A preocupação com a problemática da pobreza não é, com certeza, assunto exclusivo da contemporaneidade. Na antiguidade judaica, por exemplo, a pobreza era uma dessas situações que acompanhavam sempre a sociedade. Essa preocupação estava presente, inclusive, no relato bíblico. Quando Maria, irmã do ressuscitado Lázaro, rendeu homenagem ao Mestre no jantar oferecido a Ele e aos seus discípulos por um conhecido doutor da lei, lavando-lhe os pés e enxugando com os seus cabelos o caro perfume que levava, Judas, que portava a bolsa, reclamou que esse perfume era muito caro e que, com o seu preço, poder-se-ia dar uma gorda esmola aos pobres. Jesus teria respondido: “deixa-a, tinha guardado (esse perfume) para o dia da minha sepultura. Porque pobres sempre os tereis convosco, mas a mim não me tereis sempre” (João 12, 7).
Idade Média e pobreza eram coisas afins. As tortas ruas das cidades dos séculos XII e XIII abrigavam uma multidão de pedintes, que transitavam por entre os desaguadouros de águas putrefatas que saíam das casas e despejavam o esgoto a céu aberto no mais próximo riacho, garantindo, assim, a próxima epidemia de cólera. Conta a história que um Rei da França, passando por uma das ruelas malcheirosas da Paris medieval, foi alvo das “águas caindo” do penico de algum morador desavisado, que despejou o fedorento conteúdo em cima do monarca que, diz a lenda, desmaiou. O romance “O Perfume”, de Patrick Susskind, dá vida aos fedores que povoavam a Paris do Iluminismo. A pobreza era tema de discussão, no período das Luzes (séculos XVII e XVIII) e no ciclo do cientificismo (ao longo do século XIX). Conhecemos os relatos dos narradores brasileiros do século XIX, que dão notícia dos escravos despejando, nas praias de Copacabana e Ipanema, o repulsivo conteúdo dos “tigrões”, aqueles vasos enormes que guardavam as fezes da elite imperial e da burguesia.
Duas características saltam à vista, quando consideramos a problemática da pobreza do ângulo das pessoas que se debruçaram sobre ela e do ponto de vista das soluções apresentadas. Primeiro: sempre nos deparamos, ao longo da história, com os que exageraram na dose da identificação da miséria. Isso aconteceu, por exemplo, na Inglaterra da primeira parte do mil e oitocentos. Um sexto da população britânica mergulhava na pobreza. O resto, as cinco sextas partes restantes da pátria do capitalismo, pertencia a uma próspera classe média. Pois bem: escritores e analistas sociais, como Charles Dickens (1812-1870) ou Karl Marx (1818-1883), colocaram lente de aumento nesse um sexto de pobres, para concluir que o capitalismo trazia a miséria. Uma espécie de síndrome "Sebastião Salgado" da sociedade inglesa, visão muito apreciada, aliás, nos salões que se fartavam da abundância.
Segunda característica: a solução viável à problemática estudada foi apresentada pelos liberais. Entre eles se ergue a figura de Alexis de Tocqueville (1805-1859), bem como a geração dos doutrinários, com François Guizot (1787-1874) à testa, na França. Neste país foi importante a tendência utilitarista, representada por Jean-Baptiste Say (1767-1832), Étienne Bonnot de Condillac (1715-1780) e Jean Antoine de Caritat, marquês de Condorcet (1715-1780). Na Inglaterra, a discussão sobre o problema da pobreza e o equacionamento do mesmo, correu por conta dos filósofos utilitaristas, preocupados com a “felicidade geral” em meio às desigualdades. Foi a vez de Jeremy Bentham (1748-1832), John Stuart Mill (1806-1973), David Hume (1711-1776), William Goldwin (1756-1836) e Henry Sydwick (1838-1900). Na Alemanha, quem centrou a discussão sobre a problemática da pobreza foi Eduard Bernstein (1850-1932), partindo dos pressupostos éticos legados por Kant (1724-1804), notadamente, preservando as liberdades num modelo de socialismo democrático e rejeitando, decididamente, o absolutismo de Marx com o seu “socialismo científico”. Os chamados "socialistas" apresentaram soluções de cunho retórico, mesmo que em nome de um "socialismo científico", como era o caso da "dupla do barulho", Marx e Engels, o primeiro vivendo da mesada do segundo.
