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OS CONSELHOS DE ESTADO: ORIGEM E EVOLUÇÃO

OS CONSELHOS DE ESTADO: ORIGEM E EVOLUÇÃO

A CORTE DE LUÍS XIV

A existência de Conselhos de Estado que ajudavam os soberanos na tarefa de implantar a racionalidade social, tornando o funcionamento do Governo uma atividade a ser praticada à luz da ciência e da técnica, data do século XVII, quando o rei Luís XIV da França (1638-1715) decidiu implantar a racionalidade nos processos de organização do Governo, como tarefa fundamental do seu reinado.

Seria essa, na Modernidade, uma herança do Platonismo com a atuação do Rei Filósofo, que se alicerçava nas luzes do conhecimento filosófico e científico. Para Max Weber (1864-1920), esse processo que denomina de “racionalidade social”, deu ensejo a formações burocráticas apoiadas na organização racional de processos administrativos, que deram lugar à organização burocrática pura, cujos ideais seriam a claridade, a regularidade, a durabilidade e a eficiência.

Serão desenvolvidas, neste ensaio, duas partes: 1 – O Conselho de Estado no seio da Monarquia absoluta de Luís XIV, segundo François Guizot (1784-1874); 2 – Os Intendentes, como representantes diretos do Rei, na Administração da França, segundo Alexis de Tocqueville (1805-1859).

1 – O Conselho de Estado no seio da Monarquia absoluta de Luís XIV, segundo François Guizot.

Luís XIV buscava firmar a sua autoridade pessoal, como monarca autocrático que era. Mas o aspecto mais importante é que essa projeção da figura monárquica estava associada a outra finalidade, mais ampla, que consistia em dotar o Estado francês e a sociedade, em geral, de instrumentos que lhes permitissem desenvolver ao máximo as suas potencialidades, dentro da preocupação em prol de garantir a gestão pública como algo objetivo, previsível e confiável. A administração do Estado regido pela racionalidade administrativa e fundamentado numa concepção prática de amplo espectro, inseria-se nesse contexto que garantiu a grandeza da França, o que implicava, de outro lado, o enfraquecimento dos concorrentes do seu país, sobretudo da Inglaterra.

Acerca dessa tentativa de formatação do Estado francês como algo racional, duradouro e eficiente, François Guizot (1787-1874) dá o seguinte testemunho na sua Historia de la Civilización en Europa (trad. espanhola de Fernando Vela, Madrid: Alianza Editorial, 1990, pp. 318-319]:

“(...) Diz-se, geralmente, que a propagação do poder absoluto foi o princípio dominante de Luís XIV; acho que não. Essa consideração não desempenhou na sua política um grande papel, senão tardiamente, na sua velhice. A pujanza da França, a sua preponderância na Europa, o rebaixamento das potências rivais, o interesse político do Estado, foi a finalidade à qual Luís XIV aspirou constantemente, já lutasse contra a Espanha, contra o imperador da Alemanha ou contra o Rei da Inglaterra, agindo muito menos com os olhos colocados sobre a extensão do poder absoluto, do que por um desejo de engrandecimento da França e do seu governo. (...)”.

“O enfraquecimento do poder real na Inglaterra era – continua Guizot -, o objetivo de Luís XIV. Fomentava as dissensões internas, trabalhava por ressuscitar o partido republicano, para impedir que Carlos II (1630-1685) chegasse a ser muito poderoso no seu país. No decorrer da embaixada de Buillon na Inglaterra, o mesmo fato sempre se repete. Quando a autoridade de Carlos II parece que levanta voo, sempre que o partido nacional ameaça ser esmagado, o embaixador francês faz pesar a sua influência desse lado, dá dinheiro aos chefes da oposição; luta, em resumo, contra o poder absoluto, na medida em que esse seja um meio para debilitar uma potência rival da França. Quantas vezes vocês olharem atentamente em direção às relações exteriores sob Luís XIV, serão surpreendidos pelo mesmo fato. Também lhes surpreenderá a capacidade e a habilidade da diplomacia francesa dessa época. Os nomes dos (embaixadores) de Torcy, d’Avaux, de Bourepos, são conhecidos por todos os homens instruídos. (...). Surpreende a superioridade dos ministros franceses, não somente pela sua séria atividade e a sua aplicação aos assuntos, como pela liberdade de espírito (...)”. A consequência natural dessa situação foi que a França constituiu-se, no século em apreço, como centro da diplomacia européia e mundial. O francês passou a ser a língua da diplomacia.

