Ao longo do tempo o termo república assumiu vários significados designando de maneira genérica uma forma de relacionamento entre governantes e governados. No Brasil, o entendimento mais corrente está muito próximo daquele utilizado por Maquiavel, que inicia O Príncipe afirmando que “todos os Estados ... são, ou repúblicas ou principados”, ou seja, uma forma de governo como alternativa à monarquia. De fato, no dia 15 de novembro é lembrada a data em que a forma republicana de governo foi adotada no Brasil em substituição à monarquia. Com o passar dos anos a data passou a ter um caráter comemorativo, no entanto, este breve ensaio, ao observar os acontecimentos na esfera política, entende que o sentido mais precioso do termo República a ser lembrado não deveria ser o de forma de governo, que substituiu a monarquia, mas sim no entendimento baseado na etimologia do termo, isto é, o do entendimento das instituições do Estado como coisa pública, como res publica. Com efeito, olhando-se o Brasil de hoje, conclui-se que o advento da república não significou uma forma mais avançada ou mais eficaz de organizar as instituições do Estado. Na verdade, quando se observa as nações consideradas mais avançadas do mundo conclui-se que, em termos de bom governo, não há diferença entre regimes republicanos e monárquicos, especialmente no que tange à adoção da democracia representativa, como base da ordem política. Nesse sentido, a presente análise sugere que seria mais apropriado aproveitar a data de 15 de novembro para, simplesmente, examinar a trajetória das instituições políticas do País e, de forma sensata e ponderada, procurar identificar aquilo que poderia ou que deveria ser feito para aperfeiçoar as instituições que governam o País para que sejam, efetivamente, republicanas.
REPÚBLICA, DEMOCRACIA E PROSPERIDADE
Em primeiro lugar, vale insistir no fato de que a adoção da forma republicana de governo não corresponde, na realidade, a uma opção a respeito do que pode haver de mais essencial na relação entre governantes e governados: liberdade, respeito às leis, e justiça. Com efeito, a república deixou de ser uma alternativa à tirania de príncipes autocráticos. O sentido essencial da república como sistema político que leva em conta a vontade dos governados pode, perfeitamente, estar presente em diferentes variações de regimes democráticos. Parafraseando Maquiavel, pode-se dizer que “as grandes e modernas democracias de hoje ou são repúblicas ou monarquias constitucionais ...”. Em outras palavras, não se pode dizer que o apreço pela democracia e o apego ao processo de legitimação do poder político pela vontade dos governados, esteja menos presente na Dinamarca, no Reino Unido ou nos Países Baixos, que permanecem monarquias, do que nos Estados Unidos ou na França, que adotaram a forma republicana de governo. As instituições resultam de processos históricos vividos de maneira muito individual pelas nações, refletindo a combinação de uma variada gama de circunstâncias e aspectos peculiares aos países que, dessa forma, ao longo do tempo e à sua própria maneira, construíram individualmente as instituições e as práticas políticas que melhor lhes convinham.
Mesmo do ponto de vista econômico, onde os dados quantitativos são abundantes, chama a atenção o fato de que não é possível estabelecer correlação entre formas democráticas de governo capazes de tornar a nação mais próspera. Ao longo da história, nações prosperaram tanto dentro de um ambiente monárquico quanto republicano. Na realidade, nas últimas décadas, até sob regimes autoritários várias sociedades prosperaram, como foi o caso da China e de outros países da Ásia que, em certa medida, parecem se constituir numa espécie de versão contemporânea do conceito de “absolutismo esclarecido” que tanto entusiasmou muitos filósofos nos primórdios do Estado moderno. São governos que, de maneira autoritária, estabelecem padrões e normas de comportamento para os atores econômicos, tornando-os competitivos e gerando riqueza e abundância para suas sociedades. Pode-se argumentar que, no longo prazo, regimes autoritários acabam por tornar-se incompatíveis com o dinamismo exigido pelos negócios e pela inovação tecnológica que sustentam o progresso econômico. Por ora, no entanto, não há dados para confirmar essa hipótese.
Por outro lado, nas grandes democracias ocidentais, a interferência na economia se faz menos por meio de medidas diretas de governantes – que estão sujeitos a leis – e muito mais por meio das ações do Estado como ator econômico capaz de influenciar e de orientar o ambiente econômico. De qualquer modo, nesse domínio, independente do regime, a participação do Estado na economia varia muito, havendo países como os Estados Unidos onde o Estado representa aproximadamente 1/3 do PIB e nações como a maioria dos países mais prósperos na Europa onde o orçamento do Estado gira em torno da metade do PIB, sem que se possa dizer que tenham deixado de proteger e de valorizar a livre iniciativa e a liberdade econômica. O fato é que nenhum analista e nenhum grande partido político na Europa ou nos Estados Unidos associa eventuais dificuldades econômicas enfrentadas por qualquer uma dessas economias às respectivas formas de governo, mas tão somente às variações cíclicas da economia ou a ocasionais equívocos na condução da política econômica.
