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"O SEGREDO DE FRANCISCO" - DE ANDRÉ TRINDADE


Professor André Trindade, autor do romance: "O segredo de Francisco" (Londrina: Thoth Cult, 2021, 222 páginas).

Li, durante as férias em Guaratuba neste chuvoso verão, o romance do amigo André Trindade intitulado: O segredo de Francisco [Londrina: Thoth Cult, 2021, 222 pgs.]. Trata-se de uma narrativa simbológica que parte do amor juvenil do estudante argentino de segundo grau Jorge Mario Bergoglio (1936-) por Amália, sua namorada, se defronta com a dúvida entre ser padre ou casar com ela e abarca, também, a sua vida ulterior, como sacerdote pertencente à Ordem dos Jesuítas (ordenado em 1969, tendo feito os votos definitivos de obediência total em 1979).

Bergoglio chegou, depois, ao bispado, ao arcebispado e ao cardinalato, sempre fazendo gala daquela simplicidade que até hoje o caracteriza como fiel discípulo de Santo Inácio de Loyola (1491-1556), calçando, na condição de Papa, aqueles surrados mocassins pretos que contrastam com a batina branca de Pontífice. Bergoglio é o atual Papa Francisco. Quanto à amada Amália (Carmem, no romance), quando o jovem Bergoglio lhe comunicou que entraria no Seminário da Companhia de Jesus, ela ficou arrasada, tendo decidido ir para São Paulo. Amália rasgou a foto que ela e Bergoglio tiraram defronte à Igreja de Santo Inácio de Loyola, em Buenos Aires. Ignoravam os jovens namorados que no ventre de Amália crescia o fruto do seu amor, que terminaria nascendo em terras brasileiras. Vitória, a linda menina que Amália deu à luz, era filha do futuro Papa Francisco!

A novela narra as aventuras ensejadas pelo compromisso do Papa em prol de uma Igreja mais simples, aberta ao homem contemporâneo e alheia às negociatas biliardárias que contaminaram o Banco do Vaticano e das quais o Pontífice quer ver livre, definitivamente, a Igreja Católica. A missão do Papa Francisco é narrada no lusco-fusco do confronto suscitado entre vários focos de poder envolvidos, de uma forma ou de outra, com as finanças da Santa Sé: a Máfia Napolitana “Aima” (sangue), o Estado do Vaticano com a sua milenar burocracia, o Governo Italiano, A Maçonaria, os Cavaleiros Templários, a Europol, a Interpol e as Ordens Religiosas dos Jesuítas e de São Francisco. Um elenco digno de um grande filme de ação.

Personagens e ações fortes percorrem a narrativa: além de Bergoglio, aparece o arcebispo de Buenos Aires, Dom Geraldo Klaus, amigo e conselheiro espiritual do Papa, perseguido pela Máfia Napolitana “Aima” (“Sangue” traduzindo o nome do Grego). Carlos, o cruel pistoleiro dos mafiosos, que esfaqueia até a morte Dom Geraldo, na Nave Central da bela Catedral Metropolitana de Santiago do Chile. Vitória, fruto do amor entre o jovem Bergoglio e Amália, que guardou heroicamente até o túmulo o segredo de ser filha do Papa. O filho de Vitória, Lucca,  o jovem brasileiro que cursou estudos de doutorado em direito na Universidade “La Sapienza” em Roma, que é salvado da morte em várias oportunidades por uma linda motoqueira, Francesca (chamada familiarmente de Fran ao longo do relato), na verdade uma freira, espécie de agente 007, pertencente à Congregação Franciscana e que providencialmente aparece sempre que Lucca é perseguido pelos mafiosos que o querem eliminar a qualquer preço, pelo fato de ser filho de Vitória, a filha do Papa.

Não falta no romance a dimensão erótica da tórrida paixão proibida entre a freira Fran e o belo jovem Lucca. Vitória, a mãe de Lucca, morre misteriosamente em São Paulo, tendo sido o seu corpo, depois de enterrado, exumado e calcinado pela Máfia Napolitana, chefiada nesse empreendimento criminoso por Carlos, o pistoleiro. Personagens e ações que se sucedem numa trama acelerada, que deixa o leitor em suspense ao longo da leitura, como se tivesse subido numa montanha russa de emoções.

