Neste ensaio serão desenvolvidos dois itens: I – Breve sinopse bio-bibliográfica de Alexandre Herculano. 2 – Espírito doutrinário e romantismo na versão de Alexandre Herculano.
I - BREVE SINOPSE BIO-BIBLIOGRÁFICA.
Alexandre Herculano de Carvalho nasceu em Lisboa, em 28 de março de 1810, ano 3º da invasão francesa. Os seus pais foram Teodoro Cândido de Araújo (recebedor da Junta dos Juros e que professava idéias liberais) e Maria do Carmo de São Boaventura (descendente de pedreiros e mestres de obras do Paço). Cursou Herculano os seus estudos de Humanidades, preparatórios à Universidade, no Colégio de São Filipe de Nery, dirigido pelos Padres Oratorianos, onde também fez os seus estudos o grande pensador luso-brasileiro Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846). Impedido de frequentar a Universidade, em decorrência de problemas de saúde do seu pai, o nosso autor viu-se obrigado a assistir a um curso técnico, tendo-se matriculado na Aula de Comércio (que tinha sido criada pelo Marquês de Pombal) e frequentou, na Torre do Tombo, a cadeira de Diplomática. Essa formação recebida pelo historiador português, sem dúvida influenciou diretamente nos rumos da sua vida intelectual, tendo herdado dos Oratorianos o contato com as idéias neoplatônicas. O nosso autor tirou, outrossim, da sua passagem pela Torre do Tombo, nas aulas de Diplomática, a diuturna procura e valorização dos documentos antigos.
O agitado clima político da época foi, com certeza, outro fator que influiu, decididamente, no perfil intelectual de Herculano. Grandes mudanças experimentou Portugal no início do oitocentos, em decorrência da agitação de idéias e da reformulação do panorama político europeu, ao ensejo da gesta napoleônica e do ulterior confronto entre democratismo e monarquia, que de uma ou outra forma se espalhou pelos países que receberam a influência cultural da França. António Borges Coelho (1928-) sintetiza assim esse pano de fundo histórico: "A primeira metade do século XIX é uma época extraordinariamente fértil em acontecimentos políticos. Invasões Francesas, fuga da Família Real, guerrilhas, regência do diplomata inglês William Carr Beresford (1768-1854), execução de Gomes Freire de Andrade (1757-1817) e dos outros conjurados, revolução de 1820, Constituição de 1822 (a primeira Constituição de Portugal), Vilafrancada, carta constitucional de 1826, monarquia absoluta de 1828, revolução liberal do mesmo ano esmagada com o corolário de enforcamentos no Porto, Aveiro e todo esse sudário descrito por Herculano nos Mártires da liberdade" [Coelho, 1965: 9-10].
As primeiras poesias de Herculano revelam-nos um jovem inflamado pelas idéias tradicionalistas, que o levaram a tecer elogios ao regime absolutista de Dom Miguel I (1802-1866), em 1828. No entanto, essa etapa é curta, porque logo a seguir, em 1829, Herculano fazia a crítica "aos tiranos". A partir de então o nosso autor familiarizou-se com o meio social que cultivava as idéias liberais, os salões literários, notadamente o da Marquesa de Alorna, Leonor de Almeida Portugal (1750-1839), por cujo intermédio o nosso autor foi estimulado a ler as obras de René de Chateaubriand (1768-1848) e Madame de Staël (1766-1817). Que as primeiras idéias dos românticos franceses tinham entrado cedo entre os denominados estrangeirados portugueses, fica provado a partir da correspondência entre Dom Pedro de Souza Holstein (1781-1850) - Duque de Palmela - com Madame de Staël, na primeira década do século XIX [cf. Staël-Souza, 1979].
A Revolução de Julho de 1830, na França, animou sobremaneira a juventude liberal portuguesa. O nosso autor, com a idade de 21 anos, participou, em 21 de agosto de 1831, do levantamento do Quarto Batalhão de Infantaria. Os amotinados foram esmagados pelas forças governamentais, com um balanço trágico: 300 mortos e 40 fuzilados em Lisboa. Herculano conseguiu se refugiar numa fragata francesa e fugir para Inglaterra. Embora tivesse sido curta a permanência do nosso autor no exílio europeu (ao todo seis meses, entre 21 de agosto de 1831 e o final de fevereiro de 1832, tendo ficado semanas apenas na Inglaterra e, depois, algum tempo mais dilatado na França), esse período foi o bastante intenso como para imprimir um selo intelectual indelével na restante parte da sua obra. Para os tacanhos espíritos acostumados às benesses do turismo acadêmico é, certamente, um período curto demais. Não assim para jovens sedentos de cultura e interessados em compreender as intrincadas condições da sua época. Lembremos que, por esse mesmo tempo, um jovem francês, de apenas 26 anos, parte, na companhia de seu melhor amigo, para os Estados Unidos, onde passa nove meses, com a finalidade de estudar o sistema penitenciário e compreender o fenômeno da democracia americana. Desse curto período nasce, entre outras obras, a Democracia na América, esse clássico da ciência política que ainda causa admiração pela sua abrangência e que tornou o seu autor, Alexis de Tocqueville (1805-1859), conhecido pelo mundo afora.
Dois importantes centros de documentação foram frequentados pelo jovem Herculano durante a sua permanência na França: a Biblioteca Pública de Rennes, na Bretanha, e a Biblioteca Nacional de Paris. Certamente, o publicista francês mais lido nesse período era o todo-poderoso ministro da Instrução de Luís Filipe I (1773-1850), François Guizot (1787-1874), cuja obra foi consultada com entusiasmo pelo nosso autor. Daí emerge a inspiração doutrinária de Herculano, sendo essa, sem dúvida nenhuma, a caraterística intelectual mais marcante do seu pensamento, como teremos oportunidade de ilustrar ao longo deste ensaio. Mas não foi apenas de Guizot que o nosso autor recebeu influência.
Também foi moldada a sua inteligência pelo espiritualismo de Pierre-Paul Royer-Collard (1763-1845), através do ecletismo espiritualista de Victor Cousin (1792-1867), que possibilitaria estabelecer uma ponte mediadora entre o empirismo lockeano e a filosofia transcendental de Immanuel Kant (1724-1804). Além da inspiração neoplatônica, recebida dos seus mestres Oratorianos, Herculano foi tributário das idéias de Georg W. Hegel (1770-1831), muito provavelmente não de maneira direta, mas, como em Guizot, tendo recebido essa influência através de Victor Cousin, de forma a considerar "a história, desde as formas elementares do mundo inanimado até às realizações mais perfeitas da humanidade, que são os heróis, como o desenvolvimento progressivo da Idéia ou Razão divina. Cada século e cada época encarna uma idéia, ou melhor, uma fase da Idéia" [Saraiva, 1977: 49]. Junto com o hegelianismo, o nosso autor recebeu embalada a idéia de progresso, que o filósofo alemão, por sua vez, tinha haurido nas obras de Giambattista Vico (1668-1744) e Carl von Savigny (1779-1861).
Outra importante vertente do pensamento francês, com a qual o nosso autor se familiarizou, nas suas leituras realizadas em Rennes e Paris, foi a do cristianismo liberal representado pelo grupo do jornal Avenir, que apareceu em Paris, em 1830, sob a orientação de Hugo Felicité de Lamennais (1782-1854), com a finalidade de conciliar a vivência cristã com os ideais da revolução burguesa, apregoando a separação da Igreja em relação ao Estado e defendendo a conquista da Liberdade também para o proletariado. Na conhecida obra de Lamennais intitulada: Essai sur l'Indifférence en matière de Réligion, era defendida, contra a visão apologética tradicional, a existência de um senso comum da humanidade que, à maneira de uma religião civil, transpareceria, ao longo da história, na legislação, nos costumes e nas crenças dos vários povos. Sem dúvida que estas idéias, de corte epistemológico tradicionalista, contribuíram a moldar a desconfiança de Herculano em face dos sistemas racionalistas de pensamento, bem como na sua crítica aos excessos perpetrados pela Ilustração, em nome de uma razão abstrata.
Vale a pena destacar um aspecto das influências recebidas, no que tange à concepção da historiografia. Além da principal obra de Guizot, as Lições sobre a História da Civilização na Europa (1828), o nosso autor leu a obra de Augustin Thierry (1795-1856), as suas conhecidas Lettres sur l'Histoire de la France (1827). Vejamos a forma em que o principal historiador da formação de Herculano, Antônio José Saraiva (1917-1993), ilustra as influências recebidas desses dois autores, destacando a particular forma em que eles focalizam a história, lida do ponto de vista da responsabilidade das classes médias burguesas:
"Herculano chegava à França na época da grande voga dos estudos históricos de Thierry e Guizot, que davam a perspectiva histórica da revolução burguesa pela qual ele se estava batendo. Thierry oferecia (...) a história do Terceiro Estado, que fizera a revolução. Reconstitui as suas humildes origens nos municípios que reerguem as muralhas derrocadas pela passagem dos bárbaros invasores, se defendem contra a rapina dos senhores feudais e dos reis, arrancam pela insurreição as cartas de foral, acolhem os servos fugitivos, elegem os seus magistrados, se educam na liberdade e no trabalho. O Terceiro Estado concluíra, enfim, a sua obra derrubando as muralhas da Bastilha. Thierry abre desta maneira na história, dentro do impulso do século XVIII, a perspectiva da marcha das maiorias para a riqueza e a liberdade; e chama a atenção para as lutas de classes através das quais se realiza o progresso. A França, diz ele, não é uma nação, mas duas nações irreconciliáveis, uma das quais acabará por esmagar a outra. E na história de Portugal, saudando a revolução portuguesa de 1820, mostrava Thierry os antigos antecedentes da classe média resistindo à aristocracia e manifestando-se nas cortes. Recordava a este propósito a frase de Madame de Staël: La liberté est ancienne; seul le despotisme est moderne. Opondo a classe burguesa, produtora de riqueza, aos privilegiados feudais, que vivem de um imposto lançado sobre o trabalho, Thierry desenvolve, retrospectivamente, a apologia da produção que se encontra nas obras de Saint-Simon (1760-1825), de quem fora secretário. Mas já Guizot sugere outra visão da história. Também ele (...) se ocupa do Terceiro Estado e da sua ascensão; mas as lutas de classes assumem, no seu quadro histórico, o aspecto de lutas de princípios: o princípio da unidade personificado no Papado, o princípio democrático representado pelas comunas, o princípio da liberdade introduzido pelos bárbaros. E a Providência executa, por intermédio deles, o seu plano sobre a Terra, sem que os homens se deem conta da obra em que trabalham, como operários que realizam, separadamente, as diferentes peças de uma máquina cujo projeto desconhecem. É sobretudo com base nesta preparação cultural, tentando aplicar os princípios gerais da renovação filosófica, da renovação religiosa e da reforma econômico-social consciencializada pelos historiadores, que Herculano enfrenta os problemas da reconstrução moral da sociedade portuguesa, imposta pela queda do antigo regime. Tais problemas constituem a sua principal preocupação de 1834 a 1843, isto é, entre o fim da guerra civil e a preparação da História de Portugal" [Saraiva, 1977: 51-52].
Em fevereiro de 1832 o nosso autor embarcou de regresso à Ilha Terceira, formando parte do corpo expedicionário de 7.500 homens que, em 8 de julho do mesmo ano, desembarcaram no Mindelo. Herculano era o soldado de número 99 da 3ª Companhia de Voluntários da Rainha. Participou na linha de frente da guerra civil que se seguiu. Antes de terminar o conflito, vemos o nosso autor, liberado do serviço militar e transformado em pesquisador que trabalha, incansavelmente, na busca de fontes primárias da história portuguesa. Na qualidade de 2º bibliotecário da Biblioteca Pública do Porto (criada por essa época com os fundos da livraria do Bispo), Herculano percorreu as bibliotecas monásticas do norte de Portugal, na busca de documentos que possibilitassem a reconstrução da gesta portuguesa, um trabalho sem dúvida inspirado no ofício de historiador que Guizot expõe detalhadamente na sua obra. Ainda na cidade do Porto, no ano de 1835, o nosso autor colaborou no jornal O Repositório Literário, órgão da Sociedade das Ciências Médicas e da Literatura.
Mas o democratismo de inspiração rousseauniana e jacobina estava em ascensão em Portugal. A Revolução de Setembro de 1836 que restaurou a Constituição de 1822, foi considerada, pelo nosso autor, como um lamentável retrocesso. O seu ensaio intitulado: A Voz do Profeta, testemunha o descontentamento de Herculano para com a "populaça" em ascensão. Nesse mesmo ano pediu demissão do seu cargo público no Porto e regressou a Lisboa, onde se engajou na luta contra o setembrismo. Herculano, como aliás o seu inspirador, Guizot, era um liberal moderado. O jovem escritor era um cartista que defendia entusiasticamente a posição de Dom Pedro IV (1798-1834), inimigo declarado do modelo absolutista ensejado pelo miguelismo, bem como do democratismo. Sem emprego, o nosso autor aceitou, em 1837, a redação de O Panorama, semanário ilustrado, editado pela Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Úteis. Aderiu, em 1838, à nova Constituição, que representava um modelo de transição entre o democratismo da Carta de 22 e as tendências moderadas. Nesse mesmo ano, Herculano publicou a primeira edição das suas poesias, sob o título de: A Harpa do Crente.
Em 1839, o nosso autor foi nomeado, pelo rei Dom Fernando II (1816-1885), Diretor das Bibliotecas Reais da Ajuda e das Necessidades. Nessa nova posição, o jovem historiador, que então contava com 29 anos, pôde se dedicar às pesquisas históricas. Ao longo da década de 1840, o nosso autor firmou a sua vocação de historiador e escritor, com os seus Apontamentos para a história dos bens da Coroa e dos Forais, com os romances Eurico, o Presbítero e O Pároco da Aldeia e com os dois primeiros volumes da História de Portugal. Em 1840, por interferência de Rodrigo Magalhães, ministro do Reino, o nosso autor foi eleito deputado pelo círculo eleitoral do Porto. A sua breve passagem pelo Legislativo traduziu-se em duas iniciativas: o nosso autor combateu o projeto de lei que criava um depósito bancário para a fundação de jornais (medida decerto restritiva à liberdade de imprensa); de outro lado, como já fizera Guizot na França, o jovem deputado preparou um projeto de reforma do ensino popular. Nessas empreitadas, contou com a colaboração de alguns amigos como António Luis de Seabra (1798-1895), António de Oliveira Marreca (1815-1889) e Vicente Ferrer Neto Paiva (1798-1886), que se destacou por ser um dos filósofos de inspiração krausista que mais influenciou na renovação das idéias jurídicas em Portugal.
