A grande contribuição de São Tomás de Aquino à meditação filosófica consistiu em ter sistematizado a ideia de Pessoa, que foi fundamental na construção do grande edifício do Humanismo Cristão. Tomás de Aquino nasceu na Itália, em 1225. Pertencia à nobreza; seu pai, descendia de uma estirpe longobarda, estabelecida na Itália desde o século VII; sua mãe pertencia a uma estirpe normanda, que se fixou na Itália a partir do século XI. Completados os seus estudos de artes liberais (gramática, dialética, retórica, geometria, aritmética, música e astronomia) em Nápoles, entrou na ordem dos Dominicanos, contra a vontade da família, que só mais tarde deu seu consentimento. Em seguida, Tomás deixou a Itália e se estabeleceu em Colônia, onde completou os estudos filosóficos e iniciou os teológicos. Discípulo predileto de Santo Alberto Magno (1206-1280), ao término dos estudos teológicos Tomás de Aquino foi por ele indicado para lecionar na Universidade de Paris; conseguiu a cátedra por interferência direta do Papa Alexandre IV, já que os dirigentes da Universidade eram contrários à concessão de cátedras a religiosos.
Foi durante sua estada em Paris que Tomás de Aquino escreveu os Comentários aos livros de Boécio, De hebdomadibus, De Trinitate, Quaestiones de veritate, Quaestiones quodlibetales, De principiis naturae e De ente et essentia e iniciou a redação da Summa contra Gentiles. Sua autoridade intelectual já era conhecida, tanto que durante o Capítulo Geral da Ordem, em 1259, Tomás de Aquino foi incumbido de elaborar uma proposta normativa de estudos para os estudantes dominicanos.
Em seguida, enviado para a Itália, passou a ocupar vários cargos, como o de pregador geral, Leitor na corte pontifícia e Diretor do Studium no convento de Santa Sabina, em Roma, onde ficou à disposição da Corte Pontifícia, já que tinha recusado o arcebispado de Nápoles. Durante essa sua estadia na Itália não teve produção filosófica e teológica de destaque; ele, porém, aproveitou o tempo para se dedicar à leitura e à meditação, que iriam permitir sua admirável produção posterior. Contudo, embora não tivesse terminado a Summa contra Gentiles, além de escrever vários opúsculos, como o De regimine principum (dedicado ao Rei de Chipre), em 1286 iniciou a sua principal obra, Summa Teologiae.
No fim de 1268 foi novamente enviado a Paris, com a incumbência de lecionar no convento de Santiago, para alunos de externato, na tentativa de acalmar a agitação que novamente invadiu a cidade, reacendendo as brigas entre os docentes seculares e os religiosos, estes Franciscanos e Dominicanos. É nessa oportunidade que se manifestaram, com maior clareza, as diferentes tendências: os Franciscanos, mais tradicionais e mais místicos, seguindo a doutrina de Santo Agostinho (354-430); os Dominicanos, mais inovadores e mais especulativos, seguindo a doutrina aristotélica. Nessa oportunidade, o aristotelismo dos dominicanos foi confundido com o aristotelismo averroista, difundido por Siger de Brabante (1240-1280). Assim, ocorreu que Tomás de Aquino teve que se defender tanto dos Franciscanos como dos averroistas, e escreveu o tratado intitulado: De unitate intellectus contra averroistas. A atividade intelectual de Tomás de Aquino, neste período, foi extraordinária. Além de lecionar teologia, teve que se debruçar sobre as obras de Aristóteles, e, sobretudo, além de escritos menores, terminou a Summa contra Gentiles e a segunda parte da Summa Theologiae.
Em 1272, depois da Páscoa, encontrando-se em greve a Universidade de Paris, Tomás de Aquino foi enviado novamente para a Itália, onde o Capítulo Provincial da Comunidade dos Dominicanos o encarregou de organizar o Studium generale, em Nápoles. Nessa cidade dedicou-se também ao ensino na Universidade, atendendo ao desejo de Carlos I de Anjou (1226-1285), rei de Sicília e Nápoles, que queria reerguer essa instituição. Em Nápoles, Tomás de Aquino pôde terminar a Summa Theologiae e iniciar outros trabalhos, que ficaram incompletos, como De substantiis separatis e o Compendium Theologiae. Em 1274, a caminho de Lião, aonde ia para participar do Concílio, por desejo do Papa Gregório X (1210-1276), faleceu na abadia cisterciense de Fossanova. Tendo gozado sempre de boa saúde, não se encontrou explicação para sua morte prematura, aos 49 anos. A Universidade de Paris reclamou seu corpo, mas o Papa Urbano V (1310-1370) preferiu prestigiar a Universidade de Tolosa, para onde foi transladado em 1369. Os doutores de Paris o apelidaram de Doctor Communis, mas o título que vingou foi o que lhe atribuíram os séculos posteriores, o de Doctor Angelicus.
