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OS SEIS MANDAMENTOS DA DEMOCRACIA SEGUNDO TOCQUEVILLE

OS SEIS MANDAMENTOS DA DEMOCRACIA SEGUNDO TOCQUEVILLE

CAPA DA OBRA DE RICARDO VÉLEZ RODRÍGUEZ INTITULADA: "A DEMOCRACIA LIBERAL SEGUNDO ALEXIS DE TOCQUEVILLE" (SÃO PAULO: MANDARIM / BRASÍLIA: INSTITUTO TANCREDO NEVES, 1998).

Não duvidaríamos em falar da “ética intelectual” que baliza a “ética política” em Tocqueville, fazendo uma complementação ao binômio formulado por Max Weber (1864-1920): “ciência como vocação” e “política como vocação”. Para Tocqueville, o intelectual deveria ter um compromisso com a verdade e com os fatos históricos que servem de pano de fundo para o acontecer humano, não podendo ser reduzidos eles a simples “narrativas” como pretendem, hoje, os novos jacobinos da historiografia, associados ao messianismo político da esquerda.

O compromisso fundamental do pensador francês era com o esclarecimento da verdade histórica, que conduzisse à conquista da liberdade para todos os franceses. Neste seu empenho não admitia negociação. Daí suas fortes críticas aos socialistas, aos bonapartistas, aos seus pares os nobres, que tinham ancorado numa proposta de volta ao Antigo Regime e aos próprios doutrinários, seus mestres, que tinham fechado as conquistas liberais na gaiola de ouro do formalismo jurídico e do elitismo burguês [cf. Vélez Rodríguez, Ricardo. O liberalismo francês: a tradição doutrinária e a sua influência no Brasil. Apresentação de Antônio Paim. Londrina: Editora EDA, 2023, pp. 33-190].

Três pontos básicos saltam à vista na ética tocquevilliana: em primeiro lugar, a fundamentação das suas convicções morais no Cristianismo, do qual o nosso autor tira o princípio básico de que todos os seres humanos possuem a mesma dignidade e, portanto, podem aspirar aos benefícios da Liberdade. Em segundo lugar, a solidariedade com os seus concidadãos, que correm o perigo de cair nas mãos do despotismo, em lugar de conquistar a almejada liberdade. Em terceiro lugar, o dever de testemunhar a verdade histórica que o nosso autor descobriu na sua viagem à América e que expressa com a famosa frase: “a Liberdade Democrática é possível!”.

A partir desse núcleo de princípios fundamentais, é possível formularmos o código moral dos mandamentos tocquevillianos os quais, a meu ver, poderiam ser traduzidos em seis imperativos, que seriam os seguintes: 1 – A história, constituída pela rigorosa pesquisa dos fatos, deve ser o pano de fundo sobre o qual podemos conhecer os princípios que nos guiaram na nossa caminhada. A começar, pela razão de que se não aceitássemos “os fatos do espírito humano” [cf. Magalhães, 1865], simplesmente se tornaria impossível o ato de pensar, segundo os ensinamentos do nosso primeiro metafísico, Domingos Gonçalves de Magalhães (1811-1882), visconde de Araguaia, que postulou a base ontognosiológica da meditação brasileira. Substituir esses fatos por uma “narrativa” seria tarefa vã que nos impediria a reflexão moral. “Se saíssemos da história cairíamos no nada”, como frisa conhecido pensador do século XX, Karl Jaspers (1883-1969) [cf. Jaspers, Karl, Introdução ao Pensamento Filosófico, tradução de Leônidas Hegenberg e Octany Silveira da Motta, 4ª edição, São Paulo: Cultrix, 1980]. 2 – Todos os seres humanos somos portadores da mesma dignidade de sermos pessoas, pelo fato de termos sido criados à imagem e semelhança de Deus. Esta é uma verdade que nos foi transmitida por Jesus Cristo, que assumiu a natureza humana na Encarnação. 3 – Quando fazemos algo pelos nossos semelhantes, devemos cuidar de fazer por eles o bem real e não o aparente, ajudando-os a se tornarem realmente livres. 4 – É um dever nosso nos sensibilizarmos para com os que sofrem injustiça e fazermos, por eles, o que estiver ao nosso alcance para minorar o seu sofrimento. A busca da própria segurança não pode nos tornar cegos em face dos sofrimentos dos nossos concidadãos. 5 – O bem mais estimável que podemos fazer aos nossos semelhantes consiste em ajudá-los a se tornarem livres, pois a conquista da Liberdade é o maior bem que podemos almejar neste mundo. 6 – Pelo fato de sermos herdeiros do Cristianismo, que manda amarmos o próximo como a nós mesmos, devemos ser solidários não apenas com os nossos familiares e amigos, mas também com todos os seres humanos. Todos somos membros do “corpo social”. Devemos, pois, nos sentirmos responsáveis por estudar e sanar as suas doenças.