É bom recordarmos que o absolutismo francês diferia do absolutismo espanhol, que se centrava unicamente no caráter autocrático do soberano. Eis a forma em que Guizot comparava as duas autocracias, a ibérica e a francesa: “O governo de Luís XIV parecia como o primeiro dedicado unicamente aos assuntos públicos como um poder, ao mesmo tempo, definitivo e progressivo, que não teme inovar, porque conta com o porvir. Houve, efetivamente, poucos governos tão inovadores quanto ele. Comparem-no com um governo do mesmo caráter, a monarquia pura de Filipe II (1527-1598) da Espanha. Era ela mais absoluta que a de Luís XIV e, contudo, muito menos regular e tranquila. Como Filipe II chegou a estabelecer o poder absoluto na Espanha? Sufocando toda a atividade do país, se negando a todo tipo de melhora, tornando o Estado da Espanha completamente estacionário”.

“O governo de Luís XIV, pelo contrário – continua Guizot -, mostrou-se ativo com toda sorte de inovações, favorável ao progresso das letras, das artes, da riqueza, da civilização, numa palavra. Eis as verdadeiras causas da sua preponderância na Europa, tão alta que foi, no continente, durante todo o século XVIII, não só para os soberanos, como também para os povos, o tipo dos governos”.

Para a França se tornar um grande país sob o governo absolutista, era necessário resolver um problema concreto: como fazer com que as ordens da Coroa e as leis que deveriam ser postas em prática chegassem até os cidadãos, não apenas como letra, mas como um impulso psicossocial, que fizesse com que os franceses agissem para cumprir um roteiro predeterminado para o engrandecimento do País. Ora, o meio posto em prática por Luís XIV foi formatar uma burocracia disposta a pôr em prática o conjunto de medidas que, pensadas e postas sobre o papel pelo Rei e os seus auxiliares, garantissem o desenvolvimento geral do País. Nessa dinâmica repousavam a genialidade e a grandeza do reinado de Luís XIV.

A respeito dessa arquitetura de força e de resolução, frisa Guizot: “Vejam, senhores [o autor dirige-se aos seus alunos do curso de História da França, ministrado na Sorbonne] como quando se consideram, sejam as guerras de Luís XIV, sejam as suas relações diplomáticas, chega-se sempre aos mesmos resultados. Concebe-se que um governo que conduzia dessa forma as suas guerras e as suas negociações, deveria obter, na Europa, grande consistência e se apresentar não só como temível, mas também como hábil e importante. Voltemos agora o nosso olhar ao interior da França e ao brilho do seu governo. É difícil determinar com precisão o que se deve entender por administração no governo de um Estado. No entanto, quando se intenta apreender esse fato, de reconhecer (...) que, desde o ponto de vista mais geral, a administração consiste num conjunto de meios destinados a fazer chegar, com a maior rapidez e segurança possível, a vontade do poder central a todas as partes da sociedade e fazer remontar, nas mesmas condições, até o poder central as forças da sociedade, seja em homens, seja em dinheiro. Esse é, se não estou errado, o verdadeiro objeto, o caráter da administração. Vê-se, segundo isso, que nos tempos em que, antes de mais nada, é necessário estabelecer a unidade e a ordem na sociedade, a administração é o grande meio de realizar isso, de aproximar, cimentar, unir os elementos incoerentes e dispersos. Tal foi, efetivamente, a obra da administração de Luís XIV. Até ele, nada havia sido tão difícil na França e no resto da Europa, como fazer penetrar a ação do poder central em todas as partes da sociedade e concentrar, no seio do poder central, os meios de força da sociedade. Nisso esforçou-se Luís XIV, com sucesso, até certo ponto incomparavelmente melhor, ao menos, do que os governos precedentes. (...). Percorram os serviços públicos de todo gênero, os impostos, os caminhos, a indústria, a administração militar, todos os estabelecimentos que pertencem a uma rama qualquer da administração, não há nenhum que não encontre, sob o reinado de Luís XIV, a origem nele, do seu desenvolvimento ou da sua melhora. Os homens mais grandes do seu tempo, Jean-Baptiste Colbert (1619-1683), François-Michel Le Tellier Marquês de Louvois (1641-1691), foi como administradores que desenvolveram o seu gênio e exerceram o seu ministério. Destarte, o seu governo conquistou uma generalidade, um aplomo, uma consistência que faltavam, ao seu redor, a todos os governos europeus” [Guizot, Historia de la Civilización en Europa, ob. cit., pp. 320-321].

