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OS CAMINHOS TORTOS DA SOCIAL-DEMOCRACIA BRASILEIRA

OS CAMINHOS TORTOS DA SOCIAL-DEMOCRACIA BRASILEIRA

CONSTITUIÇÃO DE 1988 - "O AVANÇO DO RETROCESSO" - AVANÇO PORQUE REFORMULOU A VIDA NACIONAL EM NOVAS BASES - RETROCESSO, PORQUE FICOU DO LADO DE FORA A ADOÇÃO DO VOTO DISTRITAL.



Vejo, com tristeza, como a Social-Democracia vai definhando no nosso cenário político. O meu saudoso mestre Antônio Paim (1927-2021) dizia que essa variante político-ideológica era importante, a fim de que as forças de esquerda encontrassem um espaço autenticamente democrático para canalizarem a luta pelos seus ideais e interesses. A Social-Democracia, como prova a história, foi a vertente que deu ensejo à chegada dos trabalhadores ao poder na Europa, tanto no Continente (com os tradicionais partidos social-democratas na Alemanha e em outros países do norte do Continente) e com os trabalhistas nas Ilhas Britânicas.

Reformas sociais foram feitas por esses Partidos, tendo abandonado previamente a utópica ideia do “socialismo científico” e da pretensa busca pela hegemonia, com destruição dos partidos “burgueses”. Social-democratas como Eduard Bernstein (1850-1932), na Alemanha, mostraram que era, sim, possível os operários chegarem ao poder pela via de eleições democráticas, sem precisar da radicalização messiânica apregoada por Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895) no seu Manifesto Comunista (1848). Ora, os trabalhadores poderiam chegar ao poder participando de eleições livres e convivendo da luta política com outras agremiações partidárias.

Mestre Paim era, como se dizia na França no século XIX, um “doutrinário”. Ou seja, um intelectual liberal, seguidor das ideias de John Locke (1632-1704) acerca do governo representativo, cultivando, também, a ideia da República das Luzes apregoada por Immanuel Kant (1724-1804) sobre o ideal de defesa da liberdade, que deveria beneficiar a todos os habitantes do país. Para o filósofo alemão, somente cultivando os ideais liberais seria possível garantir as bases da “Paz Perpétua”, por ele almejada, numa Europa castigada por conflitos entre facções, ao longo dos séculos XVII e XVIII.

Alexis de Tocqueville (1805-1859), seguidor dos ensinamentos dos Doutrinários, entre os quais se sitúam na França, como precursores, Benjamin Constant de Rebecque (1767-1830), Jacques Necker (1732-1804) e a sua filha Madame de Staël (1766-1817) e, como propriamente Doutrinários, Pierre-Paul Royer Collard (1763-1845), e especialmente François Guizot (1787-1874). Todos estes autores se irmanam no ideal da luta em prol da liberdade, como forma de resgatar o legado positivo da Revolução Francesa (1789), feita em nome da Liberdade que era esquecida no Antigo Regime, ainda vinculado aos preconceitos de casta que ensejavam a servidão. A Liberdade, segundo Guizot, seria garantida pelo predomínio das classes médias burguesas sobre o povo e partilhando o poder com a antiga nobreza, com parlamentarismo bicameral, adotando a modalidade da monarquia constitucional, já vigente nas Ilhas Britânicas após a Revolução Gloriosa de 1688.

Tocqueville deu uma alargada aos ideais da conquista da liberdade, estudando in situ, na sua obra principal, A Democracia na América (1835-1940), a República Democrática Americana, nos Estados Unidos, durante a viagem à América em 1832, fazendo do ideal da Igualdade o complemento da Liberdade, já defendida pelos seus precursores. O ideal de luta para Tocqueville era a conquista da Liberdade para todos, e fez dessa pregação o ponto central da sua obra O Antigo Regime e a Revolução (1856).

Antônio Paim considerava que, na consolidação da democracia no Brasil ao ensejo do final do regime militar (1964-1985), seria de fundamental importância o funcionamento de dois Partidos diferentes, que cultivassem a defesa da liberdade num contexto democrático. Esses dois Partidos seriam um, de inspiração Liberal (e Paim durante vários anos foi assessor das lideranças do Partido da Frente Liberal). Tendo sido orientado por Paim nos meus cursos de Mestrado e Doutorado, terminei assumindo a sua posição de “doutrinário”, ou seja, de intelectual engajado na luta político-partidária. Filiei-me ao antigo PFL e participei de algumas tarefas em prol do aperfeiçoamento da vida partidária.

Colaborei, junto com Paim, na assessoria do Senador José Richa, um dos fundadores do PSDB, durante os debates da Assembleia Constituinte em 1987 / 1988. Considerávamos, Paim e eu, que a defesa do voto distrital por parte do ex-governador do Paraná José Richa (1934-2003), seria chave para uma fundamentação adequada da representação, deformada ao ensejo do Pacote de Abril do general Geisel (1977), que tinha deformado a representação, dando maior peso no Congresso às regiões menos desenvolvidas do país, sobretudo Norte e Nordeste, que dependiam mais dos favores da União. Isso para tornar possível o esquema de Geisel do “autoritarismo instrumental’, ou seja, do controle autoritário, pelo executivo, do processo de abertura, para que não percorresse caminhos de uma liberdade total, mas controlada, numa abertura lenta e gradual. A oportunidade, na elaboração da Constituição de 1988, era única, porquanto se fosse introduzida a prática do voto distrital na Magna Carta, a nossa representação poderia ter uma reformulação que a tornasse realmente forte, em termos de garantir a real representação parlamentar dos interesses dos cidadãos. Seria uma autêntica revolução democrática!

Ora, como é sabido, a proposta de Richa, presidente da Comissão de Constituição e Justiça, gozava de maioria no seio dela. No dia da votação, porém um colega de partido de Richa, o senador Mário Covas (1930-2001), deu-lhe uma rasteira, tendo comparecido à sessão da Comissão acompanhado de sindicalistas do Porto de Santos, armados de bordunas, para não deixar entrar ninguém na sede da Comissão. A proposta do voto distrital naufragou no seio desta e nem sequer foi apresentada na Sessão Planária da Assembléia Constituinte, sendo que Richa já tinha costurado um amplo tecido de apoio para a sua proposta. Ficamos, assim, entregues, a pífia representação proporcional, que deixa em segundo plano os interesses dos eleitores, para representar os interesses dos caciques partidários, como até hoje acontece, esvaziando, portanto, o legislativo brasileiro da representação dos interesses da Nação. A Social-Democracia brasileira nascia, assim, já torta das pernas, sem um compromisso sério para garantir uma autêntica representação parlamentar.