Duas são, a meu ver, as bases que dão ensejo às reflexões de Alexis de Tocqueville acerca da pobreza: em primeiro lugar, a preocupação geral, existente na sua época, pela mencionada problemática; em segundo lugar, a experiência administrativa de seu pai, Hervé-Louis-Bonaventure Clérel, conde de Tocqueville (1772-1856), que se desempenhou como prefeito e maire (prefeito) em várias cidades, durante a Restauração (entre 1814 e 1830).
Dividirei esta curta exposição nas seguintes partes: 1 - A problemática social na época de Tocqueville e as tendências teóricas correspondentes. 2 - A experiência administrativa do conde Hervé de Tocqueville, no equacionamento da problemática da pobreza. 3 - O "Banco dos Pobres", segundo Alexis de Tocqueville.
1 - A problemática social na época de Tocqueville e as tendências teóricas correspondentes.
É de todos sabido que, no início do século XIX, havia uma grande preocupação com o estudo da problemática social, tanto na França quanto na Alemanha e na Inglaterra. Os estudiosos identificaram quatro grandes tendências teóricas: a da matemática social (representada por Condorcet e Laplace, herdeiros do modelo da aritmética política proposta por Lagrange e Lavoisier); a da fisiologia social (representada por Cabanis, Bichat, Pinel, Vicq d'Azur e Saint-Simon); a da economia política (representada por David Hume, Adam Smith, Jean-Baptiste Say, Destutt de Tracy, Roederer, etc.); e a historicista (cujo formulador foi Hegel, na trilha de Vico e Savigny, e que foi seguida pelos autores da denominada esquerda hegeliana: os irmãos Davi e Bruno Bauer, Ludwig Feuerbach e Karl Marx).
Cada uma dessas tendências teóricas insistia numa variável a ser atendida, para resolver a problemática em questão: para os defensores da tendência da matemática aplicada à sociedade, por exemplo, tratava-se de equacionar uma ciência social exata, à maneira da física de Isaac Newton (1643-1727), que permitisse, das leis da gravitação universal deduzir as que comandariam o comportamento humano, a fim de que os governantes pudessem se antecipar aos azares das paixões políticas. É sabido que esta tendência chegou a empolgar a Madame de Staël (1766-1817), na primeira fase da sua vida intelectual, em decorrência da influência recebida de Turgot e Condorcet. Esta é a tendência em que vai se inspirar, na segunda década do século XIX, a física social de Augusto Comte (1798-1847). Grande sucesso teria esta tendência, outrossim, no Brasil, nas várias versões do positivismo que aqui vingaram.
Os defensores da tendência da fisiologia social consideravam a sociedade como um órgão do grande ser vivo, o Universo. O problema social seria, portanto, uma espécie de doença que acometeria ao organismo coletivo, devendo ser equacionada a sua solução com uma sintomatologia adequada e um tratamento a ela correspondente. A preocupação de Tocqueville com o sistema penitenciário francês insere-se nesse contexto e é com essa preocupação que o jovem advogado viaja a América, tratando de ver de que forma os americanos tratam a doença social da criminalidade, nos hospitais para "curar" os "doentes sociais", ou seja, nas penitenciárias.
Tocqueville, aliás, discute o problema da pobreza à luz deste arcabouço teórico. Define-a como "essa terrível doença que se alastrou por um corpo cheio de vida", referindo-se, especificamente, aos pobres da Inglaterra, que na época em que escrevia o nosso autor, representavam 1/6 da população do país.
Para os defensores da tendência da economia política, a problemática social resolver-se-ia solucionando previamente a questão econômica da produção e do mercado. Daí a insistência deles nas questões macroeconômicas. Para os defensores da tendência historicista, a questão fundamental seria descobrir o fio da história, o espírito do tempo ou o espírito do povo. O historicismo hegeliano deu continuidade a uma tendência romântica, que já tinha se iniciado com Goethe (1749-1832), na Alemanha, e que visava a explicitar com a máxima claridade, quais seriam os contornos da caminhada histórica das coletividades, a fim de que encontrassem o seu próprio caminho. Na França, os liberais doutrinários, inspirados nas pesquisas de história comparada da cultura feitas por Madame de Staël, elaboraram amplo painel da história da cultura francesa, quer do ângulo político, com Guizot, quer do ponto de vista filosófico, com Victor Cousin (1792-1867). Tocqueville não deixa de se inserir neste contexto, com a sua obra de maturidade, O Antigo Regime e a Revolução (que data de 1856).
