Não há dúvida de que Leonardo Prota foi um dos mais destacados representantes da corrente culturalista que, ancorada no neokantismo, deitou as bases para um estudo detalhado da filosofia moderna, tentando destacar os aspectos diferenciadores entre as várias meditações nacionais. O seu livro intitulado: As Filosofias Nacionais e a questão da universalidade da Filosofia [Londrina: Edições CEFIL / UEL, 2000] é prova suficiente da sua profundidade e da maneira adequada em que incorporou os conceitos fundamentais da reflexão neokantiana, notadamente da proveniente da obra de Nicolai Hartmann (1882-1950) e Rodolfo Mondolfo (1877-1976).
Em boa hora apareceu a contribuição de Prota, num momento em que a meditação filosófica brasileira se achava, do ângulo da produção acadêmica, presa, ainda, ao modismo intelectual representado pela filosofia analítica, que já foi superado na Europa e nos Estados Unidos, mas que, no Brasil, constituiu a moda filosófica predominante. O vício analítico poder-se-ia identificar com o que José Ortega y Gasset (1883-1955) chamava de "a barbárie do especialismo"[1984: 147-149], que sacrifica o sentido profundo dos textos filosóficos à análise lingüística. Só é filosófica, para a mencionada moda, a análise asséptica dos textos, com pontos, vírgulas e firulas hermenêuticas, não a sua inserção no contexto histórico da civilização ocidental, interessando, muito menos ainda, o significado que deles se possa deduzir para as nossas perplexidades históricas.
Ainda menos filosófica é, para os ditadores da moda filosófica analítica, o estudo dos autores brasileiros, levando em consideração a forma em que eles traduziram, em reflexões originais, a ilustração das nossas inéditas condições históricas, à luz da tradição filosófica ocidental. No final do século XX, era desolador o panorama dos quatorze programas de pós-graduação stricto sensu existentes no nosso país. O Ministério da Educação tinha conseguido a façanha de castrá-los de toda criatividade, tornando-os, apenas, repetição do que se dizia na Europa ou alhures, no contexto do complexo neocolonial típico da nossa cultura. Previamente já tinham sido exorcizados aqueles programas que, como os da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (entre 1972 e 1979), da Universidade Gama Filho (entre 1979 e 1989) e da Universidade Federal de Juiz de Fora (entre 1984 e 1994), dedicavam-se a estudar o pensamento dos filósofos brasileiros e portugueses. Os "consultores" da CAPES baixaram com toda fúria em cima deles, obrigando as respectivas Universidades a cancelá-los, por não se ajustarem às diretrizes analíticas dominantes.
A meditação de Leonardo Prota tem o inegável mérito de ter identificado os Leitmotivs que inspiram as principais correntes filosóficas na época moderna, dando ensejo às filosofias nacionais. Retoma o pensador brasileiro, assim, o profícuo trabalho de identificação das raízes filosóficas da modernidade, tarefa que já tinha sido iniciada, entre nós, por Miguel Reale (1910-2006), Antônio Paim (1927), Luís Washington Vita (1921-1968), João Cruz Costa (1904-1978), etc., e que, no seio da meditação portuguesa contemporânea, encontrou contribuições de grande valor na obra de pensadores como Eduardo Soveral (1927-2003) ou António Braz Teixeira (1936).
A finalidade deste trabalho é simples: mostrar a base sobre a qual se alicerça, do ângulo epistemológico, o trabalho de historiador da filosofia de Leonardo Prota. Como frisei anteriormente, o nosso autor louva-se das contribuições de Nicolai Hartmann e Rodolfo Mondolfo. Resumirei a posição de ambos os autores europeus, a fim de mostrar de que maneira foi justificada, no século XX, a concepção da filosofia como discussão de problemas. Continuarei a exposição analisando a forma em que Leonardo Prota entende a Filosofia Moderna como discussão de alguns problemas peculiares; mostrarei, logo, como ele interpreta os autores, obras e vertentes da Filosofia Moderna. Terminarei resumindo a concepção de Prota acerca da formação das Filosofias Nacionais.
I - Lineamentos gerais da posição de Nicolai Hartmann acerca da meditação filosófica como discussão de problemas.
Nicolai Hartmann foi quem primeiro assinalou o papel dos problemas na meditação filosófica. O seu pensamento estruturou-se a partir dos postulados da Escola de Marburgo, mas acabou por se separar do idealismo lógico daquela Escola, bem como do neokantismo, por influência imediata de Edmund Husserl (1859-1938) e Max Scheler (1874-1928), mas também, segundo o próprio filósofo destaca, graças à retomada, por ele, da antiga tradição metafísica presente na obra de Aristóteles (384-322 a.C.). Hartmann destaca que, na elaboração da sua proposta filosófica, influiu a leitura das obras de Immanuel Kant (1724-1804) e de G. W. Hegel (1770-1931), notadamente no que tange à discussão das raízes ontológicas que são pressupostas no pensamento desses filósofos.
A formulação de uma nova ontologia amadurece, no pensamento de Hartmann, por volta de 1919. As primeiras obras nas quais o autor expôs essa teoria são: Metaphysik der Erkenntnis (1921) e Ethik (1925). Nos anos seguintes, Nicolai Hartmann publicou a sua obra dedicada à lógica, sob o título de: Studien zur Logik (1931 a 1944), cujo manuscrito terminou se perdendo no meio à agitação vivida na Alemanha, no final da II Guerra Mundial.
