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OS LIBERAIS DOS ANOS 80 E A CONSTITUIÇÃO DE 1988

OS LIBERAIS DOS ANOS 80 E A CONSTITUIÇÃO DE 1988

PAULO MERCADANTE (ORGANIZADOR) - CONSTITUIÇÃO DE 1988: O AVANÇO DO RETROCESSO (RIO DE JANEIRO: RIO FUNDO EDITORA, 1990, 164 PÁGINAS)..

A nossa Constituição completou 35 anos. Quanto tempo se passou! E quantas reformas já sofreu! Em 88, um grupo de Liberais organizou uma coletânea acerca da Carta de 1988, publicada em 1990 com o seguinte título: Constituição de 1988: o avanço do retrocesso. [Organizador, Paulo Mercadante. Rio de Janeiro: Rio Fundo Editora, 1990, 164 páginas].

Reproduzo, a seguir, o Sumário da obra com os vários capítulos: “Uma introdução histórica” (Paulo Mercadante, organizador). “Liberalismo e Constituição” (José Guilherme Merquior). “A ordem econômica liberal na Constituição de 1988” (Miguel Reale). “Organização e poderes do Legislativo” (Antônio Paim). “Dos direitos individuais e coletivos” (Vicente Barretto). “Os princípios fundamentais da Constituição de 1988” (Ubiratan Borges de Macedo). “Estatismo, marginalismo e Constituição” (Ricardo Vélez Rodríguez). “Constituição: o avanço do retrocesso” (Wilton Lopes Machado). “Partição de rendas tributárias e finanças públicas” (Ives Gandra da Silva Martins). “A nova Constituição financeira” (Ricardo Lobo Torres). “Do Poder Judiciário” (Oscar Dias Corrêa). “Razões da urgente reforma constitucional (Roberto Campos). “Dois aspectos da Constituição de 1988” (Diogo de Figueiredo Moreira Neto). “Política brasileira de Meio Ambiente” (José Carlos Mello).

Nas páginas que seguem, sintetizarei a contribuição de cada um dos participantes da coletânea.

1 – Paulo Mercadante (1923-2013), “Uma introdução histórica” (pp. 7-12).

A Constituição de 1988 é anacrônica, porque anacrônicos foram os seus marcos históricos, definidos pelo conservadorismo e pelo esquerdismo autoritários. No plano mundial, terminou vingando a hipótese jurídica da dicotomia do constitucionalista do Nazismo, Carl Schmitt (1888-1965), que somente admitia confronto entre opostos (totalitarismo de esquerda X totalitarismo de direita). O clima de simplificação radical é assim descrito por Mercadante: “Efetuada no Brasil, a transição para o sistema democrático, nos anos oitenta, a cultura nacional havia de impor cruelmente os mesmos requisitos arcaicos. Manteve-se, sob diversas formas, a dicotomia schmittiana, suporte do nacional-socialismo alemão e do social-fascismo. O populismo, de origem castilhista, repisaria a palavra de ordem direita-esquerda, advogando o capitalismo de estado. O tradicionalismo tripartiu-se em facções: a do sindicalismo pré-marxista, pregando a dualidade burguês-operário, adotando antagonismos maniqueístas como rico-pobre, deus-demônio, em repetição a crenças de seitas franciscanas do século XIV; por fim, a última, com um discurso exclusivamente ético, de combate à corrupção” [Mercadante, “Uma introdução histórica”, Constituição de 1988: o avanço do retrocesso, ob. cit., p. 10].

Os aspectos anacrônicos da Constituição de 88 são assim explicados por Mercadante: “Precedida de um artifício tecnocrático, denominado Plano Cruzado, fez-se no País uma eleição para a Constituinte, dela advindo o fruto natural: uma Carta anacrônica. Debalde o Velho Mundo se liberalizara, trocando o estatismo por uma economia de mercado; em vão a autocrítica do comunismo decidira mudar de rumo, arquivando os dogmas para o retorno à democracia e à livre iniciativa. Progressismo foi o termo excogitado a fim de sacralizar um nacionalismo exacerbado e démodé. Nada mudou. (...). Em contexto de aversão ao lucro, copiava-se a Revolução dos Cravos. O complexo cultural da Contra-Reforma e da Santa Inquisição, em doloroso regresso histórico, levou os progressistas a transcreverem no corpo constitucional dispositivos das Cartas das ex-colônias portuguesas da África, bem como de países subdesenvolvidos da América Central” [Mercadante, “Uma introdução histórica, in: Constituição de 1988: o avanço do retrocesso, ob. cit: p. 10].

Finalizando a sua Introdução, Mercadante frisa que o escopo da obra “é de análise e de crítica. A partir de uma abordagem, vinda de áreas diferentes, a Carta de 5 de Outubro é visitada sem cerimônia por pensadores, politólogos, juristas, economistas e engenheiros”. O mérito do livro está nessa variedade de pontos de vista. “Unem-se pessoas de convicções democráticas, que debatem, trazendo elementos da história, da sociologia e da economia. (...) Poderá o volume constituir politicamente uma contribuição progressista de verdade” [Mercadante, “Uma introdução histórica”, ob. cit., p. 11].

2 – José Guilherme Merquior (1941-1991), “Liberalismo e Constituição”, pp. 13-17.

O saudoso embaixador Merquior era um liberal de convicção. Materializou essa sua inspiração nas funções diplomáticas, através do diálogo cultural que regularmente manteve quando do exercício das suas funções como embaixador do Brasil na Cidade do México. Segundo pessoas que participaram dessas reuniões, que religiosamente aconteciam todas as tardes de quinta-feira, a finalidade perseguida por Merquior era aproximar os intelectuais latino-americanos, a fim de que dialogassem abertamente acerca das suas respectivas realidades culturais. Merquior valorizava a qualidade do “engajamento” dos intelectuais, que entendia como a valorização das suas respectivas culturas nacionais, as quais deveriam se abrir à compreensão das demais culturas latino-americanas. O seu “ativismo” não era, portanto, de militante, mas de intelectual engajado na realidade e na cultura do seu próprio país e no diálogo intercultural com os demais países, especialmente os latino-americanos. Afinal, tratava-se de um aluno aplicado do grande liberal Raymond Aron (1905-1983).

Merquior lembra que o conceito de Constituição é de inspiração liberal. “A Constituição – frisava Merquior - enquanto limitação do poder e divisão dos poderes, é impensável fora da história do liberalismo, [na] doutrina e [na] prática. Raymond Aron classificava as democracias ocidentais de regimes, a um só tempo constitucionais e pluralistas” [Merquior, “Liberalismo e Constituição”, in: Constituição de 1988: o avanço do retrocesso. Organizador, Paulo Mercadante. Rio de Janeiro: Rio Fundo Editora, 1990, p. 13].

O conceito de Constituição, na modernidade, consolidou-se na reflexão acerca do Direito a partir da perspectiva do individualismo, firmado no século XVII na meditação de autores como Hugo Grotius (1583-1645) e Thomas Hobbes (1588-1679). Ora, o constitucionalismo moderno, na sua versão teológica e filosófica, apareceu primeiro com John Locke (1632-1704). A partir dessas bases, ocorreu a versão sociológica, com Montesquieu (1689-1755). Para Merquior, o amadurecimento moderno do Liberalismo foi obra dos ciclos revolucionários americano e francês. A partir deles, se firmou a concepção da Constituição como fundação política, antes que como ordem da autoridade e do governo. Essa herança liberal se projetou sobre a contemporaneidade, no pensamento de Hannah Arendt (1906-1975). Para ela, “a essência da revolução de Thomas Jefferson (1743-1826) reside na Constituição e ela é, a seu turno, primordialmente, um ato de fundação política (...), Criação no Novo Mundo da República da Liberdade, num espaço social conscientemente diverso do da Pólis antiga ou das pequenas Repúblicas citadinas da Europa” [Merquior, “Liberalismo e Constituição”, in: Constituição de 1988: o avanço do retrocesso, ob. cit., p. 14].

No Brasil republicano, perdeu-se a nossa tradição de pensamento constitucional como criação de um espaço de Liberdade, mediante o exercício da representação política. Tornou-se realidade, na nossa terra, infelizmente, a tese de Samuel Huntington (1927-2008) alicerçada no pressuposto de que “nas situações pretorianas, um alto índice, ou potencialmente alto, de mobilização colide com um baixo grau de institucionalização” [Merquior, “Liberalismo e Constituição”, in: Constituição de 1988: o avanço do retrocesso, ob. cit. p. 15]. Essa deformidade da doutrina política, potencializada no século XX pelo autoritarismo de Carl Schmitt, com a sua obra intitulada: O conceito do Político, que abriu as comportas autoritárias com a ideia de que, diante da anarquia social “soberano é quem decide na experiência de exceção”; Merquior traduz esse princípio schmittiano da seguinte forma: “soberano é o poder de atuar ditatorialmente frente à crise e à emergência”. Trata-se, frisa o nosso autor, de “um poder nitidamente cesário, incompatível com o jogo das transações partidário-parlamentares” [Merquior, ”Liberalismo e Constituição”, in: Constituição de 1988: o avanço do retrocesso, ob. cit., p. 15].

Caberia perguntar-nos se, na atual conjuntura de monocratismo ditatorial do STF, não estaríamos diante de um fenômeno dessa natureza, de republicanismo autoritário, tão bem descrito pelo saudoso Merquior. Essa janela inquietante para o futuro brasileiro do republicanismo autoritário da magistratura, é assinalada pelo grande Merquior com as seguintes palavras, com as quais culmina a sua reflexão sobre a Constituição de 1988: “Uma constante da saga política brasileira talvez tenha sido esta: em vez de um autêntico estado liberal, tivemos vários surtos de liberalismo de estado. Em nosso Estado patrimonial-protecionista, digno senhor de uma sociedade senhorial e patriarcal, o liberalismo foi, mais fachada que substância. Entretanto, algumas vezes se tentou, a partir dele, numa espécie de despotismo esclarecido, uma que outra reforma liberal-modernizante: a Abolição; a justiça eleitoral; a proteção ao trabalho; a educação livre; a reforma do Código Penal, a modernização do direito da família...”.