Ao ensejo da restauração da Carta de 1842 por António Bernardo da Costa Cabral (1803-1889), o nosso autor retirou-se da cena política, não tendo aceitado o convite formulado pelo chefe do Estado para que ocupasse o cargo de Inspetor Geral dos Espetáculos, de que João Baptista de Almeida Garrett (1799-1854) tinha sido afastado. Dedicou-se Herculano, ao longo destes anos, às suas pesquisas históricas. Em 1850 publicou o terceiro volume da História de Portugal, tendo desencadeado a reação do clero conservador. Em ensaios contundentes, o nosso autor defendeu a sua obra, como nos intitulados: Eu e o Clero, Solemnia Verba e no prefácio à História da origem e do estabelecimento da Inquisição em Portugal (cujo primeiro volume apareceria depois, em 1853). Em 1844, o nosso autor foi admitido na Academia, na qualidade de sócio correspondente. Nesse mesmo ano traçou os lineamentos gerais de uma obra que ficou inédita, intitulada: Estudos sobre a Idade Média Portuguesa, na qual, à maneira de Thierry, pretendia revolucionar a historiografia nacional.
Mas Herculano, doutrinário por vocação, não se limitou à vida intelectual. Participou ativamente, em 1850, do protesto dos intelectuais contra a denominada "Lei das Rolhas", que constituía um atentado contra a liberdade de imprensa. Na sua casa, no ano seguinte, realizaram-se as reuniões dos oposicionistas que levaram à queda de Costa Cabral, ao ensejo do golpe de estado que deu início à denominada Regeneração. Mas a situação política não se estabilizou com a ascensão do novo governo, de que participaram, inicialmente, alguns dos seus amigos. Desiludido com os rumos pouco liberais do governo emergido da Regeneração, o nosso autor passou a participar ativamente da oposição, através dos seus artigos nos jornais O País e O Português. Em 1853 candidatou-se, pela oposição, às eleições municipais, tendo sido eleito presidente da Câmara Municipal de Belém. Aos poucos, o nosso autor converteu-se no porta-voz mais destacado da média burguesia rural. Naquele mesmo ano, publicou o primeiro volume da História da origem e estabelecimento da Inquisição em Portugal. Fundou, em 1856, o Partido Progressista Histórico, tendo participado de sua direção. Em 1857 combateu a Concordata com a Santa Sé. Em 1860, como membro da Comissão Revisora do Código Civil, propôs a introdução, em Portugal, do casamento civil, tendo sido atacado duramente pelo clero. Herculano defendeu-se numa série de artigos contundentes que publicaria mais tarde sob o título de: Estudos sobre o casamento civil. A atividade intelectual do nosso autor foi bastante intensa, ao longo da década de 1850. Além dos trabalhos já mencionados, no ano de 1853 apareceu o quarto volume da História de Portugal. Entre 1853 e 1854 preparou a edição dos documentos medievais portugueses dos séculos XII e XIII, sob o título de: Portugaliae Monumenta Historica. Em 1853, a sua História de Portugal recebeu da Universidade um elogio oficial, de que foi relator o seu amigo Vicente Ferrer Neto Paiva. Em 1859, foi publicado o último volume da História da Inquisição.
Presença tão destacada no universo cultural e político português do período, conferiu ao nosso autor a auréola de liderança cívica que todos reconheciam, até críticos como Teófilo Braga (1843-1924) que, na sua História do Romantismo, escreveu o seguinte: "Nunca ninguém exerceu um poder tão grande, na forma a mais espontaneamente reconhecida; as opiniões entregavam-se à sua afirmação, como um povo se entrega a um salvador" [apud Coelho, 1965: 16]. Privava o nosso autor da amizade de Dom Pedro V (1837-1861), mas não quis aceitar as benesses e distinções que lhe foram oferecidas, como a nomeação de par do Reino, a condecoração com a ordem Torre e Espada e a regência de uma cadeira no Curso Superior de Letras. Em 1867, Herculano casou-se com Hermínia Meira (nascida em 1815), que conhecia desde a sua infância. Instalou-se, a partir desse tempo, na sua Quinta de Vale de Lobos, que tinha adquirido em 1859 com os recursos gerados pelas suas publicações.
Afirmando que dava por terminada a sua carreira literária dedicou-se, nos anos seguintes, à vida agrária. O Imperador do Brasil, Dom Pedro II (1825-1891), foi lá visitá-lo. Mas o velho doutrinário não podia deixar de refletir sobre as realidades da sua época. Desse período datam alguns escritos seus muito significativos, como a correspondência com Joaquim Pedro de Oliveira Martins (1845-1894) e as suas críticas às decisões do Concílio Vaticano I, reunido em 1869-1870. Em 1873, Herculano começou a publicar os seus escritos avulsos, que tinham anteriormente aparecido na imprensa, sob o título de Opúsculos. Esta obra, em dez volumes, terminou de ser editada, postumamente, em 1908. Defensor intransigente da propriedade rural, o nosso pensador, no entanto, mostrou-se sensível à sorte dos camponeses da sua região, que lhe renderam sentida homenagem quando da sua morte, ocorrida em 13 de setembro de 1877.
II-ESPÍRITO DOUTRINÁRIO E ROMANTISMO NA VERSÃO DE ALEXANDRE HERCULANO.
Nesta segunda parte da minha exposição farei uma análise sucinta dos principais aspectos que integram a concepção doutrinária e romântica de Herculano. Serão desenvolvidos os seguintes itens: 1) A crise em Portugal, segundo Herculano e a geração romântica; 2) A fundamentação da moral na religião; 3) A concepção religiosa do homem; 4) Concepção religiosa da história e da política; 5) O liberalismo de Herculano; 6) Crítica à filosofia incrédula; 7) Paralelo do romantismo de Herculano com a versão romântica de Domingos Gonçalves de Magalhães (1811-1882).
A obra de Herculano insere-se no amplo contexto do romantismo europeu, em cujas origens remotas, segundo António José Saraiva, está o progresso econômico, político e social da burguesia e cujo desfecho identifica-se com as conseqüências da grande revolução industrial que, desde 1850, transformou totalmente a vida na Europa. A função que o escritor romântico passa a desempenhar, no seio da sociedade européia dessa época, é de grande importância, porquanto as camadas sociais em ascensão procuram uma identificação plástica dos seus ideais, através das obras literárias [cf. Saraiva, 1976: 729-730].
1 - A crise de Portugal, segundo Herculano e a geração romântica.
A obra de Herculano deixa transluzir a crise que atingia Portugal no século XIX. A intelectualidade dedicar-se-ia a denunciar essa crise e a analisá-la desde diferentes ângulos. Segundo Joaquim Veríssimo Serrão (1925-), "o último terço do século XIX eleva-se, no caso português, como época de profunda crise política, econômica e ideológica. Mas, por mais paradoxal que pareça, não o foi no domínio da cultura, dado que algumas das maiores figuras do pensamento nacional puderam então erguer a sua obra, para o que basta citar Antero de Quental (1842-1891), Teófilo Braga (1843-1924), Oliveira Martins (1845-1894), Abílio Manuel Guerra Junqueiro (1850-1923), Alberto Sampaio (1841-1908) e outros" [Serrão, 1977: 18].
A reflexão da intelligentsia portuguesa sobre a crise do país, teve a sua maior manifestação nas chamadas Conferências Democráticas que se efetuaram em Lisboa nos meses de maio e junho de 1871, com os objetivos de "ligar Portugal com o movimento moderno, fazendo-o assim nutrir-se dos elementos vitais de que vive a humanidade civilizada; procurar adquirir a consciência dos fatos que nos rodeiam na Europa; agitar na opinião pública as grandes questões da Filosofia e da Ciência moderna; estudar as condições de transformação política, econômica e religiosa da Sociedade portuguesa" [apud Serrão, 1977: 20].
O manifesto de convocação às Conferências Democráticas foi assinado por homens de variada formação como Antero de Quental, Teófilo Braga (1843-1924), Eça de Queirós (1845-1900), Manuel de Arriaga (1840-1917) e Germano Meireles (1842-1877), todos antigos estudantes de Coimbra; Augusto Fuschini (1843-1911) e Augusto Soromenho (1833-1878), professores do Curso Superior de Letras, etc. Segundo Antero, a crise de Portugal repousava, toda ela, no absolutismo que vingara na Península Ibérica desde o século XVI. Veríssimo Serrão sintetiza assim a análise anteriana: "Que razões profundas haviam levado a Península, condutora dos destinos europeus até o fim do século XVI, a ser ultrapassada por outras monarquias, como a França e a Inglaterra? Para o notável pensador, o absolutismo, como marca política que assentava na aliança do Poder real e da Igreja de formação tridentina, esgotara as energias medievais das nações hispânicas, já de si depauperadas pelo esforço colossal da expansão ultramarina. Dando-se à propagação de um ideal civilizador, que impunha uma política de conquistas e uma forte ambição comercial, a Espanha e Portugal tinham-se visto a braços com o desapego da vida rural e do trabalho útil, deixando de produzir a riqueza indispensável ao seu fortalecimento. Tal fato explicava a crise que atingira a Ibéria no último quartel de quinhentos: em Portugal, com o termo do reinado de D. Sebastião (1554-1578) e a perda da independência; em Espanha, com o desastre da Invencível Armada e a morte de Filipe II (1527-1598)" [Serrão, 1977: 21].
Qual foi a fórmula receitada por Antero para superar a crise que avassalava Portugal? Posto que os males presentes provinham da fixação no passado, mediante uma educação baseada nele, tratava-se, agora, de romper virilmente com esse mesmo passado. Diz Antero a respeito: "Dessa educação que a nós mesmos demos durante três séculos provêm todos os nossos males presentes. As raízes do passado rebentam por todos os lados do nosso solo; rebentam sob a forma de sentimentos, de hábitos, de preconceitos. Gememos, sob o peso dos erros históricos. A nossa fatalidade é a nossa história. (...). Que é pois necessário para readquirirmos o nosso lugar na civilização? Para entrarmos outra vez na Europa culta? É necessário um esforço viril, um esforço supremo; quebrar resolutamente com o Passado. Respeitemos a memória dos nossos avôs, mas não os imitemos..." [apud Serrão, 1977: 22]. Para Herculano, como para Antero, a crise de Portugal, no século XIX, baseava-se no teocratismo de inspiração absolutista que predominava, sufocando as liberdades individuais e locais. Herculano vai até as raízes do absolutismo luso, analisando, na sua História de Portugal, as origens do fenômeno na Península Ibérica. Adotando o rico conceito weberiano de dominação patrimonial ou patrimonialismo, podemos frisar que Alexandre Herculano consegue ilustrar, de maneira muito clara, a forma que assumiu em Portugal o exercício do poder como propriedade particular do príncipe, que é a nota caraterística do patrimonialismo.
Herculano salienta o fato de que, a partir de 1097, consolidou-se, em Portugal, o exercício do poder como bem particular e hereditário do príncipe. Eis as suas palavras a respeito: "Casando sua filha Teresa (1080-1130) com Henrique de Borgonha, (1066-1112), Affonso VI (1047-1109) não se limitou a entregar a este o governo da província portucalense, com a qual já frequentemente se confunde, nos monumentos dessa época, o distrito conimbricence e o de Santarém, debaixo do nome comum de Portugal. As propriedades regalengas, isto é, do patrimônio do rei e da coroa, passaram a ser possuídas, como bens próprios e hereditários, pelos dois consortes. Assim, o cavaleiro francês, que viera buscar na Espanha uma fortuna mais brilhante do que poderia esperar na pátria, viu realizadas as suas esperanças, porventura além daquilo que imaginara" [Herculano, 1914: II, 19-20]. O predomínio dos interesses particulares dos governantes na estrutura política, fenômeno típico do patrimonialismo, é assim ilustrado por Herculano, referindo-se à história portuguesa do século XI: "Mas, em realidade, cada um dos personagens que figurava naquele drama, quer príncipes, quer senhores, só pensava em tirar das desgraças públicas a maior vantagem possível. As alianças faziam-se e desfaziam-se rapidamente; porque nenhuma sinceridade havia no procedimento dos indivíduos. Os interesses particulares dos nobres e prelados cruzavam-se com as questões políticas e modificavam-nas diversamente" [Herculano, 1914: II, 65-66].
A própria batalha de Ourique (1139), definida por Herculano como "a pedra angular da monarquia portuguesa", porquanto a partir dessa vitória sobre os sarracenos os soldados aclamaram monarca o moço príncipe Affonso Henriques (1109-1185), é considerada por ele como uma "audaz empresa do príncipe dos portugueses", na qual tomaram parte os cavaleiros vilãos dos diversos conselhos, ou dos distritos, obrigados pelas suas cartas de foral. Esse tipo de obrigação para colaborar na "obra do príncipe" é já uma marca bastante definida da índole patrimonial que revestia o exercício do poder no seio da nascente monarquia portuguesa. Herculano salienta um fato que contribuiu, decisivamente, para o progressivo acúmulo de poderes nas mãos dos monarcas, na Península Ibérica: ao longo dos séculos X e XI vai se abandonando, progressivamente, o direito eletivo dos visigodos em matéria de sucessão e vai se substituindo "por uma espécie de direito consuetudinário", baseado na preservação de uma herança patrimonial de pai para filhos. Assim foi como o principado de Portugal veio a cair nas mãos de um príncipe estrangeiro, Dom Henrique de Borgonha, ao casar com Teresa, a filha de Afonso VI [cf. Herculano, 1914: I, 218-228; II, 19-20].
