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TEMPOS RUDES



Este verão pachorrento, se não nos derrete de calor, pode nos afogar nas chuvas torrenciais que caem de supetão. Leio nos jornais a confusa previsão da política brasileira para os meses que vêm, com uma campanha que começa-não começa legalmente mas que, de fato, já começou há muito tempo, desde que o larápio e o seu ex-ministro de safadezas mensaleiras foram colocados na rua, por obra e graça de um original raciocínio procedimental da mais alta Corte da República, que os tirou das grades mas sem que os seus crimes fossem extintos à luz da Justiça (notável prestidigitação jurídica que veio enriquecer a Enciclopédia das Barbaridades Legais que poderia se somar à lista de originalidades bacharelescas com que Raimundo Faoro ilustrou a saga dos poderosos de plantão no seu clássico Os Donos do Poder).

Para piorar as coisas, como pano de fundo dessa trama diabólica, apareceu a ameaça constante do Covid (que veio para ficar) e do seu filhote matreiro, a Variante Ômicron, que não mata de entrada mas que contamina de forma multiplicada por mil em face das variantes anteriores.

Completando as figuras apocalípticas presentes nos parágrafos anteriores, li, em Vespeiro de Fernão Lara Mesquita [“Crônica de uma sociedade doente” 17/01/2022], um quadro da sociedade brasileira refém do Patrimonialismo: “A doença do Brasil é a independência do pais (do banditismo) oficial do pais real. O resto é consequência. O divórcio é hoje completo e absoluto. No Brasil Real nem a polícia entra mais, por ordem expressa do monocrata Fachin. Que dirá candidato, emprego digno ou ‘política pública’. A estatização do financiamento das campanhas fechou definitivamente a porta a qualquer sangue novo. Só o que troca gens no ambiente doentio do imbreading da política nacional é o que tem passaporte partidário de podridão. A única ‘salvação’, pra quem tem estômago, é virar ‘concurseiro’ e saltar para a nau dos exploradores… Mas como esse probleminha é bobagem, nada a corrigir ou mesmo comentar a respeito: vamos de identidade de gênero e passaporte de vacina que é isso que garante o ‘estado democrático de direito’. Atravancado como é o Sistema pela geleia grudenta desse corporativismo mole que jamais se posta de frente para nada, tudo ‘acochambra’ lateralmente nas adiposidades flácidas das ‘narrativas’ e das ‘falhas processuais’ que a infinitude do ‘transcurso em julgado’ garantem, o que nos restará em outubro, na remotíssima hipótese de termos muita sorte, é eleger o candidato que faça o Brasil voltar a ser apenas constitucionalmente desonesto, antidemocrático e ingovernável como fazem dele as ‘instituições’ selecionadas pelos monocratas para continuar ‘funcionando’, mas ainda mantenha viva uma chance de safar-nos dessa gosma em 2026 e além. Em resumo, tudo pode piorar para todo o sempre. Mas melhorar, com certeza, é que não vai”.

Esse Patrimonialismo entranhado em séculos de história, justifica-se juridicamente a si próprio, em decorrência do fato de que, no preguiçoso devir histórico, vai gerando as razões legais e a casta da magistratura que justificam essa imobilidade secular. Faoro, em Os donos do poder, traduziu essa permanência atordoante e esclerótica do Patrimonialismo, nos seguintes termos: “A longa caminhada dos séculos na história de Portugal e do Brasil mostra que a independência sobranceira do Estado sobre a nação não é a exceção de certos períodos, nem o estágio, o degrau para alcançar outro degrau, previamente visualizado. O bonapartismo meteórico, o pré-capitalismo que supõe certo tipo de capitalismo, não negam que, no cerne, a chama consome as árvores que se aproximam do seu ardor. (...). O estamento burocrático, fundado no sistema patrimonial do capitalismo politicamente orientado, adquiriu o conteúdo aristocrático, da nobreza da toga e do título. A pressão da ideologia liberal e democrática não quebrou, nem diluiu, nem desfez o patronato político sobre a nação, impenetrável ao poder majoritário mesmo na transação aristocrático-plebeia do elitismo moderno. (...). O poder – a soberania nominalmente popular – tem donos, que não emanam da nação, da sociedade, da plebe ignara e pobre. (...). O Estado, pela cooptação sempre que possível, pela violência se necessário, resiste a todos os assaltos, reduzido, nos seus conflitos, à conquista dos membros graduados do seu estado-maior. E o povo, palavra e não realidade dos contestatários, que quer ele? (...). A lei, retórica e elegante, não o interessa. A eleição, mesmo formalmente livre, reserva-lhe a escolha entre opções que ele não formulou” [Raimundo Faoro, Os donos do poder - Formação do patronato político brasileiro, 5ª ed., Porto Alegre: Globo, 1979, vol. II, pp. 747-748].