Assim culmina José Guilherme Merquior o seu arrazoado premonitório sobre a nossa Carta Magna: “Tomara que a nova Constituição, quiçá revista e melhorada, possa fugir ao destino das cartas latino-americanas, tantas delas condenadas a ser o que David Lowenthal (1923-2018) batizou de ‘constituições pedagógicas’: um feixe bacharelesco de idealidades inviáveis, cruelmente desmentidas pela prática político-social, embora dotadas de módicos efeitos civilizatórios. Oxalá possa ela, aprofundando seus componentes liberais, dispensar o recurso ao reformismo von oben – ao liberalismo de estado – enraizando nos nossos mores a energia plural da liberdade, neste nosso fim de século cada dia mais digno de ser chamado Era da Liberalização” [Merquior, “Liberalismo e Constituição”, in: Constituição de 1988: o avanço do retrocesso, ob. cit., p. 17].

3 - Miguel Reale (1910-2006), “A ordem econômica liberal na Constituição de 1988”, pp. 19-26.

O grande jurista considerava que havia um ponto de partida positivo na Constituição de 1988: ter-se colocado no plano do cidadão, enquanto outras Cartas Constitucionais falavam em nome do Estado. “Com a Constituição de 1988 – que nesse ponto aceitou sem mudança o que foi proposto pela ‘Comissão Arinos’, à qual tive a honra de pertencer – começa a ocorrer uma mudança de 180 graus, pois coloca em primeiro plano a sociedade civil. Os títulos e capítulos iniciais da Constituição não se referem mais ao Estado, mas sim à sociedade civil; à pessoa e seus direitos; e aos grupos coletivos, com alterações que não posso examinar, porque extrapolariam o assunto aqui versado. Mas é fundamental, para compreender o problema da intervenção do Estado no mundo econômico, tomar em conta essa mudança de ângulo, de verificação ou de perspectiva: a passagem do Estado para a sociedade civil. É a razão pela qual a livre iniciativa é lembrada como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, sendo elemento pertinente à sociedade civil e não ao Estado como tal” [Reale, “A ordem econômica liberal na Constituição de 1988”, in: Constituição de 1988: o avanço do retrocesso. Ob. cit., p. 20].

Embora seja um aspecto positivo na avaliação da Constituição de 1988, a caraterística apontada de colocar em primeiro plano a sociedade civil, Miguel Reale considera que a nova carta, em matéria econômica, ainda se situa no contexto estatizante que vigorou no passado. Frisa a respeito: “Em matéria econômica o Governo Federal ainda não desencarnou da compressão e da intervenção sistemáticas no mundo econômico, como se a Constituição de outubro de 1988 não tivesse alterado substancialmente a matéria, neste ponto básico, optando por diretrizes liberais. Se não acentuarmos esse aspecto da nova Constituição, não será criado o clima indispensável a que o próprio Poder Judiciário venha a pronunciar-se à luz de novos princípios. Sem o que, pela lei da inércia, continuar-se-á a repetir aquilo que às vezes nem sequer poderia ser admitido na vigência da Carta de 1969” [Reale, “A ordem econômica liberal na Constituição de 1988”, in: Constituição de 1988: o avanço do retrocesso. Ob. cit., p. 19].

Miguel Reale deteve-se, especialmente, no comentário ao Artigo 174 da nova Carta, que tipifica a função do Estado como determinante para o setor público em matéria de políticas econômicas, sendo que esse papel é caracterizado apenas como indicativo em face do setor privado. O citado Artigo, aliás, reza assim: “Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado” (grifos do autor). A respeito, Reale escreve: “Vejam bem: o plano é determinante, obrigatório, para o setor público, mas indicativo para o setor privado. Trata-se, pois, de uma diretriz fixada e deixada ao critério da própria sociedade civil. De maneira que recebi com entusiasmo e certa confiança, apesar do meu pessimismo (justificado por tantas coisas que aconteceram), a idéia de um pacto social, que está em harmonia com esta Constituição. A idéia do pacto social significa que aqueles que podem concorrer livremente, e exercer a livre concorrência, podem firmar entre si um pacto, um acordo de cavalheiros, em que o Estado aparece, não como força dominante, mas como um dos parceiros. Porque o que prevalece é a sociedade civil sobre o Estado. É preciso, portanto, acabar com este mito da estatização que surgiu no Brasil e nos ameaça. Estamos num período muito perigoso da nossa vida. Não que eu tenha medo do comunismo! Eu tenho medo é da estatização, porque o horroroso, o que me repugna, me enoja, no comunismo, é a estatização, a burocracia das atividades, a supressão do direito civil, a supressão do Direito na sua forma espontânea, para que haja apenas um direito: o Direito administrativo do Estado, como única forma de manifestação dos direitos e interesses individuais. Quando tudo se reduz a imperativos da Administração, não há mais lugar para o Estado de Direito, que é o cerne da consciência liberal”. [Reale, “A ordem econômica liberal na Constituição de 1988”, in: Constituição de 1988: o avanço do retrocesso. Ob. cit., p. 26].

4 – Antônio Paim (1927-2021). “Organização e Poderes do Legislativo”, pp. 27-45.

Em virtude do fato de que a República foi proclamada tendo como pano de fundo a retórica cientificista do Positivismo, de que o poder vem do saber e não do voto, ficou difícil entender como poderia ser regulado, pela Constituição, o exercício do poder a partir do voto. O nosso republicanismo já nasceu enviesado. Porque ali onde se instaurou o regime republicano junto com a evolução normal do Poder Legislativo como aquele que representa os interesses dos cidadãos, foi tranquila a organização dos poderes republicanos a partir do voto, levando em consideração que o poder supremo que representava os interesses daqueles era o Legislativo. Mas como no Brasil a retórica positivista colocou a Ciência como variante legitimadora do voto, as coisas ficaram num ar rarefeito de abstrato cientificismo.

Antônio Paim, no seu capítulo dedicado a como, na Constituição de 1988, foi feita a organização dos poderes do Legislativo, destaca os passos fundamentais que foram dados na preparação do mencionado texto constitucional, fixando a atenção nos poderes atribuídos pela Carta ao Congresso. O nosso pensador parte, para sua análise, do exame da experiência republicana inicial, no final do século XIX e início do XX. Alicerça-se na autoridade de eminente historiador das instituições republicanas, José Maria Belo (1885-1959). Cita as palavras dele: “(...) Dentro da própria órbita constitucional, o presidencialismo do regime adotado em 15 de novembro de 1889, revelava a tremenda soma de poderes que poderia enfeixar nas mãos o Presidente da República, e dos quais os seus sucessores saberão colher o máximo proveito” [José Maria Bello, História da República, 6ª edição, São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1965, p. 155, cit. por Antônio Paim, in: “Organização e poderes do Legislativo”, Constituição de 1988: o avanço do retrocesso. Ob. cit., p. 27].

Qual foi o caminho escolhido para limitar, nessa experiência inicial da República entre nós, o excessivo poder do Executivo? A solução não foi a mais racional, infelizmente: consistiu em violar a Constituição, de forma que pudesse ser limitado o poder do Executivo, mediante um reforço do Legislativo por fora do que tinha sido previsto pela primeira Carta Constitucional. Partiu-se para paralisar o Executivo e colocá-lo como refém do Legislativo. Tal expediente foi o responsável, frisa Paim, pela instabilidade que vicejou ao longo da nossa história republicana.

O caminho mais eficaz teria sido, desde o início, identificar a essência e as funções dos poderes públicos, destacando os limites de cada um deles e os passos que poderiam ter melhor resultado, no sentido de pôr em funcionamento esse complexo mecanismo. A história dos países onde vingou a estabilidade em meio à tripartição de poderes, mostra que a via adequada foi, desde o início, fixar claramente os poderes de cada uma das instâncias, destacando os fatores que poderiam agir como corretivos no caso de ultrapassagem dos limites previamente adotados. O caminho racional no Brasil incluiria, portanto, a estruturação da representação política e a forma como o Legislativo poderia agir legalmente, para garantir os limites dos demais poderes e os dele próprio, fazendo amadurecer um sistema representativo mais acorde com a defesa dos interesses dos cidadãos. Esse sistema aconteceria praticamente com a adoção do voto distrital, que realmente conferia poder aos eleitores fidelizando a representação do Parlamento.

Ora, na Carta de 88 não foi levado em consideração esse raciocínio. Muito pelo contrário: foi adotado, de forma definitiva, o voto proporcional, pelo fato de se ajustar melhor aos interesses das lideranças partidárias e se esquecendo que os partidos deveriam apostar tudo na defesa dos interesses dos cidadãos. Ora, isso só se conseguiria mediante a adoção do voto distrital, que aproxima eleitores de eleitos e que possibilita o controle destes pelos primeiros. A respeito, frisa Paim: “A Carta de 88 deixou passar mais uma oportunidade de lançar as bases de uma experiência de colaboração sem quebra da autonomia entre Legislativo e Executivo. O Parlamento quer interceder em tudo. E mais que isto, quer deixar sobre o Executivo ameaças as mais genéricas possíveis, como o primor de abrangência que se contém no inciso V do art. 49. Segundo este, compete ao Congresso ‘sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa’ “ [Paim, “Organização e Poderes do Legislativo”, Constituição de 1988: o avanço do retrocesso. Ob. cit., p. 27].

Um segundo fator veio agravar as coisas: a adoção, pela Constituição de 1988, do voto proporcional, em substituição à proposta de adoção do voto distrital. A respeito da prática do voto proporcional, frisa o nosso autor: “A prática do sistema proporcional, durante o interregno democrático do pós-guerra, mostrou que impossibilitava de fato a formação de partidos políticos estáveis e representativos. O mesmo se pode dizer do ciclo autoritário subsequente e da Nova República. Se em 64 tínhamos treze partidos políticos – e os maiores só sobreviviam pelo instituto da ‘aliança de legenda’, de triste memória – hoje temos o dobro, isto é, vinte e seis. As duas maiores agremiações (PFL e PMDB) beneficiaram-se, uma, da longa oposição aos governos militares, a outra, do fato de ter viabilizado a sua derrocada pacífica, ao constituir a chamada Aliança Democrática, mas, na realidade, não alcançaram nenhuma representatividade como se evidencia das eleições presidenciais”.