O ADVENTO DA REPÚBLICA NO BRASIL
Possivelmente esses fatos ajudam a explicar porque o advento da forma republicana de governo no Brasil não ocorreu dentro de um ambiente político de intensos debates e de disputas dramáticas pelo poder entre monarquistas e republicanos. A abolição da escravidão, a questão militar, a ascensão de uma classe média e outros eventos considerados pelos historiadores como importantes para o advento da república, eram questões que poderiam ter sido manejadas e acomodadas dentro do regime monárquico vigente, uma vez que, na história recente, todas as monarquias constitucionais realizaram seguidas reformas nas suas instituições políticas, adequando-as às seguidas transformações vividas pelas respectivas sociedades, no decurso do último século e meio.
Em 1889 a monarquia brasileira já era um governo do tipo representativo perfeitamente compatível com os padrões vigentes no mundo, em matéria de instituições que procuravam acomodar as principais forças políticas da nação. Além disso, D. Pedro II estava longe de ser um governante autoritário e centralizador. Alguns historiadores mencionam as disputas entre a Coroa e a Igreja Católica como um desses eventos importantes que teriam desencadeado a queda da monarquia por ter contribuído para solapar a base política do Imperador. Entre as novidades advindas com a proclamação da república uma delas foi, de fato, a separação entre o Estado e a Igreja, mas esse processo ocorreu também em muitas das monarquias que se modernizaram. Na sua exposição de motivos, o Manifesto Republicano de 1870 aponta razões genéricas como privilégios e insatisfações ou mesmo as questões federativas, a abolição da escravidão e as dificuldades econômicas mas, na realidade, essas inquietações constituíam apenas parte de um processo de transformação mais ampla e profunda da sociedade brasileira, diante de um mundo que também se transformava rapidamente. Além disso, tais inquietações não ocorriam apenas no Brasil, mas em toda parte, e as instituições políticas eram pressionadas por mudanças e se acomodavam às novas circunstâncias sem, contudo, associar esse processo a escolhas entre republicanismo e monarquia. Em resumo, o regime monárquico não constituía empecilho real para a satisfação das demandas e das inquietações sociais ou para uma eventual revisão nos padrões de participação política das forças econômicas emergentes da nação.
Talvez o melhor retrato do ambiente em que foi implantada a forma republicana de governo no Brasil tenha sido proporcionado por Raul Pompéia que, em crônica publicada anonimamente, relata a melancólica e solitária partida do Rio de Janeiro de D. Pedro II e da família imperia, logo após o decreto de expulsão promulgado pelo Governo Provisório. No meio da madrugada – diz a crônica – sem manifestações de qualquer tipo, a família imperial partiu para o exílio sem deixar no Brasil nem sentimentos de ódio e nem partidários dispostos a iniciar uma luta política para restaurar a monarquia. Aliomar Baleeiro, logo na introdução de seu ensaio sobre a Constituição republicana de 1891, também faz uma apreciação na mesma direção: “o povo brasileiro cansara-se da monarquia, cuja modéstia espartana não incutia nos espíritos a mística e o esplendor dos tronos europeus. O Imperador vestia trajes civis, pretos, como qualquer sujeito respeitável da época, sem fardas cheias de dourados ... Conta-se que a Princesa Imperial trazia consigo, no decote, fósforos para acender, ela mesma, as velas à boca da noite.”
A RES PUBLICA NO BRASIL DE HOJE
Em nossos dias, de tempos em tempos, a República brasileira tem sido abalada por escândalos de corrupção, além da ineficiência crônica do Estado. Convém refletir sobre o fato de que os escândalos de corrupção, assim como a crônica ineficiência do Estado brasileiro, não são produtos da “forma republicana” de governo, mas da incapacidade de construir e de manter instituições que tornem o Estado brasileiro tão eficaz quanto tem sido em muitos outros países republicanos ou monárquicos. Por exemplo, em países onde a justiça – com certeza a componente mais essencial do Estado, no que diz respeito à proteção dos direitos individuais e coletivos – se mostra operante, uma lei como a da chamada “ficha limpa” revela-se completamente desnecessária. De fato, se a justiça funcionasse razoavelmente no Brasil, os políticos indiciados como passíveis de serem enquadrados nessa lei já teriam sido, há muito tempo, devidamente condenados ou absolvidos, dispensando, assim, uma lei da “ficha limpa”. Infelizmente a realidade é outra. Há políticos que tomam posse de cargos executivos ou legislativos mesmo tendo contra si condenações formais da justiça por terem cometido crimes comuns, mas o princípio da “presunção de inocência até a última instância”, isto é, até o julgamento pelo Colegiado do STF, o torna apto a ocupar qualquer cargo público. Na essência, esse procedimento levanta a inevitável pergunta: se qualquer questão eleitoral pode ser levada ao STF, qual a utilidade de haver uma “justiça eleitoral”? O melhor seria extinguir a justiça eleitoral pois, dessa forma, haveria economia de recursos públicos e, principalmente, haveria uma substancial redução no tempo de tramitação dos processos.