1 – A história, constituída pela rigorosa pesquisa dos fatos, deve ser o pano de fundo sobre o qual podemos conhecer os princípios que nos guiaram na nossa caminhada.

Substituir a história por uma “narrativa” constitui um ponto de vista falso, que nos impedirá de identificar os princípios morais da nossa ação. “Se saíssemos da história cairíamos no nada”, como frisa Karl Jaspers. Se não aceitássemos “os fatos do espírito humano” [cf. Magalhães, 1865], simplesmente se tornaria impossível o ato de pensar, segundo os ensinamentos do nosso primeiro metafísico, Domingos Gonçalves de Magalhães (1811-1882), visconde de Araguaia, que postulou a base ontognosiológica da nossa meditação. Substituir esses fatos por uma “narrativa” seria tarefa vã que nos impediria a reflexão moral. 

Com total desassombro e estimulado pela decisão de narrar, para as gerações futuras, os acontecimentos que testemunhou e com o compromisso inabalável de dar fiel testemunho dos fatos e da forma em que, na sua cabeça de sociólogo, se passaram as coisas, Tocqueville identificou as causas e as consequências da Revolução de 1848, descrevendo os personagens com os seus vícios e virtudes. O que Tocqueville pretendia era salvar a democracia na França, explicitando os riscos que a rondavam e que se tornaram explícitos nesse movimento. Ele nos legou um quadro complexo dos conflituosos eventos que se passaram no seio do Governo e do Parlamento em 1848, mas a sua análise se estende, igualmente, ao período em que sobressaíram os chamados “doutrinários” (entre 1830 e 1848), sob a batuta de François Guizot (1787-1874), cérebro do regime e primeiro-ministro. O nosso autor não somente descreveu os fatos ocorridos, como também mergulhou na indagação do que motivou o conjunto de ações e reações que ensejaram a Revolução de 1848, tendo como única finalidade alertar as futuras gerações para a forma em que os socialistas, em luta com os liberais moderados (deputados parlamentares do grupo de Tocqueville) tentaram se apropriar do poder, em meio à insatisfação geral. O narrador tinha um único norte: o seu compromisso cidadão para com as gerações vindouras.

Uma anotação psicológica: Alexis de Tocqueville, seriamente doente, vê que seus dias se aproximam do fim. Decide, então, como se diz vulgarmente, “chutar o pau da barraca” e descrever a política francesa como ela é, sem subterfúgios e sem temores. Vale a pena citar, para apreender esse contexto psicológico e moral, as palavras dos dois primeiros parágrafos de Lembranças de 1848:

“Momentaneamente afastado do teatro das atividades – frisa Tocqueville - e não podendo também me dedicar a nenhum estudo continuado, em virtude do precário estado de minha saúde, vejo-me na solidão reduzido a refletir por um instante sobre mim, ou melhor, a encarar os acontecimentos contemporâneos nos quais fui ator ou dos quais fui testemunha. Parece-me que o melhor emprego que posso fazer de meu ócio é reconstituir esses acontecimentos, descrever os homens que deles vi participar e assim clarificar em minha memória, na medida do possível, os traços confusos que formaram a fisionomia indecisa do meu tempo”.

