
ESTE ESCRIBA EM PARIS, NO ARCO DO TRIUNFO (2007)
A Editora Martins Fontes acrescentou, em 2009, ao seu valioso Catálogo de Obras Clássicas, O Antigo Regime e a Revolução [tradução de Rosemary C. Abílio, São Paulo: Martins Fontes, 286 pp.], de Alexis de Tocqueville (1805/1859), livro que viu a luz, pela primeira vez, em 1856. Precedentemente, com a publicação de A democracia na América, em 1835 (a primeira parte) e em 1840 (a segunda parte), Tocqueville havia conquistado notável sucesso na recuperação do ideal democrático. A democracia fora associada à anarquia (e à correlata instabilidade política) instaurada pela Revolução Francesa.
O Antigo Regime e a Revolução viera comprovar que o evento revolucionário não se vinculava à instauração do governo representativo, mas às elucubrações do filósofo genebrino Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), durante muito tempo batizadas de “liberalismo radical”. No decorrer do século passado encontrou-se uma denominação adequada (“democratismo”), posto que a proposta rousseauniana não guarda qualquer vínculo com a doutrina liberal. Essa distinção ficaria muito nítida depois da Revolução de 1848 na França, na medida em que já se dispunha de termo de comparação. A Revolução de 1830 introduzira, em caráter pioneiro no país, instituições liberais. Entre outras coisas, o confronto iria evidenciar que o democratismo continuava atuante, preservada a sua capacidade demolidora.
Tocqueville parte do registro de que, em 1789, os franceses se propuseram cortar em dois o seu destino. Imaginavam poder separar, por um abismo, o que haviam sido até então do que queriam ser daí em diante. Pessoalmente, o autor de A Democracia na América acreditava que os seus compatriotas tiveram menos sucesso do que imaginavam. A fim de testar essa hipótese, era mister, frisava Tocqueville, “interrogar em seu túmulo uma França que não existe mais” e tentar reconstituir, com base na documentação preservada, os traços essenciais do Ancien Régime. Tocqueville descreve, em O Antigo Regime e a Revolução, as dificuldades encontradas nessa investigação e resume os principais resultados. “O que é válido dizer – escreve - é que (a Revolução) destruiu inteiramente ou está destruindo (pois perdura) tudo o que na antiga sociedade decorria das instituições aristocráticas e feudais, tudo o que de algum modo se ligava a elas, tudo o que trazia delas, em qualquer grau que fosse, a menor marca. Conservou do antigo mundo apenas o que fora alheio a essas instituições ou podia existir sem elas. O que a Revolução foi, menos que tudo, é um acontecimento fortuito. Pegou o mundo de surpresa, é bem verdade, e, entretanto, era apenas o complemento do mais longo trabalho, o encerramento súbito e violento de uma obra na qual dez gerações de homens haviam trabalhado. Se não tivesse acontecido, o velho edifício social não teria deixado de cair em todo lugar, aqui mais cedo, ali mais tarde; apenas teria continuado a cair parte por parte em vez de desmoronar de uma só vez. A Revolução concluiu bruscamente, por um impulso convulsivo e doloroso, sem transição, sem precaução, sem complacência, o que teria se encerrado pouco a pouco, por si mesmo ao longo do tempo. Essa foi a sua obra” [O Antigo Regime e a Revolução, ed. cit., pp. 24-25).
Na pesquisa que empreendeu, Tocqueville deu preferência à consulta direta a registros da atuação administrativa da época. Assim, por exemplo, consultou as atas das assembleias dos “estados” em que eram subdivididos os grupos sociais: nobreza, clero e “terceiro estado”, isto é, habitantes dos burgos - núcleos que, em muitos casos, depois deram origem às cidades -, entre os que sobressaíam os comerciantes. Basicamente, O Antigo Regime e a Revolução viria comprovar que a Revolução se vinculava à arraigada tradição francesa do centralismo cartorial, traço marcante da política no século XVIII. Ao contrário do que se alardeava, a Revolução não se fizera para debilitar o poder político. O registro da tradição acha-se expresso com as seguintes palavras de Tocqueville: "Um estrangeiro, a quem fossem entregues, hoje, todas as correspondências confidenciais que enchem os arquivos do Ministério do Interior e das administrações departamentais, logo ficaria sabendo mais sobre nós do que nós mesmos. Como se verá ao ler este livro, no século XVIII, a administração pública já era muito centralizada, muito poderosa, prodigiosamente ativa. Estava incessantemente auxiliando, impedindo, permitindo. Tinha muito a prometer, muito a dar. Já influía de mil maneiras, não apenas na condução geral dos assuntos públicos, mas também na sorte das famílias e na vida privada de cada homem. Ademais, era sem publicidade, o que os levava a não terem receio de expor a seus olhos até as fraquezas mais secretas" [ed. cit. Prefácio, pág. XLIII].
Tocqueville chamava a atenção para o efeito político que esse centralismo causava na sociedade francesa: o despotismo. O centralismo tirava da sociedade a sua iniciativa e a transformava em eterno menor de idade perante o Estado todo-poderoso. O grande mal causado à França pelo centralismo era antigo, no sentir de Tocqueville. A substituição paulatina do velho direito consuetudinário germânico pelo direito romano situava-se nas origens de todos os males, e era como que a fonte jurídica legitimadora do processo centralizador, que se alastrou, depois, a todos os aspectos da vida social. O despotismo é, na sua essência, centralizador. Vivesse nestes tempos tumultuados no Brasil, Tocqueville consideraria que o centralismo policial do STF, que investiga, prende, julga, arruma “provas”, condena e encarcera os seus desafetos, seria o “ovo da serpente” de mais uma ditadura republicana, tão centralista quanto a já conhecida “ditadura científica” castilhista no Rio Grande do Sul.