Em dez itens podemos sintetizar a doutrina filosófico-teológica de Tomás de Aquino, bem como a influência por ele ensejada na escolástica ibérica dos séculos XVI e XVII:
1 – O ponto de partida da doutrina tomista é a distinção entre essência e existência, que estava presente em Aristóteles, como distinção puramente conceitual, mas que Tomás de Aquino entende como ontológica. Assim, o pensador se distancia do pensamento dos que, na Antigüidade Clássica, entendiam o mundo como manifestação intramundana da divindade, sacralizando as forças da Natureza.
2 – Distinção real entre essência e existência, como fundamento metafísico da contingência (limitação e finitude) das criaturas humanas. Torna-se possível, a partir daí, a idéia cristã de criação. Tudo o que está contido na definição de uma coisa não pertence a essa coisa essencialmente, mas acidentalmente, por força de outra realidade. A definição da essência das criaturas não implica sua existência e, portanto, elas não existem por si mesmas, e sim devido a outra realidade (“ab alio”). O Cosmo só se explicaria como criado por Deus, a partir do nada.
3 – Somente em Deus há identidade entre essência e existência. Deus existe por si mesmo, o que teria sido revelado, por Ele mesmo, a Moisés, na passagem bíblica em que se define como: “Eu sou Aquele que é”. Deus é criador de todas as coisas e fundamento das suas existências finitas. Deus é o puro ato de existir.
4 – A razão humana pode provar a existência de Deus através de cinco vias, de cunho realista (alicerçadas na experiência). Em geral, parte-se de algum aspecto da realidade conhecida pelos sentidos, que é considerado como efeito do qual se deve procurar a causa.
• Primeira via: no Universo existe movimento; ora, segundo Aristóteles, “tudo o que se movimenta é movimentado por outro”, logo deve haver uma causa primeira de todo o movimento dos seres finitos que integram o Cosmo, e essa causa é o Motor Imóvel, Deus.
• Segunda via: todas as coisas ou são causas, ou são efeitos, não podendo ser admitida uma coisa que seja causa de si mesma (pois seria uma contradição: causa e efeito ao mesmo tempo). De outro lado, toda causa deve ter sido causada por outra, ela por uma terceira e assim indefinidamente. É necessário, pois, admitir uma causa não causada, Deus, ou aceitar, de forma contraditória, uma série infinita de causas, sem explicar a causalidade que lhes deu origem.
• Terceira via: Todos os seres do Cosmo estão em permanente transformação: alguns são gerados, outros morrem ou se corrompem, deixando de existir. Ora, poder ou não existir não é possuir uma existência necessária e, sim, contingente, já que aquilo que é necessário não precisa de uma causa exterior a ele para existir. Portanto, se alguma coisa existe é porque participa do necessário. Este, por seu turno, pressupõe uma cadeia de causas, que culmina e encontra sentido no necessário absoluto, Deus.
• Quarta via: em todas as perfeições apreciáveis no Cosmo há graus de perfeição (na sua bondade, na verdade, na nobreza, etc.). Ora, como ensinava Platão, as perfeições finitas pressupõem, em última instância, uma perfeição infinita. Deve existir, portanto, uma verdade e um bem em si, necessários e eternos: Deus.
• Quinta via: de acordo com o finalismo aristotélico assumido por Tomás de Aquino, todas as coisas possuem uma finalidade. Ora, a regularidade com que todas as coisas do Cosmo atingem o seu fim, está a indicar que elas não são movidas pelo acaso, existindo, no começo de tudo, um Ordenador Universal, que é uma Inteligência primeira, ordenadora da finalidade das coisas, Deus.