Não há dúvida de que Hartmann é um dos autores que mais influíram na filosofia do século XX. Possuía o que denominaríamos, hoje, de ética da responsabilidade intelectual, num meio em que pairavam as idéias do totalitarismo e da despersonalização. Dessa inspiração ética, profundamente enraizada na tradição kantiana, dão testemunho as suas palavras: "não há nenhuma consciência acima da pessoa singular". Ou estas outras: "só o espírito pessoal é dotado de intuição, de capacidade de assinalar fins e de orientação". Essa sua enraizada convicção intelectual levou-o a não ceder nunca às modas intelectuais, se norteando, unicamente, pela procura renovada da verdade.
A essência da posição de Hartmann, no que tange à teoria do conhecimento, consiste na afirmação do caráter histórico dos grandes problemas da Filosofia, que constituem problemas-limite, comuns a todas as ciências, e que são, no fundo, problemas metafísicos atrelados a um núcleo irracional e insolúvel. Hartmann utilizou, na sua meditação, o método fenomenológico, mas desatrelando-o da redução transcendental, tendo unicamente adotado a redução ao eidos. Graças a isso, para Hartmann, o fenômeno não exclui a aporética, mas, pelo contrário, torna possível o acesso à Filosofia. À descrição fenomenológica segue-se, em primeiro lugar, para Hartmann, a prática dos métodos analítico e dialético, que constituem uma perspectiva de caráter horizontal dos fenômenos (livre da dimensão triádica da dialética hegeliana); em segundo lugar, vem o método sintético que, no nível mais alto da intuição, possibilita a unificação das categorias, dando ensejo à descoberta de todos os atos alicerçados em outros de nível inferior. Nicolai Hartmann conferiu tal grau de importância ao método eidético, que terminou confundido redução ao eidos com a própria epoché fenomenológica. A respeito dessa confusão, afirma o autor, na sua obra Der Aufbau der realen Welt: "só por isso pode a intuição das essências, abstraindo do acidental, ganhar a essência a partir do singular; este processo é a redução fenomenológica" [cf. Fraga, 1990: 2, 1010-1014].
Contrariando a doutrina husserliana, Hartmann retoma o conceito de coisa em si e, ao contrário da Escola de Marburgo, afirma um ponto de vista realista, no sentido de que o objeto descrito no conhecimento transcende à própria consciência. A sua teoria do conhecimento abre a porta, destarte, à ontologia, cujos aspectos essenciais são os seguintes: o ente em si mesmo, apreendido no processo do conhecimento, dá-se-nos diretamente no fenômeno do ser. A metafísica, pensa Hartmann, já não pode ser uma doutrina de sistemas; nisso o pensador alemão recolhe a crítica levada a cabo por Hume (1711-1776) e Kant. A metafísica somente pode ser possível como uma ontologia crítica. Na sua obra intitulada: Zur Grundlegung der Ontologie (1935), o autor propõe as quatro investigações básicas da sua ontologia. Destaquemos, apenas, as duas mais caraterísticas, que tratam da relação de essência e existência e do problema do ser ideal e da sua relação com o ser real.
No que tange à pesquisa da relação da essência com a existência, Hartmann dá destaque à apreensão da existência sobre a afirmação da essência. A respeito, afirma: "A existência da árvore no seu lugar é uma essência da floresta, a floresta seria outra sem ela; a existência do ramo na árvore é uma essência da árvore. (...). A existência de uma coisa é, simultaneamente, essência de outra". De outro lado, "a essência da folha é a existência da nervura, a essência do ramo é a existência da folha, etc.". O realismo de Hartmann, chamado pelos seus críticos de voluntarista, e que recebe a influência de Scheler e de Dilthey (1833-1911) destaca a experiência do próprio eu: a afirmação mais clara do ser-em-si, é-nos dada pela existência dos nossos atos emocionais-transcendentes, notadamente, aqueles que "se deixam isolar e analisar" (que são os receptivos, os prospectivos e os espontâneos).
No que tange à investigação de Hartmann acerca do problema do ser ideal e da sua relação com o ser real, o pensador alemão destaca que o ser ideal não é o ser do pensamento, mas é o ser das essências, das formações ideais da matemática e dos valores. O caminho pelo qual pode ser provada a idealidade do ser ideal é o da essência do apriori, observável na relação da matemática pura à aplicada, bem como na indiferença das essências para com os casos reais.
O cerne da ontologia de Hartmann é a sua teoria dos modos de ser ou análise modal, que o pensador alemão expõe na obra intitulada: Mögichkeit und Wirklichkeit (1938). Nesta obra, o pensador explica as leis fundamentais que regulam as relações de possibilidade e realidade, necessidade e acidentalidade, impossibilidade e não realidade. A lei real da necessidade é formulada nos seguintes termos: "o que é realmente possível também é realmente necessário". Essa lei deriva do antigo princípio metafísico de que o ser não pode provir do não ser ou, em outros termos, de que a possibilidade do ser não é, simultaneamente, possibilidade do não ser. Hartmann formula, ademais, a lei "de identidade", que reza assim: "as condições de possibilidade real de uma coisa são, simultaneamente, as condições da sua necessidade real". Esta lei exprime uma convicção contrária ao conceito popular de possibilidade, que foi aceito pela ontologia tradicional, desconhecendo o rigor que os pré-socráticos (de Megara) conferiam ao conceito de possibilidade. A lei real da necessidade não implica, no entanto, para Hartmann, um determinismo total do mundo, mas apenas o que ele denomina de uma sobreposição de várias formas de determinação [cf. Fraga, 1990: 2, 1010-1014].