O poder patrimonial do príncipe reforçou-se em Portugal, segundo Herculano, graças à interferência do poder papal, originando assim a tendência ao absolutismo católico que tantos males causou ao País ao longo dos séculos XVIII e XIX. Ele relata, pormenorizadamente, a forma em que foi adotado o poder de interferência do Papa em Portugal, no século XI, por parte de Affonso Henriques, que pretendia reforçar o seu próprio poder, contra as tradições visigóticas em que apoiava a sua soberania o rei de Aragão, Afonso I (1073-1134). Eis o relato de Herculano: "É indubitável que as instituições da monarquia de que Portugal fizera até então parte contradiziam a sua separação perfeita e absoluta; era, portanto, necessário anulá-las por uma jurisprudência superior a elas. O povo a cuja frente Afonso I se achava não tinha, nem podia ter, um direito público diferente do leonês: este era o mesmo dos visigodos, segundo o qual a existência política do rei dependia em rigor da eleição nacional; e, na verdade, havia muitos anos que o jovem príncipe recebia dos seus súditos o título de rei, posto que nenhum ato nos reste de uma eleição regular. Mas isto não era bastante para destruir as leis góticas que se opunham à desmembração da monarquia, apesar de alguns abusos anteriores. Assim, com um direito político assaz disputável, numa época em que a força resolvia mais do que nunca a sorte dos povos e dos imperantes e, sendo possível, ou antes provável, que, renovada a luta da independência, Portugal, ainda em débil infância, viesse ou cedo ou tarde a sucumbir, como sucedera à Navarra, só colocando o seu trono à sombra do sólio pontifício, Affonso Henriques podia torná-lo sólido e estável. À supremacia que em geral o sumo pastor exercia sobre as monarquias cristãs, associava-se a idéia de que na Espanha tinha a sé romana um domínio particular e imediato, e por isso, uma vez que ela se declarasse protetora do novo estado, a existência individual deste estribava-se numa jurisprudência política superior às mesmas instituições visigóticas" [Herculano, 1914: II, 189-190].
O ingresso da política portuguesa no seio do pensamento teocrático iniciou-se, então, a partir da decisão de Affonso Henriques de reconhecer a doutrina da tutela papal desenvolvida por Gregório VII (1015-1085). Herculano termina assim o relato do fato, assinalando as conseqüências políticas e espirituais que se seguiram para a Coroa portuguesa: "Partindo do pensamento teocrático predominante na cristandade, Affonso Henriques, apenas assentada a paz de Zamora, tratou de iludir as conseqüências dela que lhe podiam ser de futuro desfavoráveis, apelando para a doutrina de Gregório VII e reconhecendo que ao pontífice pertencia o sumo império dos Estados cristãos da Península. (...). As condições desta homenagem eram que os seus sucessores contribuiriam sempre com igual quantia (censo anual de quatro onças de ouro) e que ele rei, como vassalo (miles) de São Pedro e do Pontífice, não só em tudo o que pessoalmente lhe tocasse, mas também naquilo que dissesse respeito ao seu país e à honra e dignidade do mesmo país, achasse auxílio e amparo na Santa Sé, não reconhecendo domínio algum eminente, eclesiástico ou secular, que não fosse o de Roma na pessoa do seu legado. (...). Assim, mediante o censo prometido e por aquele testemunho de obediência e submissão, Lúcio, na qualidade de sumo pastor, lhe prometeu que ele e seus sucessores, como herdeiros do príncipe dos Apóstolos, dariam bênçãos e proteção material e moral, com que, fortes contra os inimigos visíveis e invisíveis, resistissem aos seus adversários e obtivessem na morte a recompensa da vida eterna" [Herculano, 1914: II, 192-194].
À adoção da tutela papal para ver garantido o poder patrimonial do monarca veio juntar-se, no século XV, a inspiração das leis portuguesas no direito romano. Até na historiografia revelar-se-ia o "amor exagerado pelas coisas romanas". Com veemência escreve Herculano a respeito: "O primeiro escritor, conhecido por nós, que usou da palavra lusitani para designar os portugueses, foi o desgraçado bispo de Évora Dom Garcia de Meneses (morto em 1481), vítima desse mesmo amor exagerado das coisas romanas que fez triunfar o poder absoluto de Dom João II (1455-1495) da organização política da Idade Média, e que, em literatura, levava aquele prelado a dar aos compatrícios o nome coletivo de uma porção de tribos célticas da antiga Espanha" [Herculano, 1914: I, 38].
Além do progressivo esquecimento do direito visigótico e da adoção da tutela papal, outra causa veio a contribuir ao avanço do absolutismo em Portugal: a influência árabe. No longo período que vai desde 709 até 1490, os cristãos lutaram, constantemente, contra os sarracenos na Península Ibérica, adotando muitos elementos da cultura muçulmana, especialmente no relacionado com a forma de exercício do poder político. A concentração dos poderes militares, judiciais e administrativos numa só cabeça, esse era o traço fundamental da política sarracena, e esse estilo foi rapidamente copiado pelos cristãos, não só por razões de segurança, num meio em que a guerra era a constante e a paz a exceção, mas também para garantir a continuidade das próprias conquistas [cf. Herculano, 1914: I, 161-170].
Herculano reconhece, assim, a ausência de feudalismo na Península Ibérica, bem como a inclinação dela, num primeiro momento, para a progressiva desmembração (com o surgimento dos que Weber denomina de "senhores patrimoniais locais") [cf. Weber, 1944: IV, 131] e, num segundo momento, para a consolidação do absolutismo monárquico de tipo patrimonial, capaz de cooptar todos os demais poderes. A respeito, frisa o historiador: "Antes de acabarem as guerras do emir de Toledo, Fernando I (1016-1065), achando-se bastante enfermo, voltou a Leão, onde, agravando-se a doença, faleceu nos fins de dezembro do ano de 1065. Já anteriormente, seguindo as pisadas de Sancho o Maior (994-1035), o rei leonês tinha determinado num concílio ou cortes a forma por que todos os seus filhos deviam herdar cada qual uma porção dos vastos estados que lhes legava. Estas divisões, contrárias ao disposto no código visigótico, o qual, no mais, se conservava geralmente em vigor, tinham origem, quanto a nós, não tanto no amor excessivo dos príncipes para com seus filhos, como nas circunstâncias que haviam acompanhado o crescimento da monarquia fundada por Pelagio (350-423). A rápida narração que temos feito basta para se conhecer que essa monarquia, depois de se dilatar por certa extensão do território, tendia constantemente a desmembrar-se em pequenos principados. Cada conde ou governador de distrito, tendo necessariamente, em virtude do estado de guerra contínua, juntos em suas mãos todos os poderes militares, judiciais, administrativos, era quase um verdadeiro rei, e nada mais fácil do que esquecer-se de que lá ao longe, para o lado das montanhas das Astúrias, havia um homem superior a ele. Sem existir o feudalismo, causas análogas às que o tinham gerado no norte da Europa atuavam na Espanha, e estas causas, mais fortes nos distritos da fronteira árabe, onde a energia dos respectivos condes devia ser maior e o seu poder mais ilimitado, faziam com que aí as rebeliões fossem mais freqüentes e algumas coroadas de bom sucesso, como sucedeu, primeiro com a Navarra ao oriente, depois com Castela no centro, e por último com Portugal, ao ocidente. Palpando, por assim dizer, esse espírito de desmembração, que nascia da força das coisas, depois que os estados cristãos adquiriram pela conquista mais remotos limites, Fernando Magno procurou que as tendências de separação, em vez de aproveitarem a estranhos, revertessem em proveito dos membros da sua família, e que se assim evitassem as lutas civis, cedendo a essas tendências em vez de tentar, talvez inutilmente, reprimi-las". [Herculano, 1914: I, 233-234].
2 - A fundamentação da moral na religião.
Herculano concebe a sua obra literária e no campo do ensaio, como uma grande campanha para a reconstrução moral da sociedade portuguesa, abalada pelas lutas entre os proprietários rurais aliados à agiotagem (o partido cartista ao qual estava filiado ele e que contava com a influência do Paço, das prerrogativas régias e da limitação censitária do voto) e a pequena burguesia industrial (o partido setembrista, que contava com o apoio das maiorias eleitorais urbanas). Essa luta situa-se no período de 1835 a 1844 [cf. Saraiva, 1976: 170; Serrão, 1977: 68].
No contexto da luta entre as facções políticas que se digladiavam na sua época, Herculano enxerga um mal profundo, comum aos políticos que nelas militavam: a hipocrisia, que é caracterizada por ele nestes termos: "Na maioria das sociedades atuais falta geralmente aos homens públicos o valor não só para ousar o bem, mas, até, para praticar francamente o mal. Deste fato psicológico, que assinala as épocas de profunda decadência moral, deriva principalmente a hipocrisia: a hipocrisia, que é a anemia da alma. A altivez insolente do poder que se coloca acima do decente e do legítimo e que ri das invectivas da opinião indignada, como de um clamor sem sentido" [Herculano, 1914: I 13-14]. O nosso autor junta a esta crítica contra o comportamento hipócrita dos poderosos, uma outra dirigida contra o materialismo reinante na sociedade, que produz a desagregação dela e a morte do espírito. Nas suas Composições várias, o historiador escreve: "A incredulidade ameaçada de desterro nas regiões onde, por mais de cinqüenta anos imperava como rainha, faz-se fabril e bucólica; senhoril e disputadora ainda há pouco, torna-se rude, bestial e grosseira", porque "o materialismo pouco a pouco expulso do meio daqueles que primeiro recebem as inspirações de uma civilização progressiva vai aninhar-se nas tabernas, nos prostíbulos e, o que é de sentir, nas choupanas colmadas. Em mais duma, quando a desventura se assenta ao pobre lar camponês, este que dantes se abrigava na resignação, no orar, no derramar lágrimas aos pés da cruz, procura agora o esquecimento na embriaguez, o remédio da miséria no roubo e até a salvação no suicídio" [apud Beirante, 1977: 81].
A luta política de Herculano é em prol da fundamentação da conduta humana e da moral na religião, a única que pode, segundo ele, dar base estável ao agir do homem. Essa fundamentação entrou em crise na Revolução Francesa, que desconheceu, sumariamente, a tradição e tornou-se impossível nos sistemas filosóficos que, inspirados no racionalismo ou no sensualismo, esbarraram em contradições internas insuperáveis [cf. Saraiva, 1977: 58/63]. O fato religioso, no qual Herculano procura basear a moral, é fundamentado mediante argumentos que tentam mostrar a sua objetividade histórica. "Buscada deste modo a certeza - escreve Herculano -, a vitória do cristianismo é infalível: ele repousa em provas históricas de indubitável autoridade, porque, além da sua clareza e força, não contradizem a razão nem a consciência" [Herculano, 1914: III, 201]. Contudo, Herculano não cai no tradicionalismo de Lamennais, ao basear a credibilidade do cristianismo não na autoridade como única fonte de verdade religiosa, mas em argumentos de caráter histórico. No entanto, segundo reconhece Saraiva, não deixa de haver contradição no pensamento do historiador português neste ponto, porquanto embora rejeite a tradição como fonte de credibilidade, "afirma-se tradicionalista porque a razão principal da sua campanha religiosa é de ordem sociológica: a necessidade de conservar determinados símbolos e expressões afetivas da vida coletiva capazes de manter a coesão e a moralidade pública" [Saraiva, 1977: 74].
Esse tradicionalismo de ordem sociológica reflete-se no seguinte texto de Herculano, em que patenteia a sua valorização do cristianismo como religião que alivia ao homem na busca do sentido para o seu destino e a sua felicidade: "Creio em ti (Cristianismo), porque a tua moral é sublime (...), porque nos explicaste como os destinos do homem se compensavam além do sepulcro (...), porque só tu soubeste revelar a consolação à extrema miséria sem horizonte e os terrores à completa felicidade sem termo" [apud Beirante, 1977: 81]. De outro lado, a índole liberal de Herculano salta à vista aqui: acredita no cristianismo porque ele resolve o problema do sentido do agir do homem. Não se trata, em momento algum, da crença numa religião por ela mesma, mas em função de um projeto humanístico: dar sentido à vida do indivíduo e salvá-lo da destruição a que foi conduzido pelo filosofismo e pelo teocratismo.
Essa religiosidade humanística herculaniana, de cunho nitidamente liberal-doutrinário, é salientada por Cândido Beirante, que ao se referir à supremacia dada por Herculano à religião, afirma: "A prioridade absoluta ou superioridade da religião é triplamente apontada por Herculano. Primeiramente, pela imutabilidade dos seus preceitos. A este respeito é de notar o combate encarniçado que Herculano conduzirá, mais tarde, contra o neocatolicismo por causa dos novos dogmas: o da Infalibilidade pontifícia e o da Imaculada Conceição. A superioridade da religião assenta, em segundo lugar, no fato de ela aceitar e explicar cabalmente a condição humana: corpo e alma ou misto de miséria e de grandeza. Em terceiro lugar, é superior, dado que impõe uma moral exigente como condição para a salvação individual. Em 1841, Herculano dissera o mesmo: O Evangelho é mais claro e preciso que os volumosos escritos de todos os moralistas filósofos desde Platão até Kant: a moral que não desce do céu nunca fertilizará a terra" [Beirante, 1977: 80-81]. Em suas Composições várias, Herculano explica a ênfase social dada por ele à religião, nestes termos: "a religião é, pois, uma necessidade social, já que ela é o fundamento da moral e esta é o suporte da sociedade civilizada. Eis claramente exposto o sentido último da apologia do Cristianismo: tomaremos a defesa da religião porque sem ela não há civilização, não há bons costumes e sem estes não só a liberdade não é possível, mas nem sequer a sociedade" [apud Beirante, 1977: 81].
Fundamentada a conduta humana no fato religioso cristão, na pureza da Revelação Evangélica, Herculano explicita os elementos essenciais que contribuem, segundo a mensagem bíblica, para nortear o comportamento do homem. Há dois aspectos essenciais nesse ponto: o cristianismo supõe a liberdade como condição do homem e da fé, de um lado; de outro lado, o mandamento supremo do cristianismo, a caridade, sintetiza a doutrina moral do cristianismo e fundamenta a vida em sociedade. A caridade estabelece a verdadeira igualdade entre os homens, ao acabar com o egoísmo. "Assim concebido, diz Saraiva [1976: 71], o cristianismo é o aliado natural do liberalismo". Baseado nessa perspectiva autenticamente liberal, Herculano rompe, definitivamente, com o ultramontanismo e com o tradicionalismo católico em geral, salientando a compatibilidade que há entre a defesa dos interesses materiais dos indivíduos e a dos seus interesses espirituais.