O processo de substituição do direito consuetudinário pelo direito romano acha-se minuciosamente documentado na obra de Tocqueville em apreço. Inicialmente ocorrido na Alemanha, generalizou-se pela Europa afora, ao longo dos séculos XIV, XV e XVI, quando do surgimento dos Estados nacionais. O efeito prático da obra dos jurisconsultos a serviço das nascentes monarquias modernas foi a consolidação de Estados absolutos, mais fortes do que a sociedade, sobranceiros a ela e dela sugando tudo, até a liberdade de associação e a livre iniciativa. Essa é a alma despótica do Ancien Régime, que animava as novas práticas administrativas.
Em relação a esse ponto, frisa Tocqueville: "O que já caracteriza a administração na França é o ódio violento que lhe inspiram indistintamente todos aqueles, nobres ou burgueses, que queiram ocupar-se de assuntos públicos sem ela. O menor corpo independente que pareça pretender formar-se sem seu concurso amedronta-a; a menor associação livre, qualquer que seja o objetivo, importuna-a; deixa subsistirem apenas as que compôs arbitrariamente e que preside. Mesmo as grandes companhias industriais pouco lhe agradam; resumindo, não pretende que os cidadãos se intrometam, de nenhum modo que seja, nos exames de seus próprios assuntos; prefere a esterilidade à concorrência. Mas, como é preciso sempre deixar aos franceses a doçura de um pouco de licença, a fim de consolá-los de sua servidão, o governo permite que se discuta muito livremente toda espécie de teorias gerais e abstratas em matéria de religião, filosofia, moral e mesmo política. Admite de bom grado que ataquem os princípios fundamentais em que se assenta então a sociedade e que discutam até mesmo Deus, contanto que não falem mal nem sequer de seus menores agentes. Acha que isto não lhes diz respeito" [O Antigo Regime e a Revolução, trad. citada, págs. 72-73]. Este texto de Tocqueville traduz, aliás, com perfeição, o ambiente de hostilidade hoje reinante, entre nós, em face da liberdade de pensamento e diante dos empresários que não se arrolem nas fileiras da denominada “oposição democrática”. A história do despotismo se repete!
O que Tocqueville afirmava do centralismo cartorial, aplicava-se, em primeiro lugar, à França revolucionária. Em que pese o fato das juras libertárias dos jacobinos, no entanto a Revolução terminou sendo deglutida pelos velhos hábitos centralizadores e despóticos. O nosso autor cita, para confirmar essa apreciação, as palavras que o deputado Honoré Gabriel Riqueti, conde Mirabeau (1749-1791) escrevia secretamente ao rei, menos de um ano depois de ter eclodido a Revolução: "Comparai o novo estado das coisas com o Antigo Regime; é aí que nascem as consolações e as esperanças. Uma parte dos atos da Assembléia Nacional, e é a mais considerável, é evidentemente favorável ao governo monárquico. Então não é nada estar sem parlamento, sem pays d´états, sem corpo de clero, de privilegiados, de nobreza? A idéia de formar apenas uma única classe de cidadãos teria agradado ao Cardeal-Ministro Richelieu (1585-1642): esta superfície uniforme facilita o exercício do poder. Vários reinados de um governo absoluto não teriam feito tanto pela autoridade régia, quanto esse único ano de Revolução” [Tocqueville, O Antigo Regime e a Revolução, trad. cit., pág. 11]. Arguto observador do fenômeno revolucionário, Tocqueville comenta as palavras de Mirabeau, destacando o caráter cosmético da Revolução de 1789, no que tange ao despotismo centralizador.
Os breves comentários precedentes permitem situar o significado da contribuição de Tocqueville no entendimento da direção central seguida pela Revolução Francesa. Atrelada, assim, à diretriz norteadora do Estado Moderno - substituir a descentralização feudal pelo centralismo monárquico -, graças à influência dos “philosophes”, Rousseau á frente, abriu-se, na França, uma senda distanciada do que efetivamente de novo trouxera a Revolução Gloriosa inglesa de 1688: o governo representativo, que, progressivamente, iria incorporar o ideal democrático. Na preservação deste, no Continente, seria decisiva, portanto, a contribuição crítica ao democratismo rousseauniano, efetivada por Alexis de Tocqueville.
O processo revolucionário fez ruir um governo e um reino, mas sobre essas cinzas ergueu um Estado muito mais poderoso que o anterior. Algo semelhante ao que ocorre, atualmente, com os movimentos populistas latino-americanos, que alegam estar libertando os seus povos do neoliberalismo e do conservadorismo, dando ensejo a propostas cada vez mais estatizantes, fenômeno do qual não escapou o Brasil, levando em consideração os governos petistas, que apregoavam, claramente, a volta do antigo estatismo como solução mágica para todos os nossos problemas. Proposta esdrúxula que, com a maior cara de pau, a oposição hoje apresenta novamente ao eleitorado sob a bandeira de Lula, oportunamente libertado do presídio para se candidatar a gestor do novo estatismo, sob as bandeiras da “democracia” e do STF, “guardião” absoluto dela.