A objetividade conquistada na gestão dos negócios públicos manifestou-se, primordialmente, no seio do Estado absolutista de Luís XIV, na ação legislativa. Desde este ângulo, frisa Guizot: “Do ponto de vista legislativo, aquele reinado oferece o mesmo fato: (...) a refundação geral das leis (...). As grandes ordenanças que promulgou, a ordenança criminal, as ordenanças de procedimentos, de comércio, de marinha, de águas e bosques, são verdadeiros códigos, feitos da mesma maneira que os nossos códigos, discutidos no interior do Conselho de Estado, alguns sob a presidência de Guillaume de Lamoignon (1617-1677), que foi primeiro presidente do Parlamento de Paris. [Tudo foi feito] num interesse de ordem público, para conferir às leis maior regularidade e estabilidade. (...) As ordenanças de Luís XIV, muito superiores ao estado anterior, contribuíram para fazer avançar a sociedade francesa pela rota da civilização” [Guizot, Historia de la Civilización en Europa, ob. cit., p. 321].

No entanto, havia uma falha estrutural nas reformas modernizadoras implantadas pela legislação de Luís XIV: a ausência da participação ativa e espontânea da sociedade. Tudo foi feito a partir de uma iniciativa estatal. Neste aspecto, o Estado francês foi superior ao modelo absolutista implantado por Filipe II (1527-1598) na Espanha, que tornou o Estado completamente estacionário. O governo de Luís XIV, ao contrário, apresentou-se ativo em todo tipo de inovações, seja no terreno das letras, das artes, da riqueza, da civilização, numa palavra. Aqui radicava justamente a fraqueza da Espanha em frente à supremacia do Estado francês comandado pelo Rei Sol. Mas nessa grandeza escondia-se, também, a sua falha: faltava à vida da sociedade, como pano de fundo, uma atividade que correspondesse aos esforços do Estado. Guizot aponta esse aspecto de grandeza do Estado francês com as seguintes palavras: “O governo de Luís XIV pareceu o primeiro aplicado unicamente aos seus assuntos como um poder ao mesmo tempo definitivo e progressivo, que não teme inovar porque conta com o porvir”, ao contrário justamente da Espanha dos Áustrias, que somente contava com o tradicional culto ao passado na estrutura do Estado.