Poderíamos afirmar até que Herculano consegue enunciar as bases de uma nova ética que tornasse os católicos verdadeiramente comprometidos com a sua sociedade, sem contudo cair no materialismo. Esforço de conciliação de valor invulgar para quem, como ele, nascera e vivera num meio não formado na ética calvinista. Esforço que já tinha sido feito na França por católicos como Royer-Collard ou como o próprio Alexis de Tocqueville [cf. 1977: 403-405], que levou a este último, aliás, a formular a sua noção de "interesse bem compreendido", aquele que concilia a defesa dos próprios interesses com o imperativo cristão da solidariedade e do amor ao próximo. Lição de moderação que, sem dúvida, Herculano tirou das leituras que fez da obra de Guizot, durante a sua permanência na França.
Em relação a esse ponto, escreveu Herculano: "Defendei os vossos interesses espirituais juntamente com os vossos interesses físicos. É a nossa doutrina, porque não queremos insultar a memória dos nossos pais que combateram e padeceram para conquistar essas garantias e direitos inscritos no pacto político do país; porque não queremos amaldiçoar o nosso passado, nós que viemos ocupar nas fileiras da liberdade o lugar onde eles caíram. É a nossa doutrina, porque entendemos que as necessidades morais do homem social não são menos atendíveis que as suas necessidades materiais (...). É a nossa doutrina, porque o progresso material é filho das conquistas da liberdade, do progresso e da civilização moral. A máquina a vapor e o caminho de ferro não nasceram entre os povos servos; nasceram nos países onde as garantias individuais, o amplo direito de associação, a franca manifestação do pensamento, a verdade eleitoral, a independência de poderes; os fatos sociais, em suma, em que aparece a fisionomia de um povo livre eram uma realidade (...). Pugnar pelos melhoramentos materiais que razoavelmente o país tem direito a pedir sem querer todavia que se lhes sacrifiquem ou sequer se posponham os sacrossantos direitos dos cidadãos" [apud Beirante, 1977: 115].
À luz das anteriores considerações podemos entender a noção herculaniana de progresso, que abarca tanto o desenvolvimento dos fatores materiais quanto dos morais, no homem. A respeito, escreve Cândido Beirante [1977: 116]: "Herculano utiliza muitas vezes a expressão progresso moral e material; outras vezes, progresso material e intelectual e também progresso material e social. Todas estas designações contêm em si o aspecto moral do progresso, num sentido lato, tal como o entendia Herculano (...). No pensamento herculaniano, o verdadeiro progresso é o que engloba os factores materiais juntamente com os morais. Quando houver um divórcio entre estes dois grupos componentes do progresso humano, entrar-se-á num estado de pré-decadência que virá a trazer (a prazo mais ou menos curto) a decadência generalizada. O grande termo de comparação para as suas considerações vai buscá-lo à História, à decadência do Império Romano". Contudo, o verdadeiro progresso não se dará no seio da sociedade, segundo Herculano, senão na medida em que o espírito humano for educado devidamente na leitura, na ilustração, na civilização, no cultivo das artes, no desenvolvimento das ciências. Aqui o nosso autor assume a melhor tradição da Ilustração, sem contudo cair no extremo de apregoar a absoluta emancipação da razão humana.
Em O Panorama, semanário que dirigiu entre 1837 e 1839, Herculano afirma que a verdadeira civilização é a do espírito humano. Segundo ele, quem lê, "bebe a largos tragos na taça da sabedoria (e é) cidadão de todas as repúblicas, membro de qualquer sociedade, contemporâneo de qualquer século". No mesmo semanário, o nosso autor escreveu em 1839: "Não é da abertura de canais e estradas, do acréscimo das exportações, do fomento da indústria, que depende a felicidade futura do povo: é da educação. Ilustre-se, civilize-se, aprenda a conhecer o que lhe convém, renasça nele a boa moral, e a antiga virtude portuguesa, que depois será o próprio povo quem, sem socorro do governo, e até apesar do governo se preciso for, abrirá canais e estradas, melhorará a agricultura, aumentará o comércio, aperfeiçoará a indústria". Herculano critica, porém, as reformas progressistas empreendidas pelo Marquês de Pombal (1699-1782) que entraram em declínio após a sua saída do governo, porque "este é o destino de todos os progressos que não nascem do seio da sociedade e do desenvolvimento das idéias" [apud Beirante, 1977: 117].
O progresso integral do homem, que abarca o cultivo do espírito humano, é um dever moral. A propósito, escreve o nosso autor: "Negar o aperfeiçoamento intelectual aos homens, deixá-los na bruteza e na ignorância é um ato imoral, um menoscabo de deveres sagrados e por conseqüência um crime (...). O homem não passará de máquina se carecer de instrução e raciocínio. É, portanto, preciso cultivar-lhe o espírito (...). Os proveitos e cômodos de que a Europa atualmente goza (...) nasceram todos da cultivação das artes". Em 1872, Herculano escrevia: "Ninguém por certo nega a utilidade de favorecer o trabalho literário e científico, principal elemento do progresso social". O progresso material, segundo ele, é muitas vezes conquistado às custas do homem: "Pobre povo - escreve o historiador - mal sabes tu à custa de quantos gozos interiores, de quantas esperanças, de quantos sonhos formosos, hás-de ir comprando os progressos e a civilização!" [apud Beirante, 1977: 118]. A grandeza moral de Herculano ergue-se como figura solitária que contesta, com a sua palavra e a sua própria vida, uma sociedade entregue ao imediatismo e às conveniências políticas.
Antero de Quental escreveu, em fins de setembro de 1877, o elogio de Herculano para a Revista Os dois mundos. Para Antero, o nosso autor escondeu-se no retiro de Vale de Lobos, durante os últimos anos, voltando as costas para uma sociedade em atrito com o seu ideal de vida: "Na fisionomia moral de Alexandre Herculano - escreve o poeta luso - há certas linhas que fazem lembrar o perfil enérgico e simples dos heróis típicos da nacionalidade portuguesa. Pertencia a essa grande linhagem que acabou com ele. O seu século, admirando-o, considerava-o todavia com um certo ar ininteligível, como se sentisse vagamente que aquele homem pertencia a um mundo extinto, um mundo cujo altivo sentir já ninguém compreendia. E acabaram, com efeito, por não se compreenderem" [apud Serrão, 1977: 217-218].
Oliveira Martins, em Portugal contemporâneo [1984: II, 225-226], escreveu elogio semelhante de Alexandre Herculano, salientando o estoicismo do seu caráter: "A cova do cemitério de Azóia onde baixou o cadáver de Herculano no verão de 77 é, no seu isolamento, o símbolo da insensibilidade com que Portugal o sepultou (...). A palavra que o retrata é o Caráter, porque nele a vida moral e intelectual eram uma e única (coisa). Dissemos pois Caráter no sentido e valor que a palavra teve na Antigüidade, e não na vaga acepção moderna (...). O tipo de caráter à antiga é o estoico e este é propriamente que define a fisionomia de Herculano; este o tipo que passo a passo veio crescendo até dominar os últimos anos, (...) quando os desenganos do mundo o degradaram para o exílio, não como um mártir, mas como um homem que, protestando sempre, se não converte nem se corrompe".
Oliveira Martins tinha caracterizado Herculano como "o único português moderno". Joaquim Veríssimo Serrão identifica a grandeza de Herculano como decorrente da sua vocação de escritor e do seu espírito liberal. A propósito frisa: "Apesar das críticas de alguns nomes da geração de 70, como Teófilo Braga e Adolfo Coelho, tinha-se assim gerado em torno de Herculano uma admiração quase exclusiva pelo homem e pelo escritor que era o símbolo de sua geração (...). A nobilitação intelectual obrigava um grande escritor a ser também um homem grande, alguém que soubera impor-se à consideração pública pelas atitudes que tomara nos debates e problemas que afetavam toda a Nação. O liberalismo exigia que no indivíduo se reunissem os dois múltiplos que definem os verdadeiros modelos de uma sociedade" [Serrão, 1977: 214-215].
3 - Concepção religiosa do homem.
É patente o influxo da Bíblia, especialmente dos escritos de São Paulo, na vida intelectual de Herculano. Eis o que afirmava a respeito o nosso autor em 1876: "Com a idade e com a reflexão, entre os personagens eminentes do Novo Testamento começou a sobressair um que dia a dia cresceu a meus olhos em sublimidade. Era São Paulo. São Paulo tornou-se, afinal, para mim, o grande vulto do Cristianismo militante. Foi São Paulo que me perdeu" [apud Beirante, 1977: 98-99]. A vida humana, para Herculano, percorre várias etapas, que ele define no seu romance O Pároco da Aldeia, em 1843, do ponto de vista da luta entre a razão humana e a crença viva. Eis as suas palavras a respeito: "Tal é o destino da inteligência neste breve desterro: dois dias conserva as recordações verdadeiras e puras da sua origem imortal: outros dois alumia-se com o fogo fátuo das paixões e esperanças: o resto deles resolve-se na luta tormentosa das idéias, dos afetos, dos desenganos: depois vem o dormitar da velhice e a regeneração da morte" [apud Beirante, 1977: 84].
Vejamos a forma em que Herculano explica o desenvolvimento da vida humana, ao longo dessas quatro etapas. Na primeira, correspondente ao período da infância e da poesia, a alma conserva "recordações verdadeiras e puras da sua origem imortal (...); nesse tempo tudo me chegava aos olhos da alma alumiado, risonho, variegado, porque tudo transparecia através de um prisma de sete cores da inocência singela e crédula da infância". No segundo período, Herculano evoca as paixões e esperanças e a dúvida instala-se no seu coração. A respeito, frisa: "A inocência morreu, a poesia íntima e crente desbaratou-se, o sentimento religioso esmoreceu; mas ficam os deleites dos sentidos que nos embriagam; os aplausos das multidões aos nossos hinos decorados, que elas ainda julgam sublimes e esplêndidos; aplausos que nos desvairam: fica-nos uma filosofia orgulhosa e insensata, que se crê profunda, uma ciência superficial que se crê completa, pela qual dormimos tranquilos sobre a negação de todas as idéias místicas de todas as lembranças de Deus" [apud Beirante, 1977: 84].
O terceiro período caracteriza-se pela luta entre a Razão e a Fé. Eis a descrição que dele faz Herculano: "A poesia suave e pura da infância e da puberdade passou; passa também o íris das paixões férvidas, das ambições insaciáveis, da crença na própria energia. Começa então o pardo crepúsculo, que, semelhante a herpes lentos, vai lavrando por todas as nossas opiniões e afetos e os prostra, os subjuga. Desde essa época, a vida tem largas horas de tédio, em que o existir é uma carga pesada; porque nos falta alicerce em que possamos firmar-nos; porque flutuamos sobre as névoas densas do duvidar de tudo". Segundo Cândido Beirante, este é o período das grandes polêmicas com o clero. Sem chegar a rejeitar a fé num catolicismo de tipo pré-tridentino, Herculano opõe-se ao clero ultramontano e reacionário, particularmente aos jesuítas.
Manuel de Serpa Pimentel (1825-1900) caracterizava assim, em 1881, a personalidade do nosso autor, neste período polêmico: "Alexandre Herculano era um cismontano como Bossuet (1627-1704), um jansenista como Pascal (1623-1662), um velho católico como Doellinger (1799-1890). Espiritualista cristão, via o cristianismo compatível com a liberdade e a moral do Evangelho e como a única base sólida da civilização e do progresso". Para Silva Cordeiro, o polêmico Herculano "na Idade Média teria ficado a dois passos da heresia, semi-ariano como Atanásio (+373), montanista como Tertuliano (160-220), mas tenaz e altíloquo ante os bispos de Roma como Cipriano (+258) em defesa dos relapsos, ou como São Bernardo (1090-1153) invectivando a corrupção da Igreja. Esta maneira de encarar o problema religioso, se lhe concitava ódios nos dois campos, foi também uma das forças ocultas de seu prestígio, porque o deixava bem a descoberto, consciência surpreendida em flagrante" [apud Beirante, 1977: 89].
Cândido Beirante, por sua vez, caracteriza assim o esforço conciliador de Herculano entre filosofia e Deus neste terceiro período, bem como a distinção que introduz entre clero e religião: "Na sua obra de doutrinação, há uma idéia fixa: conciliar a filosofia e Deus, daí a apologia dum cristianismo semelhante ao dos primeiros cristãos (...). Isto compreende-se muito bem no caso de Herculano, porque ele viu as massas populares fanatizadas pelo clero regular lutarem durante dois anos contra os liberais, como se se tratasse duma guerra santa contra os infiéis. Esta distinção entre clero e religião, no que diz respeito ao Cristianismo, é uma dicotomia perigosa pelas conseqüências que envolve. Podíamos ver nesta sua religião quase natural e no seu latente anticlericalismo uma herança das Luzes que, com o decorrer do tempo, se acentuou" [Beirante, 1977: 69].
O quarto período assinalado por Herculano corresponde à etapa final da sua vida, quando do seu refúgio no Vale de Lobos. Diz o historiador a respeito: "A mente se definha e ela apenas dormita para despertar vigorosa ao sol da eternidade, que rompe atrás do sepulcro (...). Depois da taça do mel esgotada, resta a do absinto. Que se resigne e espere aquele que vai devorando os dias da dúvida e do desalento. Chegará a hora de renascer para a poesia e para a certeza: será a hora da morte". A solução herculaniana do conflito entre Fé e Razão é colocada num plano trans histórico. Como afirma Cândido Beirante, "a confiança não o abandona. Se não pode conciliar, neste mundo, a fé cristã com os imperativos da razão e do século, resta ainda o Além que, para ele, é uma certeza" [Beirante, 1977: 86].
4 - Concepção religiosa da história e da política.
Fundamentada a moral humana numa visão transcendente ao indivíduo, é lógico que a explicação da história seja feita em termos transpessoais e sobrenaturais. Para isto, Herculano encontrou farto material de inspiração no espiritualismo platônico de Santo Agostinho (354-430). A realidade verdadeira não é a constituída pelos acontecimentos mutáveis, mas a que se baseia nas idéias eternas. Assim, a história é explicada em termos trans históricos. Por trás dos acontecimentos humanos estão as Idéias que movimentam a história. Cada época, na história da civilização, representa uma idéia. Mas no fundo de todo o processo histórico, há uma base ontológica que sustenta o acontecer humano: trata-se, numa perspectiva claramente agostiniana, da sabedoria e vontade de Deus que conduzem a história. Em outros termos, a razão da história é a Providência divina. A fundamentação herculaniana da história é, portanto, de caráter religioso, porque, como diz Saraiva [1976: 89], "uma teoria providencialista da história é, afinal, uma interpretação religiosa dos acontecimentos". O providencialismo herculaniano tem, contudo, uma outra fonte de inspiração que lhe permite conciliar o progresso com a Providência divina, como bem assinala Cândido Beirante [1977: 97]: "Herculano, bem como os historiadores do período romântico, vão conciliar ambos os termos (Progresso e Providência divina). Por que será que Herculano é providencialista e ao mesmo tempo presta culto sincero ao Progresso indefinido? É que, em Herculano, influíram dois grandes filósofos da história: Vico e Herder (1744-1803)".