5 – O homem, elo do Cosmo, entre as esferas espiritual e material. Na hierarquia descendente das criaturas, o homem aparece como pertencendo a dois mundos: graças à sua alma, pertence aos seres imateriais, não chegado a ser, contudo, uma inteligência pura, pelo fato de se encontrar essencialmente vinculado ao corpo. Nexo substancial do Cosmo, o homem é menos um elemento do mundo, do que um novo mundo, no qual se sintetiza a totalidade. A alma humana é, portanto, um horizonte onde se encontram o mundo dos corpos e o dos espíritos.
6 – Graças a essa dupla natureza, o homem pode conhecer (pois é alma espiritual), sem, no entanto, ter contato direto com o inteligível (pois é também corpo). O nosso conhecimento sempre parte dos sentidos, que nos põem em contato com objetos concretos e singulares. Mas, através da abstração, o intelecto humano é capaz de forjar conceitos universais. Tomás de Aquino, como se pode ver, adota as linhas mestras da teoria do conhecimento de Aristóteles, que se fundamenta na doutrina metafísica do ato e da potência. O intelecto pode gerar conceitos abstratos e universais, porque não é um simples espelho passivo, que recebe e registra os dados dos sentidos. Pelo contrário, o processo intelectual é movido pelo “intelecto agente”, que é responsável pela abstração. As noções de finalidade e de hierarquia, herdadas de Aristóteles, aparecem novamente na teoria do conhecimento de Tomás de Aquino. Embora, do ângulo psicológico, o conhecimento comece no plano corpóreo (através dos sentidos), na verdade todo o processo é comandado pelo fim, presente no plano incorpóreo, espiritual, que é a dimensão ontológica onde se situa o intelecto agente, responsável último pela atualização da inteligibilidade e da universalidade potenciais dos dados fornecidos pela via sensorial.
7 - A noção de pessoa, na Suma teológica, constitui o conceito fundamental da concepção antropológica de Tomás de Aquino. O pensador define a pessoa como “rationalis naturae individua substantia” (substância individual de natureza racional), partindo da definição cunhada por Anício Mánlio Boécio (480-524) sobre fontes gregas e helenísticas. Tal noção foi reformulada por Tomás de Aquino tomando por base os grandes temas do Cristianismo, recorrendo aos autores que os discutiram, notadamente Santo Agostinho. Uma outra fonte de inspiração é constituída pelas idéias de Aristóteles (384-324 a.C), a partir da tradução dos escritos do filósofo grego por Guilherme de Moerbecke (1215-1286).
A obra fundamental de Tomás de Aquino, Suma Teológica versa sobre quantidade imensa de conceitos e temas, estudados de modo autônomo, sem outro fio condutor além de que dizem respeito à doutrina cristã. Do ângulo da antropologia filosófica é importante o texto que aparece com o título de Tratado do homem (Questão 93, artigos 1 a 9). O próprio autor enuncia o problema do homem deste modo: “devemos considerar o fim ou termo da produção do homem, enquanto é tido como feito à imagem e semelhança de Deus”. O encadeamento adotado é o seguinte: a - se no homem está a imagem de Deus; b - se a imagem de Deus está nas criaturas irracionais; c - se a imagem de Deus está mais no anjo que no homem; d - se a imagem de Deus está em todo homem; e - se no homem está a imagem de Deus relativamente à essência ou a todas as Pessoas divinas, ou a uma só delas; f - se a imagem de Deus está no homem, quanto ás potências, ou quanto aos hábitos, ou aos atos; g - se relativamente a todos os objetos; h - a diferença entre imagem e semelhança.
Como se vê, trata-se muito mais de Deus que do próprio homem. Contudo, o pensador indica que, ao participar da natureza intelectual, atributo da divindade, reveste-se o homem de dignidade. Ele é centro da criação, pelo fato de ter sido feito à imagem e semelhança de Deus. Embora toda criatura seja uma participação de Deus, no entanto somente o homem e os anjos são possuidores de natureza intelectual, que é causada pelo próprio Deus. Esta dignidade abarca, sem distinção, a todos os seres humanos. Ainda mais: graças à sua natureza intelectual, o homem pode humanizar a natureza, mediante o conhecimento dela e colocando-a ao seu serviço. O homem, mediante a sua inteligência, pode compreender o mundo e construir uma ampla gama de relações que integram o que posteriormente foi chamado de cultura. Finalmente, a pessoa, para Tomás de Aquino, é imagem da Trindade e reveste-se de um caráter absoluto, na medida em que é capaz de chegar, pela inteligência, ao conhecimento de Deus e, pela graça, à clara visão d’Ele. Em que pese o contexto teológico em que se encontram as considerações do autor, é fora de dúvida que, ao enfatizar a dignidade da pessoa humana como uma reivindicação do Cristianismo, Tomás de Aquino permitiu que o Renascimento se contrapusesse frontalmente ao espírito presente nas Mitologias Grega e Romana, de dependência total do homem da “roda cega do destino”. A par disto, ao situar o tema como relevante no contexto da meditação filosófica, o nosso autor contribuiu para mantê-lo na ordem do dia na Filosofia Moderna. O imperativo categórico kantiano – que reivindica para o homem não ser tratado com o meio, mas como fim – seria impensável sem tais antecedentes.