Mas o absolutismo monárquico estava prestes a desabar na Europa, já no começo do século XVIII. Justamente porque o Rei brilhava, a sociedade gostou das suas luzes e pretendeu se apoderar delas. As sombras da decadência do absolutismo se projetaram sobre a França e a Europa em geral. “Nada havia na França, naquela época – frisa Guizot – que garantisse o país contra a ação ilegítima do governo, nem o próprio governo contra a ação inevitável do tempo. Assim, o governo assistiu à sua própria decadência. Não foi só Luís XIV que se debilitou ao fim do seu reinado: foi o poder absoluto inteiro. A monarquia pura estava tão gasta em 1712 como o próprio monarca, e o mal era muito mais grave porque Luís XIV tinha abolido os costumes, tanto quanto as instituições políticas. Não há costumes políticos sem independência. Somente aquele que se sente forte por si mesmo é capaz, seja de servir ao poder, seja de combatê-lo”.

E continua Guizot: “Os caracteres enérgicos desaparecem, ao mesmo tempo que as instituições independentes e a combatividade das almas naufraga nas águas da segurança dos direitos. Eis aqui o estado em que Luís XIV deixou a França: uma sociedade num grande desenvolvimento da riqueza, da atividade intelectual de todo gênero e, ao lado desta sociedade em progresso, um governo essencialmente estacionário. Sem meio algum de se renovar e se adaptar ao movimento do seu povo; destinado, após meio século de esplendor, à imobilidade e à debilidade e caído, ainda em vida do seu fundador, numa decadência que quase parecia dissolução. Esta é a situação em que se encontrou a França ao sair do século XVII e que imprimiu à época seguinte uma direção e um caráter tão diferentes” [Guizot, Historia de la Civilización en Europa, p. 324].

Toda a dinâmica que o movimento da sociedade francesa revelou no início do século XVIII pode-se resumir num fato do espírito: o livre exame, que Guizot descreve assim: “Que o voo do espírito humano, que o livre exame é o traço dominante, o fato essencial do século XVIII, não vale a pena dizê-lo. (...). Não gostaria, contudo, de deixar vocês sem ter chamado a sua atenção sobre alguns traços muito pouco notados. O primeiro, aquele que me impressiona de entrada e que acabo de indicar, é a desaparição quase completa do governo no transcurso do século XVIII e a aparição do espírito humano, como principal e quase único ator. Exceto no que tange às relações exteriores sob o ministério do duque Étienne-François de Choiseul (1719-1785) e em algumas grandes concessões feitas à direção geral dos espíritos, por exemplo, na guerra de América; exceto, repito, em alguns acontecimentos desse gênero, não houve nunca governo tão inativo, tão apático como o governo francês deste tempo. Em lugar daquele governo tão ativo, tão ambicioso, de Luís XIV, que estava em tudo, metia a cabeça em tudo, encontramos um poder que não se esforça mais do que em se apagar, em ficar a um lado; tão débil e comprometido se sentia. A atividade, a ambição contaminaram o país. É o país quem, pela sua opinião, pelo seu movimento intelectual, mistura-se em tudo, intervém em tudo e, enfim, possui ele unicamente a autoridade moral, que é a verdadeira autoridade” [Guizot, Historia de la Civilización en Europa, ob. cit., pp. 325-326].

O refluxo do poder real no final do século XVII foi sendo substituído pelo poder do espírito humano, que se considerava a si próprio, pela cabeça dos Enciclopedistas, como aquela força que restabeleceria a ordem na França e no mundo. Guizot conclamava os seus leitores e alunos para que observassem o engrandecimento progressivo do espírito humano por obra do racionalismo do espírito enciclopédico, que tomou conta do cenário francês na nova centúria. A respeito, frisava o pensador e sociólogo: “(...) O perigo, o mal, o vício insuperável do poder absoluto, qualquer que seja, chame-se como se chame e se exerça com qualquer finalidade (...). Pois bem, senhores, o poder que sucedeu a Luís XIV, o espírito humano, verdadeiro soberano do século XVIII, o espírito humano sofreu a mesma sorte; por sua vez, chegou a possuir um poder quase absoluto e ganhou a confiança excessiva em si mesmo. A sua potência era muito bela, muito boa, muito útil e, se fosse preciso exprimir uma opinião definitiva, apressar-me-ia em dizer que o século XVIII parece-me um dos séculos mais grandes da história, que maiores serviços prestou à humanidade, que a fez realizar o maior progresso e os progressos mais gerais; chamado a me pronunciar em sua causa como ministério público, se posso utilizar esta expressão, exporia as minhas conclusões em seu favor”.