A trama gira em torno à decisão do Papa Francisco de moralizar a Igreja, tornando-a, efetivamente, a “Igreja dos Pobres”, para o qual conta com a ajuda do amigo, Dom Geraldo Klaus, arcebispo de Buenos Aires, que é uma espécie de estrategista cuja missão fundamental consistiu em elaborar o plano de governança de uma nova Igreja Católica, que abrirá mão das suas riquezas para coordenar uma campanha mundial, que tem como objetivo “devolver para os mais necessitados uma parte das riquezas exploradas pelos ricos empresários, interessados apenas no lucro” [p. 209]. “A nossa ideia – frisa Davi, o Chefe de Segurança do Arcebispo Klaus – é que todas as pessoas do mundo recebam uma ajuda mensal de 60 dólares. Os países ricos conseguiriam pagar facilmente. Já os países pobres deveriam criar um tributo sobre a extração de suas riquezas naturais” [p. 209]. Tratar-se-ia, portanto, de definir uma nova missão para a Igreja.

Diante da suspeita de que a sua mãe Vitória tivesse cometido suicídio, o jovem Lucca disse ao Papa: “Recebi a informação de que a minha mãe cometeu suicídio. Não acredito que tenha feito isso”. A essa observação, o Papa Francisco responde: “-Sua mãe carregava nas costas a culpa por todas as mudanças de que a Igreja precisa não serem implementadas. Ela me relatou em uma carta que era muito egoísmo manter o sofrimento de milhões de pessoas apenas para salvar sua vida. Tentei convencê-la do contrário, mas foi inevitável”.   "-Por que queimaram o corpo dela?” (indaga Lucca). O Papa responde: “- Com ela morta, já não tinham como me chantagear e resolveram acabar com qualquer evidência que pudesse incriminá-los. Inclusive você! Por isso pedi para a Madre Superiora da Congregação Franciscana enviar alguém para vigiá-lo”. “– Então foi por isso que ela enviou a Francesca” (disse Lucca). E o Papa respondeu: “-Era para ela apenas monitorar você. A coitada da irmã que foi enviada não estava preparada para tudo que passaram”. – “Creio que só estou vivo por causa dela” (respondeu Lucca).”Até um tiro levou para me salvar (...)”. “- Compreenda, Lucca, frisou o Pontífice, estou entre a Cruz e a Espada. De um lado, meu coração pede para contar a verdade e acabar com toda essa farsa; de outro, tenho receio da forma como os milhões de fiéis da Igreja reagiriam”. – “Entendo sua ingrata posição. Assim como a minha mãe, manterei segredo” (respondeu Lucca). – “Agradeço do fundo do meu coração” (disse Francisco). “O Papa se levantou, foi em direção a Lucca e se ajoelhou, beijando suas mãos. – Muito obrigado, sangue do meu sangue (disse o Papa)” [pp. 210-211].

De forma semelhante à como Santo Agostinho de Hipona (354-430) imaginou para a Igreja uma nova missão espiritual, no seio desse Império Romano decadente do qual ela terminou fazendo parte depois da conversão dos Imperadores Constantino (272-337) e Teodósio (347-395) ao Cristianismo, sendo essa missão a de pregar o Cristianismo aos Bárbaros, a Igreja de Francisco teria como missão central equacionar o problema da miséria no mundo contemporâneo, sendo a Igreja Católica a mão distribuidora do dinheiro mundial entre os necessitados de todas as Nações. Para isso, moralmente, a Igreja deveria primeiro se despojar de todas as suas riquezas.

A alta finalidade da Igreja assinalada pelo nosso narrador no mundo contemporâneo muda fundamentalmente de patamar: trata-se, não mais de uma missão espiritual de pregar o Cristianismo, seguindo a trilha aberta por Santo Agostinho. A missão hoje é concreta e material: garantir a distribuição justa da riqueza no mundo. Em face dessa opção, anotemos, o apóstolo São João (10-103) e os Santos Padres teriam uma objeção: a Igreja mudou de patamar de ação, deixando o universo da graça (que não é obra humana mas dom de Deus gratuito e espiritual), abraçando exclusivamente uma missão cem por cento temporal.

