, segundo a bela expressão dos Souvenirs, “tornou o Estado a sua propriedade”. No que tange aos camponeses da baixa Normandia, eles valem menos do que os burgueses de Paris. Nos discursos de Tocqueville, “a parte ruminante “ do eleitorado de Valognes prefere as doçuras obscuras do lar e a venda dos animais. Como Tocqueville se queixasse disso, Royer-Collard lhe mostra a universalidade do fenômeno: “Mas os teus Normandos! É a França, é o mundo; este egoísmo prudente e inteligente, esse é o conjunto das pessoas honestas do nosso tempo, detalhe por detalhe”.

Essa desilusão de um jovem candidato, parisiense demais, provoca uma re-arrumação de toda a obra. Até em 1838, Tocqueville havia retomado a distinção introduzida pelos liberais e os doutrinários entre democracia e revolução; ele a havia aprofundado mesmo sob a influência de Royer-Collard, olhando para a redação de um grande prefácio sobre essa distinção. Ele não rompe totalmente com essa conceição depois de 1838, mas atenua os acentos. O terror das revoluções estampa-se diante do horror que inspira num eterno povo de crianças, ou melhor, num rebanho de bezerros prestes a dobrarem a espinha. O temor da inércia substituiu o medo à anarquia. Na primavera de 1838, Tocqueville redige um grande capítulo sobre a raridade das revoluções nas democracias, capítulo polêmico em face de Guizot,  que divulgará na Revista dos Dois Mundos, destacando com isso o que lhe parece fundamental.

Entre julho e outubro de 1828, Tocqueville redige, então, a sua quarta parte, consagrada às consequências políticas da igualdade, que constitui verdadeiramente um tratamento novo das questões abordadas em 1835. É nessa reescrita não confessada que ele toma consciência do fato de ter desviado inconscientemente o sentido da política na obra. De maneira que de outubro de 1838 até o fim de 1839 teve de retomar toda a obra, em meio a uma enorme massa de fragmentos incansavelmente recopiados, para serem modificados em jornadas sucessivas.

A corrupção democrática.

Esse trabalho permite a Tocqueville elaborar uma dialética do individualismo e da sua transformação em servidão voluntária. A palavra individualismo empregada em 1835 pelos exegetas republicanos da Democracia, não tinha mais o mesmo significado usado por Tocqueville, que temia então mais a usurpação do termo pela maioria, do que o retrato aprazível de “cada um na esfera privada”.

Ao redigir a Segunda Democracia, Tocqueville descobre como, na sociedade do mercado, a busca do bem-estar privado pode se converter em exclusivo cuidado para com a vida pública. Pelo termo individualismo designa, então, esse “sentimento refletido e aprazível que predispõe a cada cidadão a se isolar da massa dos seus semelhantes”. Esse individualismo tange todos os domínios da vida social. O Verdadeiro, o Belo e o Bem, dos que tratava Victor Cousin (1792-1867) na sua célebre obra, enquanto universais, afundam ao mesmo tempo: nas artes, o subjetivismo igualitário substitui o princípio da excelência; no campo da moral, a autoridade e a fé se perdem e somente resta o princípio flutuante do útil; no domínio da ciência só se reverencia a Opinião. Por toda parte o singular e o particular avançam sobre o universal.

O que aconteceu, então com o bem público? A coisa pública é menos abandonada do que gerida em proveito dos interesses particulares. As ideias políticas entram no domínio da economia doméstica, e se destina “as crianças ao conhecimento de uma opinião, como se lhes destina a um estado”. A nação inteira degenera em uma tropa de procuradores. Enquanto a burguesia ocupa as praças, os socialistas reivindicam o direito ao trabalho. Nos dois casos, o princípio é o mesmo: progride-se às custas do Tesouro.

A venalidade política não é, pois, o objeto de uma reflexão aprofundada em A Democracia. Ela já não é mais analisada nos discursos políticos, nos quais Tocqueville se atém a algumas “regras saudáveis de prudência” sobre as incompatibilidades parlamentárias e os processos de recrutamento e de progressão na função pública”. Ainda se pratica o ‘mostre-a prova’ singularmente flutuante: “É do meu gosto, escreve ele, tanto quanto do meu interesse, apoiar em Paris todas as demandas justas que possam apresentar as comunidades e outros estabelecimentos públicos. Está igualmente na minha intenção e eu devo considerar do meu dever ajudar da melhor forma possível os meus compatriotas, que me pareçam merecer os favores do governo e que me tenham sido recomendados pelos meus amigos”.

Compreende-se que tais protestos morais tenham feito sorrir. Tocqueville tinha, evidentemente, o cuidado de preservar o seu esquema de prestação de serviços. Mas o caráter embrionário da sua reflexão sobre os mecanismos da corrupção resulta muito mais de uma dificuldade de pensar o Estado. Assim como os seus leitores, Tocqueville está pronto para suspeitar do fato de que a administração tente crescer entre os eleitores em decorrência da propaganda governamental. De resto, a venalidade política não é, para ele, mais do que uma forma de corrupção circunstancial, transitória e secundária, que não exigiria, da parte dele, uma análise mais aprofundada.