O próprio Herculano reconhece essa influência numa carta dirigida a Oliveira Martins, do seu último refúgio de Vale de Lobos: "No tempo em que eu andava peregrinando por esse mundo literário, antes de me acolher ao mundo tranquilo da santa rudeza, conversei um pouco com Vico e Herder, com Vico e Herder como a Itália e a Alemanha os geraram, e não como os aleijaram os cabeleireiros franceses". Vários anos antes, em 1839, Herculano já tinha expressado a necessidade de "escrever uma história de Portugal, segundo o sistema de Vico e Herder" [apud Beirante, 1977: 97]. Valha anotar que na Scienza Nuova, cujo subtítulo reza: "História ideal das leis eternas de que dependem os destinos de todas as nações, o seu nascimento, o seu progresso, a sua decadência e o seu fim", Vico sustenta a tese de que o progresso autêntico não pode surgir do desconhecimento de Deus ou do abandono da lei moral. Nesse ponto, certamente, o pensador italiano distancia-se dos filósofos do período racionalista.
A Providência divina é definida por Vico como "sabedoria suprema a qual, sem força de lei, mas usando dos próprios costumes dos homens, regula e conduz divinamente a grande comunidade das Nações". Podemos afirmar que a interpretação da história em Vico é agostiniana, mas integrando essa visão com a mentalidade moderna, baseada na idéia de progresso. A respeito, Franco Américo frisa que "a conciliação da causalidade divina com o livre arbítrio (...) tenta-a Vico na consideração dinâmica da história e da Providência. Em virtude desta colaboração entre Deus e o homem, a história tem um valor humano e um sentido divino" [apud Beirante, 1977: 97]. A influência de Vico estende-se, no século XVIII, ao pensador alemão Herder, em quem Herculano também diz inspirar-se.
A idéia básica de Herder, segundo Tonnelat, consiste em "provar que na Terra há uma só e mesma espécie humana a quem Deus prometeu um aperfeiçoamento constante e uma felicidade sempre aumentada. Só o homem é perfectível, dentre todos os seres terrestres" [apud Beirante, 1977: 97]. Herder também salienta a idéia, tão cara a Herculano, como frisei anteriormente, de que os progressos materiais e os avanços científicos são igualmente importantes, posto que através deles se revela o poder da razão humana. A cultura, segundo ele, longe de afastar os homens de Deus, os aproxima dele. Apesar de o progresso da cultura não ter o mesmo ritmo em todos os povos, não existe superioridade de um povo sobre os outros, segundo Herder, pois as luzes da razão sempre encaminham os homens para o melhor, e, de outro lado, os progressos dos diversos povos contribuem para o progresso geral da Humanidade.
Desenhadas as linhas gerais do providencialismo herculaniano, bem como das fontes que o inspiraram, analisemos a aplicação que Herculano faz do seu providencialismo à história e à política portuguesas. O providencialismo é claro. À maneira dos antigos profetas bíblicos (e valha a pena registrar aqui a semelhança entre a pregação providencialista herculaniana e o discurso dos doutrinários franceses, notadamente Royer-Collard, François Guizot e o mais importante discípulo destes, Alexis de Tocqueville), o historiador português identifica-se como arauto da Providência, que lhe incumbiu a missão de fazer ver a ruína futura da sua Pátria. Eis a síntese que Beirante [1977: 104] faz desse aspecto profético: "N' A voz do Profeta, escrito que bem parece uma proclamação bíblica de estilo profético, Herculano fala muitas vezes da Providência que o enviou e lhe faz ver a ruína futura da Pátria. Tem várias exclamações em que proclama o seu providencialismo: O Senhor nosso Deus é justo: curvemos a cabeça diante da sua Providência (Opúsculos, I, p. 36). Relembrando os tempos em que fora soldado da liberdade, diz: A Providência infundiu-nos valor, e sofremos, sem murmurar, a fome (Opúsculos, I, p. 38) e o que padece não deve queixar-se, nem rebelar-se contra a Providência; porque essa queixa inspira-a a soberba (Opúsculos, I, p. 42). A sua confiança está no justo juízo de Deus: A justiça celeste nunca dorme, como na alma do criminoso nunca se cala o remorso (Idem, p. 44). Ao terminar A voz do Profeta, Herculano, desdobrado em profeta, exclama: Não sabia como desculpasse perante a Providência os pecados do povo (Idem, p. 114)".
A idéia de Vico, de conciliação entre a Providência divina e o livre arbítrio, subjaze no seguinte texto de Herculano: "A religião, portanto, não encontra na indústria nem na ciência que versa sobre suas causas e leis gerais, a menor oposição. No pensamento do Cristianismo (...) é o trabalho que fecunda a natureza, e multiplica por Deus este festim da criação, ao qual a Providência convida tudo o que tem fome. O que repugna à religião não é a conquista do homem sobre a matéria - é o reinado da matéria sobre o homem – (...). O Cristianismo, igualando os homens moral e religiosamente, unindo-os pelos laços da fraternidade, enobrecendo todo o trabalho honesto, ferindo pelo nariz a escravatura (...) deu início a uma época inteiramente nova para as relações de homem a homem" [apud Beirante, 1977: 57-58]. A partir desses pressupostos básicos, de que a Providência lhe encomendou a missão de assinalar o perigo de ruína da sua Pátria e da conciliação existente entre livre arbítrio e Providência divina, Herculano passa a interpretar a história como um processo dirigido por Deus.
Eis, por exemplo, a forma em que ele explica o surgimento das nações modernas, repetindo os traços gerais da exposição de Guizot no seu clássico livro intitulado: Histoire de la Civilisation en Europe depuis la chute de l'Empire Romain jusqu'à la Révolution Française: "Grandes historiadores têm desenhado o sombrio e imenso quadro da dissolução do Império dos Césares. Este resumia toda a civilização antiga; resumia-a e continha-a em si. Essa dissolução havia acabado a tarefa que a Providência lhe destinara na obra do progresso humano. O Cristianismo aprofundara já as raízes na terra, vicejava aspergido com o sangue dos mártires, abrigava as sociedades com a sua vasta sombra e, tomando os membros desse cadáver gigante que se desconjuntava, ia preparando cada um deles para o converter num corpo social cheio de mocidade e de vida. Novas migrações desciam do setentrião ao meio-dia da Europa para o renovar, como em tempos remotíssimos tinham descido das chapadas interiores da Ásia a povoa-lo. As legiões, a política dos imperadores e a majestade do nome romano serviram por algum tempo de dique à invasão. Fora, porém, Deus que soltara a torrente. Era uma luta sublime a da civilização contra a barbaria; mas esta rompeu as barreiras. As hostes e as tribos selvagens do norte arrojavam-se por cima do Império: a vaga seguia-se à vaga. Daquele grande cataclismo nasceram as nações modernas" [Herculano, 1914: I, 69].
Em relação à luta de séculos, na Península Ibérica, entre cristãos e sarracenos, afirma Herculano [1914: I, 157-158]: "A Providência decretara a restauração do Cristianismo na Península e os seus decretos deviam cumprir-se, bem se, às vezes, a execução deles parecesse retardar-se". E interpreta de modo providencialista a decadência do império muçulmano na Península Ibérica e o triunfo do Cristianismo: "Sem recusar aos guerreiros da cruz a audácia e o entusiasmo próprios daqueles vigorosos tempos, as suas façanhas reduzem-se às proporções ordinárias quando se confrontam com a situação dos que eles venceram e subjugaram. Longe também de negar por este modo a intervenção da Providência nos destinos do gênero humano, só aí acharemos motivos para admirar as leis de ordem moral que regem o universo, não menos imutáveis do que as leis físicas que presidem à existência material dele. Os maometanos da Península oferecem-nos pelo meado do século XII mais um desses exemplos, ao mesmo tempo terríveis e salutares, de que abunda a história. Naquele país, seja qual for o seu grau de civilização e poderio, onde falece o amor da pátria, onde os vícios mais hediondos vivem à luz do sol, onde a todas as ambições é lícito pretender e esperar tudo, onde a lei, atirada para o charco das ruas pelo pé desdenhoso dos grandes, vai lá servir de joguete às multidões desenfreadas, onde a liberdade do homem, a majestade dos príncipes e as virtudes da família se convertem em três grandes mentiras, há aí uma nação que vai morrer. A Providência, que o previu, suscita então outro povo que venha envolver aquele cadáver no sudário dos mortos. Pobre, grosseiro, não numeroso, que importa isso? Para pregar as tábuas de um ataúde, qualquer pequena força basta" [Herculano, 1914: I, 201-202].
Até os acontecimentos negativos são ordenados pela Providência divina. Referindo-se à derrota sofrida pelos cristãos portugueses na batalha de Alcácer Quibir (1578), afirma o historiador português: "A destra de Deus tinha escrito no livro da Providência o dia em que para Portugal devia acabar a glória de séculos e toda a casta de prosperidades. Um dia e uma batalha acabou assim com a fúria e a felicidade de um povo que fora tão afamado e temido" [Herculano, 1914: I, 104-105]. Em que pese as derrotas dos povos e as quedas dos Impérios, contudo, o progresso é inevitável e Deus é quem o promove. "O gênero humano - frisa o nosso autor - que sempre caminha avante, deixaria acaso após si esta porção de seus membros, chamada nação portuguesa? Não, porque ninguém pode contrastar os decretos da Providência nem os progressos da humanidade (...). E criaria a Providência o homem para o assemelhar aos tigres e leões e não o destinaria a mais nobres e altos fins?". Todo o progresso humano tem em Deus a sua origem. A propósito, frisa Herculano [1914: I, 105]: "Felizmente Deus, que inspirou ao gênero humano a sociabilidade e o desejo do aperfeiçoamento, põe na sociedade remédio para os males que deviam resultar da imperfeita ciência. (...). Na mesma natureza do nosso espírito está esse remédio contra o ceticismo e contra as suas precisas conseqüências, o egoísmo e a imoralidade".
O progresso, contudo, não caminha sempre em linha reta. Pode ter paradas e até retrocessos, que Herculano denomina de aberrações do progresso. Com isso, o nosso autor pretendia, à maneira de Guizot, conquistar os burgueses receosos de seu tempo, que viam com apreensão o confuso panorama político do país. Para ele, a burguesia deve assumir a sua responsabilidade de classe orientadora da sociedade, sem se deixar assustar pelas crises passageiras. A respeito, escreve na sua obra: História da origem e estabelecimento da Inquisição em Portugal: "Os membros da burguesia que não têm conduta nem ânimo para afrontar as aberrações do progresso (aberrações que nunca faltam nas conjunturas das grandes transformações) mentem aos destinos da sua classe, maldizem a santa obra de civilização, as tradições de seu país, os fins do cristianismo e os próprios atos da sua vida pública anterior" [apud Beirante, 1977: 110-111].
Cândido Beirante [1977: 111] sintetiza assim esse aspecto do pensamento herculaniano: "Realmente, Herculano faz a apologia do Progresso em nome das tradições e da liberdade, em nome do cristianismo e da civilização. O progresso sócio-moral, uma vez conseguido, não pode ser destruído". A certeza da inevitabilidade do progresso alicerça-se na crença de que é vontade de Deus expressa no Evangelho. A respeito, frisa Herculano: "A liberdade, a civilização, o progresso, que são leis de Deus, reveladas nas aspirações de todos os homens, nos caracteres dos séculos, no desenvolvimento invencível do espírito humano; a liberdade, a civilização e o progresso, que se contêm no Evangelho de Cristo" [apud Beirante, ibid.]. A inevitabilidade do progressismo de Herculano salta à vista no seguinte texto, escrito por ele no desenvolvimento de notável polêmica travada no jornal O Português, em 1853: "O caminho de ferro é inevitável, inflexível como o destino. Que se nos permita uma expressão hiperbólica. Se não construíssemos vias férreas, protestando contra a civilização, a Providência, que dirige a Humanidade, as faria cair do céu sobre nossos campos. Ao homem não é lícito desobedecer ao gênero humano, cujos passos na estrada do futuro Deus alumia com o facho da luz eterna" [Apud Beirante, 1977: 109].
Qual é o papel do historiador? Herculano considera que ele deve testemunhar, perante a sociedade da sua época, esse sentido oculto em direção ao progresso, que a Providência traçou para a Nação portuguesa. Observado os fatos antigos, o historiador pode traçar os lineamentos gerais do que poderá vir a ocorrer num povo. É necessário, para isso, conhecer as próprias tradições. Não existe, contudo, uma história iluminista da Humanidade. Cada povo percorre a sua trilha. Mas o historiador não pode se deixar enganar pelos fatos descosturados. Deve interpretá-los à luz da idéia providencialista. O historiador, de outro lado, deve levar em consideração a liberdade humana, o que o conduzirá a não pretender traçar leis gerais, como as das coisas naturais, mas a tentar identificar tendências esclarecedoras do comportamento dos homens. Pode-se, apenas, esboçar uma probabilidade, em relação ao comportamento humano.
A propósito da metodologia da história defendida por Herculano, escreveu o saudoso filósofo português Eduardo Abranches de Soveral [2002: 12]: "Ao observar que tudo o que realmente acontece tem uma causa e que os sucessos só parecem fortuitos porque se ignora aquilo que os determinou, tem Herculano inteira razão, segundo penso. Não obstante, deverá anotar-se que, sobretudo no plano da realidade histórica, a maioria das causas não são naturais mas humanas. E se, quanto às primeiras, se poderá metodologicamente admitir um seguro conhecimento, integrando-as num sistema de leis permanentes e universais, já, quanto às segundas, esse conhecimento seguro não é possível, pois o comportamento livre dos homens é, como tal, imprevisível. Quando muito se poderá estabelecer um sistema normativo à luz do qual esse comportamento livre se objectivaria do modo mais eficaz e perfeito. (Para Herculano, o valor que daria às ações humanas a máxima consistência ontológica seria a liberdade)".