“Sem partidos políticos – continua Paim – não pode haver sistema democrático nem estabilidade política. Ora, como o sistema proporcional impossibilita a formação dos partidos políticos, é obvio que a parte da Constituição de 1988, que ora examinamos, é instrumento perpetuador da crise. O outro lado da medalha é o empenho de submeter o Executivo à vontade do Legislativo. Tais são os dois pólos da questão (...). Sem partidos políticos não pode haver democracia, tampouco governo parlamentar. E, sem a abolição do sistema proporcional, perpetuaremos o quadro republicano típico da indefinição partidária” [Paim, “Organização e Poderes do Legislativo”, in Constituição de 1988: o avanço do retrocesso. Ob. cit., pp. 28 e 44].

Uma proposta de bom senso – e jamais posta em prática ao longo do ciclo republicano, foi pregada pelo grande Alberto Sales (1857-1904): “Não sejamos parlamentaristas intransigentes nem presidencialistas radicais” [citado por Antônio Paim, “Organização e Poderes do Legislativo”, in: Constituição de 1988: o avanço do retrocesso. Ob. cit. p. 45].

Finalizando, foi proposta uma figura intermediária entre voto proporcional e voto distrital: o chamado “voto distrital misto”, vigente hoje na Alemanha, que representa os interesses dos cidadãos nos distritos, mas que também abre a porta para os interesses das grandes personalidades que poderiam ser eleitas pelo voto proporcional. No entanto, não foi explicada suficientemente essa figura e a proposta do voto distrital terminou simplesmente sendo abandonada. A propósito deste ponto, frisa Paim: “O contingente de partidários do voto distrital é hoje muito expressivo. Talvez o principal dos seus pontos fracos tenha sido a ausência de um debate prévio que facultasse a união em torno de uma proposição consistente. (...) As fórmulas mistas traduzem uma convicção insuficiente quanto às vantagens e propósitos da formação de distritos eleitorais no país” [Paim, “Organização e Poderes do Legislativo”, in: Constituição de 1988: o avanço do retrocesso. Ob. cit., p. 29].

O que fica claro após todo o arrazoado anterior é o seguinte, em palavras do Antônio Paim: “Sem partidos políticos não pode haver democracia, tampouco governo parlamentar. E, sem a abolição do sistema proporcional, perpetuaremos o quadro republicano típico da indefinição partidária” [Paim, “Organização e Poderes do Legislativo”, in: Constituição de 1988: o avanço do retrocesso. Ob. cit., p. 44].

5 – Vicente Barreto (1939-) – “Dos Direitos Individuais e Coletivos”, pp. 47-57.

A parte concreta, com vistas à sua aplicação imediata, relativa aos “direitos individuais e coletivos”, é desenvolvida no final do capítulo elaborado por Vicente Barreto. Em relação a essa parte, frisa o autor: “A longa declaração de direitos individuais e coletivos da Constituição de 1988 em muitos itens faz afirmações de caráter geral, que acabam por tornar inaplicáveis esses direitos. Assim, por exemplo, a declaração de que ‘todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade’..., ignora a realidade social onde existem profundas desigualdades sociais e econômicas, e, portanto, de poder entre indivíduos e grupos sociais. Apesar de pretender garantir direitos usualmente encontrados nas constituições liberais, a Constituição de 1988 não especificou quais os mecanismos que iriam garantir essa igualdade teórica” [Barreto, “Dos Direitos Individuais e Coletivos”, in: Constituição de 1988: o avanço do retrocesso. Ob. cit., p. 56].

Ora, sem a indicação desses mecanismos jurídicos, não se torna autoaplicável a Constituição, no que tange a direitos apenas mencionados, sem especificação dos mecanismos que os tornarão plenamente aplicáveis. Vicente Barreto se alicerça, para sustentar o seu ponto de vista, no texto clássico de Charles Horton Cooley (1864-1929), citado por Rui Barbosa na sua obra intitulada: Comentários à Constituição Federal [São Paulo: Saraiva, 1933, vol. 2, p. 495] que reza assim: “Pode-se dizer que uma norma constitucional é autoexecutável, quando nos fornece uma regra, mediante a qual se possa fruir e resguardar o direito outorgado, ou executar o dever imposto; e que não é autoaplicável, quando meramente indica princípios, sem estabelecer normas por cujo meio se logre dar a esses princípios vigor de lei”.

A propósito desse tema, escreve Vicente Barreto: “A crítica técnica-jurídica à declaração de direitos da Constituição de 1988 tem a ver com a distinção entre normas não autoaplicáveis. Isso significa que medeia entre a intenção do legislador e a realidade um espaço que para ser preenchido precisa de normas autoexecutáveis. Rui Barbosa (1849-1923), ao comentar a Constituição de 1891, mostrou como é necessário que no texto constitucional existam normas que para sua aplicação não necessitem de interpretação e de legislação que designe uma autoridade especial, sob pena dos direitos e garantias constitucionais tornarem-se letra morta” [Barreto, “Dos Direitos Individuais e Coletivos”. In: Paulo Mercadante, organizador. Constituição de 1988: o avanço do retrocesso, ob. cit., p. 57].

6 – Ubiratan Borges de Macedo (1937-2007) – “Os princípios fundamentais da Constituição de 1988”, pp. 59-75.

Para Ubiratan Macedo, a complexidade interpretativa da Constituição de 1988 decorre dos fatores históricos peculiares que acompanharam a sua elaboração. Ora, esses fatores podem ser aglutinados ao redor de quatro pontos: A – Excessiva extensão do texto constitucional. B – Modalidade ilógica da elaboração do texto constitucional. C – Caráter dirigente do texto constitucional. D – Caráter conflitual do texto.

A - Quanto à excessiva extensão do texto, frisa Ubiratan Macedo: “A Constituição impressiona pelo seu tamanho (duzentos e quarenta e cinco artigos, mais setenta de disposições transitórias, (num total de trezentos e quinze artigos), a segunda mais longa do mundo, sendo a da Índia a primeira pela preocupação detalhista e pela abundância de normas programáticas” [Macedo, “Dos princípios fundamentais da Constituição de 1988”, in: Paulo Mercadante (organizador), Constituição de 1988: o avanço do retrocesso, ob. cit., p.59].

B – Modalidade ilógica da elaboração do texto constitucional. A respeito, frisa Macedo: “Como lei nova, foi definida de maneiras contraditórias como ‘estatizante’, ‘reacionária’, ‘anacrônica’, ‘terceiro-mundista’, ‘liberal-progressista’ e ‘constituição dirigente para a transição ao socialismo’. O que é compreensível face ao processo de sua elaboração, feita de baixo para cima, a partir de contribuições sem o arcabouço de um projeto para orientar a discussão, refletindo pontos de vista divergentes, que uma sistematização apressada e por vezes, em pontos cruciais, derrotada no plenário por outras inspirações, não soube conciliar, sequer disfarçar” [Macedo, “Dos princípios fundamentais da Constituição de 1988”, ob. cit., p. 59].

C – Caráter dirigente do texto constitucional. A respeito, escreve o jurista Manoel Gonçalves Ferreira Filho: “Na Constituinte brasileira de 1987-1988, havia quem habilmente houvesse articulado uma Constituição dirigente, no sentido que Canotilho (1941-) dá ao termo: Constituição para a transição para o socialismo. É verdade que esse propósito, muito claro no famigerado Anteprojeto da Comissão de Sistematização, não vingou. Emenda aqui, emenda ali, obscurecida acolá por expressões ambíguas e vagas, a Constituição de 1988 não é uma Constituição de transição para o socialismo. É, indubitavelmente, uma Constituição estatizante, mas o fascismo também era e é estatizante” [cit. por Macedo, “Dos princípios fundamentais da Constituição de 1988”, ob. cit., p. 60].

D – Caráter conflitual do texto. A respeito, escreve Macedo: “Nossa Constituição é conflitual. Todos os pontos de discordância da sociedade brasileira estão nela incluídos, com normas genéricas, remetendo para a legislação complementar e ordinária a efetivação dos direitos enunciados, ou dos programas e tarefas prometidos. Ou então colocam-se conflitos, além dos já existentes, como o da reforma agrária, ao se distribuírem rendas entre estados e municípios, retirando-as da União sem lhe retirar encargos e até aumentando. (...). Ou ainda ao atribuir poderes ao Legislativo, num espírito parlamentarista, e adotar ao mesmo tempo a solução presidencialista para o Executivo. Ou, por último, por conter inúmeros artigos de impossível ou difícil execução (...)”. [Macedo, “Dos princípios fundamentais da Constituição de 1988”, ob. cit., p. 61]. O professor Miguel Reale afirmava, a respeito, que “(...) a Constituição cria novos conflitos, equaciona sem solucionar os antigos, excitando esperanças e gerando impaciências e, ao passo, cria uma série de medidas e remédios processuais para alimentar estas impaciências, tais como mandado de injunção e mandado de segurança coletivo e a ação popular (...), com uma amplitude e abrangência inverossímeis a convidar uma enchente nos tribunais, sobretudo porque a boa-fé isenta de custas. E o Judiciário tornou-se mais complexo, com novos tribunais (...)” [Reale, Miguel, “Constituição – Instrumento”. In: Revista Convivium, junho de 1988, p. 537, cit. por Macedo, “Dos princípios fundamentais da Constituição de 1988”, ob. cit., p. 61].

Apesar das imprecisões lógicas e conceituais que acabam de ser ilustradas, Ubiratan Macedo deixa clara uma coisa: no Preâmbulo da Constituição de 1988 fica claro que o objetivo maior da Assembléia Nacional Constituinte era instituir um Estado Democrático “destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais e uma série de valores como a construção de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida com a solução pacífica das controvérsias internas e externas” [Macedo, “Dos princípios fundamentais da Constituição de 1988”, ob. cit., p. 62].