Em que pese o fato da concessão que Hartmann faz à perspectiva realista na sua ontologia (difícil de justificar teoricamente, uma vez aceitos os princípios do neokantismo), um aspecto, contudo, deve ser ressaltado: em face da complexidade do mundo, é necessário reconhecer que o pensamento moldado em sistemas está fora de jogo. A respeito, escreve o filósofo alemão em Autoexposição sistemática [Hartmann, 1989: 4]: "Explicar o espírito a partir da matéria ou entender a matéria a partir do espírito, o ser a partir da consciência; reduzir o organismo ao mecanismo ou fazer passar o acontecer mecânico por uma vitalidade encoberta, tudo isso e muito mais é, hoje, uma coisa impossível de se realizar. Isso contradiz, já nos primeiros passos, o que, com segurança, sabemos nos domínios especiais. O pensamento construtivo ficou fora de jogo".
Embora os pensadores contemporâneos não renunciem a uma busca de nexo sistemático entre os fenômenos, Hartmann considera, no entanto, que essa pressuposição deve ser abandonada como ponto de partida. O que a meditação filosófica faz, no seu início, é tomar consciência de uma complexidade do mundo, que o autor alemão não duvida em identificar como perspectiva problemática do pensar.
Ao pensamento sistemático construtivo, Hartmann contrapõe o pensamento problemático investigador. Essas duas grandes linhas epistemológicas são claramente identificáveis na história da Filosofia ocidental. Embora encontremos pensadores mais afinados com a perspectiva sistemática, como Plotino (204-270), Proclo (412-485), Tomás de Aquino (1225-1274), Duns Scot (1266-1308), Hobbes (1588-1679), Espinosa (1632-1677), Fichte (1762-1814), Schelling (1765-1854) e outros mais próximos da visão problemática, como Platão, Aristóteles, Descartes (1596-1650), Hume, Leibniz (1646-1716), Kant, em todos eles a meditação filosófica emerge a partir da base dos problemas metafísicos, que são os que acompanham a perplexidade da mente humana diante do mistério do Ser. "Em geral, escreve Hartmann, o morto e o simplesmente histórico pertencem ao pensar sistemático; pelo contrário, o supra-histórico e o vital pertencem ao pensar problemático puro. Nele se encontram as aquisições da história do pensamento" [Hartmann, 1989: 7].
Os historiadores da filosofia e os comentaristas deformaram, infelizmente, o pensamento de Platão, apresentando-o como decorrente de uma visão sistemática pré-concebida. Ora, nada mais afastado do grande filósofo grego do que essa preguiçosa concepção sistemática. Nele era fundamental, antes de tudo, a perplexidade em face do Ser, a dimensão da dúvida, que o levava a considerar como cosmogonias mitológicas as concepções herdadas dos seus antepassados. É necessário recuperar, frisa Hartmann, a dimensão problemática da filosofia platônica, para que saibamos valorar a sua criatividade. Platão, ao manter viva a perplexidade diante do real, deu vida à meditação filosófica, abrindo a porta para a interrogação e a elaboração de novos caminhos.
Hartmann considera necessário, de outro lado, recuperar a valoração problemática da meditação aristotélica, que parte da aporética e que se encaminha para a construção de um sistema de pensamento. Acontece que a sistematização escolástica empobreceu essa dimensão dinâmica da meditação do estagirita, ressaltando o momento sistemático e esquecendo o ponto de partida problemático. Três razões explicariam, nos historiadores da filosofia, essa pressa em valorar o sistema por cima dos problemas: em primeiro lugar, a impaciência para descobrir soluções custe o que custar; em segundo lugar, a pressuposição (falsa) de que problemas insolúveis são filosoficamente inúteis; em terceiro lugar, o menosprezo em face das perguntas irrecusáveis.
Em relação à primeira razão, Hartmann considera que é muito mais filosófico legar aos nossos discípulos perguntas sem responder, do que pretender construir, a qualquer preço, respostas sistemáticas para tudo. Em relação à segunda razão, o filósofo alemão considera que os problemas insolúveis são filosoficamente úteis. A história do pensamento ocidental mostra que o verdadeiro progresso advém da abertura à indagação e do questionamento às soluções já adquiridas. Ora, as ciências somente progridem em face do princípio da refutabilidade que nos leva a adotar, perante o que recebemos dos nossos antepassados, uma atitude não de subserviência, mas de crítica.
O drama dos dogmatismos, estreitamente ligados aos totalitarismos, no mundo contemporâneo, consiste, justamente, no fato de eliminarem a dúvida e o pensamento crítico. Em relação à terceira razão, Hartmann destaca que há problemas que foram colocados num determinado momento e que jamais seria possível colocá-los antes. A formulação de indagações está, sempre, ligada a determinadas condições históricas irrepetíveis, bem como a um determinado estado do saber. Enquanto os filósofos estiverem preocupados, unicamente, com a dimensão sistemática, não perceberão o sentido dos eternos e irrecusáveis conteúdos problemáticos, que ancoram na perplexidade diante da realidade. Assim, frisa Hartmann, "acontece que é necessária, previamente, uma reflexão especial sobre a linha histórica do pensamento problemático, que se oculta por trás da fachada dos sistemas, para garantirmos aqueles conteúdos" [Hartmann, 1989: 13]
Os eternos e irrecusáveis conteúdos problemáticos: esse constitui o ponto de partida do filosofar. Ora, destaca Hartmann, esses eternos e irrecusáveis conteúdos emergem da consciência perplexa pela complexidade do real, que constitui um fenômeno básico não impugnável. "Os fenômenos, escreve, são sempre mais fortes do que as teorias. O homem não pode mudar os fenômenos; o mundo permanece como é, qualquer que seja o pensamento do homem sobre ele. O homem pode somente apreendê-lo ou errar em relação a ele" [Hartmann, 1989: 14].