“Porém, não é menos certo que nesta época, - prossegue Guizot - o espírito humano, de posse do poder absoluto, tem sido corrompido, extraviado; que tem contemplado os fatos estabelecidos, as ideias antigas com um desdém e uma aversão ilegítimos; aversão que tem conduzido ao erro e à tirania. A parte do erro e da tirania, efetivamente, misturou-se ao triunfo da razão humana no final do século, uma parte muito grande – não se pode dissimular e é necessário proclamá-lo em lugar de calar - essa parte de erro e de tirania tem sido, sobretudo, o resultado do extravio em que o espírito do homem se precipitou, nessa época, ao ver tão extendido o seu poder. É dever e será, creio, o mérito do nosso tempo, reconhecer que todo poder, seja intelectual ou temporal, pertença aos governos ou aos povos, aos filósofos ou aos ministros, que se exerça em uma ou outra causa, que todo poder humano – digo – leva em si mesmo um vício natural, um princípio de debilidade e abuso que deve lhe assinalar um limite. Porque não há mais do que a liberdade geral de todos os direitos, de todos os interesses, de todas as opiniões, a livre manifestação de todas estas forças, a sua coexistência legal, não há mais do que este sistema que possa restringir toda força, todo poder em outros, fazer, em suma, que o livre exame subsista realmente em proveito de todos. Este é para nós, senhores, o grande resultado, a grande lição da luta travada no final do século XVIII, entre o poder absoluto temporal e o poder absoluto espiritual” [Guizot, Historia de la Civilización en Europa, ob. cit., p. 328].

Concluamos esta primeira parte acerca da grandeza e o alcance do poder de Luís XIV. O Rei Sol estabeleceu o seu poder à maneira de uma força centrípeta que conferiria unidade e personalidade à sua administração, como uma força de atração que manteria coeso o edifício do Estado, assim como a sociedade. Essa presença centralizadora do foco real estaria garantida pela Administração, que irradiaria sobre o Estado e sobre a sociedade, a força e a energia suficientes para o desenvolvimento de todos os aspectos da vida social, garantindo, destarte, o poder para a sociedade ser defendida dos ataques externos e da própria dissolução das forças em entrechoque, dentro do corpo social, eliminando aqueles focos insidiosos e mantendo um clima de paz e de concórdia ao interior do corpo social. O motivo para essa universal arquitetura era a grandeza da França, cuja unidade harmônica contrastava com as lutas intestinas que esgarçavam, pela Europa afora, os organismos das demais sociedades.

No decurso do século XVII cresceu, assim, a autoridade real, a qual, chegado o século XVIII, entrou em fase de declínio, ao ensejo do envelhecimento do Monarca absoluto. A força que dele irradiava não tinha mais a potência de anos atrás, para que a sociedade evoluísse acorde com um plano previamente traçado pelos arquitetos da Unidade. Luís XIV, como frisa Guizot, tinha construído uma grande máquina de desenvolvimento de projetos e de iniciativas, que visavam à grandeza da França, num século em que o fenômeno mais observado era o de monarquias que mal conseguiam sobreviver, em decorrência das lutas intestinas que os seus elementos travavam. O exemplo mais marcante desse contraste era constituído pela Inglaterra, com as suas guerras civis que encheram de mortos os campos da Grã Bretanha, ao longo do século XVII. Outro exemplo clássico de desagregação do tecido interno de um país era apresentado pela Espanha, por obra de um Estado que tinha ficado refém do passado medieval e de luta contra os elementos alheios à primigênia formação sociológica do país, os invasores árabes. A política externa de Luís XIV obedeceu ao imperativo de fazer esforços diplomáticos e estratégicos, no sentido de incentivar as desavenças internas entre os Estados comandados por Monarquias outrora poderosas, como a Inglaterra e a Espanha.