São garantidos portanto, pelo texto constitucional, “(...) respeitados os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º), os direitos individuais entre os quais a propriedade, a herança e a justiça social (art. 170) (...). Os eleitores podem escolher qualquer tipo de modelo social, como o socialismo democrático, o capitalismo social ou o liberalismo social e/ou ainda algo mais exótico como o anarco-capitalismo tão em moda hoje nos Estados Unidos e na França. Só a limitação expressa no texto português é inaceitável para a ortodoxia da Constituição Federal de 1988. Se povo e governo brasileiros quiserem abandonar o esdrúxulo neopatrimonialismo arcaico e interventor, adotado no País desde Pombal e reforçado pelo castilhismo estado-novista, com influência em 64, pode fazê-lo em qualquer direção compatível com as limitações indicadas. Aí, talvez, nos livremos do regime de capitalismo quanto a lucros, de socialismo quanto a prejuízos, das reservas de mercado e de uma iniciativa privada sem riscos e da intervenção estatal sem finalidade social e até mesmo ética” [Macedo, “Dos princípios fundamentais da Constituição de 1988”, ob. cit., pp. 66-67].

Ubiratan Macedo termina o seu capítulo destacando o papel de Fundação da Legitimidade pela Constituição de 1988. Frisa a respeito: “O principal papel da Constituição é o da restauração da legitimidade institucional entre nós, duramente abalada pelo golpe da república, pelas revoluções de 30, de 37 e 64. Sobretudo porque o povo jamais foi consultado sobre a legitimidade da mudança de império para república e da de governo presidencialista para parlamentarista (não se pode considerar aqui o plebiscito de João Goulart, entre outras razões, não foi uma escolha entre regimes, mas um protesto contra uma mudança nas regras depois do jogo iniciado). Abre-se a primeira oportunidade para reatarmos o fio da legitimidade histórica com o plebiscito de 1993. É provável que nele não volte a monarquia, hoje sem raízes no País, mas ficará legitimada de vez a forma de Estado e a do governo. Pois basta um pequeno grupo pôr em dúvida continuadamente a autoridade para que esta perca a sua sacralidade e se inicie um processo de contestação imprevisível” [Macedo, “Dos princípios fundamentais da Constituição de 1988”, in: Constituição de 1988: o avanço do retrocesso. Ob. Cit., p. 73].

7 – Ricardo Vélez Rodríguez (1943-) – “Estatismo, Marginalismo e Constituição”, pp. 77-88.

Nesta importante quadra da vida política brasileira, em que tratamos de consolidar a prática da democracia representativa, é preciso fazer um balanço do que, em termos de controle ao crescimento desenfreado do Estado, oferece a Constituição de 1988.

As perspectivas, infelizmente, são sombrias. Na primeira parte desta exposição será destacada a força que ainda possuem as perniciosas tradições do marginalismo e do estatismo. Na segunda parte, será feito um balanço das relações entre Estado e Sociedade na atual Constituição; será destacada a questão da representação.

A – Duas tradições perniciosas: marginalismo e estatismo.

O vício do marginalismo foi identificado por Oliveira Vianna (1883-1951), como a tentativa de modificar o comportamento do povo por decreto. Dessa sina não escapa a Constituição de 1988, que passou a exprimir, em muitos pontos, os confusos ideais dos seus formuladores, mais do que as tendências reais da sociedade brasileira.

A respeito, escreveu o sociólogo Paulo Mercadante: “A emoção e o açodamento, unidos numa intersecção de nacionalismo e populismo, produziram uma Constituição que prima pela idealidade. (...). Tomados pela euforia, decidiram os constituintes redigir um texto minucioso e bombástico, sujeito, por inadequação, à morte prematura” [Mercadante, “Uma Constituição anacrônica”. Convivium, São Paulo, 31 (6): pg. 505, nov./dez. 1988, apud Vélez, “Estatismo, Marginalismo e Constituição”, in: Constituição de 1988: o avanço do retrocesso. Ob. cit., p. 78].

Em que sentido se efetivou o movimento pendular da Constituição de 1988? O professor Miguel Reale responde: “(...) Agora, legislando novamente sob o signo do revide, voltamos a fortalecer o Congresso Nacional além do necessário. Eram requeridas, sem dúvida medidas de contenção contra os excessos do nosso presidencialismo caudilhesco, mas não até o ponto de subordiná-lo às deliberações precárias de um Poder Legislativo apoiado em clientelas personalistas e não em partidos distintos (...) por seus planos de governo” [Miguel Reale, “Constituição terceiro-mundista”, in: Convivium, São Paulo, 31 (6): pg. 505, nov./dez. 1988, apud Vélez, “Estatismo, Marginalismo e Constituição”, in: Constituição de 1988: o avanço do retrocesso. Ob. cit., p. 86].

No que tange ao vício do estatismo, segundo assinalaram os principais estudiosos do tema na nossa sociologia (Raimundo Faoro, Simon Schwartzman, Antônio Paim, Fernando Uricoechea, José Osvaldo de Meira Penna e outros, entre os quais eu me coloco), consolidou-se um Estado mais forte do que a sociedade, pautado pelo modelo patrimonial. Em que pese o caráter modernizador de que se revestiu o Estado patrimonial brasileiro (nos momentos pombalino, imperial, getuliano e tecnocrático militar dos anos 60), conservou-se inalterada a ideia do Estado-empresário, que se consolidou já a partir das reformas pombalinas.

Assim, friso no meu texto: ”o intervencionismo que pautou o processo modernizador ao longo do século XX, não seria propriamente o keynesiano, mas o positivista-pombalino, na linha defendida por Aarão Reis (1853-1936) e efetivada pela segunda geração castilhista, ao longo dos anos 30. Oliveira Vianna (1883-1951), por sua vez, interpretou o paternalismo centrípeto que acompanhou o processo modernizador do Estado brasileiro, como decorrência do complexo de clã, ou falta de sentido da coisa pública, que caracterizaram sempre a nossa cultura política, como decorrência dos hábitos parentais incorporados na longa experiência privatizante do latifúndio, berço da nacionalidade” [Vélez, “Estatismo, Marginalismo e Constituição”, in: Constituição de 1988: o avanço do retrocesso. Ob. cit., p. 80].

Em relação ao fortalecimento dessa tendência estatizante ao longo do século passado, citei este esclarecedor texto do ex-Ministro Mario Henrique Simonsen (1935-1997): “Desde o término da Segunda Guerra Mundial até a presente data, o setor público brasileiro cresceu a taxas verdadeiramente espantosas. Entre 1947 e 1965, em percentagem do PIB, a despesa do governo aumentou de 10,7% para 14,2%. A formação bruta de capital fixo pelas entidades públicas (inclusive autarquias e sociedades de economia mista), de 3,2% para 8,0%. A carga tributária bruta, de 14,7% para 25,1%. E o dispêndio total do governo (inclusive subsídios e transferências), de 18,0% para 31,0%. Tendo em vista que nesse período o produto real cresceu 3,64 vezes, conclui-se que, em termos reais, as despesas de consumo do governo se multiplicaram por 3,5; os investimentos, por 6,6; o dispêndio total e os impostos, por 4,5. Estima-se que os índices de estatização ainda se tenham acentuado em 1966 e 1967. Essa evolução acelerada do setor público é das mais rápidas de que se tem notícia no mundo não socialista (...). Os índices de pressão do setor público sobre a economia situam-se, entre nós, nas faixas mais altas registradas para o mundo ocidental(...)” [Simonsen, Mário Henrique, Brasil 2002, Rio de Janeiro, APEC, 1969, p. 203, cit. por Vélez, “Estatismo, marginalismo e Constituição”, ob. cit., in: Constituição de 1988: o avanço do retrocesso. Ob. cit., p. 80].

B – Estado e sociedade na Constituição de 5 de outubro de 1988.

Destacarei aqui a falta de modernização da nossa representação. Os processos eleitorais ocorridos ao longo da República Nova (surgida com o fim do regime militar, em 1985 e que se estende até os dias atuais) demonstraram um fato: o desgaste dos partidos e o descrédito da classe política. A falta de credibilidade decorre, fundamentalmente, do achincalhamento da representação. A questão é particularmente grave, se levarmos em consideração que o único caminho institucional possível para controlar o excessivo crescimento do Estado, é o do fortalecimento da representação política. Ora, esse ponto é descuidado pela Carta de 1988 que, ao manter o dispositivo do voto proporcional (com exclusão do voto distrital, no artigo 45) e ao ter limitado a representação parlamentar dos Estados mais modernizados e populosos (no artigo 45, parágrafo 1), fechou o caminho para o aprimoramento da representação.

Particularmente, a rejeição ao voto distrital foi lamentável, porque ele seria o instrumento adequado à moralização da representação política. “Perdeu-se a oportunidade – frisa Antônio Paim – de introduzir o voto distrital. O sistema proporcional tem-se revelado, em toda parte, incapaz de organizar a vontade do eleitorado e obrigar ao funcionamento dos partidos políticos. Essas agremiações são de muito difícil manutenção, em face das disputas de liderança. De modo que requer contrapesos e obrigações que somente a existência de distritos eleitorais têm assegurado nos maiores países democráticos. Trata-se de uma questão essencial porquanto, sem partidos políticos, não pode haver prática democrática” [Paim, “Avanços e recuos na relação Estado-Sociedade”. In: Convivium, São Paulo, 31(6): pg. 516, nov./dez. 1988].

8 – Wilton Lopes Machado – “Constituição: o Avanço do Retrocesso” – pp. 89-101.

O autor deste capítulo inspirou o título da obra que estamos comentando. Advogado especialista em Direito Tributário, chama a atenção para o paradoxo que acontece no universo das políticas tributárias, desde tempos imemoriais. A respeito, Wilton Lopes Machado frisa: “É surpreendente que, afirmados, e reafirmados, desde a Constituição Imperial de 1824, princípios liberais de tributação e organização econômica, ainda hoje permaneçam sem realização, envolvidos todos os partícipes sociais em um conflito paradoxal. Somos e sempre fomos nacionalistas, sem termos alcançado um desenvolvimento predominantemente nacional pois, excluídos monopólios cartoriais, o setor industrial acusa predominante presença multinacional, útil e fecunda, mas hostilizada e restringida na última construção constitucional. Em matéria tributária, a igualdade foi sempre princípio onipresente, mas as classes ou estamentos, com poder suficiente para eximir-se das incidências fiscais, não deixaram de utilizá-lo. E ao longo do tempo permaneceram, como, ainda agora, alguns segmentos sociais, isentos, ou aliviados da carga fiscal, como agricultores, pecuaristas, parlamentares e militares, além do setor financeiro e da imensa cornucópia de subsídios e incentivos fiscais. O princípio da reserva legal foi violentado no infindável contubérnio com os decretos-leis e, atualmente, com o abuso das medidas provisórias” [Wilton Lopes Machado, “Constituição: o avanço do retrocesso”, in: Constituição de 1988: o avanço do retrocesso. Ob. cit., p. 92; o destaque, em itálico, é nosso].