É a objeção levantada em face da Teologia da Libertação, na versão radical de identificação com a luta dos oprimidos para sair da miséria, cultuada por teólogos de vulto como o padre colombiano Camilo Torres Restrepo (1929-1966). A Igreja, diriam Santo Agostinho e o Papa Bento XVI (1927-), cedeu nesse caso à gnose, que identifica o futuro da humanidade num plano cem por cento temporal, consolidado numa ação exclusivamente humana, como exclusivamente temporal é a questão de fazer desaparecer a pobreza da face da terra [cf. Rupert Hoffmann; Wolfgang Ockenfels; Ricardo Vélez Rodríguez; Alfonso López Trujillo et alii. Gottesreich und Revolution. Zur Vermengung von Christentum und Marxismus in politischen Theologien der Gegenwart. (Edição coordenada por Rupert Hoffmann). Münster: Verlag Regensberg, 1987, 215 pp].

A essa observação crítica pode-se juntar outra, quando no final da narrativa se insinua um novo esquema de governança da Igreja gerido pelas mulheres que foram abandonadas e perseguidas por um mundo capitalista e machista. Quando o Papa Francisco pretende por em obra a sua proposta de renovação eclesial a serviço dos pobres, pergunta à freira Fran se ela estaria à altura da nova missão de dar ensejo a um esquema de poder eclesial centrado na mulher. Seria a revivescência do episódio da “papisa Joana” que se remonta às nevoas do passado da Igreja na longínqua Mogúncia medieval. As mulheres deveriam ocupar o seu lugar, chegando inclusive ao Papado.

O revide das forças malévolas do capitalismo foi violento, em face da tentativa moralizadora da Igreja, levada adiante pelo Papa Francisco. Prevendo que dias escuros viriam por conta de sua condição de “filha do Papa”, Vitória, fruto do amor entre o jovem Bergoglio e a sua amada Carmem (Amália), e que exercia a profissão de enfermeira, suicida-se no seu leito de doente, aplicando-se uma injeção letal. O Papa Francisco, à pergunta do jovem Lucca Reis acerca de se sua mãe conhecia esses intrincados fatos, responde ao jovem (que é seu próprio neto): “Sim. Ela ficou sabendo em 2013. Aproveitei a visita ao Brasil para a Conferência Mundial da Juventude e consegui uma conversa com ela enquanto você dormia no hotel. Expliquei toda a situação e que o fato deveria ser mantido em sigilo pelo bem dela e da Igreja. Eu notei que ela voltou diferente da conferência, ficou muito mais religiosa. Eu expliquei para ela que a aparição de um filho do Papa mudaria tudo. Muitos dos paradigmas existentes hoje cairiam por terra e a Igreja não estava preparada para essas mudanças”. “– Então (pergunta Lucca) a minha mãe foi usada para garantir que o Banco não sofreria intervenção?” “– Sim! (respondeu o Papa Francisco). Mas como a crise mundial provocada pelo coronavírus e o aumento da pobreza cresceram, as críticas ao patrimônio da Igreja vieram à tona. De nada adianta um Papa franciscano se a Igreja não prega a simplicidade. Por isso, o meu velho amigo Dom Geraldo preparou um estudo sobre a criação de um projeto mundial, liderado pela Igreja, para a implantação da Renda Básica Universal” [pp. 208-209].

O romance de André Trindade insere-se, como foi frisado no início deste comentário, na tradição literária da “narrativa simbológica” que, na contemporaneidade, floresceu nos escritos de Dan Brown (1964-), Umberto Eco (1932-2016) e Ernesto Sábato (1911-2011), dentre outros. As obras de Dan Brown constituíram verdadeiros best-sellers do gênero apontado, tendo sido o escritor considerado pelo New York Times como uma das personalidades mais influentes do mundo no início deste milênio, graças às geniais construções narrativas povoadas de mistérios e de cálculos mnemotécnicos que se multiplicam nas páginas da sua primeira obra, Fortaleza Digital (1998), como também nas subsequentes: O pêndulo de Foucault, Anjos e Demônios (A saga do simbologista de Harvard Robert Langdom), O Código da Vinci, Ponto de Impacto, Inferno, O Símbolo Perdido, Origem, etc.