Hartmann propõe um método progressivo, para a razão não se afastar da realidade e construir as suas teorias sem falsear a apreensão dos fenômenos. O primeiro passo é constituído pela descrição fiel dos fenômenos. O segundo consiste na aporética ou estudo dos problemas, enquanto constituem o incompreendido dos fenômenos, explicitando com claridade as aporias naturais; este passo deve levar em consideração o estado da pesquisa respectiva. O terceiro passo, por fim, consiste na teoria, ou abordagem da solução das aporias.
Em relação à metodologia proposta, o filósofo alemão escreve: "Essa progressão: fenomenologia, aporética, teoria, não pode ser abreviada. Os dois primeiros graus, tomados cada um em si, constituem um amplo campo de trabalho, uma ciência inteira. E precisamente porque nenhum dos dois é o definitivo e verdadeiro, recai sobre eles a maior ênfase. O seu campo de trabalho é aquele onde os sistemas construtivos têm pecado. Estes, precisamente, ficaram curtos demais. E justamente por isso as teorias repousavam sobre bases frágeis. Aqui é preciso criar fundamentos sólidos - não os fundamentos objetivos da teoria (que devem ser encontrados, preferentemente, só quando começa o estudo das aporias), mas os pontos de partida do conhecimento, enquanto deve ser algo mais do que simples descrição do encontrado anteriormente. No relativo ao terceiro grau, deve consistir num tratamento puro das aporias destacadas, e certamente com base no mesmo resultado presente nos fenômenos. Esse tratamento ou estudo não é mais do que uma solução das aporias. Somente pode tender em direção a uma solução. De antemão não pode dizer nem como resultará a solução, nem se alguma é possível absolutamente.
O estudo das aporias, para Hartmann, é algo muito diferente quando pode se alicerçar num limpo trabalho prévio, realizado sobre o fenômeno e o problema, e quando parte, sem mais, de algo supostamente dado. Os problemas vistos com ingenuidade foram colocados, na maior parte das vezes, de forma inadequada, e atingem a realidade só de forma periférica. Pois a colocação problemática condicionada torna-se possível graças ao conteúdo problemático objetivo. Dessa forma, misturam-se muitas aporias artificiais e as naturais são encobertas. Mas, antes de mais nada, somente depois de efetivado o trabalho da aporética, resulta possível dar novamente à teoria mesma o seu valor e sentido original" [Hartmann, 1989: 16-17].
A radical inadequação entre o nosso pensamento e a realidade presente no mundo dos fenômenos, essa seria, no sentir de Hartmann, a metafísica dos problemas, a partir da qual tentamos, de várias formas, explicar a realidade (dando ensejo aos sistemas), sem que, contudo, consigamos nunca dar conta dela. Eis a raíz do que hoje denominamos de modéstia epistemológica, única atitude condizente com a busca diuturna da verdade.
II - Esboço da posição de Rodolfo Mondolfo acerca da discussão dos problemas na criação filosófica.
Retomando os conceitos desenvolvidos por Hartmann, o pensador italiano Rodolfo Mondolfo tematizou, por sua vez, o papel da indagação dos problemas na criação filosófica. A consciência da insuficiência dos nossos conceitos, esse seria o ponto de partida de uma autêntica reflexão. A respeito, escreve Mondolfo: " (...) na aquisição de conhecimentos e na reflexão intelectual, sempre acontece tropeçarmos com dificuldades, que se baseiam no reconhecimento de faltas e imperfeições em nossas noções, cuja insatisfação, portanto, nos suscita problemas. E daí surge a investigação, isto é, pela consciência de um problema, cuja solução nos sentimos impelidos a procurar, estando justamente a indagação voltada para a solução do problema, que nos foi apresentado" [Mondolfo, 1969: 30].
O pensador italiano considera que o sucesso da investigação filosófica decorre, sem lugar a dúvidas, da clareza com que tenha sido colocado o respectivo problema. É o ponto que os escolásticos chamavam de status quaestionis, que era colocado antes da elaboração doutrinária, na tradicional Lectio. Em relação a esse aspecto, Mondolfo escreve: "A fecundidade do esforço investigador é proporcional à clareza e à adequação da formulação do problema; de maneira que a primeira exigência imposta ao investigador é a de conseguir, da melhor maneira possível, uma consciência clara e distinta do problema, que constitui o objeto de sua indagação. Esta exigência é válida, preliminarmente, para qualquer espécie de investigação, porém o é, sobretudo, na filosofia, sendo a filosofia, antes de mais nada, - como já Sócrates o ressaltava - consciência da própria ignorância, isto é, da existência de problemas que exigem o esforço da mente, na procura de uma saída dessa situação de mal-estar e de insatisfação" [Mondolfo, 1969: 30].
Na trilha da perspectiva genética apontada por Giambattista Vico (1668-1744), à luz do princípio de que "a natureza das coisas é o seu nascimento", Mondolfo escreve: "toda a investigação teórica que quiser encontrar seu caminho com maior segurança, supõe e exige, como condição prévia, uma investigação histórica referente ao problema, ao seu desenvolvimento e às soluções que foram tentadas para resolvê-lo" [Mondolfo, 1969: 30-31].
Mondolfo considera que a perspectiva problemática se atrela à essência da pesquisa filosófica. Aparentemente, haveria oposição entre a tarefa do historiador (inquiridor da verdade sub specie temporis) e a do filósofo, (perscrutador da alétheia sub specie aeterni). No entanto, a esta última só se chega pela porta estreita da historicidade, pois, como frisa Karl Jaspers [1980: 34], "se saíssemos da História tombaríamos no nada”.