A causa principal desse fenômeno é identificada pelo autor como sendo “o desmesurado crescimento da despesa pública, que os estamentos detentores do poder dissimulam com a linguagem política da ação social do estado do bem-estar. E nem mesmo a alternância democrática serviu à diminuição do fenômeno, pois os que sucedem trazem a voracidade aumentada pelo eventual jejum anterior, e os que são substituídos guardam muitas vezes vínculo e fidelidades para continuar o desfrute através de contratações” [Lopes Machado, “Constituição: o avanço do retrocesso”, in: Constituição de 1988: o avanço do retrocesso. Ob. cit., pp. 92-93].

A causa fundamental de tanto despautério é uma: a prática corrupta imemorial que faz do Estado uma fonte de renda para ser privatizada pela insaciável burocracia patrimonialista e a consequente utilização dos bens públicos, como uma espécie de patrimônio de família, para beneficiar parentes, amigos e apaniguados, sem prestar contas a ninguém.

É a queixa que, já em 1656, externava o padre Antônio Vieira (1608-1697), quando reclamava, em carta dirigida ao Rei português, da gula sem limites dos Ministros, que vinham a estas terras “para a extração, segurança e remessa deste ouro e prata”. Perguntava, agoniado, o piedoso e fiel missionário, diante da pressão da “máquina empresarial estatal do Estado patrimonial”: “Quantos administradores, quantos provedores, quantos tesoureiros, quantos almoxarifes, quantos escrivães, quantos contadores, quantos guardas no mar e na terra e quantos outros ofícios de nomes e jurisdições novas se haviam de criar ou fundir com estas minas para vos confundir e sepultar nelas?” [Padre Antônio Vieira, cit. por Lopes Machado, in: “Constituição: o Avanço do Retrocesso”, ob. cit., in: Constituição de 1988: o Avanço do Retrocesso, ob. cit. p 93].

Ora, Wilson Lopes Machado destaca que a reivindicação dos contribuintes brasileiros vai, exatamente, no sentido de ter uma visão clara da forma em que serão gastos os impostos pagos ao Estado, sendo que eles, como cidadãos, já sabem o que devem fazer.

Frisa a respeito o nosso autor: “A reivindicação de uma economia e de um sistema tributário liberal não é uma pretensão interesseira de empresários, mas, antes, como toda aspiração de liberdade, uma reivindicação social popular irrecusável. O povo brasileiro é suficientemente esclarecido, laborioso e criativo para dispensar a feitoria estatal. Exige liberdade de produzir sem estorvos e o direito de dispor livremente do produto do seu trabalho, reservando ao Estado o mínimo necessário ao cumprimento das suas funções essenciais, há longos anos negligenciadas. Quer lucros e salários e não contribuições sociais administradas por estamentos sem controle. O caminho de regresso ao passado deve orientar-se mais aos princípios da tributação racional não à redescoberta de formas opressivas de fiscalidade. As energias individuais do cidadão comum despertarão para criar uma sociedade justa” [Lopes Machado, “Constituição: o Avanço do Retrocesso”, in: Constituição de 1988: o Avanço do Retrocesso, ob. cit. pp. 100-101].

Assim conclui Wilton Lopes Machado o seu belo ensaio: “Octávio Paz (1914-1998), em El ogro filantrópico [Barcelona: Seix Barral, 1983], exige que o Estado não seja nem igreja nem partido, esta sendo a primeira condição de uma sociedade realmente moderna e realmente democrática. E (que), ao terminar, diga o mesmo que Maurice Flamant, lembrando Alexander Soljenitsyn (1918-2008), vítima da opressão estatal, que sem liberdade a própria (existência) é ameaçada, porque é a liberdade, malgrado tantos equívocos e dificuldades, superando egoísmos, um dos mais nobres ideais pelos quais pulsa o coração do homem. Os muros que estão sendo derrubados na Europa são os do Estado ideológico, da hipertrofia da autoridade e da incompetência econômica, e mais que a ruptura do isolamento geográfico, documentam a força incoercível da aspiração de liberdade espiritual e política, que jamais abandonarão o ser humano, como um atributo de dignidade e um sinal de divindade” [Wilton Lopes Machado, “Constituição: o Avanço do Retrocesso”, in: Constituição de 1988: o Avanço do Retrocesso, ob. cit. p. 101].

9 – Ives Gandra da Silva Martins (1935-) – “Partição de rendas tributárias e finanças públicas” – pp. 103-113.

O jurista Ives Gandra da Silva Martins considera que tinha-se perdido o senso das proporções no tocante à tributação dos cidadãos do Brasil, levando em consideração que as disposições legais somente enxergam o bem do Estado, sem olhar para a precariedade da situação econômica em que se situa o cidadão. No seu livro intitulado: O sistema tributário na Constituição de 1988, frisa Gandra da Silva Martins, criticando “a visão pouco feliz do constituinte em diversificar o sistema, com aumento de competências pouco utilizáveis, assim como da carga tributária sobre o contribuinte, às vezes inclusive de forma canhestra” [Ives Gandra da Silva Martins, O sistema tributário na Constituição de 1988, São Paulo: Saraiva, 1989, in: Constituição de 1988: o Avanço do Retrocesso, ob. cit. p. 107, nota 1].

Segundo o nosso autor, a situação, em 1988, era dramática, sendo assim resumida: “À evidência, se a União, com a estrutura diminuta que possuía, não lhe era possível enfrentar de forma coerente o déficit público, ao ponto de no ‘conceito nominal’ ter atingido 30% do PIB em outubro de 1988, a partir do momento em que passou a possuir mais atribuições e menos receitas, deixou de ter instrumental hábil capaz de reverter o já deformado quadro anterior, ao ponto de estar hoje (novembro de 89) com um déficit calculado em 45% do PIB (...)” [Ives Gandra da Silva Martins, “Partição de rendas tributárias e finanças públicas”, ob. cit., in: Constituição de 1988: o avanço do retrocesso, ob. cit., p. 104].

A fim de subsanar essas deficiências, o autor sugeriu aos Constituintes duas providências urgentes: “(...) 1º - Se reduzir o papel do Estado, o tamanho de sua máquina administrativa e o número de parlamentares, visto que um Congresso maior não representa necessariamente uma Casa das Leis, mais operante e o atual, com 559 parlamentares, onze meses após a promulgação da Constituição, não produziu ainda nem legislação ordinária, nem complementar necessárias à sua conformação à realidade nacional. Pagos para trabalhar, não trabalham, em demonstração inequívoca que quanto mais inchado for um Parlamento, mais inoperante” [Ives Gandra da Silva Martins, “Partição de rendas tributárias e finanças públicas”, in: Constituição de 1988: o avanço do retrocesso, ob. cit., p. 104].

A segunda providência proposta pelo jurista reza assim: “(...) a redução das distribuições através da União deve ser acompanhada de uma recomposição de suas receitas, não à luz de um aumento da carga tributária sobre o contribuinte, mas de retirada de transferência para Estados e Municípios, que por terem, todos, as suas receitas próprias elevadas, não necessitam, a rigor, de transferências tão elevadas, desde que também enxuguem a máquina governamental” [Ives Gandra da Silva Martins, “Participação de rendas tributárias e finanças públicas”, ob. cit., in: Constituição de 1988: o avanço do retrocesso, ob. cit., p. 105].

Assim encerra o jurista Ives Gandra da Silva Martins a sua contribuição: “As sugestões, portanto, de alteração do texto constitucional presidem nesta matéria àquelas apresentadas para o Banco Central e na explicitação, em termos claros, que a lei de diretrizes é plurianual e não anual” [Ives Gandra da Silva Martins, “Participação de rendas tributárias e finanças públicas”, ob. cit., in: Constituição de 1988: o avanço do retrocesso, ob. cit., p. 107].

10 – Ricardo Lobo Torres (1935-2018) – “A nova Constituição financeira” – pp. 115-122.

 Para o saudoso professor de Direito Financeiro Comparado, de quem honrosamente fui orientador na sua tese de Doutorado em Filosofia na Universidade Gama Filho, o Brasil, com a Constituição de 1988, deu um passo importante na seara do direito constitucional, no aspecto financeiro, tendo recebido a influência do pensamento jurídico alemão e espanhol contemporâneos. Assim ilustrou Ricardo Lobo Torres esse aspecto modernizador do nosso constitucionalismo: “A nova Constituição do Brasil traz algumas inovações da maior relevância e possui dispositivos afinados com o progresso do constitucionalismo, sem embargo de exibir também normas e subsistemas reacionários e obscurantistas. Entre os capítulos dignos de elogios estão os dedicados à Constituição Financeira, ou seja, aqueles que compreendem a Constituição Monetária (artigos 163 e 164) e a Constituição Orçamentária (artigos 70 a 75). Embora a Constituição Financeira, em sentido lato, absorva a Constituição Tributária (artigos 145 a 162), desta não cuidaremos aqui, até porque, em qualidade, discrepa das outras normas financeiras, aparecendo muita vez como sistema incoerente e retrógrado“ [Ricardo Lobo Torres, “A nova Constituição Financeira”, in: Constituição de 1988: o avanço do retrocesso, ob. cit., p. 115].

Qual seria ao razão do aparecimento desse aspecto negativo da nossa Constituição de 1988, apontado pelo autor? A respeito, ele frisa: “Essa diversidade de valor decorre, indubitavelmente, da circunstância de ser a Constituição de 1988 compromissária, no sentido de que resultou do compromisso político entre correntes antagônicas. Tal característica aparece também na Constituição de Portugal, como surgira igualmente na de Weimar” [Lobo Torres, “A nova Constituição Financeira”, in: Constituição de 1988: o avanço do retrocesso, ob. cit., p. 115].