A distância entre a noção de res publica e as instituições do Estado brasileiro, que parece aumentar continuamente, assume a feição de um patrimonialismo cuja capacidade de adaptação e de expansão se revela ilimitada. Em tempos passados, falava-se de uma “política do café com leite”, referindo-se à aliança entre os interesses da elite de dois Estados (o café de São Paulo e o leite de Minas Gerais), hoje, após as eleições presidenciais, posições nos ministérios e agências da administração do Estado são disputadas como se fossem espólios ou butins a serem conquistados. Também na defesa de mandatos – eletivos ou por nomeação – as manifestações a respeito de “direitos” à ocupação de cargos e de postos na administração pública ocorrem de forma aberta e sem qualquer pejo mas, principalmente, sem qualquer referência a propósitos e a razões que explicariam porque tais nomeações serviriam à coletividade. Como nos tempos medievais em que, após a tomada de uma cidadela sitiada os vencedores disputavam entre si os espólios dos vencidos hoje, após vencer eleições, emerge a despudorada disputa por cargos e por indicações a postos. Em outros tempos, D. Quixote, personagem criado por Cervantes, com toda a sua ingênua pureza, prometia ao seu amigo e escudeiro Sancho Pança que lhe daria uma ilha que seria conquistada com o valor de seu braço de cavaleiro valente. No caso do Brasil, não se trata de uma ilha e são dezenas (ou centenas) de Sancho Panças para serem satisfeitos. O Estado brasileiro é um espólio de proporções imensas. Conforme dados da economia mundial, o Brasil era, antes da pandemia, a oitava economia do mundo e o orçamento do Estado brasileiro, de mais de cerca de US$ 700 bilhões, era maior do que o PIB de países como Suíça, Suécia, Dinamarca ou Argentina. Na verdade, o orçamento do Estado brasileiro equivalia à posição de 18ª economia, em relação à economia do mundo. Nesse quadro, a pergunta essencial deveria ser: para onde vai essa enorme soma de recursos? Outras perguntas, no entanto, se afiguram inevitáveis: Além do sistema de arrecadação de taxas e impostos, existe alguma instituição do Estado que efetivamente funcione satisfatoriamente? Existe alguma instituição do Estado que possa ser qualificada como verdadeira res publica, isto é, serve unicamente ao interesse público? Por que as pessoas que possuem meios (mesmo que não sejam consideradas ricas) não procuram a saúde pública, não se utilizam dos transportes públicos, ou não confiam suas crianças à educação pública? Por que todas as organizações, empresas e indivíduos que possuem meios precisam contratar serviços privados de segurança? Enfim, a lista de perguntas é interminável.
Esses fatos, mencionados a título de exemplo, apontam para o risco sempre presente de repetir o que se fez nos fins do século XIX quando, ao invés de aperfeiçoar e de adequar as instituições da monarquia constitucional, acompanhando as inevitáveis mudanças na sociedade brasileira e no mundo, preferiu-se atacar as instituições e proclamar a república. O ambiente que tem cercado as últimas eleições e seus desdobramentos na forma de partilha do espólio conquistado, revelam que a ineficiência do Estado em prover bens públicos essenciais deve continuar, independente de quem tenha sido eleito. Os recursos do orçamento público brasileiro são enormes, mas não são ilimitados. Na realidade, embora enormes, já se revelam insuficientes, tanto que o centro das discussões da “comissão de transição” vem se concentrando nos meios e formas de promover o aumento do déficit público. O fato é que pode haver focos de insatisfação na divisão do butim que podem, perfeitamente, evoluir para defecções e crises. Tudo indica que, se houver uma crise institucional, essa crise emergirá não da discussão sobre princípios – muito embora possa haver menções insistentes à “democracia”. O fulcro da questão estará, com certeza, em possíveis insatisfações na divisão do butim do Estado.
Ernest Hambloch, em 1934, no seu livro intitulado: Sua majestade o Presidente do Brasil [publicado em nova edição, em 2000, pela Editora do Senado Federal] escreveu uma interpretação bastante crítica a respeito dos primeiros anos da república – a República Velha (1889-1930) – na qual lembrava um curioso episódio: quando Rojas Paul, presidente da Venezuela, soube da queda da monarquia brasileira, teria exclamado triste e profeticamente: “Este é o fim da única república que jamais existiu na América.” Obviamente, o presidente Rojas Paul empregava o termo república na sua acepção mais desejável: a do governo entendido como res publica. Ernest Hambloch foi expulso do Brasil como persona non grata, mas seu livro, objeto de várias edições, hoje faz parte das leituras recomendadas sobre história política do Brasil.
Brasília/Novembro/2022