5 - O Liberalismo de Herculano.
Fazendo um esforço de síntese, analisaremos nesta parte seis aspectos do Liberalismo de Alexandre Herculano: a) a sua decidida rejeição do despotismo; b) a inspiração religiosa do pensamento político; c) a vinculação do liberalismo de Herculano com a tradição; d) o nacionalismo; e) a preocupação do liberalismo herculaniano por chegar ao estabelecimento de instituições políticas que garantam a realização dos ideais professados.
A) Rejeição do despotismo.- Na sua História de Portugal, Herculano critica a forma em que se concentrou o poder nas mãos do monarca, esquecendo as antigas tradições de liberdades locais, originárias da Idade Média. A rejeição do absolutismo é um traço constante na sua obra. Eis a forma em que Joaquim Veríssimo Serrão sintetiza a crítica histórica feita por Herculano ao surgimento do absolutismo português: "O apego à Monarquia, como instituição suprema para o bom governo dos povos, nunca foi posto em causa pelo historiador, que via na figura régia o garante do equilíbrio político e social. Mas com a condição de os monarcas guardarem as liberdades que asseguravam a grandeza e a virtude dos cidadãos, não os transformando em súditos e escravos. A baliza temporal de D. João II (1455-1495) para distinguir as duas fases históricas da Nação, constitui um dos axiomas de Herculano, que, sendo um medieval de formação, via nos fins do século XV, com a expansão em curso e a tendência para o absolutismo, a grande viragem que alterou gravemente o equilíbrio português. Daí que assacasse os maiores defeitos aos reis posteriores [...], como se a história moderna do país se houvesse reduzido a um acervo de misérias e desgraças. Tal foi a influência de Herculano neste pensamento, que levou autores capazes, como Oliveira Martins, a situarem a decadência nacional no processo de descobrimentos e conquistas, reduzindo a figuras pobres os monarcas posteriores ao Príncipe Perfeito (Dom João II)" [Serrão, 1977: 47-48].
Não podemos deixar de encontrar aqui, nesta defesa de Herculano em prol de uma monarquia aberta à defesa da liberdade, um eco do pensamento de Guizot, que defendeu a Monarquia de Julho na França e que, de forma clara, considerava ser a Monarquia brasileira uma instituição em defesa das liberdades e da representação, constituindo uma garantia contra o despotismo [cf. Guizot, 1864: 247-271].
Já salientamos, na no início da Segunda Parte deste ensaio, a forma em que, de acordo com Herculano, consolidou-se o poder em Portugal como propriedade particular do príncipe, o que ensejaria o surgimento do absolutismo a partir do século XV. Limitemo-nos aqui, simplesmente, a enfatizar a sua rejeição a qualquer forma de despotismo, como algo absolutamente alheio à natureza dos povos livres. Eis a forma em que o nosso autor introduz a sua História de Portugal: "A liberdade tem conseqüências inevitáveis; as gerações dos povos livres participam perante o futuro da responsabilidade dos poderes públicos ou, antes, a responsabilidade é delas, porque têm sempre força e meios para os revogar aos sentimentos do pudor e do dever quando eles a esquecem. As virtudes ou os crimes dos que as governam; a sua glória ou a sua desonra pertence-lhes. O despotismo, esse não o podem chamar à autoria. Para mim a questão, vista por esse lado, estava resolvida. Não era, não podia ser o desejo de reagir contra manifestações oficiais e solenes o que me impelia a renovar esforços tanto tempo interrompidos. Era uma destas afeições individuais, modestas e desinteressadas, que nascem, como flor singela, nos pedregais da vida" [Herculano, 1914: I, 13].
O historiador português é um liberal no sentido pleno da palavra, abarcando a sua doutrina as três instâncias essenciais da cultura, da política e da economia. É kantiano do ponto de vista cultural (embora não tenha lido jamais a obra do pensador de Königsberg, mas tomado contato com os seus lineamentos gerais muito provavelmente através da obra de Madame de Staël De l'Allemagne, que possibilitou aos portugueses o conhecimento do kantismo) [cf. Staël, 1968]. Herculano, outrossim, acredita na livre iniciativa em matéria econômica (embora com ressalvas conservadoras quanto à adoção da técnica, que deve ser adotada sobre um pano de fundo moral). No que tange à política, o nosso autor defende denodadamente o indivíduo, na sua liberdade, contra os avanços do estatismo. Eis um texto bem revelador dessa índole liberal ampla. Em carta endereçada a Oliveira Martins em 10 de dezembro de 1870, escreve Herculano: "Eu, meu caro democrata e republicano, nunca fui muito para as idéias que mais voga têm hoje entre os moços e que provavelmente virão a predominar por algum tempo no século XX, predomínio que as não tornará nem piores nem melhores do que são. A liberdade humana sei o que é: uma verdade da consciência, como Deus. Por ela chego facilmente ao direito absoluto; por ela sei apreciar as instituições sociais. Sei que a esfera dos meus actos livres só tem por limites naturais a esfera dos actos livres dos outros e por limites factícios restrições a que me convém submeter-me para a sociedade existir e para eu achar nela a garantia do exercício das minhas outras liberdades. Todas as instituições que não respeitarem estas idéias serão pelo menos viciosas. Absolutamente falando, o complexo das questões sociais e políticas contém-se na questão da liberdade individual. Por mais remotas que pareçam, lá vão filiar-se. Mantenham-me nesta, que pouco me incomoda que outrem se assente num trono, numa poltrona ou numa tripeça. Que as leis se afiram pelos princípios eternos do bom e do justo, e não perguntarei se estão acordes ou não com a vontade de maiorias ignaras" [apud Oliveira Martins, 1984: 229].
Aparece nestes dois textos um eco da influência recebida por Herculano dos doutrinários e os seus discípulos, como Tocqueville. Não é de claro sabor tocquevilliano essa profissão de fé na defesa da liberdade, semelhante à confissão que fazia o pensador francês de estar sempre do lado daquela, em que pese a tradição despótica que tomou conta do seu país? Lembremos a profissão de fé liberal de Tocqueville [1988: 93-95], formulada na sua obra O Antigo Regime e a Revolução: "Alguns hão de acusar-me de mostrar neste livro um gosto muito intempestivo pela liberdade, a qual, segundo me dizem, é algo com que ninguém mais se preocupa na França. Só pedirei àqueles que me fariam esta censura, lembrar-se que esta tendência é muito antiga em mim. Há mais de vinte anos, falando de uma outra sociedade, escrevia quase textualmente o que vão ler aqui. No meio das trevas do futuro já podemos descobrir três verdades muito claras. A primeira é que em nossos dias os homens estão sendo levados por uma força desconhecida, que temos a esperança de poder regular e abrandar, mas não de vencer, e que os impele suave ou violentamente a destruir a aristocracia. A segunda é que, em todas as sociedades do mundo, aquelas que sempre encontrarão as maiores dificuldades para escapar por muito tempo ao governo absoluto, serão precisamente estas sociedades onde não há mais e não pode haver uma aristocracia. A terceira é que em nenhum lugar o despotismo poderá produzir efeitos mais nocivos do que neste tipo de sociedade, porque mais do que qualquer outra espécie de governo, ele favorece o desenvolvimento de todos os vícios, aos quais estas sociedades estão especialmente sujeitas, e assim as empurra numa direção à qual uma inclinação natural já as fazia pender. (...). Só a liberdade pode combater eficientemente, nesta espécie de sociedades, os vícios que lhes são inerentes e pará-las no declive por onde deslizam. Com efeito, só a liberdade pode tirar os cidadãos do isolamento no qual a própria independência de sua condição os faz viver, para obrigá-los a aproximar-se uns dos outros, animando-os e reunindo-os cada dia pela necessidade de entender-se e agradar-se mutuamente na prática de negócios comuns. Só a liberdade é capaz de arrancá-los ao culto do dinheiro e aos pequenos aborrecimentos cotidianos (...) para que percebam e sintam sem cessar a pátria, acima e ao lado deles. Só a liberdade substitui vez por outra o amor ao bem-estar por paixões mais enérgicas e elevadas, fornece à ambição objetivos maiores que a aquisição das riquezas e cria a luz que permite enxergar os vícios e as virtudes dos homens. (...) Eis o que eu pensava e dizia há vinte anos. Tenho de confessar que desde então nada aconteceu no mundo que me levasse a pensar e falar diferentemente. Tendo demonstrado a boa opinião que eu tinha da liberdade num tempo em que alcançou o apogeu, não acharão ruim que nela eu persista quando a abandonam".
Para Herculano, a rejeição do despotismo é um princípio que não admite a menor dúvida. Em carta a Oliveira Martins datada em 10 de dezembro de 1870 [apud Serrão, 1977: 194] escreve estas palavras, que lembram a rejeição do absolutismo feita por John Locke (1632-1704) no seu Primeiro Tratado sobre o Governo Civil. Note-se o sabor empirista do texto, que defende a soberania da Nação como um fato: "Tão ilegítimo acho o direito divino da soberania régia, como o direito divino da soberania popular. A soberania não é direito: é fato - fato impreterível para a realização da lei psicológica, até fisiológica, da sociabilidade, mas, em rigor, negação, porque restrição, nos seus efeitos, do direito absoluto, e cujas condições são, portanto, determinadas só por motivos de conveniência prática e dentro dos limites precisos da necessidade. Fora disto toda a soberania é ilegítima e monstruosa. Que a tirania de dez milhões se exerça sobre o indivíduo, que a de um indivíduo se exerça sobre dez milhões, é sempre a tirania, é sempre uma coisa abominável".
Eduardo Soveral destacou a firmeza das convicções liberais de Herculano, abeberadas na sua vida familiar e que o levavam a não transigir com o despotismo, em qualquer uma das suas manifestações. A respeito, frisa Soveral [2002: 6]: "Também as convicções liberais que herdou cedo lhe moldaram a sensibilidade e lhe nortearam as idéias políticas. Desde sempre repudiou o absolutismo régio e o jacobinismo radical e revolucionário, apostado em instaurar, com o apoio despótico das maiorias, uma igualdade que considerava utópica. E pugnou por um regime em que se não ficasse na afirmação de princípios e boas intenções, mas de forma efectiva fosse garantida a liberdade civil".
B) Liberalismo e Religião.- Já analisamos suficientemente, nas páginas anteriores, a inspiração religiosa que marca todo o pensamento herculaniano. Reforcemos as considerações feitas, mostrando a íntima ligação que existe entre a sua forma de entender o liberalismo e a visão religiosa do homem e do mundo. Veríssimo Serrão [1977: 50] afirma que "O liberalismo de Herculano não põe em causa, antes defende com vigor, o apego religioso que animou os Portugueses no seu ideal de cristandade. O respeito que mereciam as cinzas dos antigos heróis identificava-se nele com o próprio culto da Nação portuguesa. A vergonha, vergonha eterna não provinha de se manter a lembrança desses homens, mas da ambição e falta de caráter de muitos outros que, em nome de uma nova doutrina política, colhiam os benefícios de um saque no patrimônio nacional e reduziam ao enxovalho tradições venerandas".
Oliveira Martins, por sua vez, define assim a índole religiosa do liberalismo herculaniano: "A tradição religiosa, ou antes aquela pseudotradição de um catolicismo liberal inventada pelo romantismo servia, pois, ao filósofo para temperar o seu individualismo, conciliando-o com um resto de autoridade social consagrada nas prerrogativas do trono representativo. De tal modo se combinava o racionalismo com o romantismo, e este traço é o que dá a Herculano, ou antes à sua doutrina, um caráter de individualidade original, depois do ensino apenas racionalista de Mouzinho da Silveira (1780-1849)" [Oliveira Martins, 1984 : II, 235]. A inclinação de Herculano em favor do liberalismo monárquico, é devida a um esforço de adaptação do liberalismo ao contexto católico português, a fim de superar o risco do democratismo. Certamente pesa aqui, como já foi destacado, o influxo de Guizot e dos demais doutrinários, que na França já tinham tentado equacionar um tipo de solução semelhante, ao ensejo da monarquia de Luís Filipe. O nosso autor queria um tipo de liberalismo que não colidisse com as tradições religiosas e que possibilitasse a superação do jacobinismo e do terror. Veríssimo Serrão [1977: 195] afirma a respeito o seguinte: "Herculano considerava o regime democrático como inadaptado aos estratos mentais do homem europeu, marcado pela crença católica que levara ao fortalecimento das instituições de vários países. Admitia que na origem da mentalidade republicana da Suíça e das colônias inglesas da América estivesse a força respectiva do calvinismo e do puritanismo, como prolação da sua vida moral. A índole, os costumes e a expressão própria desses países mergulhava em práticas religiosas que lhe mantinham o vigor. Já o mesmo não sucedia com as nações católicas da Europa, ligadas pelas suas raízes seculares ao liberalismo monárquico".
Herculano era um doutrinário de pura cepa. Interessava-lhe não apenas a vida intelectual, mas a sua projeção sobre o mundo da política, a fim de torná-la a esta mais humana. À maneira de Pierre-Paul Royer-Collard ou de Guizot, aspirava a transformar as instituições de seu país, tornando-as mais civilizadas, ou seja, pondo-as a serviço do homem, superando portanto a velha tradição despótica do absolutismo. Se se afastou da vida pública em alguns momentos da sua vida, fê-lo para reativar a sua reflexão em face da sociedade e voltar à liça levando novas abordagens, que possibilitassem uma renovação das instituições. A propósito deste traço do nosso autor, escreveu Eduardo Soveral [2002: 9]: "Interessa declarar antes que comungo da opinião dos que entendem que o recolhimento em Vale de Lobos não deve ser interpretado como uma renúncia à vida pública que a incompreensão, a inveja, a má fé, e os mesquinhos ataques pessoais tornavam, uma vez mais, inabalável para um homem de princípios e de caracter como ele era. Penso também, que Herculano, pelo contrário, soube reagir positivamente a esse clima malsão da vida cultural portuguesa, e que, em Vale de Lobos, continuou a desempenhar o papel público que mais se lhe afeiçoava: exercer um magistério intelectual e moral, fora e acima das correntes, dos grupos, e mesmo das instituições, excluindo-se de qualquer espécie de cumplicidade, inclusive daquelas que a aceitação de mercês e honrarias permitisse admitir".