8 – O fim do homem é o aperfeiçoamento da sua natureza, o que somente se realiza em Deus. A finalidade última das ações humanas transcende ao próprio homem, cuja vontade leva-o a se dirigir ao Ser Supremo. Como afirmava Agostinho, “fecisti nos ad Te et inquietum est cor nostrum donec requiescat in Te” (Fizeste-nos para Ti e o nosso coração estará inquieto enquanto não repousar em Ti). Para que possa ser considerada boa, a vontade deve estar conformada à norma moral que se encontra presente, nos homens, como reflexo da Lei Eterna da Vontade Divina. Esta, contudo, não pode ser conhecida diretamente pelos homens, mas apenas de modo indireto, através da lei natural, entendida como lei da consciência humana.
9 - No terreno político, Tomás de Aquino estabelece uma distinção entre três planos da lei, que devem orientar a comunidade na busca do Bem Comum.
• Primeiro plano, constituído pela lei natural (que orienta o homem na conservação da vida, na geração e educação dos filhos, no desejo de buscar a verdade).
• Segundo plano, identificado com as leis humanas ou positivas, que são estabelecidas pelo homem a partir da lei natural e que se dirigem à busca do bem comum.
• Terceiro plano, constituído pela lei divina, que guia o homem na busca do seu fim sobrenatural, porquanto possuidor de uma alma imortal.
10 - No que tange às relações entre o poder espiritual e o poder temporal, Tomás de Aquino busca um equilíbrio entre essas duas esferas, na busca diuturna da Justiça e do Bem Comum. O Estado (poder temporal) é entendido pelo nosso pensador como uma instituição natural, cuja finalidade consiste na busca do bem comum, garantindo que ele efetivamente seja procurado por todos, a começar pelos que governam. De outro lado, a Igreja constituiria uma instância dotada de fins espirituais. O Estado não precisa estar subordinado à Igreja, como se ela encarnasse um Superestado. A subordinação do Estado à Igreja é de cunho espiritual; consiste na ordenação de uma instituição natural, como é o Estado, no contexto da finalidade sobrenatural que, em última instância, norteia a existência dos homens, finalidade sobrenatural da qual a Igreja é mensageira e salvaguarda. Trata-se de uma harmonização semelhante à que se dá entre filosofia e teologia, entre razão e fé.
O Estado deve buscar, sempre, o bem comum. Quando os que governam não o procuram, o Estado perde a sua razão de ser. Mas, paradoxalmente, em face da forma mais agressiva de perda de legitimidade, que acontece ao ensejo da tirania, Tomás de Aquino considera que, embora tenha perdido a sua razão de ser, o tirano, contudo, deve ser tolerado para evitar males maiores que decorreriam da dissolução do corpo político. Deus, que é infinitamente justo, encarregar-se-á de punir os soberanos que viraram tiranos.
A filosofia política de S. Tomás de Aquino legou à posteridade, no entanto, princípios importantes que seriam incorporados à Doutrina Social da Igreja. Os dois princípios fundamentais legados pelos ensinamentos do Aquinate foram o de Solidariedade e o de Subsidiariedade. O primeiro se inspira na norma ética, sagrada por escritores cristãos medievais como S. Isidoro de Sevilha, de que a cada um deve ser distribuído o que lhe corresponde (suum cuique tribuere). Essa seria a expressão primeira da Justiça e garantiria a prática do bem comum por parte de quem governa. O princípio de Subsidiariedade sagrou a ideia de que o poder maior não pode chamar a si aquilo que poderes inferiores (os corpos intermediários, como a família, por exemplo) poderiam fazer sem necessidade do auxílio direto do Estado.