A Constituição de 1988, segundo o nosso autor, teve especial empenho em garantir a segurança jurídica na área orçamentária, ao adotar o princípio da transparência e ao recomendar que a lei orçamentária fosse “acompanhada de demonstrativo regionalizado do efeito sobre as receitas e despesas decorrente de isenções, anistias, etc.” Essa providência tinha como finalidade primordial garantir o controle interno e externo da aplicação das subvenções e renúncias de receitas, a fim de “coarctar o patrimonialismo tão arraigado entre nós, responsável pela indiscriminada concessão de privilégios fiscais e financeiros, quase sempre em favor da burguesia e do setor da agricultura capitalista” [Lobo Torres, “A nova Constituição Financeira” in: Constituição de 1988: o avanço do retrocesso, ob. cit., p. 117].

Somente com um sério controle sobre o gasto público, mediante um orçamento elaborado e executado com transparência e livre das injunções clientelistas, seria possível o Brasil superar a terrível situação do caos inflacionário. A causa próxima de tal fenômeno é atribuída por Lobo Torres ao modelo autoritário das finanças públicas adotado em 1964. Ora, tal modelo “se esgotara com a sua falta de transparência, com a manipulação dos orçamentos pelo Executivo, com a fragilidade do controle do gasto público, com o comprometimento da moralidade administrativa, com a centralização de recursos e de tarefas em mãos do Governo Federal, com o descontrole do endividamento público e com o ranço de patrimonialismo observado nos privilégios, nos subsídios e na concessão indiscriminada de favores com o dinheiro arrecadado do povo” [Lobo Torres, “A nova Constituição Financeira”, in: Constituição de 1988: o avanço do retrocesso, ob. cit., pp. 118-119].

11 – Oscar Dias Corrêa (1921-2005) – “Do Poder Judiciário” – pp. 123-135.

Sobre a base tradicional da tripartição de poderes, a nova Constituição inovou com a criação do Supremo Tribunal Federal como órgão máximo do Poder Judiciário. De outro lado, foi extinto o Tribunal Federal de Recursos, sendo substituído pelo Superior Tribunal de Justiça. O Conselho Nacional da Magistratura foi extinto. Foram criados, outrossim, Tribunais Regionais Federais, tendo sido mantidos os demais Tribunais e Juízos. A antiga Lei Orgânica da Magistratura Nacional (identificada com a sigla LOMAN) foi substituída pelo Estatuto da Magistratura, cuja estrutura jurídica é incumbência do Supremo Tribunal Federal. Assim, a Constituição de 1988 partiu para dar uma fundamentação mais técnica e enxuta aos entes superiores da administração de Justiça, dentro das expectativas de modernização que inspiraram a nova Carta Constitucional.

O artigo 99 da Nova Carta garante ao Poder Judiciário autonomia administrativa e financeira. A história, no entanto, revela que tem sido difícil tornar realidade tal disposição. “Essa autonomia financeira – frisa Oscar Dias Corrêa – é apenas formal e o Judiciário tem plena autonomia financeira para gastar o que lhe couber com o Legislativo e o Executivo. Sem que possa impor-se a eles. Ou mesmo garantir o essencial” [Oscar Dias Corrêa, “Do Poder Judiciário”, in: Constituição de 1988: o avanço do retrocesso, ob. cit., p. 126]. A consequência prática é que a autonomia financeira é apenas formal. Sendo assim, frisa o nosso autor, “(...) essa determinação constitucional autoriza o Poder Judiciário a exigir melhor tratamento do que o que lhe tem sido dispensado até aqui, igualando-se no atendimento de suas pretensões aos demais. Para isso, deve dispor-se a pleitear e exigir. Para não continuar na posição secundária em que tem vivido” [Oscar Dias Corrêa, “Do Poder Judiciário”, in: Constituição de 1988: o avanço do retrocesso, ob. cit., ibid.].

A conclusão desse estado de coisas não poderia ser diferente, como anota o nosso autor: “De novidade, a autonomia administrativa e financeira, esta muito mais formal do que real, se dependerá sempre das diretrizes orçamentárias e dos recursos do Tesouro, sempre parcos quando se trata do Judiciário (...). A questão continua de difícil solução, com a inflação crescente, a níveis assustadores, a necessidade de atualizações cada vez mais frequentes, a eternização da dívida e a interminável sucessão de novos pagamentos” [Oscar Dias Corrêa, “Do Poder Judiciário”, in: Constituição de 1988: o avanço do retrocesso, ob. cit., p. 127].

Oscar Dias Corrêa destaca outro ponto negativo: a brecha que se abre, na nova legislação, para que a mais alta Corte lide com órgãos de evidente interesse político-partidário. A respeito, o notável jurista adverte: “Mais grave parece-nos a concessão da legitimação para a propositura a órgãos de nítido interesse político e partidário e mesmo eleitoral: de agora em diante, a Corte passará a ser questionada como centro de decisão de questões às quais se mescla evidente interesse político, partidário, eleitoral, ou ideológico dos proponentes ou simples vantagens de classe. Exemplifiquem-se: todas as leis que ampliam benefícios de classe, ou os restrinjam, passarão a ser questionadas na Corte. Tanto mais quanto o novo texto incorpora, explicita e amplamente, as matérias relativas aos direitos trabalhistas e sociais” [Oscar Dias Corrêa, “Do Poder Judiciário”, in: Constituição de 1988: o avanço do retrocesso, ob. cit., p. 129].

Uma última observação crítica: a questão da “inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional” inspirada, no seio da Constituição Portuguesa, por constitucionalistas definidamente militantes como o professor e jurista José Gomes Canotilho (1941-), que teve um papel marcante, como assessor, nos trabalhos da Assembléia Constituinte de 1987-1988.

A respeito, frisa Oscar Dias Corrêa: “Outra inovação foi a do parágrafo 2º do art. 103 – ‘a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional’. Declarada, ‘será dada ciência ao Poder competente para adoção das providências necessárias. Em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias’. A inconstitucionalidade por omissão veio à nossa Constituição diretamente da Constituição Portuguesa (art. 283). As consequências de sua inclusão no texto não foram ainda senão superficialmente examinadas; nem se conhecem a extensão e os efeitos da medida. (...). A doutrina ainda não esclareceu as dúvidas, e a jurisprudência, nos casos conhecidos, não transpôs as dificuldades. Em síntese: estabelecer a norma é fácil; difícil operacionalizá-la” [Oscar Dias Corrêa, “Do Poder Judiciário”, in: Constituição de 1988: o avanço do retrocesso, ob. cit., pp. 130-131].

12 – Roberto Campos (1917-2001) – “Razões da urgente Reforma Constitucional” – pp. 137-149.

O grande estadista liberal, tinha-se formado em Economia na Universidade George Washington. Como diplomata, exerceu o cargo de cônsul de segunda classe, tendo sido designado, posteriormente, segundo secretário na embaixada brasileira em Washington. Foi também embaixador do Brasil no Reino Unido. Participou da delegação brasileira da Conferência de Bretton Woods, que criou o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial. Participou, também, da representação do Brasil nas Nações Unidas em Nova Iorque, tendo cursado a Pós-Graduação em Economia na Universidade de Colúmbia. Foi Parlamentar em ambas as Casas do Congresso e desempenhou o cargo de Ministro de Planejamento no governo do Marechal Castelo Branco (1897-1967). Roberto Campos foi um dos mais enérgicos críticos do estatismo brasileiro.

A propósito dos entraves causados pela nova Carta na economia, na política e na cultura em geral, frisava Roberto Campos, no início do capítulo por ele dedicado à avaliação crítica da Constituição de 1988: “De uma necessária e urgente reforma da Constituição depende a abertura de vias que conduzam à implantação de mudanças internas concebidas para libertar o sistema econômico dos obstáculos que ameaçam deixar o País à margem do processo de modernização política e econômica, que empolga o mundo exterior. Não pode subsistir, sem graves prejuízos para a nação, o hibridismo do processo decisório que exprime seus esgares no conflito entre o Executivo e o Legislativo, numa queda-de-braço pelo exercício do poder real. Essa imagem nos adverte para a amplitude da área a ser fatalmente ocupada pelo imobilismo. Com efeito, não há força de expressão no truísmo de que a Carta tornou o País ingovernável. A gravidade da crise sócio-econômica induz-nos a admitir que é demasiado longo o prazo de cinco anos fixado, pela Constituição, para sua reforma. Antecipá-lo parece-nos imprescindível à recomposição da norma jurídica, naquilo que a Carta produziu sob a forma de bloqueio ao progresso econômico”.

“A previsão da reforma – frisava ainda Roberto Campos -, a efetuar-se no prazo de cinco anos, não só denuncia o caráter provisório do texto constitucional, mas também expõe a uma crítica severa a conduta dos constituintes que encararam um quinquênio deste fim de século como um quinquênio qualquer do século passado. É agora indescritível a velocidade do tempo. Diante do empenho de todos os países, sobretudo os industrializados, em acelerar sua modernização no amplo espectro do universo econômico, os recursos financeiros, tecnológicos e humanos entraram em regime de escassez progressiva. (...). A Constituição de 88 praticamente nos exclui das correntes dinâmicas da economia mundial. Gera atmosfera mais adequada a sociedades cartorial-mercantilistas do passado que às sociedades do presente, caracterizadas pela integração de mercados e interdependência tecnológica. Numa sociedade dinâmica, a Constituição deve confinar-se às normas de organização e funcionamento do Estado e aos direitos fundamentais do cidadão” [Roberto Campos, “Razões da urgente Reforma Constitucional”, in: Constituição de 1988: o avanço do retrocesso, ob. cit., pp. 137-138].

Roberto Campos elencou em 6 itens os aspectos negativos da Constituição de 1988:

A – “Exemplos de dispositivos pitorescos (constituídos pelo) tombamento do mercado interno como patrimônio nacional (art. 219); (pela) licença-paternidade de oito dias (art. 7º inciso XIX); (pelo) monopólio do transporte de gás natural de qualquer origem (art. 177, inciso IV); (pela suposição de que) ‘a doença é nossa’, ficando proibida a instalação de hospitais estrangeiros (art. 199, parágrafo 3º); (pelo fato de se facultar) o voto infanto-juvenil para os maiores de 16 anos que, entretanto, continuarão penalmente inimputáveis; (pela providência que faz com que fiquem) tabelados os juros reais, ao nível de 12% ao ano (art. 192, parágrafo 3º); e (pelo fato de que) é constitucionalizada a correção monetária e, portanto, a inflação (art. 146) [Roberto Campos, “Razões da urgente reforma constitucional”, in: Constituição de 1988: o avanço do retrocesso, ob. cit., p. 139].

