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PARABÉNS, AMÉRICA (Por: JOÃO CARLOS ESPADA - DIRETOR DO INSTITUTO DE ESTUDOS POLÍTICOS DA UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA - LISBOA)

PARABÉNS, AMÉRICA (Por: JOÃO CARLOS ESPADA - DIRETOR DO INSTITUTO DE ESTUDOS POLÍTICOS DA UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA - LISBOA)

(Artigo publicado no Jornal Observador, de Lisboa, em 09/11/2020) https://observador.pt/opiniao/parabens-america/ 

1. Dificilmente o resultado das recentes eleições norte-americanas poderia ter sido melhor, do ponto de vista da democracia liberal.

Refiro-me certamente à derrota do terceiro-mundista general tapioca — um personagem da república das bananas de San Theodoros nos livros de Tintin, que aqui dava pelo nome de Trump (George ou Donald, não me lembro exactamente). Mas refiro-me também à quase certa reeleição de uma maioria republicana no Senado — o que vai moderar a voragem revanchista da ala esquerda dos democratas (a qual, em certo sentido e até certo ponto, esteve na origem do episódio terceiro-mundista do general tapioca). E refiro-me também à participação massiva dos eleitores, quer do lado democrata, quer do lado republicano.

Gostaria de enfaticamente sublinhar os dois aspectos, aparentemente contraditórios, dos resultados eleitorais: a vitória do (muito moderado) democrata Joe Biden na Presidência e a (quase certa) vitória dos Republicanos no Senado, associadas aos reforço das votações nos dois partidos rivais. Há pelo menos duas ordens de razões para celebrar estas vitórias de sinal contrário.

2. Em primeiro lugar, há uma razão filosófica, que podemos designar por pluralista e profundamente americana. A República americana foi fundada na ideia pluralista de separação e controlo mútuo de poderes — ao contrário das utopias monistas e igualitárias que advogaram a vontade única [single will] do estado em nome do povo, originárias de Rousseau, seguidas por Robespierre, Marx, Lenine, Carl Schmitt, Mussolini e afins. Sobre este tema, tenho escrito bastante, aqui e noutros lugares, e não devo abusar da muito amável paciência do eventual e raro leitor destas linhas.

3. Em segundo lugar, existe uma razão política mais empírica. Se a derrota de Trump tivesse sido acompanhada de uma vitória dos democratas no Senado, ou da muito precocemente anunciada “onda democrata”, isso inevitavelmente alimentaria um revanchismo triunfalista da ala esquerda do partido democrata. Perante estes resultados, felizmente, não há lugar a triunfalismos de qualquer lado: o país está obviamente dividido ao meio e nenhuma das metades pode reclamar vitória esmagadora sobre a outra.

O caminho do meio, do compromisso e da moderação, é por isso o caminho que os resultados eleitorais sugerem e aconselham. (Tenho a fraqueza de acreditar que é este caminho da moderação que venho advogando nesta coluna há vários meses, e não só para a América). Este caminho da moderação é tão importante para os republicanos como para os democratas.

4. Sejamos claros: a derrota do general tapioca só foi possível porque o ‘esquerdizado’ partido democrata acabou por aceitar, depois de muita resistência, o moderado Joe Biden como seu candidato presidencial. E sejamos claros outra vez: tinha sido em grande medida a ‘esquerdização’ dos democratas, antes de Joe Biden, que gerara o fenómeno Trump.

O autoritarismo politicamente correcto vinha dominando os democratas — sobretudo na academia, nos media e nos políticos radicais como Bernie Sanders ou Alexandria Ocasio-Cortez. Quando a sra. Clinton, nas eleições que perdeu em 2016, classificou os eleitores do seu rival Trump como “deploráveis”, ela exprimiu a arrogância fatal do emergente tribalismo à esquerda. Recebeu de volta um emergente tribalismo à direita. E o resultado global foi a tribalização mútua — essa sim, deplorável — da vida política americana.

5. Em suma, a grande vantagem dos actuais resultados eleitorais reside precisamente em não terem dado uma vitória esmagadora a ninguém. Por isso, criaram condições para travar e inverter o caminho da tribalização. Resta agora saber se os políticos eleitos estarão à altura de cumprir a mensagem de compromisso e moderação que lhes foi dirigida pelos eleitores.

6. Compromisso e moderação podem parecer hoje — na era da gritaria das redes sociais, do irredentismo de tribos rivais e do apagamento do estudo da história política do Ocidente nas nossas universidades politicamente correctas — valores fora de moda. Como liberal, só posso aceitar fleumaticamente a flutuação de modas passageiras. Simultaneamente, como liberal confortavelmente antiquado, só posso preferir “style above fashion”. Por isso gostaria de concluir com as palavras com que Edmund Burke — um liberal que apoiou os colonos americanos contra o centralismo de Londres e simultaneamente condenou a revolução francesa — encerrou o seu livro sobre a jacobina revolução francesa:

“Não tenho argumentos para defender as minhas opiniões, para além de se basearem na observação demorada dos factos e de serem imparciais. São o resultado de alguém que… quando o equilíbrio da embarcação em que viaja se encontra ameaçado por sobrecarga em um dos lados, procura ardentemente transportar o pequeno peso dos seus argumentos para o lado que possa restaurar o equilíbrio”.