Li com muito interesse a tese de doutorado do Procurador de Justiça do Paraná, Doutor Márcio Pinheiro Dantas Motta, intitulada: O Ministério Público, a Justiça restaurativa e os desafios da contemporaneidade (120 pp.) defendida, recentemente, no Curso de Doutorado em Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Estadual de Ponta Grossa, tendo contado com a orientação do Professor Doutor João Irineu de Resende Miranda.
O autor aprofundou bastante nas questões relativas à dinâmica das instituições jurídicas, em face da sociedade. É uma bela tese que tem a coragem de olhar de frente e com atenção crítica para o atual sistema de Justiça existente no Brasil. A sua proposta visa a ampliar o horizonte conceitual da administração de Justiça, tentando flagrar as secretas dinâmicas da sociedade civil. Infelizmente, os tratados jurídicos têm ancorado num passado que os tornou obsoletos. A solução? Estudar, desde um ângulo pluridisciplinar, como o autor propõe, a dinâmica da sociedade brasileira, a fim de tentar compreendê-la na sua complexidade e na sua contínua mudança. E esse horizonte pluridisciplinar abre-se, não apenas para o Direito considerado em toda a sua amplitude, mas especificamente para a Sociologia do Direito e para a Antropologia, como disciplinas que podem ajudar a melhor compreender o mundo jurídico na sua complexa concreção histórica.
É uma ousada abordagem que já teve no Brasil protagonistas de relevo como, por exemplo, Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846), no início do século XIX, com as suas obras intituladas: Preleções de filosofia (1813) e Manual do cidadão num governo representativo (1835), que ampliaram os horizontes do Direito para além do absolutismo monárquico, tentando aplicar, no Império que se desenhava no horizonte da Constituição de 1824, a proposta acalentada por constitucionalistas franceses como Benjamin Constant de Rebecque (1767-1830), que na obra intitulada: Princípios de Política (1810) elaborou criativa proposta de Parlamentarismo mitigado com a prática do Poder Moderador. Outros protagonistas no âmbito jurídico brasileiro foram Paulino Soares de Souza (1807-1866), com o seu Tratado de Direito Administrativo (1861), Bernardo Pereira de Vasconcelos (1795-1850) com a sua profícua obra legislativa, (como o Código criminal do Império do Brasil, de 1831) e a correspondência ministerial que dá conta das lutas e dos debates travados ao ensejo da reformulação do universo jurídico, com motivo das reformas de 1841 batizadas de “O Regresso”.
Outros pensadores que, no final desse século, pensaram criticamente a nossa cultura jurídica, já seriamente trancafiada no leito de Procusto do pensamento positivista, foram o grande Sílvio Romero (1851-1914), remoto fundador da nossa sociologia ao abranger, desassombrado, as novas metodologias de análise alimentadas pela renovação desses estudos por Frédéric Le Play (1806-1882), com o seu método monográfico para destrinchar as variáveis sociais, e a destemida crítica aos nossos filosofantes entrincheirados no terreiro da moda francesa, na abordagem elaborada pelo Patriarca do Pensamento Brasileiro, o irreverente e destemido crítico Tobias Barreto de Menezes (1839-1889), que escandalizava a Corte do Rio de Janeiro com as suas arrasadoras análises inspiradas no neokantismo e dadas à luz no Brasilianische Zeitung, o jornal publicado por Tobias num corretíssimo alemão do século XVIII, na cidadezinha de Escada (Pernambuco), e distribuído regularmente na Corte de São Cristóvão, só para escandalizar os áulicos imperiais, onde tinha reluzido uma imperatriz de origem austríaca e desfilavam filósofos oficiais “emasculados pelos cabeleireiros franceses”, como frisava, com feroz ironia, o eminente crítico.
Essa tradição de ousada sabedoria jurídica viu-se enriquecida, no século XX, por dois inéditos sociólogos, que dissecaram as nossas origens latifundiárias, para escândalo dos marxistas positivistas de gabinete como Leônidas de Rezende (1889-1950): Gilberto Freyre (1900-1987), com Casa Grande e Senzala (1933) e Sobrados e Mocambos (1936) e Oliveira Vianna (1883-1951) com Populações meridionais do Brasil (1920) e Instituições políticas brasileiras (1949). Ambas as análises cobrem os anos vinte iluminados pela renovadora “Semana de Arte Moderna” (fevereiro de 1922), destacando que o nosso Paraíso Perdido se situava perto de nós, não na sala da Casa Grande frequentada por artistas e intelectuais das altas rodas sociais paulistas e cariocas, mas nos porões dela, onde se realizou a simbiose racial entre brancos, negros, mulatos, índios e mamelucos. Sobre o pano de fundo desse caldeirão cultural surgiu, segundo Oliveira Vianna, a possibilidade de fazermos uma análise crítica dos nossos complexos culturais que atravancavam o progresso, centrados no denominado “complexo de clã”. A cura da desagregação cultural e territorial dar-se-ia, segundo Oliveira Vianna, ao ensejo de uma terapia civilizatória pensada a partir da integração brasileira.
Esse constitui o pano do fundo sobre o qual foi pensado o Brasil da industrialização nos anos trinta do século passado, sendo Getúlio Vargas (1883-1954) o agente centralizador que, num contexto autoritário, deitou as bases de um Brasil novo. Destaquemos que nessa renovação da sociologia nacional por Gilberto Freyre e Oliveira Vianna, foi importante a leitura de sociólogos e antropólogos europeus e estadunidenses da talha de Marcel Mauss, Franz Boas, Donald Pierson, Melville Jean Herskovits, Ruth Landes, Ruth Benedict, Benjamin Nathan Cardoso, Gabriel Tarde, Ralph Linton, Radliffe-Brown, Goldenweiser, Roscoe Pound, Karl Lewellyn, Felix Frankfurter, Huntington Cairns, Max Radin, etc.