As políticas públicas do Reino da França em face dos seus vizinhos europeus consistiram, pois, em desenvolver um conjunto de iniciativas que a Administração poria em funcionamento, mediante esse duplo movimento a partir do Monarca e do seu Conselho de Estado, que efetivaria uma política sustentada que reforçasse a unidade interna e a modernização da sociedade francesa, fazendo, também, com que a própria sociedade se comunicasse por esses canais com o Monarca, a fim de melhor costurar a realização das iniciativas reais, no sentido de que fossem efetivamente realizadas, a fim de manter vivo o progresso e a unidade do País.

Mas todo esse progresso esbarraria num dado trágico: a índole limitada do racionalismo constituído em fonte única de poder e esperança. “Porém, não é menos certo que nesta época, - prossegue Guizot - o espírito humano, de posse do poder absoluto, tem sido corrompido, extraviado; que tem contemplado os fatos estabelecidos, as ideias antigas com um desdém e uma aversão ilegítimos; aversão que tem conduzido ao erro e à tirania. A parte do erro e da tirania, efetivamente, misturou-se ao triunfo da razão humana no final do século, uma parte muito grande – não se pode dissimular e é necessário proclamá-lo em lugar de calar - essa parte de erro e de tirania tem sido, sobretudo, o resultado do extravio em que o espírito do homem se precipitou, nessa época, ao ver tão extendido o seu poder. É dever e será, creio, o mérito do nosso tempo, reconhecer que todo poder, seja intelectual ou temporal, pertença aos governos ou aos povos, aos filósofos ou aos ministros, que se exerça em uma ou outra causa, que todo poder humano – digo – leva em si mesmo um vício natural, um princípio de debilidade e abuso que deve lhe assinalar um limite. Porque não há mais do que a liberdade geral de todos os direitos, de todos os interesses, de todas as opiniões, a livre manifestação de todas estas forças, a sua coexistência legal, não há mais do que este sistema que possa restringir toda força, todo poder em outros, fazer, em suma, que o livre exame subsista realmente em proveito de todos. Este é para nós, senhores, o grande resultado, a grande lição da luta travada a fines do século XVIII, entre o poder absoluto temporal e o poder absoluto espiritual” [Guizot, Historia de la Civilización en Europa, ob. cit., p. 328].

Luís XIV dirigia pessoalmente a administração, a partir do Conselho de Estado – integrado por membros da Nobreza e do Alto Clero -, bem como dos Ministérios subordinados ao Conselho e, evidentemente, ao Rei. Nenhum dos seus Ministros ou Secretários de Estado tinha autonomia ou qualquer distinção pessoal; todos eles dependiam integralmente da vontade do Rei. Houve, sem dúvida, Ministros que sobressaíram no exercício das suas funções e que contaram – evidentemente – com o apoio real. Foi o caso de Colbert (1619-1683), pertencente à burguesia, e que, como Ministro de Comércio, Indústria e Marinha Real, desenvolveu o mercantilismo, com aumento da reserva monetária e com rigoroso controle da produção, reduzindo as importações e expandindo as exportações sob um regime eminentemente protecionista. Ficou famosa a construção, por ordem real, do Canal do Midi, que comunicava o Atlântico com o Mediterrâneo, obra de grande envergadura que ainda existe e que tinha uma extensão de mais de 250 quilômetros, com a finalidade de abrir uma nova saída estratégica ao Exército do Rei, ao comércio e à Marinha Real. Outros Ministros que sobressaíram foram Vauban (1633-1707), Comissário de Fortificações, o Marquês de Louvois (1641-1691), Ministro de Obras Militares, o Duque de Choiseul (1719-1785), Ministro das Relações Exteriores e Assuntos Internos e Guilherme de Lamoignon (1617-1677), Diretor do Conselho de Estado e Presidente do Parlamento de Paris. No âmbito da cultura e da vida artística, o soberano prestigiou o ballet, a ópera, o teatro, a pintura e a arquitetura, a qual teve um desenvolvimento especial a partir das regulamentações geométricas para o traçado das ruas e o desenho das fachadas dos prédios públicos e para o desenvolvimento, em geral, do espaço urbano, com a destruição das antigas muralhas e a sua substituição pelos famosos Boulevards (que pretendiam copiar as “Avenidas de Árvores”, novidade apresentada pelas cidades da República da Holanda).