Doutrinário, liberal portanto, mas também contrário ao democratismo e defensor convicto da monarquia representativa. Herculano escreve, em carta dirigida a Oliveira Martins [1984: II, 230] em 10 de dezembro de 1870: "A democracia repugna às nações ocidentais da Europa educadas pelo catolicismo que, na pureza da sua índole, é o tipo da monarquia representativa. Seria preciso ignorar a imensa influência que as religiões têm no desenvolvimento intelectual e moral das grandes famílias humanas, na formação lenta da sua índole particular, para não perceber quão difícil é dar um caráter, não só novo, mas até oposto, ao seu organismo social e político". Em que pese a inspiração religiosa do seu liberalismo, nem por isso fica minguada a capacidade crítica de Herculano, conforme ele mesmo confessa: "Depois de uma época de incredulidade em que lentamente perece uma religião, os espíritos cultivados que adotam outra para encher um vácuo e para satisfazer a necessidade psicológica de crer, nem por isso perdem de todo os hábitos de ceticismo e, se abraçam com ardor a nova idéia na sua generalidade, não abdicam de repente as tendências para a discussão e para a dúvida nas espécies particulares" [apud Beirante, 1977: 68].
A mescla da herança iluminista-liberal e do espírito religioso, em Herculano, que é típica aos românticos em geral, cria nele uma divisão interna, que é caracterizada da seguinte forma por Beirante [1977: 66]: "Herculano é um homem dividido: de algum modo é filho espiritual dos iluministas, mas reage duramente contra a sua irreligião. Por um lado, é sensível ao acervo das suas idéias, por outro lado, manifesta-se de acordo com muitas das críticas que lhes são feitas pelos pensadores eclético-espiritualistas das primeiras décadas de oitocentos. Herculano procura seguir uma via de conciliação entre os sistemas opostos que se digladiavam surdamente desde finais do século XVII. Vai adotar a forma do espiritualismo eclético, que afinal já era uma síntese entre o cristianismo e a filosofia anterior". Podemos salientar, finalmente, que a síntese entre liberalismo e cristianismo em Herculano processou-se a partir da sua busca de um princípio que lhe acalmasse "a necessidade psicológica de crer", sem contudo abandonar totalmente o espírito da ilustração. Herculano relata, assim, a sua luta por encontrar esse princípio religioso: "Não achando [...] esperança na religião da matéria em que me criaram, fugi para a religião dos espíritos e, por uma teoria de abstração subjetiva, expliquei como Deus me ajudou nas minhas, aliás inexplicáveis, divagações" [apud Beirante, 1977: 65]. Esse espírito de procura da religiosidade, como frisamos, é comum aos românticos. Eles, como frisa Beirante, "vão criar uma nova tábua de valores religiosos, morais, estéticos, etc., opostos à da filosofia das Luzes. Os escritores do romantismo vão voltar-se para o Cristianismo primitivo sem as superstições de dezoito séculos (na expressão de Herculano), ao contrário dos iluministas que procuravam realizar a divisa de Voltaire: esmaguemos o infame" [Beirante, 1977: 66].
Herculano, sem dúvida, acredita no progresso. Mas vincula a defesa deste a um fundo moral, sem o qual perderia o sentido. Eduardo Soveral destacou pertinentemente esse aspecto do pensamento herculaniano, da seguinte forma: "Esclareça-se que a posição de Herculano quanto ao progresso técnico do país, designadamente quanto à construção do caminho de ferro e da sua ligação à Europa, era muito complexa. Tentarei resumi-la. A sua posição doutrinária de fundo era a seguinte: a subordinação do progresso técnico a padrões morais era condição sem a qual mais valeria que ele não se efetivasse. No que em particular se referia a Portugal, e atendendo ainda ao facto de ser uma nação pequena, e à generalizada tendência para aceitar sem crítica e imitar as idéias e modas que o comboio nos traria diariamente de além-Pirineus, entendia que assim ficaria em grande risco a nossa cultura e o nosso modo de ser. Só gradualmente, e com um maior conhecimento e uma mais justa avaliação das nossas tradições, esse ampliado contacto com o que nos era estranho seria benéfico e não destrutivo. No plano econômico entendia que era prioritário o desenvolvimento da agricultura, e que seria apoiando-se nela que a industrialização devia operar-se. O recurso ao crédito externo, como acontecia com a construção da linha férrea, traria certamente, segundo pensava, prejuízos futuros" [Soveral, 2002: 8].
C) Liberalismo e Tradição.- No liberalismo herculaniano encontramos uma ponte que o liga à tradição medieval, e que lhe permite formular, já no campo das instituições políticas, soluções que sejam aceitas pela Nação, cujo passado ele respeita. Atitude semelhante de culto à tradição medieval encontramos na obra de John Locke, sobretudo quando o filósofo inglês estabelece o princípio dos direitos da Nação, e o culto aos valores religiosos como base da política, o que lhe faz mitigar o individualismo e o racionalismo herdados, respectivamente, de Hobbes e de Descartes. Essa presença da tradição, em Locke, deu-se graças ao influxo que teve nele a obra de Richard Hooker (1554-1600) intitulada Ecclesiastical Polity, verdadeiro compêndio das tradições medievais anglo-saxônicas em matéria política. Pois bem, aspecto semelhante de culto à tradição encontramos na obra de Herculano. Mais uma vez, a responsabilidade pela presença deste aspecto no pensamento herculaniano cabe à sua inspiração romântica, como bem salientou Joaquim Veríssimo Serrão [1977: 193]: "Tem de fixar-se o princípio de que o nosso autor foi, ao mesmo tempo, um romântico e um liberal, pela época em que viveu e pela expressão do seu ideário. Se a sua concepção medieva e a busca de uma definição secular para a origem da nação portuguesa o prendem ao movimento romântico, a valorização do homem como princípio e fim da sociedade política tornou-o um liberal de expressiva marca. Como pensador, Herculano foi mais romântico; como homem para quem a ação política tinha de orientar-se pelo culto estrênuo de uma doutrina, impõe-se pela segunda face. É na conjugação dos dois movimentos, sem qualquer escusada alternativa, que Herculano encontrou a plena realização da sua personalidade, no diálogo permanente que a si próprio impôs entre a pureza doutrinal e a sua vivência no tempo". Diálogo permanente que decorre, ao nosso modo de ver, da influência marcante que os doutrinários franceses exerceram na sua obra e no seu pensamento. Afinal, essa tensão constante entre a concepção do mundo e a ação para transformar o universo político, constitui a marca registrada de homens como Guizot, Royer-Collard e dos que, na França, recolheram essa herança, como é o caso de Tocqueville, ainda no século XIX e de Raymond Aron, no século seguinte.
Um texto do nosso autor serve para ilustrar o profundo respeito que ele professa pelas tradições da Nação portuguesa. Eis as suas palavras: "Oh! Que se a minha débil voz pudesse retumbar nos paços dos grandes e no conselho dos legisladores, eu lhes dissera: nossa glória passou, e o nome português é a fábula do mundo. Caímos no fundo do nosso abatimento, incertos acerca do futuro; é para o passado que, sem rubor ou sem custos, podemos volver os olhos: não apagueis portanto na face da terra natal todos os vestígios de recordações de consolo. Esses claustros, esses templos ora desertos, eram cheios de vida e de ruído em dias de virtude e de renome, e por baixo dessas lages dormem homens que nos legaram larga herança de boa fama. Não vendais ao rico as ossadas dos nossos antepassados, que disso tomarão as raças vindouras estreita conta à vossa memória, nem fieis da piedade do abastado, porque a infâmia que lhe aumentar os tesouros deixa de lhe ser infâmia. Ele espalhará ao vento as cinzas aviltadas, com o mesmo descaro com que o verdugo espalha as do justiçado, condenado a assim cumprir com a sua justiça. Monumentos da história e fonte de meditações são os sepulcros, e em quase todas essas campas, hoje cobertas de musgo, se lê em letras meias gastas o nome de varões abalizados. Eles passaram, mas oxalá nunca a sua memória pereça. É ela o grito de consciência nacional: este grito, se o deixardes soar, talvez ajude à liberdade a regenerar os nossos filhos" [apud Serrão, 1977: 49-50].
D) O Patriotismo.- Em que pese a caracterização de estrangeirado com que Joaquim Barradas de Carvalho (1920-1980) tentou tipificar Herculano, o liberalismo do historiador português, pelo contrário, é de profunda inspiração nacional. Poderíamos aqui lembrar tudo quanto foi afirmado anteriormente sobre o culto ao passado e acerca do papel atribuído à religião no pensamento herculaniano. O patriotismo foi uma das características da geração do nosso pensador.
Veríssimo Serrão [1977: 11] afirma a respeito que "um forte sentimento pátrio animou os homens do século XIX, que punham os valores nacionais acima do ideário pessoal e, quando não o faziam na prática, tinham pelo menos a consciência de respeitar esse princípio. Foi esse um dos grandes legados do liberalismo que cumpre nesta hora relembrar na figura de um dos seus maiores. Também a crença nos direitos individuais que animou o espírito oitocentista, mantém viva a ressonância dos que acreditam no homem como o fim último da sociedade". Segundo a análise crítica que Herculano faz da história portuguesa, a falta de força moral que por volta de 1870 se alastrava em Portugal não era conseqüência da liberdade, mas justamente tinha sido causada pela carência dela, pois tanto o absolutismo quanto a influência francesa conseguiram perverter a reta evolução do espírito medieval português. Em que pese o sistema constitucional da sua época ser "incompleto, contraditório, às vezes absurdo", ele não foi responsável pela descaracterização do país, mas a má aplicação que se fizera dele. Herculano frisava que "o mal está antes no país que nas instituições", nunca deixando de nutrir a esperança de que o seu ideal tivesse perenidade [cf. Serrão, 1977: 205-206].
E) Preocupação com o aperfeiçoamento das instituições políticas.- Ao ser a história, segundo Herculano, a simples manifestação de idéias que obedecem a um plano previamente traçado pela sabedoria divina e que evoluem de acordo com a vontade de Deus, a organização social dar-se-á em base à manifestação desse plano divino, cujos arautos serão, no sentir de Herculano, os espíritos ilustrados, autênticos representantes do sentido comum da sociedade. Assim, segundo diz Saraiva [1976: 109], "a razão pública se converte na razão de uma aristocracia encarregada de pensar pelo todo coletivo de que faz parte; e a soberania do direito na soberania de um grupo privilegiado". O pensamento elitista de Herculano é o mesmo que empolgava ao partido cartista. Antônio José Saraiva [ibid.] sintetizou esse elitismo assim: "à soberania popular contrapõe-se uma sociedade hierarquizada politicamente, em que o voto pertence à aristocracia selecionada pelo censo: soberania da Razão ou do Direito era o nome que se dava à soberania desta oligarquia".
Na base da concepção herculaniana sobre a sociedade hierarquizada, encontramos duas tradições que inspiram o seu pensamento, provenientes porém de horizontes diferentes. De um lado, achamos a herança liberal clássica de John Locke, com a sua insistência na representação de interesses, na sociedade, através de uma elite abençoada por Deus, no contexto da mentalidade calvinista: os proprietários. Só que no caso de Herculano, que teoriza fora do contexto calvinista, os simples proprietários são substituídos pelo mercador, o artista, o industrial, o professor, o homem de letras, o proprietário urbano ou rural, o cultivador, o capitalista, "todos esses atentados vivos contra a igualdade democrática" tão combatida por Herculano. De outro lado, encontramos na visão hierárquica de Herculano a inspiração organicista, que o leva a defender a idéia de umas classes médias reguladoras da sociedade. Influência certamente haurida da leitura de Guizot. Uma sociedade puramente igualitária conspira contra a realidade das coisas humanas. A desigualdade é um fato normal da sociedade, porque decorre da natureza orgânica que lhe é própria. Em que pese a visão organicista e hierárquica da sociedade, não podemos desconhecer a valorização que Herculano faz da soberania popular, expressada através das eleições.
De acordo com o providencialismo herculaniano, existe uma norma absoluta ou arquétipo, que permanece no mundo das idéias, que é superior às sociedades e independente das suas fases históricas e pela qual devem ser aferidas as instituições e as ações dos homens. A idéia da justiça transcendente e soberana insere-se no contexto dessa crença. "Acreditamos na justiça - frisa Herculano - como verdade absoluta pela qual as sociedades vão procurando aferir os seus atos à medida que se aperfeiçoam" [apud Saraiva, 1976: 104]. É aqui que Herculano desenvolve a sua teoria da soberania. A sociedade consegue realizar a idéia de justiça, se fazendo representar moderadamente através das elites ilustradas - que para Herculano identificam-se com as classes médias portuguesas da sua época - mediante o voto censitário, as eleições indiretas e o reconhecimento da monarquia como garantidora da estabilidade do Estado. As classes médias estariam integradas pelos mais capazes. É a noção já elaborada por Guizot de "cidadão capaz", pivô da sua teoria da soberania, como destaca com pertinência Pierre Rosanvallon [1985: 121]. O poder é algo que existe de fato na sociedade; o papel da soberania popular é justamente o de tratar de reduzir ao mínimo o caráter despótico do poder, de forma que transluza na sociedade a idéia da justiça. E só o sistema representativo garante esse processo. A palavras de Herculano a respeito são taxativas: "Acreditamos na razão humana indagadora das leis do justo, como fonte de soberania. É por isso que queremos a verdade do sistema representativo, que proporciona à razão os meios de se produzir e manifestar pela discussão, de ser consagrada pela eleição, e de reduzir constantemente o poder de fato à soberania de direito" [apud Saraiva, 1976: 106].