A respeito deste ponto, escreve Mondolfo: "Com efeito, podemos distinguir um duplo aspecto na filosofia, conforme ela se apresente como problema ou como sistema. Como sistema, é evidente que o pensamento filosófico, apesar de sua pretensão, sempre asseverada, de uma contemplação sub specie aeterni, não consegue, na realidade, afirmar-se a não ser sub specie temporis, isto é, necessariamente vinculado à fase de desenvolvimento espiritual própria de sua época e de seu autor, e destinado a ser superado por outras épocas e outros autores sucessivos. Ao contrário, quanto aos problemas que suscita, o pensamento filosófico, ainda que esteja sempre subordinado ao tempo em sua geração e desenvolvimento progressivo, apresenta-se, no entanto, como uma realização gradual de um processo eterno. Com efeito, os sistemas passam e caem; porém, os problemas formulados sempre permanecem como conquistas da consciência filosófica, conquistas imperecíveis, apesar da variedade das soluções tentadas e das formas pelas quais tais problemas são propostos, pois esta variação representa um aprofundamento progressivo da consciência filosófica. Dessa maneira, a reconstrução histórica do desenvolvimento da filosofia aparece como um reconhecimento do caminho percorrido pelo processo de formação progressiva da consciência filosófica, o que vale dizer, como uma conquista da autoconsciência" [Mondolfo, 1969: 33-34].
Há, evidentemente, para Mondolfo, uma lógica da história da filosofia. Nesse aspecto, o pensador italiano assume as teses fundamentais de Hegel nas suas Lições de História da Filosofia. Há um fio condutor na história do pensamento humano. Ora, esse fio corresponde à estrutura lógica da razão que busca, em meio aos fatos e aos fenômenos, se manter idêntica a si mesma. Daí por que Mondolfo considera que "a história da filosofia não pode, de maneira alguma, ser considerada como uma sucessão de criações contraditórias, que negam cada uma o que a outra afirmava, ou constroem, ao seu bel-prazer, um edifício destinado a ser derrubado, a fim de deixar seu lugar para outra construção, que será igualmente demolida como produto arbitrário de uma fantasia caprichosa" [Mondolfo, 1969: 57-58].
Em decorrência dessas observações no terreno da historiografia da filosofia, Mondolfo considera que se deve elaborar um método de pesquisa que respeite a essência da dimensão problemática da meditação ocidental. A respeito, escreve: "Devemos reviver, em nossa consciência, a experiência filosófica da humanidade passada, tanto em seu conjunto, quanto na individualidade de cada pensador. E para viver de novo cada sistema, temos que realizar o máximo esforço, a fim de colocarmo-nos na situação espiritual em que se encontrava o filósofo que o criou, isto é, temos que reproduzir, em nossa interioridade, a consciência dos problemas que preocupavam a sua época, assim como as exigências particulares de sua personalidade, compenetrando-nos de seu processo de formação e de sua vida interior. E quando, nos filósofos que são objeto de nosso estudo, esta vida interior [tiver sido] muito intensa e ativa, deparamo-nos, geralmente, com um movimento contínuo de aprofundamento, renovação e evolução espirituais, que reúne, por assim dizer, múltiplas personalidades sucessivas numa única pessoa, o que complica e dificulta a tarefa do intérprete que procura a reconstrução histórica" [Mondolfo, 1969: 261].
O pensador italiano frisa que, no estudo historiográfico da filosofia, deve-se reconhecer, como aspecto fundamental, o progresso contínuo do espírito humano. Mas esse fato não reduz a cinzas as conquistas dos nossos antecessores. Elas serão, sempre, importantes, como a escada que nos permitiu subir mais alto para enxergar, numa maior altura, o horizonte. Continua presente, aqui, a convicção filosófica de Hegel no progresso do espírito humano. A respeito, frisa Mondolfo [1969: 263]: "Naturalmente, não ficam anulados ou destruídos os resultados das investigações e intuições de Hegel ou de Zeller, ou de outros grandes historiadores, por serem superados pelas indagações sucessivas, cuja realização foi condicionada e estimulada por eles próprios. O processo de superação, como pensava Hegel, sempre outorga uma verdade mais profunda ao que foi superado, o qual permanece vital e ativamente nas raízes dos novos resultados, cuja obtenção tornou possível, impulsionando-os para a sua realização. Neste aspecto, devemos expressar nosso respeito e reconhecimento para com os grandes historiadores do passado, cujo estudo será sempre ponto de partida e fonte de fecundas sugestões, positiva ou negativamente, por meio da aceitação ou da oposição que provoca, das soluções que indica ou dos problemas que formula para os novos investigadores".
III - A Filosofia Moderna como discussão de alguns problemas peculiares, segundo Leonardo Prota.
Os culturalistas brasileiros assumiram a herança de Hartmann e de Mondolfo, como se pode observar na obra Experiência e cultura de Miguel Reale [1977] ou na História das idéias filosóficas no Brasil de Antônio Paim [1974]. Pela trilha metodológica aberta por Reale e Paim para estudar a filosofia brasileira, a partir dos problemas levantados pelos vários autores, novas gerações de estudiosos têm empreendido a marcha, sendo, hoje, as figuras de Leonardo Prota e José Maurício de Carvalho (1957), duas importantes expressões dessa caminhada intelectual. O primeiro, como foi destacado no início deste trabalho, tem aprofundado na temática da meditação brasileira à luz dos problemas que surgiram no seio das várias filosofias nacionais, na época moderna, e o segundo tem particularizado as análises acerca da corrente culturalista, no contexto de uma pesquisa historiográfica dos problemas [cf. Prota, 2000 e Carvalho, 1998 e 2000].