B – “Na categoria de imprudências econômicas, podem citar-se as seguintes: a discriminação entre empresas em função da origem do capital, visando à criação de privilégios cartoriais para o capital nacional, inclusive preferência nas compras do Governo (art. 171); a nacionalização da atividade mineradora (art. 176); as reservas de mercado para a informática e alta tecnologia (art. 171); o direito de greve, sem qualquer restrição (art. 9º); o salário mínimo nacionalmente unificado, inclusive transporte e moradia (art. 7º); o monopólio estatal da telefonia (art. 21, inciso XI); o dispositivo que faz com que subsolo passe a ser bem da União (art. 176); a anulação retroativa das concessões minerais em terras indígenas (art. 231); a tributação, pelos Estados, das pedras preciosas, com inevitável surto de contrabando; os avanços sociais decretados constitucionalmente, quando deveriam resultar de acordo coletivo ou lei ordinária, ajustando-se flexivelmente à situação das empresas, à conjuntura de mercado, à evolução tecnológica (aqui se incluem os dispositivos sobre jornada de trabalho, turnos de revezamento, prazo de prescrição dos contratos, etc.)” [Roberto Campos, “Razões da urgente Reforma Constitucional”, in: Constituição de 1988: o avanço do retrocesso, ob. cit., p. 139].

C – O corporativismo antidemocrático, que está presente nos seguintes fatos favorecidos pela Nova Carta: “com descaso pela ‘igualdade de todos perante a lei’, (o texto constitucional) se manifesta no tratamento especial para certas profissões ou grupos: os professores, que terão aposentadoria precoce (art. 202); os advogados, aos quais se atribui indispensabilidade; os garimpeiros, que passam a ter prioridade na pesquisa e lavra em sua área de atuação; o monopólio de representação em favor do sindicato único e obrigatoriedade de contribuição sindical (art. 8º)” [Roberto Campos, “Razões da urgente Reforma Constitucional”, in: Constituição de 1988: o avanço do retrocesso, ob. cit., p. 139].

D – Profusão de utopias sociais no texto constitucional. A respeito, frisava Roberto Campos: “Como os constituintes se dispensaram de calcular os custos ou especificar quem pagaria a conta, o Estado brinca de Deus, dando tudo a todos. Eis alguns exemplos: garantia de atendimento ao educando fundamental, inclusive transporte e alimentação (art. 208); transporte urbano gratuito para idosos de mais de 65 anos (art. 230); garantia de um salário mínimo para cada portador de deficiência e idoso pobre (art. 230); prestação de assistência social a quem dela necessite, independentemente de contribuição social (art. 203)” [Roberto Campos, “Razões da urgente Reforma Constitucional”, in: Constituição de 1988: o avanço do retrocesso, ob. cit., p. 139].

E – O Congresso, “possuído de libido dominandi e esquecido de que doravante a votação conscienciosa do orçamento exigirá tempo integral, “assumiu atribuições típicas do Poder Executivo”, por exemplo: aprovação de quaisquer “atos que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional” (art. 49); “a outorga de concessões minerais em terras indígenas (art. 231); a remoção de índios, em caso de catástrofe ou epidemia (os índios poderiam morrer por falta de quórum)” (art. 231, parágrafo 5º). “Os ambientalistas podem considerar-se premiados, pois que todos passamos a ter direito ao ambiente ecologicamente equilibrado” (art. 225). “A Constituição é, ao mesmo tempo, inaplicável e autoaplicável. Inaplicável, porque mais de noventa por cento dos artigos são normas de eficácia limitada, que dependem de lei ulterior. Autoaplicável, porque se cria a figura do “mandado de injunção” (art. 5º), que assegurará direitos, mesmo na falta de norma regulamentar. Esse mesmo artigo permite a ação de inconstitucionalidade por omissão. O País torna-se quintessencialmente um país litigante” [Roberto Campos, “Razões da urgente Reforma Constitucional”, in: Constituição de 1988: o avanço do retrocesso, ob. cit., p. 140]. Ao passo que em outros países do chamado “mundo desenvolvido” começaram a ser cortados impostos, para os nossos parlamentares constituintes houve imaginação suficiente na diligente tarefa de criar impostos: sobre heranças e grandes fortunas, de renda estadual e sobre doação de bens e direitos.

F – Safra aproveitável demasiado pequena “para tamanho esforço, tamanho custo e tamanha incerteza infligidos à comunidade nacional. Nesse curto período já sentimos os efeitos perversos dos obstáculos criados ao investimento estrangeiro, em particular na mineração e nas áreas de alta tecnologia. Devem ser extintos, o mais cedo possível, os dispositivos que vedam o ingresso de recursos externos para essas atividades. Não custa lembrar que mapas falsificados, distribuídos no Congresso com a conivência do Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq), que gastou dinheiro público para propósitos ideológicos e não científicos, resultaram numa votação confusa e desinformada” [Roberto Campos, “Razões da urgente Reforma Constitucional”, in: Constituição de 1988: o avanço do retrocesso, ob. cit., p. 140].

A conclusão de Roberto Campos diante de tanto despautério, é sombria. Frisa a respeito: “Os elaboradores do nosso texto constitucional esqueceram-se de que as constituições devem registrar um mínimo de aspirações para prover um máximo de satisfação. E manter um delicado equilíbrio entre ordem e participação. O mais curioso é que os chamados setores progressistas tanto se empenharam em tornar prolixo o texto, que acabaram produzindo uma constituição retrógrada, intervencionista, quando a nouvelle vague mundial é a rebelião do indivíduo contra o Estado obeso. Provocaram a delivrance de uma constituição ‘nacionalista’ num mundo cada vez mais interdependente. (...). Conseguiram os chamados progressistas o milagre de perseguir obstinadamente a liberdade política, abrindo ao mesmo tempo o túmulo da liberdade econômica. (...)” [Roberto Campos, “Razões da urgente Reforma Constitucional”, in: Constituição de 1988: o avanço do retrocesso, ob. cit., p. 143].

Fecho o texto crítico de Roberto Campos com um botão de ouro: “A ‘Constituição dos Miseráveis’, como costumava dizer o Dr. Ulysses Guimarães (1916-1992) em sua campanha eleitoral, é uma favela jurídica onde os Três Poderes viverão em desconfortável promiscuidade. O Congresso invade a área do Executivo, intervindo na rotina das concessões de terras públicas, da remoção de índios em casos de catástrofe. A ‘censura’ aos Ministros de Estado é outro exemplo da promiscuidade de poderes. O Congresso aprovará não só os tratados e acordos internacionais, mas ‘quaisquer atos que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional’. Como essa gravosidade só pode ser determinada a posteriori, ficariam paralisadas operações de compra e venda, empréstimos e investimentos, à espera de decisões do paquiderme legislativo, que deixa inúmeras determinações do Executivo dormindo o sono dos justos, nos ‘túneis do tempo’ produzidos pelo Oscar Niemeyer (1907-2012). Por sua vez, ‘mandado de injunção’ convida o Judiciário a se imiscuir em qualquer área onde esteja presente o Executivo, ao passo que este encontra inúmeras oportunidades de desempenhar funções que a Carta atribui ao Legislativo. Essas rápidas pinceladas talvez nos deixem realmente convencidos de que o país tem pendente uma questão de urgência urgentíssima: reformar a Constituição e retirar o país do claustro, a fim de que os brasileiros respirem os ares do novo mundo em gestação” [Roberto Campos, “Razões da urgente Reforma Constitucional”, in: Constituição de 1988: o avanço do retrocesso, ob. cit., pp. 148-149].

13 – Diogo de Figueiredo Moreira Neto (1933-2017) – “Dois aspectos da Constituição de 1988” – pp. 151-156.

O autor, uma das figuras proeminentes, no Brasil, no estudo do Direito Administrativo, destaca, no seu capítulo, o aspecto da provisoriedade de que se reveste o texto constitucional. A respeito, o autor frisa: “(Trata-se de) uma avaliação provisória de um texto provisório”. Moreira Neto parte do princípio de que toda Constituição define “as regras do jogo”, alicerçado na análise crítica de Norberto Bobbio (1909-2004), exposta na obra intitulada: Il futuro della Democrazia. Una difesa delle Regole del Gioco (O futuro da Democracia. Uma defesa das Regras do Jogo) [Turin: Giuliu Einaudi Editores, 1984].

Ora, levando em consideração que a própria Constituição de 1988 estipulava que fosse realizada a revisão da Carta, no artigo 3º da mesma, nos seguintes termos: “A revisão constitucional será realizada após cinco anos, contados da promulgação da Constituição, pelo voto da maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional, em sessão unicameral”, estaríamos diante, portanto, de “uma avaliação provisória de um texto provisório”.

A propósito dessa tipologia sui generis, escreve o jurista Moreira Neto: “Essa característica, inédita em cartas constitucionais, que nem mesmo na Constituição Portuguesa, de onde foi trazida, aparece com tal amplitude, vem-nos como se fora uma forma de escusarem-se, os legisladores constitucionais, por não terem sabido desempenhar-se cumpridamente do mandato de intérpretes legítimos dos valores, anseios e aspirações nacionais. Vem-nos, sobretudo, com um empecilho para estabilizar política, econômica e socialmente o País. A estabilização política fica, obviamente, comprometida, na medida em que as instituições que presidem aos processos do poder podem ser mudadas dentro de pouco mais de três anos e meio, alterando as ‘regras do jogo’. (...). A estabilização econômica fica igualmente comprometida, pois não há de se esperar que os maciços investimentos, exigidos em setores combalidos por mais de uma década de refluxo, sejam realizados num clima de incerteza. (...). A estabilização social fica, por fim, comprometida pela impossibilidade de atender-se, no quadro de incertezas política e econômica, aos urgentes reclamos nas áreas de emprego, educação, saúde, previdência e habitação, pois a ação central, promotora e incentivadora do Governo, fica tolhida pela falta de recursos. (...). É nesse quadro de provisoriedade que procuramos pinçar alguns aspectos que se nos pareceram sobremodo relevantes na Constituição de 1988 (...) [Diogo de Figueiredo Moreira Neto, “Dois aspectos da Constituição de 1988”, in: Constituição de 1988: o avanço do retrocesso, ob. cit., pp. 152-153].