“Ao tomar essa resolução, – prossegue Tocqueville – também tomei uma outra à qual não serei menos fiel: as lembranças serão um descanso ao meu espírito, não uma obra literária. Serão reconstituídas para mim, exclusivamente. O escrito será um espelho no qual me distrairei olhando meus contemporâneos e a mim, não um quadro destinado ao público. Meus melhores amigos dele não terão conhecimento, pois quero conservar a liberdade de descrever sem lisonja tanto a mim quanto a eles. Quero compreender e revelar sinceramente os motivos que nos fizeram agir, a mim e aos outros – e, para que a expressão das palavras seja sincera, é necessário que a obra permaneça inteiramente secreta” [Tocqueville, Lembranças de 1848 – As jornadas revolucionárias em Paris. Trad. de Modesto Florenzano, Introd. de Renato J. Ribeiro, Prefácio de Fernand Braudel. São Paulo: Penguin / Companhia das Letras, 2011, p. 41].

Tendo cumprido seu quinhão nos negócios da sociedade, até como ministro (dos Negócios Estrangeiros), Tocqueville agora pode meditar sobre eles e ela – um tanto como Maquiavel (1469-1527), quando, exilado de Florença, compunha O príncipe” [Ribeiro, Renato Janine, “Notas”, apud Tocqueville, Lembranças de 1848, ob. cit., p. 358]. Destaquemos, com o historiador francês Fernand Braudel (1902-1985), no Prefácio da obra: “(...) Tocqueville tem o sentido agudo das realidades sociais, observa-as, esforça-se por explicá-las. Deve-se qualificar, sem hesitar, este sentido agudo do sociológico, mas é a experiência histórica que o acompanha e o conduz. Sociologia e história são, em Tocqueville, uma única e mesma maneira de observar a sociedade (...)” [Ribeiro, Renato Janine, “Prefácio”, in: Tocqueville, Lembranças de 1848 - As jornadas revolucionárias em Paris, ob. cit., p. 24].

2 – Todos os seres humanos somos portadores da mesma dignidade de sermos pessoas, pelo fato de termos sido criados à imagem e semelhança de Deus. Esta é uma verdade que nos foi transmitida por Jesus Cristo, que assumiu a natureza humana na Encarnação.

Tocqueville é um pensador de inspiração liberal-conservadora: defende a liberdade individual, em primeiro lugar, e encontra na Tradição Cristã o fundamento para a sua fé liberal. A respeito, escreve: “Todos os grandes escritores da Antiguidade faziam parte da aristocracia dos senhores, ou pelo menos viam essa aristocracia estabelecida sem contestação ante os seus olhos; o seu espírito, depois de se haver estendido por vários lados, achou-se, pois, limitado por aquela, e foi preciso que Jesus Cristo viesse à terra para fazer compreender que todos os membros da espécie humana eram naturalmente semelhantes e iguais” [Tocqueville, A Democracia na América, trad. brasileira, prefácio e notas de N. Ribeiro da Silva, 2ª ed., Belo Horizonte: Itatiaia / São Paulo: Edusp, 1977, p. 323].

3 – Quando fazemos algo pelos nossos semelhantes, devemos cuidar de fazer por eles o bem real e não o aparente, ajudando-os a se tornarem realmente livres.

Tocqueville analisa a problemática da pobreza no contexto mais amplo da ciência social da época, inspirada na fisiologia social de Cabanis, Bichat, Pinel, Vicq d’Azyr, Saint-Simon, etc. [cf. Rosanvallon, Pierre, Le moment Guizot, Paris: Gallimard / NRF, 1985: p.22; Mélonio, Françoise, Tocqueville et les Français, Paris: Aubier, 1993: pp. 33 seg.]. Tocqueville utiliza o símil do corpo enfermo, para se referir à problemática social. Em relação ao mencionado fenômeno na Inglaterra, por exemplo, o nosso autor escreve: "(...) a pobreza, essa praga horrenda e imensa, que contaminou um corpo cheio de forca e de saúde" [Tocqueville, Oeuvres, I. (Organizador, André Jardin, com a colaboração de F. Mélonio e L. Queffélec). Paris: Gallimard, Pléiade, 1991: vol. I, p. 1174].