Para Leonardo Prota, a Filosofia Moderna “é a meditação que se erige a partir de determinados fatos culturais” [2000: 27]. O primeiro desses fatos consistiu nas descobertas marítimas, que ensejaram o problema da experiência. É sabido que a Filosofia Medieval desenvolveu, especialmente, o conceito. A finalidade das disputationes escolásticas consistia em possibilitar a conquista da precisão conceitual, à luz da delimitação do problema teórico em foco, no denominado status quaestionis (que constituía, aliás, item essencial da disputa filosófica). O aspecto limitante da disputa escolástica consistia no fato de que ela não versava sobre a experiência, mas apenas sobre o conceito. Ora, como a experiência é, fundamentalmente, uma questão referida à apreensão do singular por parte de quem conhece, a meditação medieval dava pouca importância a este aspecto da realidade. Consequentemente, os temas a serem discutidos não tinham quase nada a ver com a realidade temporal. As descobertas marítimas, lembra Prota, causaram uma verdadeira reviravolta na ordem do pensamento, passando a prestigiar, justamente, aquele aspecto olvidado pela meditação medieval: o mundo da experiência. Os conceitos fundamentais acerca do mundo, hauridos da Geografia de Cláudio Ptolomeu (90-168), passaram a ser questionados. A conseqüência foi a formulação da nova física da natureza.
A respeito, frisa o nosso autor, destacando os problemas que passaram a ser formulados: “A partir disto, ao longo do século XVII, formou-se uma nova física, que derrocava tanto a física de Aristóteles, que era parte integrante do saber escolástico, como a própria visão que a Igreja Católica tinha do Universo. A nova ciência é perseguida pela Igreja, mas encontra ambiente favorável à sua constituição na Inglaterra, que se tornara o principal país protestante, já que a Alemanha ainda não se unificara e a França, que parecia encaminhar-se na direção da Reforma, ficara a meio caminho. A nova física substituía integralmente a Filosofia Antiga, desenvolvida pela meditação escolástica? Ou ainda sobreviveria a Filosofia? Neste caso, qual o seu objeto? A nova física fornecia o modelo para a filosofia renovada? Eis alguns dos problemas suscitados pelo curso histórico e que iriam transformar completamente a filosofia” [Prota, 2000: 27].
Outro evento cultural, no sentir de Prota, trouxe importantes implicações para a meditação filosófica: a Reforma Protestante. A nova religião reformada que se espraiou pela Europa afora, questionava a posição tradicional da Igreja Católica, especificamente no que se refere à questão do mérito. O problema a ser discutido consistia em averiguar se esse questionamento implicava uma negação pura e simples da religião tradicional, ou se seria necessário procurar novos fundamentos (de caráter moral) para a vivência religiosa.
Os problemas que foram formulados ao ensejo dessa nova problemática, foram os seguintes, segundo escreve o nosso autor: “A evolução cultural levanta, portanto, estes problemas filosóficos basilares: 1) o do conhecimento, isto é, o de saber-se se (este) provém da experiência e como ela se conceitua, ou se pode estabelecer-se discursivamente, como era da tradição; 2) o da ciência, isto é, se constituía uma forma de saber autossuficiente, ou se pressupõe uma fundamentação de índole filosófica e, neste caso, se a isto deve resumir-se a filosofia, como entendiam muitos autores modernos; e, 3) o da moralidade, isto é, o de deixar estabelecido se o código moral judaico-cristão, sob o qual se erigiria a cultura ocidental, estava na dependência da interpretação católica ou protestante, ou se podia encontrar seus próprios fundamentos” [Prota, 2000: 28].
Assim, para o nosso pensador, a Filosofia Moderna corresponde àquela parte da meditação filosófica ocidental que se debruçou sobre a problemática indicada, tendo dado ensejo a novas tradições no esforço em prol de aprofundar nas novas questões. Surgida no século XVII, considera-se que tenha durado até meados do século XIX, quando tem início o período denominado de Filosofia Contemporânea que, por sua vez, tem pela frente um problema bem específico: enfrentar o desafio positivista, que parte do pressuposto de que a metafísica está ultrapassada, passando, portanto, o discurso filosófico a ser um simples apêndice da ciência.
IV - Autores, obras e vertentes da Filosofia Moderna, segundo Leonardo Prota.
Esta etapa da meditação filosófica ocidental iniciou-se com Francis Bacon (1561-1626), René Descartes (1569-1650) e Galileu Galilei (1546-1642). Em 1620, como se sabe, Bacon publicou o seu Novum Organon, em 1637 apareceu à luz pública o Discurso do Método de Descartes e, em 1632, foi publicado o Diálogo sobre os sistemas do mundo, de Galileu. Naquele momento ainda não tinham sido dissociados os vários elementos concernentes à problemática epistemológica do saber, ou seja: a nova física, a discussão sobre o conhecimento e a hipótese de uma nova lógica, que seria mais tarde batizada de metodologia. Em 1633 foi proibida a obra de Galileu pela Inquisição Romana, tendo sido o sábio italiano obrigado a se retratar. Com esse fato e com a perseguição a outros cientistas e filósofos abertos ao mundo da experiência, como foi o caso de Giordano Bruno (1546-1600), a ciência moderna foi obrigada a se refugiar na Inglaterra. Antes do final do século XVII, consolidou-se, neste país, a Royal Society, que passou a congregar os homens de ciência, que inicialmente não tiveram acesso às cátedras universitárias.
Enquanto não se consolidou a nova física, o que seria obra de Isaac Newton (1642-1727), foram sendo formulados, na Alemanha e na Holanda, sistemas de pensamento alternativos à escolástica, tendo como fundamento a abertura ao novo espírito matemático e geométrico. Foi assim como apareceram os grandes sistemas metafísicos de Baruch Espinosa e Gottfried Wilhelm Leibniz. Prota lembra que foi com base neste sistema que Christian Wolf (1679-1754) elaborou o denominado sistema Wolf-Leibniz, que se tornaria a corrente dominante nas Universidades alemãs, na segunda metade do século XVIII.