Ressalta, portanto, Moreira Neto, a nota de “provisoriedade”. O autor finaliza assim o seu texto: “é realmente difícil, até mesmo em termos tão amplos como o são a sistemática e a principiologia, fazer uma avaliação que (se) abstraia da provisoriedade. Afinal, o que nos reservará a Constituinte Revisora de 1993?” [Moreira Neto, “Dois aspectos da Constituição de 1988”, in: Constituição de 1988: o avanço do retrocesso, ob. cit., p. 156].

14 – José Carlos Mello – “Política brasileira de Meio Ambiente” – pp. 157-164].

José Carlos Mello, engenheiro e consultor especialista em Infraestrutura e Transportes, que foi presidente de importante companhia aérea no Brasil, fez um balanço dos progressos feitos, em nível mundial e nacional, no que tange à problemática ambiental. Destaca-se, na Constituição de 1988, a importância dada, nela, a essa problemática, com vinte referências feitas a ela no texto constitucional. Esse fato, no sentir de José Carlos Mello, seria suficiente “para demonstrar a preocupação geral dos brasileiros com a ecologia” [José Carlos Mello, “Política brasileira de Meio Ambiente”, in Constituição de 1988: o avanço do retrocesso, ob. cit., p. 157].

Contrasta a importância dada às questões ambientais na opinião pública mundial, com o clima de radicalização que tomou conta do debate nos seus primórdios. “Reina no Hemisfério Norte – frisa o autor -, inclusive na União Soviética, um grito de histerismo contra o que, em muitos países, se supõe ser um empenho do Governo brasileiro em destruir reservas naturais, às vezes descritas como um recurso de salvação da humanidade” [José Carlos Mello, “Política brasileira de Meio Ambiente”, in: Constituição de 1988: o avanço do retrocesso, ob. cit., p. 157].

Num momento em que a problemática ambiental estava ainda sob os efeitos da 1ª Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, reunida em Estocolmo em Junho de 1972, que se caracterizou pela afirmação de que era necessária a preocupação com a preservação ambiental nas políticas públicas dos países, terminou prevalecendo uma radicalização entre os que defendiam a suspensão imediata da contaminação mediante a adoção do “crescimento zero” e a defesa apresentada pelos países pobres, no sentido de que não podiam abrir mão do desenvolvimento industrial para benefício das suas populações, como era pregoado no Mundo Desenvolvido.

Diante desse impasse, o autor traça uma linha divisória clara: não se pode escolher entre proteção ambiental e a sua negação. Torna-se necessário, muito pelo contrário, que os países participem do desenvolvimento industrial, formulando, paralelamente, políticas públicas em benefício da preservação ambiental.

O Brasil, talvez pelo fato de ter inserido o desenvolvimento da economia, a partir de 64, num marco definidamente favorável à industrialização intensa, num contexto de crescente autoritarismo político, terminou sendo assinalado por algumas Nações desenvolvidas como fator negativo em matéria ambiental. A principal questão negativa estava ligada às políticas públicas ligadas à expansão da nossa fronteira agrícola, tendo acelerado o desmatamento, entre 1981 e 1987, em decorrência da eliminação de vinte e um milhões de hectares de florestas nativas. A respeito, escreve o nosso autor: “O maior indutor da destruição, representada principalmente pelas queimadas, foram os incentivos fiscais, criados para estimular a implantação de projetos agropecuários e industriais nas regiões mais pobres do país. Esse instrumento, que se supunha um fator positivo, revelou-se, no caso dos projetos agropecuários amazônicos, um veículo de devastação, dando origem à suspensão dos incentivos fiscais, a partir de fins de 1988. Essa providência reduziu de modo considerável o ritmo de ocupação indisciplinada da floresta” [José Carlos Mello, “Política brasileira de Meio Ambiente”, in: Constituição de 1988: o avanço do retrocesso, ob. cit., p. 158].

O texto de José Carlos Mello situa-se nesse contexto e tenta desenvolver uma clara exposição acerca dos aspectos positivos da nossa evolução econômica, levando em consideração a questão ambiental, sem deixar de lado a análise dos aspectos negativos. As principais conclusões seriam estas:

A – “Estima-se que apenas sete por cento da floresta densa tenham sido destruídos desde o descobrimento do Brasil. O fenômeno seria conservacionista, quando observamos que a maioria das florestas semelhantes sofreu índices de devastação assustadores. Na Ilha de Madagáscar, ao lado da costa oriental da Africa, noventa e três por cento da cobertura florestal foram completamente dizimados”. (...) Sabemos que a transformação da natureza é o meio posto ao alcance do homem para produzir riquezas e melhorar suas condições de existência. Mas esse reconhecimento está longe da omissão do modelo predatório que as potências coloniais puseram em prática em vastos territórios florestados da Ásia, África e América. Em muitos países há como que uma recusa deliberada em admitir a extensão dos efeitos nocivos do ciclo colonialista, numa fuga ao peso de responsabilidades históricas” [José Carlos Mello, “Política brasileira de Meio Ambiente”, in: Constituição de 1988: o avanço do retrocesso, ob. cit., pp. 157-158].

B – "O Brasil não pode ser acusado de descaso pela Região Amazônica, como é possível demonstrar: desde 1974, o Projeto Radam tem feito levantamento dos recursos naturais da área, através de imagens de radar e outros sensores remotos. Entre 1974 e 1982 foram publicados vinte volumes contendo mapas temáticos dos cinco milhões de quilômetros quadrados da nossa Amazônia Legal, sob os pontos de vista da geologia, geomorfologia, pedologia, uso potencial da terra, vegetação, num total de mais de cento e vinte mapas. Tais estudos contêm um acervo impressionante de informações sobre a distribuição dos recursos naturais e possibilidade de sua utilização racional. Paralelamente, o Ministério da Agricultura publicou a série intitulada Aptidão Agrícola, enfocando o conhecimento qualitativo e quantitativo das reservas potenciais da região para uso agrícola. Criado em 1979, o Programa de Zoneamento Econômico Ecológico da Amazônia Brasileira tem produzido numerosos estudos, acompanhados da proposição de medidas relacionadas com uma política florestal adequada para a área” [José Carlos Mello, “Política brasileira de Meio Ambiente”, in: Constituição de 1988: o avanço do retrocesso, ob. cit., pp. 157-158].

C – “Não se pode cultivar a ilusão de que países que ainda não resolveram seus problemas sociais básicos, como habitação, saúde, desemprego ou transporte urbanos, possam desviar recursos escassos, de programas altamente prioritários para projetos ambientais. A história ensina que esses projetos somente ganham prioridade quando a sociedade está com os problemas elementares resolvidos. A industrialização inglesa já tinha mais de dois séculos quando se deu início à despoluição do Tâmisa, o que demonstra que os projetos ambientais, mesmo em países ricos, só tardiamente ganham a necessária prioridade, embora sejam devastadores os efeitos da poluição (...)” [José Carlos Mello, “Política brasileira de Meio Ambiente”, in: Constituição de 1988: o avanço do retrocesso, ob. cit., p. 162].

D – “Cabe-nos, em parte, a culpa pelo desconhecimento, no exterior, do que se tem realizado, no País, em favor do meio ambiente. Deveríamos ter criado meios suficientes de difusão para mostrar ao mundo desenvolvido que a oposição aos nossos pleitos, em favor da rápida superação do atraso econômico que nos aflige, contribui para retardar o momento de nos sentirmos aptos a avançar, por conta própria, no emprego de recursos para despoluir a atmosfera, as praias e os rios” [José Carlos Mello, “Política brasileira de Meio Ambiente”, in: Constituição de 1988: o avanço do retrocesso, ob. cit., p. 163].

E – “Recordemos que o Conselho Nacional de Meio Ambiente, Conama, é integrado por setenta e seis membros, representantes de todas as correntes do pensamento ambiental brasileiro. As decisões desse Conselho têm força de lei, sobretudo por estarem amparadas em ampla e democrática representação da sociedade. (....) É do Codama, presidido pelo Ministro do Interior a exigência de relatório de impacto ambiental em produtos de engenharia. Providência de importante sentido prático foi a criação, em fevereiro de 1989, do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), resultado da fusão de quatro outros organismos que, isoladamente, tratavam de políticas ambientais, como flora, fauna, pesca e borracha. Esse organismo passou a ser o único responsável pelas ações de política ambiental brasileira, cuja formulação é de responsabilidade do Ministério do Interior. (...). Em síntese, o Brasil tem realizado ações de vanguarda na área ambiental, estando mesmo à frente de muitos países ricos, que atualmente nos colocam no banco dos réus, como se fôssemos nós, e não eles, os maiores predadores do mundo” [José Carlos Mello, “Política brasileira de Meio Ambiente”, in: Constituição de 1988: o avanço do retrocesso, ob. cit., p. 163].

F – “Confiamos em que a aceleração do processo legislativo, quanto à regulamentação dos dispositivos constitucionais relativos à questão ambiental, sirva de estímulo à conscientização de todo o povo brasileiro, a tal ponto que as autoridades oficiais se sintam apoiadas ao tomarem decisões que, frequentemente, encontram firme oposição de círculos restritos” [José Carlos Mello, “Política brasileira de Meio Ambiente”, in: Constituição de 1988: o avanço do retrocesso, ob. cit., p. 162].

G – Pessoalmente, sinto falta da menção de iniciativas que, olhando para lá do nosso Estado Patrimonial, nos revelem a atitude criativa da sociedade brasileira, ensejando atividades técnicas ou culturais de combate à destruição da Natureza e do Meio Ambiente. Valeria a pena, aqui, olharmos para o setor que mais se desenvolveu ao longo das últimas décadas, entre a promulgação da Constituição de 1988 e os dias atuais, no sentido de irradiar propostas e atividades de pesquisa e proteção ao meio ambiente. Não duvido de que haja esse tipo de atividades. Precisaríamos olhar para lá da burocracia governamental e da nossa fatigada representação parlamentar, a fim de enxergarmos brasileiros que trabalham denodadamente pela preservação do meio ambiente, com resultados dignos de serem conhecidos no Brasil e no exterior.