Tocqueville é claro na sua crítica à forma estatal da caridade: para ele, toda medida contra a pobreza, alicerçada numa estrutura burocrática permanente, produz a preguiça social. O nosso autor se antecipava profeticamente das dificuldades encontradas pelo Welfare State na erradicação da pobreza. Eis as palavras de Tocqueville em relação ao tópico em apreço: "Toda medida que alicerça a caridade legal sobre uma base permanente e que lhe confere uma forma administrativa, cria pois uma classe ociosa e preguiçosa, que vive às custas da classe industrial e trabalhadora. Essa é, senão o seu resultado imediato, pelo menos a sua conseqüência inevitável. Ela reproduz todos os vícios do sistema monástico, menos as altas idéias de moralidade e de religião que amiúde vinham se juntar a ele. Uma lei semelhante é um germe venenoso, depositado no seio da legislação; as circunstâncias, como na América, podem impedir o germe de se desenvolver rapidamente, mas não chegam a destruí-lo, e se a atual geração escapa à sua influência, ele devorará o bem-estar das gerações do futuro" [Tocqueville, Oeuvres, I. 1991, ob. cit., p. 1170].

Tocqueville formula os elementos básicos do que poderíamos chamar de princípio da beneficência na ética pública, quando apresenta as suas soluções, na terceira etapa da discussão da problemática da pobreza. O nosso pensador parte da definição moral do princípio da beneficência. Esse princípio alicerça-se numa espécie de imperativo categórico: deve poder se aplicar universalmente e as suas conseqüências devem estar de acordo com a moral. Eis as suas palavras a respeito: "Certamente estou longe de pretender colocar aqui em tela de juízo a beneficência que é, ao mesmo tempo, a mais natural, a mais bela e a mais santa das virtudes. Mas penso que não há princípio tão bom cujas conseqüências não possam ser todas admitidas como boas. Creio que a beneficência deve ser uma virtude máscula e fundada racionalmente, não um gosto frágil e irrefletido; que não se deve fazer o bem que mais agrada àquele que o faz, mas o mais verdadeiramente útil àquele que o recebe; não aquele que alivia da forma mais completa as misérias de alguns, mas aquele que serve ao bem-estar do maior número. Eu não saberia calcular a beneficência senão desta forma; compreendida num outro sentido, ela ainda é um instinto sublime, mas não merece a meu ver o nome de virtude” [Tocqueville, Oeuvres, I . ob. cit., 1991, ob. cit., pp. 1177-1178].

O nosso pensador enxerga uma solução mais larga. Trata-se da formulação de uma política social que abarque três grandes aspectos: educação dos pobres, estímulo à propriedade fundiária dos camponeses e estímulo à poupança dos operários das indústrias. A finalidade dessa política social consistiria em estabelecer um equilíbrio entre a produção de bens e o seu consumo, a fim de evitar as distorções causadas no mundo moderno pelo sistema produtivo. O nosso autor desconfiava da solução do problema da pobreza mediante uma intervenção direta do Estado. Escrevia a respeito: "Depois de cem anos, o Estado somente produziu, mais de uma vez, a falência: o Antigo Regime a produziu, a Convenção também. Durante os últimos cinqüenta anos o governo da França mudou radicalmente sete vezes e foi reformado em muitas outras oportunidades. Durante esse período, os franceses experimentaram 23 anos de guerra terrível e duas invasões quase totais do seu território. É triste recordar esses fatos, mas a prudência exige que eles não sejam esquecidos. Seria prudente, justamente num século de transição como o nosso, num século polarizado, pela sua conjuntura histórica, por grandes agitações (...) entregar nas mãos do governo, quaisquer que sejam a sua forma e o seu representante atual, toda a fortuna de um tão grande número de homens?"[Tocqueville, Oeuvres, I . ob. cit., p. 1191].