Um sociólogo do Direito da talha do jovem pensador baiano Antônio Luiz Machado Neto (1930-1977), desaparecido precocemente quando ainda tentava construir o seu sistema de interpretação sociológica do pensamento jurídico e um filósofo de tradição pré-socrática e platônica como o paulista Vicente Ferreira da Silva (1916-1963) que também deixou este mundo no início da sua maturidade intelectual, com apenas 53 anos, enriqueceram a reflexão em torno ao Direito, ao longo das décadas de 50 a 70, com amplas análises em torno ao seu significado social, sendo que Ferreira da Silva se debruça sobre o aspecto lúdico da mitologia grega e indígena, que nos proporcionariam uma visão pré-racional, onde poderíamos fazer enraizar soluções vivenciais que não fossem apenas receitas conceituais.
Destaco, finalmente, a grande interpretação culturalista do Direito ensejada pela obra de Miguel Reale (1910-2006), com a sua Teoria Tridimensional, que ancora numa perspectiva fenomenológica, neokantiana, axiológica e culturalista, à luz do pensamento de Kant, Weber, Max Scheler, Charles Sanders Peirce e Edmund Husserl.
A Tese ora em análise percorre, corajosamente, caminhos novos ligados à desconstrução de concretudes ensejadas por este mundo virtual que tivemos de arrostar com os nossos filhos, na sociedade das redes digitais que tudo dissolvem nas aporias de algoritmos cada vez mais ousados. O autor resgata o conceito de “modernidade líquida” do sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1925-2017) para traduzir, em termos sociológicos, a inoperância de um sistema jurídico que já tinha se distanciado do concreto na doutrinação positivista, especificamente no que tange à solução de conflitos (cf. Conclusão da Tese, p. 106). Ora, frisa o novo Doutor com rara honestidade intelectual, “os estudos realizados não podem ser um mero instrumento de satisfação pessoal do aluno ou apenas um ‘passaporte’ para uma elevação da titulação. Deve haver um compromisso com a utilidade social do estudo realizado, sob pena de grave frustração das expectativas da sociedade, principal destinatária dos estudos de pós-graduação stricto sensu em Universidades Públicas (...). Deve haver um ‘fio condutor invisível’ chamado de utilidade social do estudo, que deverá permear todo o desenvolvimento do trabalho” (Tese, p. 92).
Ora, essa “utilidade social” ganha urgência no nosso Brasil, “tão carente de políticas públicas efetivas, tão carente de serviços públicos eficazes e de qualidade e com índices absolutamente inaceitáveis de exclusão e de concentração de renda. Some-se a este cenário a crescente precarização do serviço público, amplamente considerado, a terceirização de Professores em Universidades Públicas e o progressivo desmonte do aparato estatal brasileiro que sempre serviu aos cidadãos” (Tese, p. 93).
Na tentativa exigente de fornecer bases teóricas atualizadas à sua pesquisa, o Doutor Márcio Pinheiro Dantas Motta compulsou bibliografia bastante ampla, brasileira e estrangeira, de autores como Renato Sócrates Gomes Pinto, Kay Pranis, Daniel Achutti, Hannah Arendt, Rodrigo Azevedo, Rafaela Pallamolla, Luís Roberto Barroso, John Braithwaite, José Gomes Canotilho, Claudio de Moura Castro, Lola Anyar de Castro, Pierre Clastres, Lúcia Costa, Vera Cury, Alessandro Baratta, entre outros.
Na realização do imperativo categórico da Universidade, traduzido pelo grande Tomás de Aquino (1225-1274) no século XIII como “Contemplari et aliis tradere contemplata” (“Meditar e levar aos nossos semelhantes aquilo que foi meditado”), o autor considera que a estabilidade no serviço público e a existência de carreiras de Estado “foram determinantes para a consolidação de um serviço público desvinculado da seara política e que permitiu que um corpo técnico de funcionários públicos estáveis pudessem conferir uma qualidade diferenciada à caminhada do Estado brasileiro” (Tese, p. 93).
Nessa trilha de um Estado a serviço da Sociedade, o novo Doutor termina a sua Tese com uma proposta concreta: a criação da primeira Promotoria de Justiça Restaurativa no âmbito do Ministério Público do Paraná. Esta proposta, segundo o autor, representaria um divisor de águas, um verdadeiro marco na transição de um Ministério Público focado na repressão e no enfrentamento das consequências de uma sociedade marcada pela exclusão e pela desigualdade, para uma Instituição que passaria a olhar e a priorizar as causas destas mazelas sociais” (Tese, p. 96).
Assim termina a sua brilhante tese o Doutor Márcio Pinheiro Dantas Motta: “A relativização da ‘indisponibilidade do interesse público’, descrita em detalhes no presente estudo acadêmico, representa inequivocamente um avanço, na medida em que passou a permitir ao Ministério Público a composição e a resolução de conflitos sem judicializá-los. Note-se que houve mudança na interpretação de princípios já existentes, além de resoluções do CNJ (...) que apenas adequaram a questão às novas demandas sociais. Novas alterações neste sentido se fazem necessárias e devem ser fomentadas” (Tese, p. 106).