A meditação de John Locke (1632-1704), na Inglaterra, formulou claramente a hipótese de que a Filosofia deveria circunscrever-se à investigação acerca das origens do conhecimento. Esta foi a contribuição do filósofo britânico no seu Ensaio sobre o entendimento humano (publicado em 1690). Ao mesmo tempo, Locke alargou a sua meditação ao terreno da Filosofia Política, adotando um esquema semelhante à hipótese sustentada no plano do conhecimento: se remontar às origens, desta vez do pacto político. Com os seus Dois tratados acerca do governo civil, nos quais defendia este ponto de vista, Locke consolidou-se como o inspirador da Revolução Gloriosa (1688), que inaugurou na Inglaterra a Monarquia Constitucional e o Governo Representativo, tendo superado, definitivamente, o absolutismo monárquico. A meditação de Locke projetou-se, ainda, sobre outros temas como a tolerância religiosa, a educação, etc., mas, como frisa Prota, “evitou ciosamente dar às suas doutrinas qualquer aparência de sistema. Inaugurava-se, assim, o que se tornaria uma longa tradição antissistemática. Esse caminho seria aberto claramente por David Hume, sobretudo no Inquérito sobre o entendimento humano (1748)” [Prota, 2000: 29].
Fato marcante do desenvolvimento da Filosofia Moderna foi representado pela meditação de Immanuel Kant (1724-1804). O pensador alemão alicerçou-se em David Hume e partiu para uma crítica aprofundada à metafísica, no contexto de um trabalho teórico maior, que visava a dar fundamento filosófico à experiência científica, na forma em que esta tinha sido pensada por Isaac Newton (1643-1727). A finalidade da principal obra do filósofo de Koenigsberg, a Crítica da Razão Pura, consistiu em perguntar: como são possíveis os juízos científicos na física de Newton? Kant respondeu a esta pergunta partindo do ponto de vista defendido por Hume: não temos acesso à substância das coisas, somente podendo ter uma representação dos fenômenos. Sendo isso assim, como salvaguardar a universalidade dos juízos científicos? Kant formulou, então, a sua tábua das Categorias ou Conceitos Puros da Razão, que constituiriam o marco apriorístico para podermos formular juízos com validez universal, os juízos sintéticos apriori.
Enquanto isso, na França, Nicolas Malebranche (1638-1715) deu continuidade à meditação empreendida por Descartes. Embora tivesse produzido uma obra significativa, não conseguiu, no entanto, firmar uma ponte definitiva entre a nova tradição científica e a meditação filosófica moderna. A solução para estabelecer esse nexo tentou ser dada, na França, pelo sensualismo de Condillac (1715-1780), que ensejou o surgimento de uma reação espiritualista de grande valor heurístico, da lavra de Maine de Biran (1716-1824). A Escolástica, por sua vez, viu-se derrotada em todas as partes. Era muito difícil pretender explicar as conquistas da ciência moderna à luz da teoria aristotélica da substância. De outro lado, tornava-se tarefa impossível entender o novo raciocínio da filosofia natural de Newton e Galileu, tributária da experiência, utilizando as súmulas medievais, que se desencarnaram totalmente do mundo.
Eis a forma em que Leonardo Prota caracteriza essa caminhada da Filosofia Moderna, destacando as linhas nucleares do debate: “Em resumo, a Filosofia Moderna caracteriza-se, sobretudo, pela presença das seguintes linhas de desenvolvimento: 1ª) a que pretende reduzir a meditação filosófica a uma inquirição sobre o conhecimento. Nessa fase, trata-se (...) de proceder-se a descrições do processo do conhecimento. Mais tarde – notadamente no período contemporâneo – restringe-se o objeto ao conhecimento científico e a disciplina denomina-se epistemologia; 2ª) a constituição da perspectiva transcendental na obra de Kant, que dá nascedouro ao idealismo alemão, onde se destacam Fichte e Hegel. Com essa meditação entroncam a obra de Karl Marx (1818-1883) e Sören Kierkegaard (1813-1855). Através do neokantismo, essa linhagem marcaria uma grande presença na Filosofia Contemporânea, porquanto daí decorrem a fenomenologia, o existencialismo e o culturalismo; e, 3ª) o espiritualismo, que se pretende, simultaneamente, herdeiro da filosofia antiga e da tradição moderna (representada pelo cartesianismo e pelo racionalismo, em geral) e que tem em Maine de Biran e Bergson (1859-1941) – este último já inserido na Filosofia Contemporânea – seus grandes filósofos. Do que precede, verifica-se que a questão com que se defrontou a meditação moderna dizia respeito a encontrar uma espécie de saber filosófico que desse conta da ciência, passo que a Escolástica se recusou a empreender de imediato. A constituição das Filosofias Nacionais diferenciadas decorreu da radicalização de posições apontadas adiante” [Prota, 2000: 30-31].
V - A formação das Filosofias Nacionais, segundo Prota.
Três aspectos parecem marcantes na delimitação dos fatores que ensejaram o nascimento das Filosofias Nacionais, segundo Leonardo Prota: de um lado, a adoção, pelos pensadores modernos, da noção de experiência; em segundo lugar, o progressivo abandono do latim como língua culta, ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII, que acompanhou o surgimento dos Estados Nacionais e, em terceiro lugar, (como condição epistemológica para entender essa questão), o conceito, desenvolvido por Hartmann e Mondolfo, da Filosofia como Problema (a que foi feita alusão no início deste artigo).