2 - A experiência administrativa do conde Hervé de Tocqueville, no equacionamento da problemática da pobreza.
O pai de Alexis, que tinha sofrido a perseguição durante a Revolução, em decorrência das ligações do seu sogro, Malesherbes (1721-1794 ) com a monarquia, manteve-se afastado dos negócios públicos durante o Império, tendo sido apenas maire de uma pequena comunidade perto de Versailles. Depois da derrubada de Napoleão em 1814, foi prefeito de Maine-et-Loire. Destituído após o 20 de março de 1815 (data que marca o retorno de Napoleão ao poder), dedicou-se aos negócios familiares durante o período conhecido como "os 100 dias". Após a batalha de Waterloo (junho de 1815), que significou a derrota definitiva de Napoleão e com o restabelecimento da monarquia borbônica, foi sucessivamente prefeito de L'Oise (tendo mostrado muita firmeza ao rejeitar as pretensões dos prussianos). Foi, a seguir, prefeito de Côte d'Or, la Moselle, La Somme e Seine-et-Oise. Em 1827 foi nomeado Par da França por Luís XVIII. Após a Revolução Liberal de Julho de 1830, o conde Tocqueville recusou-se a prestar juramento à nova monarquia de Luís Filipe e se dedicou aos seus negócios particulares.
Durante as sucessivas experiências de administração municipal, o conde Hervé de Tocqueville interessou-se por equacionar o problema da pobreza, tentando estimular as pessoas carentes a se tornarem pequenos proprietários rurais. É sabido que a na França não havia grandes latifúndios e que, desde o século XVIII, realizou-se uma verdadeira fragmentação na posse da terra. Isso, no sentir de Tocqueville explica, de forma paradoxal, o fenômeno da Revolução: onde há um grande número de pequenos e médios proprietários, as mordomias e os privilégios de uma nobreza egoísta e açambarcadora dos cargos públicos tornam-se mais inaceitáveis. Ora, para o conde Hervé, a sorte dos mais pobres melhoraria, eles se tornando, como a grande maioria, pequenos proprietários rurais. Para isso imaginou uma espécie de "Banco do Povo", que emprestasse dinheiro a juros baixos, sob penhor. O montante a ser emprestado seria arrecadado dos mais remediados, que já tivessem feito uso desse benefício. Não se trataria de um banco estatal, mas de uma espécie de banco cooperativo integrado pelos pequenos proprietários. A experiência do conde Hervé de Tocqueville, ao que tudo indica, deu certo, e lhe garantiu a sua sucessiva indicação para os cargos acima mencionados. O conde deixou escrito um informe da sua experiência, que foi publicado na cidade de Compiègne, em 1838, sob o título de Du crédit agricole.
O exemplo paterno certamente influenciou os filhos do conde Hervé de Tocqueville. O irmão mais novo de Alexis, o conde Hyppolyte de Tocqueville (nascido em 1812), foi muito estimado pela sua honradez e pela preocupação social, que o levou a distribuir boa parte da sua fortuna em inúmeras obras de beneficência. Foi deputado à Assembléia Nacional desde 1871, tendo se alinhado sempre com os grupos de centro-esquerda e da esquerda republicana, em decorrência das suas preocupações sociais. Justamente por causa desse perfil, em 1871 foi eleito Senador Vitalício pela Assembléia Nacional. O conde Hyppolyte deixou escrito importante trabalho sobre a forma de combater a pobreza, intitulado: Quelques idées sur les moyens de remédier à la mendicité et au vagabondage, de 1849 (Algumas ideias acerca dos meios para remediar a mendicidade e a desocupação).