As obras de Umberto Eco (1932-2016) exploraram sistemáticamente o simbolismo de mistérios cristãos, em clássicos como O Nome da Rosa (1980), O Pêndulo de Foucault (1989), O Cemitério de Praga (2010), Número Zero (2015), etc. Já o argentino Ernesto Sábato aparece como o precursor contemporâneo desse gênero com El Túnel (1948), Sobre Héroes y Tumbas (1961), Abdalón el Exterminador (1974), sendo que o romancista argentino escreveu também vários ensaios carregados de simbolismo heterodoxo como Nosotros y el Universo (1945), Hombres y Engranajes (1951), El Escritor y sus Fantasmas (1963) y Tango, Discusión y Clave (1963).

Uma característica que ressalta em todos estes autores é que se inspiram nos mitos judaico-cristãos conferindo-lhes, no entanto, um viés heterodoxo. Dan Brown é de formação protestante na rama Episcopaliana, mas relativiza na sua narrativa os aspectos do cristianismo, surfando na onda de um heterodoxismo que flerta com religiões ancestrais como as célticas. Em Umberto Eco encontramos a narrativa que se refere a mitos cristãos, despojando-os da sua áurea de transcendência numa visão que se aproxima do agnosticismo. Sábato, curiosamente, parte de um ateísmo prático alimentado pela sua proximidade original com a ciência física (era físico de formação) e com a filosofia nietzscheana, aproximando-se, no final da vida, da ortodoxia tradicional católica. Em André Trindade, como estamos destacando neste comentário, prevalece uma visão heterodoxa do catolicismo pelo viés esquerdizante da Teologia da Libertação, com alguma presença de mitos medievais, como na aproximação que faz da figura da “papisa Joana”, coroada em 855 com o nome de João VII O Inglês, e que teria reinado durante 2 anos, 5 meses e 4 dias, tendo sido morta pela multidão enfurecida quando foi descoberta sua real identidade, ao dar à luz um filho no meio de uma procissão, segundo relatos da época.

Quem ler o livro de André Trindade poderá se deleitar com as rutas de fuga por ele apresentadas nos subterrâneos do Coliseu romano ou nos túneis de Buenos Aires. É um tipo de leitmotiv fartamente utilizado pelo grande Dante Alighieri (1265-1321) na sua viagem ao mundo do além, já desde o início do relato em A Divina Comédia. Os subterrâneos misteriosos são a via para a fuga da morte e o encontro com a vida. Uma espécie de morte e ressurreição. Em Sábato é impressionante, no romance Sobre Héroes y Tumbas, a parte intitulada: “Informe sobre ciegos”, acompanhada de uma excursão pelos subterrâneos de Buenos Aires, a partir da misteriosa Igreja Ortodoxa de San Telmo.

É deliciosa a narrativa com que André Trindade tenta seguir as dicas misteriosas escritas na parte traseira da foto rasgada pela mãe de Lucca e que, num complexo périplo conduz o leitor desde Trento até o Vaticano, a fim de que o jovem advogado Lucca consiga encontrar o seu avô, o Pontífice. Como é plástica a descrição do Café Tortoni de Buenos Aires e da caminhada pela Avenida de Mayo descendo até a Plaza de Mayo e a Casa Rosada! O Padre César, amigo do Arcebispo, conduz o leitor pelos túneis que se ramificam por baixo da antiga Igreja de Santo Ignacio construída pelos Jesuítas entre 1686 e 1722. “No subterrâneo – escreve André - são encontrados túneis que levam para vários pontos da cidade. Eles foram usados para defesa e até contrabando no período colonial” [p. 81].

Vale a pena ler o livro do professor André Trindade. Você vai fazer uma viagem inesquecível por Roma, Montevidéu, Buenos Aires, São Paulo, o Vaticano e Trento. Tudo sem sair de casa neste estranhíssimo verão em que chove como em Macondo e em que, por vezes, se acende aquele fogaréu no ar que não nos deixa dormir. Valeu a leitura de “O Segredo de Francisco”, do meu amigo André!