2 – Os Intendentes, como representantes diretos do Rei, na Administração da França, segundo Alexis de Tocqueville.

Se Luís XIV conseguiu, mediante a estruturação de um governo forte com a ajuda do Conselho de Estado e do Ministério, garantir a modernização do país de acordo aos planos reais de engrandecimento da França, houve, no entanto, um detalhe técnico: o trait d’union de toda essa máquina, repousava nos Intendentes do Rei, que tornavam a sua figura de supremo administrador do país, presente em todos os cantos do Reino.

Ao redor do Monarca foi constituído por Luis XIV, segundo Tocqueville, um corpo administrativo com um poder singular, em cujo seio todos os poderes se juntavam de uma maneira nova: era o Conselho do Rei. Eis a detalhada descrição desse conselho, feita por Tocqueville na sua obra O Antigo Regime e a Revolução [3ª edição brasileira, apresentação de Zevedei Barbu; introdução de J. P. Mayer; tradução de Yvonne Jean, pp. 78-81]: “Sua origem é antiga, mas a maior parte das suas funções é de data recente. É ao mesmo tempo supremo tribunal de justiça, pois tem o direito de cassar os decretos de todos os tribunais ordinários, e superior tribunal administrativo, pois todas as jurisdições especializadas são, em última instância, de sua competência. Como o conselho do governo exerce, além do mais, sob o bel-prazer do rei, o poder legislativo, discutindo e propondo a maioria das leis e também fixando e ordenando os impostos. Como conselho superior de administração, cabe-lhe estabelecer as regras gerais que devem orientar os agentes do governo. Resolve todos os negócios importantes e controla os poderes secundários. Tudo acaba chegando até ele e é dele que parte o movimento que se comunica a tudo. Não tem, entretanto, uma jurisdição própria. É o rei e só o rei quem decide, mesmo quando o conselho parece pronunciar-se. Mesmo dando a impressão de distribuir a justiça, o conselho só comporta, na realidade, avisadores como fica determinado pelo parlamento numa das suas advertências”.

“Não são grandes senhores que compõem este conselho, e sim personagens medíocres ou de baixo nível social, antigos intendentes e outras pessoas bem a par da prática dos negócios, todos revogáveis. O conselho age geralmente com discrição e sem alarde. Sempre faz questão de demonstrar menos pretensões que poder. Assim é que não tem nenhum brilho ou, melhor, perde-se no esplendor do trono do qual está próximo, mas é tão poderoso que toca tudo e ao mesmo tempo é tão apagado que a história quase não o nota. Ao mesmo tempo que toda a administração do país é dirigida por um corpo único, quase todo o manejo dos negócios interiores depende de um só agente, o controlador geral”.

“Se abrirem um almanaque do antigo regime – prossegue Tocqueville – nele verificarão que cada província tinha seu ministro particular, mas se estudarem a administração nos autos, verão logo que o ministro da província só tem algumas oportunidades pouco importantes de agir. Os negócios ordinários são conduzidos pelo controlador geral; este puxou pouco a pouco para si todos os negócios relacionados com questões de dinheiro, quer dizer, quase toda a administração pública. Vemos agi-lo sucessivamente como ministro da fazenda, ministro do interior, ministro de viação e obras, ministro do comércio”.