É interessante anotar que os franceses estiveram sempre muito preocupados com elaborar uma idéia clara e distinta do fenômeno da pobreza, denominado, na época, de pauperismo. Eis o que, por exemplo, escrevia a respeito Pierre Larousse, em 1865: "Pauperismo: Estado de pobreza comum a um grande número de pessoas num Estado. Tratou-se de distinguir a pobreza da miséria, fazendo desta uma carência completa e daquela uma simples desproporção entre os recursos e as necessidades. Essa distinção faz da miséria um grau da pobreza. Seria conveniente, pois, reuni-las num mesmo estudo sob o título de pauperismo, que exprime, em diversos graus, um estado permanente, no qual uma parte da população carece do necessário. (...). Nas nossas sociedades modernas, nas quais a facilidade das comunicações atribui a cada coisa um valor, a apropriação chegou ao seu máximo de identidade e o homem, encarregado de provir por si mesmo à sua subsistência e não tendo mais do que seu salário para responder às suas necessidades, pode-se encontrar exposto a uma miséria súbita, miséria tanto mais cruel quanto a elevação do salário tinha habituado o trabalhador a uma certa comodidade. É a esta miséria totalmente moderna, miséria menos profunda, menos geral que a das épocas de servidão, mas miséria mais barulhenta, mais impaciente, precisamente por causa do uso que o trabalhador faz dos seus direitos e do sentimento profundo que adquiriu da liberdade; é esta miséria que recebeu o nome especial de pauperismo" [Pierre Larousse, Grand Dictionnaire Universel du XIX siècle. Paris: Larousse, vol. 12, pg. 432-433].
3 - O "Banco dos Pobres", segundo Alexis de Tocqueville.
A idéia do "Banco dos Pobres" foi proposta por Alexis de Tocqueville em dois ensaios publicados em 1835 e intitulados: "Memória sobre a pobreza" e "Segundo artigo sobre a pobreza", que foram redigidos para a Sociedade Acadêmica de Cherbourg e que integravam os seus "Escritos Acadêmicos". (O leitor pode consultá-los nas Oeuvres de Tocqueville, primeiro volume, na primorosa edição preparada por André Jardin, Françoise Mélonio e Lise Queffélec, Paris, Gallimard, 1991, coleção Pléiade). A finalidade desses "Escritos Acadêmicos" era, segundo aponta Françoise Mélonio, discutir "como estruturar a sociedade moderna, aglutinando os cidadãos desunidos, que a hierarquia de privilégios do Antigo Regime não organizava mais".
A problemática da pobreza, considerava Tocqueville, era uma espécie de doença social surgida nos países que experimentaram o enriquecimento capitalista. A pobreza, paradoxalmente, considerava o pensador francês, somente se tornou visível onde havia para contrapor a ela um pano de fundo de riqueza e bem-estar. Era visível esse problema na Inglaterra da sua época, onde 1/6 da população engrossava as fileiras do proletariado urbano, contrastando a sua pobreza com o bem-estar da maioria. O problema consistia em como integrar essa parcela de pobres no seio da sociedade, a fim de que pudessem gozar das benesses do progresso.
Na busca de um princípio de solução para a problemática da pobreza, Tocqueville partia da definição moral do princípio da beneficência, que se alicerçava numa espécie de imperativo categórico: tal princípio deveria poder se aplicar universalmente e as suas conseqüências deveriam estar de acordo com a moral. A respeito, frisava: "Creio que a beneficência deve ser uma virtude máscula e fundada racionalmente, não um gosto frágil e irrefletido; que não se deve fazer o bem que mais agrada àquele que o faz, mas o mais verdadeiramente útil àquele que o recebe; não aquele que alivia de forma mais completa as misérias de alguns, mas aquele que serve ao bem-estar do maior número. Eu não saberia calcular a beneficência senão desta forma: compreendida num outro sentido, ela é ainda um instinto sublime, mas não merece, a meu ver, o nome de virtude".
O pensador francês era cético em face do caminho estatizante para solucionar os desequilíbrios sociais. Ao institucionalizar a caridade pública, considerava Tocqueville, surgirão dois grupos de parasitas que dela dependerão, sem fazer qualquer esforço em prol do trabalho responsável: os burocratas que distribuem o dinheiro dos outros e os pedintes profissionais. Tocqueville enxergava, pelo contrário, uma solução mais larga: a formulação de uma política social, que abarcaria três grandes aspectos: educação dos pobres, estímulo à propriedade fundiária dos camponeses e estímulo à poupança dos operários das indústrias. A finalidade dessa política social consistiria em estabelecer um equilíbrio entre a produção de bens e o seu consumo, a fim de evitar as distorções causadas no mundo moderno pelo sistema produtivo.