Quanto ao primeiro aspecto, lembremos que a noção de experiência era proveniente do universo científico, notadamente das formulações da filosofia natural ou nova física feitas pelos pensadores renascentistas, especialmente por Galileu, e recolhidas, já no final do século XVII, por Newton. O filósofo que sistematizou, pela primeira vez, na modernidade, uma idéia de experiência compatível com a ciência, foi o jesuíta espanhol Francisco Suárez (1548-1617). Influenciado pelos nominalistas ibéricos, ingleses e franceses (que, com a noção de estidade já tinham criticado a pretensão escolástica de conhecimento intuitivo da substância ou quidditas), Suárez partiu, na sua magna obra intitulada: Disputationes Metaphysicae (escrita em 1597 e publicada em 1608), para a formulação de uma teoria do conhecimento e de uma metafísica compatíveis com a ciência moderna.
Eis a forma em que Prota sintetiza a obra do pensador espanhol: “Suárez parte do pressuposto (tipicamente moderno, porquanto emergente de uma perspectiva antropocêntrica) de que, como ponto de partida, a filosofia deve criar a sua própria metodologia e assinalar o âmbito da sua validade, mediante a formulação de uma metafísica sistemática, em consonância unicamente com as exigências lógicas da razão. Somente assim, pondera o pensador espanhol, poderá ser empreendido, numa segunda etapa, com segurança e rigor, o estudo da Teologia. A sua concepção aproximava-se mais da apreensão da essência do concreto ou estidade (haecceitas), postulada pelos nominalistas ingleses Duns Scott (1266-1308) e Guilherme de Ockham (1285-1347)” [Prota, 2000:34].
Quanto ao segundo aspecto, com o abandono do latim como língua culta, no período atrás apontado, surgiram, no terreno do saber, as línguas vernáculas, que passaram a traduzir a particular experiência de cada povo na consolidação das suas instituições nacionais e na reflexão ao redor dessa magna tarefa. As Filosofias Nacionais foram emergindo, assim, na trilha de tradições que foram sedimentadas nessa experiência de séculos.
Leonardo Prota entrelaça este fator com o terceiro, o relativo ao conceito de Filosofia como Problema, herdado de Hartmann e de Mondolfo (perspectiva que, aliás, foi adotada pela Escola Culturalista, através de duas figuras exponenciais: Miguel Reale e Antônio Paim). As Filosofias Nacionais, considera Prota, foram privilegiando determinados problemas que emergiram ao ensejo da constituição dos Estados Nacionais e da organização das instituições, bem como da herança cultural. Foi assim, por exemplo, como a Filosofia Inglesa terminou privilegiando a problemática da experiência, ao passo que a Filosofia Francesa deu mais destaque à problemática do racionalismo, a Espanhola ao problema do raciovitalismo, a Italiana ao problema da Filosofia como “ciência da realidade espiritual”, entidade que, frisa Prota [cf. 2000: 266], identifica-se com a cultura.
Eis a forma em que o nosso pensador fecha a sua análise em torno às Filosofias Nacionais, destacando que a perspectiva da Filosofia como Problema em nada invalida o caráter universal da meditação filosófica ocidental, e assinalando as peculiaridades de cada tradição filosófica nacional: “o problema não pode ser colocado em termos de oposição e exclusão, filosofia universal versus filosofias nacionais; mas, em termos de constituição; ou seja, contemporaneamente, são as filosofias nacionais, (reflexões e investigações suscitadas por problemas filosóficos que marcaram as distintas tradições nacionais) que constituem e formam a filosofia universal, assim como, anteriormente, eram os sistemas que constituíram o pensamento universal. (...). Entre as numerosas filosofias nacionais escolhemos quatro, consideradas por nós significativas para o presente estudo. Se na filosofia inglesa salientamos como característica a valorização da experiência, ninguém pode levantar dúvidas de que essa peculiaridade do pensamento inglês não faça parte, hoje, do pensamento universal. Igualmente, se a persistência na elaboração de sistema filosófico marcou a filosofia alemã, tendo como resultado a filosofia crítica, seria absurdo imaginar o contexto da filosofia moderna sem essa aportação do momento Kant-Hegel. Que dizer da filosofia francesa, cujo sentido principal é constituído pela prevalência do racionalismo? Pode-se pôr em dúvida que a desconstrução da razão, assim identificada por Aquiles Côrtes Guimarães (1937-2016), no processo de superação do positivismo, no pensamento francês, faça parte da universalidade da filosofia no Ocidente? Da mesma forma, estamos opinando a respeito da filosofia italiana como filosofia da cultura. Alguém pode desconhecer a valiosa contribuição de Giambattista Vico, Benedetto Croce (1866-1952) e Giovanni Gentile (1875-1944) para a Cultura Ocidental? A marcha do pensamento filosófico continua, calcada na peculiaridade histórica de cada país. (...). Assim, os clássicos se fazem presentes, sobretudo na medida em que são parte integrante do processo de constituição das perspectivas filosóficas. E, em nossa finitude existencial, não podemos deixar de escolher uma ou outra” [Prota, 2000: 314-315].
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[Este ensaio foi preparado, especialmente, para o Proyecto Ensayo, da Universidade de Georgia (USA) www.ensayistas.org a partir da exposição feita, pelo autor, no 7º Encontro Nacional de Professores e Pesquisadores da Filosofia Brasileira, reunido em Londrina, de 13 a 15 de setembro de 2001. A mencionada exposição foi publicada com o seguinte título: “Marco epistemológico para o estudo das Filosofias Nacionais na obra de Leonardo Prota”, in: Anais do 7o. Encontro Nacional de Professores e Pesquisadores da Filosofia Brasileira, edição organizada por Gilvan Luiz Hansen e Leonardo Prota, Londrina: CEFIL, 2003, pg. 341-354].