Tocqueville enxergava uma solução viável para garantir um fundo que apoiasse os pobres nas suas reivindicações: a criação do “Banco dos pobres” ou do “Banco do povo”, que o seu pai, o conde Hervé de Tocqueville (1772-1856), tinha posto em funcionamento nas várias cidades onde foi Prefeito. Tratava-se de um fundo posto à disposição das pessoas carentes, financiado pelos próprios beneficiários, com cotas que pudessem pagar e que fossem geridas por uma instância administrativa composta por eles mesmos, que emprestasse pequenas quantidades de dinheiro sob a garantia de penhor. Tal ente administrativo não se sobreporia aos seus integrantes, explorando-os, mas simplesmente estaria a serviço deles, mediante uma regulamentação que impedisse, aos particulares, de se apropriarem do fundo constituído. Essa solução, para Tocqueville, permitiria pôr em prática o princípio da beneficência da seguinte forma: fazer o bem mais verdadeiramente útil àquele que o recebe, de forma que sirva ao bem-estar do maior número. O pensamento ético de Alexis de Tocqueville ancora, destarte, na mais pura tradição liberal de Locke (1632-1704), Montesquieu (1689-1755), Jefferson (1743-1826) e dos federalistas americanos.

4 – É um dever nosso nos sensibilizarmos para com os que sofrem injustiça e fazermos, por eles, o que estiver ao nosso alcance para minorar o seu sofrimento. A busca da própria segurança não pode nos tornar cegos em face dos sofrimentos dos nossos concidadãos.

Tocqueville, bem como os seus amigos e familiares residentes em Paris, tiveram de enfrentar as agruras da Revolução de 1848, com os episódios de violência e pilhagem que espalharam o medo. Eis a forma em que o nosso autor apresenta a reação do seu irmão Édouard e, notadamente, a atitude da esposa dele: “Ao voltar à minha casa, encontrei meu irmão Édouard, sua mulher e seus filhos. Moravam no Faubourg Montmartre. Durante toda a noite, tiros de fuzil foram disparados em volta de sua casa. Assustados pelo tumulto, decidiram de manhã abandonar o domicílio. Chegaram em nossa casa a pé, atravessando as barricadas. Como de costume, minha cunhada estava transtornada: já imaginava seu marido morto e suas filhas violentadas”.

“Meu irmão, – continua Tocqueville - apesar de ser um dos homens mais seguros que se podia imaginar, não era mais o mesmo, pois não sabia o que fazer. Então, claramente compreendi que, se uma companheira corajosa é um grande apoio em tempos de revolução, uma pusilânime, ainda que com o coração de uma pomba, é um estorvo cruel. O que sobretudo me impacientava era ver que minha cunhada não incluía o país sequer por um momento nas lamentações que lhe inspiravam o destino dos seus. Era uma mulher de uma sensibilidade mais à flor da pele que profunda. Embora fosse muito boa e engenhosa, tinha um espírito estreito e um coração arrefecido, pois encerrava-os fortemente em uma espécie de egoísmo piedoso, vivendo ocupada unicamente com o bom Deus, com seu marido, seus filhos e principalmente com a sua própria saúde, sem nenhum interesse pelos outros; era a mulher mais honesta e a pior cidadã que se poderia encontrar”. Tocqueville termina assim a sua narrativa acerca das tratativas que teve de pôr em prática para acalmar a sua cunhada: “Tinha presa em tirá-la do apuro e em me livrar do embaraço que ela me causava. Propus-lhe levá-la à ferrovia de Versalhes, que não era muito longe. Tinha muito medo de ficar em Paris, mas também tinha muito medo de sair e assim continuava a me aturdir com a manifestação de seus temores, sem nada decidir. Enfim, peguei-a quase à força e conduzi-a em segurança, bem como à sua família, até a plataforma, de onde voltei à cidade” [Tocqueville, Lembranças de 1848 – As jornadas revolucionárias em Paris, ob. cit. pp. 78-79].

5 – O bem mais estimável que podemos fazer aos nossos semelhantes consiste em ajudá-los a se tornarem livres, pois a conquista da Liberdade é o maior bem que podemos almejar neste mundo.