O Banco dos Pobres imaginado por Tocqueville teria como finalidade fomentar a poupança dos operários, a fim de que descobrissem a dignidade de serem proprietários. O perfil da instituição bancária proposta pelo nosso autor seria o seguinte: "Nesse sistema, a administração receberia de um lado as poupanças e, de outro, dar-lhes-ia aplicação. Os pobres que possuem dinheiro para emprestar o depositariam nas mãos de uma administração que, mediante contrato garantido por penhor, remetê-lo-ia aos pobres que tivessem necessidade de empréstimo. A administração não seria mais do que um intermediário entre esses dois grupos. Na realidade, seria o pobre capitalizado ou momentaneamente favorecido pela fortuna, quem emprestaria com juros a sua poupança ao pobre pródigo ou em situação precária. Nada de mais simples, de mais prático e de mais moral do que tal sistema: as poupanças dos pobres, administradas dessa forma, não poriam em risco nem o Estado nem os pobres mesmos, pois nada há mais seguro no mundo do que um empréstimo garantido por penhor. Além do mais, esse seria um verdadeiro banco dos pobres, cujo capital seria fornecido pelos próprios pobres".
Do exposto vê-se que Tocqueville soube muito bem aproveitar a experiência de seu pai, o conde Hervé, para propor, de uma forma mais sistemática, a instituição do Banco dos Pobres, (hoje denominado de Banco do Povo). É interessante destacar que alguns políticos de esquerda propõem, nos dias que correm, a mencionada instituição, sem se lembrarem que os primeiros a pensar nessa iniciativa não foram os socialistas, mas os liberais como Tocqueville. Segundo lembra, com propriedade, Jean-François Revel (1924-2006), na sua obra intitulada: La grande parade: Essai sur la survue de l'utopie socialiste [Paris: Plon, 2000], "a defesa de estatutos protegidos e, digamo-lo claramente, o reforço dos privilégios, converteram-se nas principais causas do que a esquerda ousa ainda chamar de movimentos sociais, que na verdade não são mais do que antissociais" (p. 54). Revel não duvida em afirmar que foram os liberais os que na França enfrentaram e equacionaram a questão social.
A respeito, frisa: "Dezenas de anos antes da aparição dos primeiros partidos comunistas, foram os liberais do século dezenove os que colocaram, antes que qualquer um, o que se chamava então de a questão social e responderam a ela, elaborando muitas leis fundadoras do direito social moderno. Foi o liberal François Guizot, ministro do rei Luís-Filipe que, em 1841, fez votar a primeira lei destinada a limitar o trabalho das crianças nas fábricas. Foi Frédéric Bastiat, esse economista genial que hoje seria alcunhado de ultraliberal desenfreado que, em 1849, sendo deputado na Assembléia legislativa, interveio precursoramente na nossa história para formular e exigir que fosse reconhecido o princípio do direito de greve. Foi o liberal Émile Ollivier que, em 1864, convenceu o imperador Napoleão III de abolir o delito de coalizão (ou seja, a proibição que impedia os operários de se agruparem em defesa dos seus interesses), abrindo assim o caminho para o futuro sindicalismo. Foi o liberal Pierre Waldeck-Rousseau que, em 1884, no início da Terceira República, fez votar a lei que reconhecia aos sindicatos a personalidade civil. Permita-se-me sublinhar a seguinte lembrança: os socialistas da época, de acordo com a sua lógica revolucionária (bem anterior à aparição do menor partido comunista) manifestaram uma violenta hostilidade contra a lei Waldeck-Rousseau" [p. 48].
Tocqueville, bem como seu pai e seu irmão, sentaram, portanto, as bases do que hoje denominamos de liberalismo social. E deitaram esses alicerces não baseados apenas em pesquisa teórica, mas bem no contexto de um modo de encarar a realidade típico dos liberais doutrinários e dos seus seguidores, de acordo a este princípio: o que é que de concreto pode-se fazer para reformar as estruturas sociais, colocando-as de acordo aos ideais da liberdade, da justiça e da democracia.