Herculano considera que para garantir a liberdade do sistema representativo, o regime mais consentâneo é o governo parlamentar. Além disso, é necessário defender constantemente a imprensa e zelar pela pureza do sistema eleitoral. Na geração contemporânea do nosso autor coube a um grande estadista, Mouzinho da Silveira, pôr em prática muitas das idéias professadas por ele. Sobre Mouzinho, escreveu Herculano em 1841: "Só havia um homem capaz de aplicar a filosofia à política: era o homem que tornou impossível o regime absoluto em Portugal, o senhor Mouzinho da Silveira" [apud Beirante, 1977: 50]. Num ensaio publicado em francês, em 1856, quinze anos depois, Herculano refere-se assim à obra do estadista: "Mouzinho fut un verbe, una idée faite chair: il a été la personification d'un gran fait social, d'une révolution qui est sortie de sa tête". Os seus relatórios como ministro da Fazenda não propunham senão "la réligion du bien-être matériel du progrès économique" [apud Beirante, ibid.]. O próprio Mouzinho, no seu testamento, expressa a sua missão de estadista nestes termos: "Vim ao mundo em época fertilíssima em reflexões e invenções, que devem mudar a face do mundo para grande melhoria material e para melhor multiplicação do gênero humano" [apud Beirante, ibid.]. O aspecto central da obra de Mouzinho consistiu em deitar as bases para o surgimento, em Portugal, de uma classe média rica e capaz de sustentar as instituições do governo representativo, dentro da mais clara referência ao ideário dos doutrinários franceses. As reformas que Mouzinho encaminhou e que empolgaram Herculano, dizem relação à supressão das ordens religiosas que pretendiam se manter sobranceiras ao Estado, à eliminação do papel-moeda para conter o surto inflacionário, à redistribuição das terras favorecendo a produtividade, ao combate à exploração escravista nas colônias e à luta contra a improdutividade do clero e da nobreza.
6 - Crítica à filosofia incrédula.
Herculano não nega validade à filosofia. Insurge-se, sim, contra o pensamento iluminista que, a partir de Voltaire, desconheceu o fato religioso. Considera que essa filosofia vã é a responsável direta pelas crises da sociedade européia ao longo do século XIX. Eis a forma em que o nosso autor caracteriza a obra da filosofia incrédula: "Como a florinha do campo, a alma por onde passou a procela da filosofia, esse turbilhão transitório de doutrinas, de sistemas, de opiniões de argumentos, pende desanimada e tristonha; e na claridade baça do cepticismo, que torna pesada e fria a atmosfera da inteligência, não pode aquecer-se aos raios esplêndidos do sol de uma crença viva" [apud Beirante, 1977: 65]. Herculano julga severamente as escolas que, a seu ver, deixaram em segundo plano o aspecto religioso. A respeito, o nosso autor escrevia em 1838: "A verdade! Que é a verdade? [...] Quem me dará uma resposta cabal? [...] Cada uma das escolas que perquire desde os acesos partidários do prazer, os histriões de ferro, chamados Estoicos; desde os semicristãos Platônicos, até os semirepublicanos Epicúreos, desde o pessimista Heráclito até o otimista Pangloss, passando pelo justo meio do compensador Azaís, cada escola me aturde com a sua quimera especial [...]. Na terra, porém, ser-nos-á totalmente defesa a Verdade? Creio que não" [apud Beirante, 1977: 91].
Para o historiador português, só é válida a obra da razão que se abre à fé. É o que Herculano expressa no seguinte texto: "A crença da civilização devia ligar-se com esta: a guerra entre o Evangelho e o Progresso era absurda: era guerra entre luz e luz, não entre luz e trevas. Concordes a fé e o saber, a sua ação sobre os destinos das nações brevemente será imensa e irresistível. É por isto, incrédulos, que vos não convém tentar outra vez reconstruir o andaime podre do filosofismo cadavérico. Por vosso próprio interesse deixai pelas tabernas sua derradeira estância; deixai-o pavonear-se na praça, mas não o leveis (...) para o mundo imenso, solene, santo, das inteligências! Resignai-vos, pois, em silêncio, na vitória intelectual do cristianismo contra a filosofia da incredulidade" [apud Beirante, ibid.]. Levando em consideração que a fundamentação da moral humana estruturou-se, segundo Herculano, por via sobrenatural através da Revelação Bíblica, ele não tem inconveniente em duvidar da capacidade da razão, lhe atribuindo impotência radical que só é superada pela intuição mística, graça divina, que se constitui em única possibilidade para atingir o Absoluto. Assim, Herculano vê impossível aceitar, tout-court, o ecletismo, que supõe a capacidade da razão humana. Mas o nosso autor utiliza, no entanto, algumas respostas desse sistema, para equacionar problemas concretos, como o relacionado à interpretação do processo histórico, ou o que se refere à teoria política do Estado ou à reforma literária.
O fundamental, do ângulo da epistemologia da verdade, é reconhecer a Providência divina. Uma vez aceito este ponto de vista, bem-vinda a razão iluminada pela fé e administrada pelas classes médias, postas por Deus para garantir o feliz desfecho da história portuguesa. Herculano é um audaz defensor da liberdade de imprensa que, sabe, beneficia a atuação das classes médias, contra os radicais e os absolutistas. No seu belo opúsculo intitulado A Imprensa, o nosso autor faz uma clara profissão de fé liberal (como outrora fizera o precursor dos doutrinários, Benjamin Constant de Rebecque, no famoso discurso que constitui o testamento ideológico do autor de Princípios de Política) [cf. Constant, 1970]. O historiador português defende sem meias tintas a liberdade de imprensa, pautada certamente pela defesa dos interesses da média da opinião, ou seja, das classes médias, as chamadas a dirigir a sociedade portuguesa pelo caminho do bem comum a todos os cidadãos. Herculano frisa a respeito: "A liberdade de imprensa é um dogma, o primeiro da religião política moderna, e para muitos até um axioma de filosofia: uma potência essencialmente superior a todas forçosamente é livre. Fique portanto dogma e axioma, porém entenda-se qual é o sentido que neste caso cabe à palavra liberdade. [...] Não falamos aqui senão em relação à moral e à política. A imprensa moderada produz a verdade e a animação para o bem; o silêncio da imprensa ou o delírio frenético da imprensa, nublam a verdade, tiram a energia e o gosto do bem, fazem que a opinião tornada falível, nem seja prêmio a bons e castigo a maus, porque maus e bons a desprezam, como ela merece: quando se pode chamar e se chama ladrão a todos, o que o é consola-se com a honrada companhia em que o meteram; o que não era, talvez, e até por despeito, se decide a aproveitar os prós do ofício, de que já lhe fizeram sofrer os percalços. A aplicação copiosa e injusta da pena, quebrou-lhe o que ela tinha de doloroso, criou uma espécie de impunidade, equivalente a uma mudez profunda da opinião. [...] A liberdade de imprensa, como as demais liberdades, deve, portanto, ter a sua medida e esta medida não pode ser outra senão a que naturalmente limita todas essas liberdades para que possam coexistir em proveito de todos os cidadãos" [Herculano, 1898e: 17-23].
Mas se a crítica à filosofia incrédula leva Herculano a descartar os excessos do iluminismo na versão francesa, de outro lado, em virtude do mesmo élan liberal e antidogmático, o nosso autor é tremendamente duro para com o espírito ultramontano, encarnado na atitude jesuítica, que utiliza as instituições eclesiásticas para fortalecer uma proposta de dominação despótica. Herculano, como outros católicos liberais do seu tempo (Tocqueville na França ou Rui Barbosa no Brasil, por exemplo), não aceita o clericalismo no seio da sociedade civil. Um trecho apenas para ilustrar essa feição do nosso pensador. No opúsculo intitulado A reacção ultramontana em Portugal, ao analisar a perniciosa presença do espírito jesuítico, Herculano escreve, em 1857, ao ensejo da perseguição que lhe foi movida pelos jesuítas: "Onde vos dissemos, filhos de Santo Inácio, que éreis incapazes de um assassínio moral? Onde vos dissemos que não podíeis minar debaixo da terra como a toupeira, cortar a raiz de uma planta, destruir uma existência literária? Onde que não tínheis força para fazerdes um acervo dessa lepra de Job, que devora moralmente tantos dos nossos homens públicos, e que todas as telhas do maior edifício da capital não bastariam a raspar, para o atirardes contra um indivíduo? O que vos dizíamos é que sois muito fracos, não diante de um homem que podeis ferir de noite e pelas costas, mas diante do país, diante da razão pública, diante da liberdade, a quem deveis tudo e que haveis traído vestindo a santa roupeta. (...), O terreno pois da contenda é um terreno neutro, onde os homens de bem e sinceros de todas as escolas políticas podem pelejar unidos como irmãos. A guerra é contra a usurpação estrangeira e com o jesuitismo e ultramontanismo ad hoc de certo tipo de reacionários, fezes de todos os partidos (...). O catolicismo, ainda o mais fervoroso, é estranho à contenda. Não se trata hoje da crença que herdamos de nossos pais e que devemos transmitir intacta a nossos filhos. Trata-se do direito. Trata-se de manter os limites do sacerdócio e do império. Acima também do debate está o sumo pontífice, o primaz da igreja católica, o primeiro entre os seus coepiscopos. Impecável e santo perante os homens, enquanto espontânea e individualmente não transpõe os limites em que circunscrevem a sua ação as instituições eclesiásticas, cumpre-nos curvar a cabeça diante dele como chefe visível da igreja, no exercício das suas legítimas atribuições. O que não somos obrigados a aceitar é os erros e abusos dos seus ministros ou a deslealdade dos nossos [...]" [Herculano, 1908: 7-15].
Herculano atribui papel importante à Igreja portuguesa na formulação da média da opinião no seio das classes médias, que devem dirigir o processo político. Mas a voz que deve ser escutada é, fundamentalmente, a do Pároco de Aldeia (que significativamente é o título de um dos seus mais importantes romances). O historiador português desconfia da cúria romana e de tudo quanto simbolizar fidelidade política a um soberano além fronteiras. Aceita a autoridade espiritual do Papa, nunca a sua ingerência em assuntos políticos. António José Saraiva ilustrou muito bem a posição do nosso autor, no seguinte trecho: "O alto clero e as ordens religiosas são peças essenciais do mundo feudal, pois são eles que desfrutam os dízimos e outros direitos feudais, e que dispõem dos chamados bens de mão morta, retirados da circulação de capitais. A classe média dos párocos de aldeia não é economicamente solidária com o antigo regime, vive, como qualquer trabalhador, das missas, batizados ou casamentos que celebra, e, pormenor que Herculano salienta, nada lucra com os dízimos. Julgava-se possível um entendimento entre a burguesia clerical e a burguesia econômica, política e cultural. Segundo a bela utopia de O Pároco de Aldeia, competiria aos párocos divulgar a mensagem evangélica tal como o liberalismo a concebia: a mensagem igualitária e fraternal, que condenava os escribas e fariseus, que derruía em nome da justiça a exploração do que trabalha pelo que não trabalha, que inspiraria a tolerância, que fortaleceria as virtudes sociais, o amor da família, a morigeração, os hábitos da caixa econômica. Insuflar um espírito novo nas antigas formas rituais, valorizar o pároco a expensas do alto clero e utilizá-lo na difusão do catolicismo liberal - tal parece ser o pensamento fundamental d' O Pároco de Aldeia, o qual nos dá a chave da aparente contradição do tradicionalismo e reformismo no pensamento religioso de Herculano" [Saraiva, 1976: 76].
7 - O romantismo de Herculano e o de Domingos Gonçalves de Magalhães.
Tentando reivindicar uma visão espiritualista do homem, o ecletismo espiritualista de Magalhães, o maior expoente do romantismo no Brasil, desempenha um papel similar ao representado pela obra de Herculano em Portugal. Não cabe aqui uma exposição completa do pensamento de Magalhães. Simplesmente procederemos, à maneira de conclusão deste ensaio, a uma rápida comparação do pensador brasileiro com Herculano. Há nos dois autores um ponto de partida comum: o afã de reivindicar nas obras literárias a importância da fé na vida do homem, e a crença, profundamente enraizada, de que só em Deus alcança pleno sentido a vida humana. Mas enquanto Herculano desenvolve, a partir daí, uma concepção religiosa e não filosófica do mundo, Domingos de Magalhães parte para um autêntico trabalho de cunho filosófico. A respeito, escreve um dos mais importantes estudiosos brasileiros deste último, Roque Spencer Maciel de Barros (1927-1999): "Magalhães responde filosoficamente à questão que já suscitara como poeta: encontra, tão racionalmente quanto lhe é possível, aquele fundamento religioso a que, como poeta, chegara pela fé... A razão justifica a fé e aniquila a dúvida e o ceticismo" [Barros, 1973: 222]. Contrastando com a descrença herculaniana nos sistemas filosóficos, Domingos de Magalhães fundamenta toda a sua obra teórica numa visão filosófica, que deita as bases para uma concepção espiritualista do mundo, na qual possam se inspirar, por sua vez, a justificação racional da liberdade, da moral e ainda da política, conforme expressa no Prólogo à sua obra principal, Fatos do Espírito Humano. A respeito, escreve Roque Spencer: "Só a filosofia - e naturalmente uma filosofia verdadeira - pode dar, em plenitude, as razões do espiritualismo e justificar a própria fé" [Barros, 1973: 222].
Em contraste com a fundamentação da conduta humana no fato religioso cristão feita por Herculano, Gonçalves de Magalhães baseará toda a sua visão da liberdade e da moral, numa análise filosófica inspirada em Cousin e parcialmente em Malebranche e Berkeley. Magalhães tenta uma explicação do homem em termos puramente espiritualistas, que negam qualquer valor substancial ao mundo material, mesmo ao próprio corpo, já que o universo sensível só existe intelectualmente em Deus, como pensamentos seus. O homem, preso no corpo, é livre por ser espírito e adquire a conotação de ente moral justamente em virtude dessa "resistência do corpo". A moral de Magalhães, como a de Cousin, é uma moral do dever que valoriza a intenção do autor e não o resultado do ato" [Barros, 1973: 220-221]. Há, no entanto, um traço comum à teoria herculaniana e à visão filosófica de Magalhães: em virtude do fundo neoplatônico que anima, de longe, os seus sistemas de pensamento, há a tendência, em ambos, a infravalorar o mundo visível, bem considerando que por trás dele há uma idéia, dirigida em última instância pela Providência divina (Herculano), ou bem identificando o mundo sensível, sem mais, como pensamento de Deus (Magalhães). Contudo, a diferença fundamental consiste no fato já mencionado de Domingos de Magalhães valorizar a meditação filosófica, enquanto Herculano a desvaloriza. Em relação a Magalhães é importante salientar que, de acordo com a sua visão da moral do dever, há uma relação direta entre moralidade e sociedade. O homem é moral porque inserto no corpo e, logicamente, na sociedade. "Moralmente falando - escreve Magalhães - o ato é bom, justo e belo, se serve para a conservação e perfeição da sociedade; e a intenção é pura e meritória, se tende ao mesmo fim. A intenção é imoral, e seu mérito nenhum, se o egoísmo, o amor próprio determinou o ato" [Apud Barros, 1973: 221].
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