À luz do Cristianismo, Tocqueville formula o princípio moral básico de que todos os seres humanos possuímos a mesma dignidade e, portanto, podemos aspirar aos benefícios da Liberdade. Devemos, portanto, sermos solidários para com os nossos concidadãos, quando correm o perigo de cair nas mãos do despotismo. A respeito, Tocqueville escreve: “Eu creio que cada um de nós deve prestar contas à sociedade, tanto de seus pensamentos quanto de suas forças. Quando vemos nossos semelhantes em perigo, é obrigação de cada um ir ao socorro deles” [Tocqueville, “Carta inédita a Orglanes”, de 24/11/1834, apud Mélonio, Tocqueville et les Français, Paris: Aubier, 1993: p. 30].

Em relação ao dever de testemunhar a verdade histórica descoberta na América, Françoise Mélonio escreve: “Tocqueville regressa, pois, da América, investido do dever de testemunhar. O primeiro volume da Democracia, que publica em 1835, recebe desse testemunho histórico os traços que fazem dele o breviário da democracia moderna. A Democracia é uma obra de auxílio ao povo em perigo (...). Ora, há urgência. Na Europa, ‘os tempos se aproximam’ do triunfo da democracia. Tocqueville assume a postura de um João Batista da democracia clamando no deserto: ‘acordai antes que seja tarde demais’; o movimento democrático ‘não é, ainda, suficientemente rápido para desistir de dirigi-lo. A sorte [das Nações européias] está em suas mãos, mas bem cedo lhes escapa’. ‘E que não se diga que é tarde demais para tentar’. Contra os profetas de desgraças, os resignados, Tocqueville faz um apelo aos franceses para que, sem delongas, tomem o destino do país em suas mãos, a exemplo da América. Como os profetas e os pregadores, Tocqueville argumenta com os riscos de uma ‘conversão tardia’ ” [Mélonio, Françoise, Tocqueville et les Français, ob. cit., pp. 30-31].

6 – Pelo fato de sermos herdeiros do Cristianismo, que manda amarmos o próximo como a nós mesmos, devemos ser solidários não apenas com os nossos familiares e amigos, mas também com todos os seres humanos. Todos somos membros do “corpo social”. Devemos, pois, nos sentirmos responsáveis por estudar e sanar as suas doenças.

Tocqueville foi influenciado pela tendência orgânica dos estudos sociais, característica que era comum no final do século XVIII e no início do XIX. Françoise Mélonio registrou essa influência da seguinte forma: “A prática de Tocqueville tinha um precedente: as pesquisas sociais, inauguradas no século XVIII, que conheceram sua idade de ouro na primeira metade do século XIX. Elas tinham como objeto privilegiado o mal social. Tendo sido pensada a sociedade como um organismo, sua doença implicava uma disfunção geral. Interessar-se pelo pauperismo, pela criminalidade, pela prostituição, constituía o caminho para elaborar um diagnóstico acerca da sociedade, a fim de fixar uma terapêutica. A viagem de Tocqueville [à América] insere-se na grande corrente da pesquisa social, estatística e qualitativa (...)” [Tocqueville, “Carta inédita a Orglanes”, de 24/11/1834, apud Françoise MÉLONIO, Tocqueville et les Français, ob. cit., p. 30].

BIBLIOGRAFIA

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TOCQUEVILLE, Alexis de [1988]. L'Ancien Régime et la Révolution. (Prefácio, notas, cronologia e bibliografia a cargo de F. Mélonio). Paris: Flammarion.

TOCQUEVILLE, Alexis de [1991]. Oeuvres, I. (Organizador, André Jardin, com a colaboração de F. Mélonio e L. Queffélec). Paris: Gallimard, Pléiade.

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VÉLEZ Rodríguez, Ricardo [2023]. O liberalismo francês: a tradição doutrinária e a sua influência no Brasil. Apresentação de Antônio Paim. Londrina: Editora EDA, pp. 33-216].

VÉLEZ Rodríguez, Ricardo [1997c]. Socialismo moral e socialismo doutrinário. Rio de Janeiro: Universidade Gama Filho; Londrina: Instituto de Humanidades; Brasília: Instituto Teotônio Vilela. Volume I da coleção A Social-Democracia.

VÉLEZ Rodríguez, Ricardo [1998]. A democracia liberal segundo Alexis de Tocqueville. São Paulo: Mandarim / Brasília: Fundação Tancredo Neves.

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