“Do mesmo modo que a administração central só tem, na realidade, um agente em Paris, só tem um agente em cada província. Ainda encontramos, no século dezoito, grandes senhores com o nome de governadores de província. São os antigos representantes, muitas vezes hereditários, da realeza feudal. Ainda recebem honrarias mas não têm mais poder algum. O intendente assume toda a realidade do governo. É um homem de nascimento comum, sempre estrangeiro à província, jovem e tendo ainda de garantir seu futuro. Não exerce seus poderes através do direito de eleição, de nascimento ou de compra do cargo; é escolhido pelo governo entre os membros inferiores do Conselho de Estado e sempre revogável. Embora separado deste corpo é o seu representante e é por isso que, na linguagem administrativa da época, é chamado comissário encarregado. Acumulam-se em suas mãos quase todos os poderes que o Conselho possui e exerce todos em primeira instância. É, como o Conselho, ao mesmo tempo, administrador e juiz. O intendente comunica-se com todos os ministros, é o agente único, na província, de todas as vontades do governo”.

“Abaixo dele – continua Tocqueville – e nomeado por ele coloca-se em cada cantão um funcionário revogável à vontade, o subdelegado. O intendente é geralmente um nobre de origem recente; o subdelegado é sempre um plebeu. Representa todavia o governo inteiro na pequena circunscrição que lhe é indicada, do mesmo modo que o intendente age no conjunto geral. É submetido ao intendente como este é submetido ao ministro. O marquês d’ Argenson (1694-1757) conta nas suas Memórias que Law disse-lhe um dia: ‘Nunca teria acreditado no que vi quando era controlador das finanças. Saiba que este reino da França é governado por trinta intendentes. Não tem nem parlamento, nem Estados, nem governadores; são trinta referendários agindo nas províncias e dos quais dependem a infelicidade ou a felicidade destas províncias como também sua abundância ou sua esterilidade”.

“Esses funcionários tão poderosos eram, – prossegue Tocqueville – entretanto, eclipsados pelos remanescentes da antiga aristocracia feudal e como perdidos no brilho que ainda lançava. Isso faz que no seu tempo quase não eram notados apesar de sua mão estar por toda parte. Na sociedade, os nobres tinham sobre eles a vantagem do status, da riqueza e da consideração que sempre se testemunha às coisas antigas. No governo, a nobreza envolvia o principe e formava sua corte; comandava as frotas, dirigia os exércitos, numa palavra fazia o que sempre chama a atenção dos contemporâneos e, por demais vezes, da posteridade. Teriam insultado um grande senhor propondo-se nomeá-lo intendente; o mais pobre gentil-homem de raça teria, na maioria dos casos, desprezado esta função. Consideravam os intendentes como poderes intrusos, novos homens encarregados do governo dos burgueses e dos camponeses e, aliás, companheiros muito pequenos. Entretanto, eram estes homens que governavam a França como disse Law (...)”.

Tocqueville termina a sua descrição do trabalho dos intendentes da seguinte forma: “Quase não há nenhum setor da economia social ou da organização política que não tenha sido remanejado por decretos do Conselho, durante os quarenta anos que antecedem à Revolução”.

BIBLIOGRAFIA

GUIZOT, François [1990]. Historia de la civilización en Europa. (Tradução espanhola do original francês, a cargo de Fernando Vela; Prólogo: “Guizot y la Historia de la civilización en Europa”, de José Ortega y Gasset). Madrid: Alianza Editorial.

TOCQUEVILLE, Alexis de [1989]. O Antigo Regime e a Revolução. (Tradução de Yvonne Jean; Apresentação de Zevedei Barbu; Introdução de J. P. Mayer). 3ª edição. Brasília: Editora da Universidade de Brasília / São Paulo: Hucitec.