O que fazer? Deitar estoicamente e – como diria Raul Seixas – “esperar a morte chegar?”. Prefiro, pessoalmente, a alternativa libertária de Tocqueville: já que não conseguimos manejar as variáveis macro desta complicada quadra histórica, passemos a ver, no plano do realizável, o que podemos fazer em prol da defesa da nossa liberdade individual, nos solidarizando, também, com os nossos semelhantes que se dispõem a encarar essa luta diária e tentando preservar os sentimentos de decência que ainda estão presentes em muitos brasileiros. O Estado Patrimonial, não é, afinal, uma realidade que tenha se estruturado para todo o sempre. Valha, aqui, o arrazoado escolástico: “ab esse ad posse, valet illatio” (“do real ao possível, pode-se transitar validamente”). Trocado em miúdos: “se há países (como França, Itália, Espanha e Portugal) que saíram do Patrimonialismo, também, nós, brasileiros, poderemos sair dele”.

Vale a pena, nesse empenho de sobrevivência libertária, analisar o que propõem os pré-candidatos, aqueles que declararam, de início, que querem lutar em prol da liberdade e da dignidade dos seus concidadãos. Já manifestei o meu apoio aos pontos gerais traçados por Sérgio Moro, no discurso quando da sua filiação ao Podemos, em novembro passado.

Leio, de outro lado, os “10 mandamentos do país que somos para o Brasil que queremos” do pré-candidato do Partido Novo, Luiz Felipe d’Avila no seu livro de 2017, reeditado recentemente, cujo título repete o mantra que acabo de citar. Continuarei a me debruçar sobre as propostas que rimem com a busca da liberdade e da dignidade para todos os brasileiros. Só nós poderemos nos salvar da enrascada patrimonialista, formulando políticas públicas acordes com as nossas esperanças democráticas, a fim de que se consolide um Estado a serviço dos brasileiros e não um Estado mais forte do que a sociedade, como o que tradicionalmente enfrentamos.

Os dois pré-candidatos que aparecem nos cálculos dos institutos de pesquisa com maiores percentagens de votantes já colocaram, nas suas falas, algumas das suas propostas. Lula simplesmente quer o “revogaço” de tudo quanto se conseguiu nos últimos trinta anos, em termos de um Estado que preste contas aos seus cidadãos, que controle o gasto público, que deixe funcionar as instâncias moralizadoras sob a batuta do Legislativo e de um Judiciário que não se torne servo do patrimonialismo selvagem.

Bolsonaro, que apresentou uma proposta desvinculada das antigas negociatas, iniciou um governo de inspiração liberal-conservadora, que daria continuidade à moralização da política, apoiando a Lava-Jato e respeitando o teto de gastos. Mas, infelizmente, pelo fato de não ter fixado de forma clara, na sua rota de navegação, os objetivos nacionais que não poderiam ser abandonados, terminou perdendo o rumo no meio à saraivada de críticas infames de uma oposição radical e de uma imprensa que abandonou a sua missão de informar e não inflamar. A raison d’ État do bolsonarismo atual parece ser a de salve-se o chefe como puder, mesmo à custa do abandono da sua pauta de reformas, de controle sobre o gasto público, de manutenção da Lava-Jato, de intolerância para com a corrupção, em aras de uma sobrevivência garantida pelos acordos espúrios com o Centrão. Lamentável finale para um governo que acendeu esperanças como alternativa diferente do ensimesmamento petista.

Participei como Ministro dessa quadra de esperança da nossa história recente. Saí do governo quando vi que na Pasta a mim encomendada não tinha condições de dar continuidade ao programa traçado de limpar a educação da manipulação da esquerda sindical, para garantir às nossas crianças e jovens ensino básico e fundamental de qualidade, que nos colocasse em lugares de destaque nas provas internacionais e abrisse caminhos de esperança para as novas gerações. A ênfase no governo foi conferida à chamada “Guerra Cultural”, o combate ideológico à esquerda gramsciana, que, certamente, deveria ser feito, mas num ambiente pluralista de respeito à liberdade de pensamento, - o que, de fato, faltava à direita olavista que era a preponderante no governo – e sem perder o rumo das reformas necessárias e urgentes.

Destaco, no entanto, que vale a pena continuar lutando para renovar a educação em todos os seus níveis. Somente assim poderemos ter cidadãos conscientes dos seus deveres e capazes de se inserir no sistema produtivo, para fazer progredir este grande País. Na seara da Terceira Via, considero que as propostas de Sérgio Moro são as que mais claramente têm indicado um possível caminho para sairmos do emaranhado de problemas com que o Brasil se defronta.

Já explicitei em duas postagens o que penso acerca dos pontos de vista do pré-candidato: “Eleições de 2022: as propostas de Sérgio Moro” (artigo publicado em 16/11/2021) [https://www.ricardovelez.com.br/blog/eleicoes-de-2022-as-propostas-de-sergio-moro] e “Sérgio Moro: contra o sistema de corrupção” [https://www.ricardovelez.com.br/blog/sergio-moro-contra-o-sistema-da-corrupcao] (artigo publicado em 28/12/2021).

Continuarei a analisar as propostas de Moro para outros terrenos das nossas políticas públicas, como o econômico, o da reforma da justiça, o da reforma política, o da segurança pública e combate ao crime organizado, o estratégico, o científico e tecnológico, etc., na medida em que forem sendo apresentados os planos do pré-candidato. E analisarei, com carinho, outras propostas de candidatos que enveredem pelo caminho civilizado de discutir com a sociedade os seus pontos programáticos.