
Vejo, com tristeza, como a Social-Democracia vai definhando no nosso cenário político. O meu saudoso mestre Antônio Paim (1927-2021) dizia que essa variante político-ideológica era importante, a fim de que as forças de esquerda encontrassem um espaço autenticamente democrático para canalizarem a luta pelos seus ideais e interesses. A Social-Democracia, como prova a história, foi a vertente que deu ensejo à chegada dos trabalhadores ao poder na Europa, tanto no Continente (com os tradicionais partidos social-democratas na Alemanha, nos Países Baixos e nos do Norte), com os trabalhistas nas Ilhas Britânicas e, depois, com os socialistas democráticos na França, na Espanha e em Portugal.
Reformas sociais foram feitas por esses Partidos, tendo abandonado previamente a utópica ideia do “socialismo científico” e da pretensa busca pela hegemonia, com destruição dos partidos “burgueses”. Social-democratas como Eduard Bernstein (1850-1932), na Alemanha, mostraram que era, sim, possível aos operários chegarem ao poder pela via de eleições democráticas, sem precisar da radicalização messiânica apregoada por Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895) no seu Manifesto Comunista (1848), coexistindo democraticamente com outros partidos. Ora, os trabalhadores poderiam chegar ao poder participando de eleições livres e convivendo na luta política com outras agremiações partidárias.
Mestre Paim era, como se dizia na França no século XIX, um “doutrinário”. Ou seja, um intelectual liberal, seguidor das ideias de John Locke (1632-1704) acerca do governo representativo, cultivando, também, o ideal da República das Luzes apregoada por Immanuel Kant (1724-1804) e buscando realizar a defesa da liberdade, que deveria beneficiar a todos os habitantes do respectivo país e do Globo. Para o filósofo alemão, somente cultivando os ideais liberais seria possível garantir as bases da “Paz Perpétua”, por ele almejada, numa Europa castigada por conflitos entre facções, ao longo dos séculos XVII e XVIII.
Alexis de Tocqueville (1805-1859) foi seguidor dos ensinamentos dos Doutrinários entre os quais se situaram, na França, como precursores, Benjamin Constant de Rebecque (1767-1830), Jacques Necker (1732-1804) e a sua filha Madame de Staël (1766-1817) e, depois, como propriamente Doutrinários, Pierre-Paul Royer Collard (1763-1845) e, especialmente, François Guizot (1787-1874). Todos estes autores se irmanaram no ideal da luta em prol da liberdade, como forma de resgatar o legado positivo da Revolução Francesa (1789), feita em nome da Liberdade que era esquecida no Antigo Regime, ainda vinculado aos preconceitos de casta que ensejavam a servidão. A Liberdade, segundo Guizot, seria garantida pelo predomínio das classes médias burguesas sobre o povo e partilhando o poder com a antiga nobreza, com parlamentarismo bicameral, adotando a modalidade da monarquia constitucional já vigente nas Ilhas Britânicas, após a Revolução Gloriosa de 1688.
Tocqueville alargou os ideais da conquista da liberdade, estudando in situ, na sua obra principal, A Democracia na América (1835-1940), a experiência republicana nos Estados Unidos, durante a viagem feita a esse país em 1832. O ideal de luta de Tocqueville era a conquista da Liberdade para todos, e fez dessa pregação uma aplicação ao caso francês na sua obra O Antigo Regime e a Revolução (1856), alertando para os entraves causados pelo absolutismo e pelas práticas cartoriais do colbertismo econômico.
Antônio Paim considerava que, na consolidação da democracia no Brasil ao ensejo do final do regime militar (1964-1985), seria de fundamental importância o funcionamento de dois Partidos diferentes, que cultivassem a defesa da liberdade num contexto democrático. Esses dois Partidos seriam um, de inspiração Liberal (e Paim durante vários anos foi assessor das lideranças do Partido da Frente Liberal). O outro Partido deveria ter orientação Social-Democrata. Paim soube cultivar amizades duradouras entre intelectuais desse segmento ideológico.
Tendo sido orientado por ele nos meus cursos de Mestrado e Doutorado, terminei assumindo a sua posição de “doutrinário”, ou seja, de intelectual engajado na luta político-partidária. (Quando larguei o marxismo, militei nas fileiras do Liberalismo renovado de Carlos Lleras Restrepo, na Colômbia, ao longo da década de 70). No Brasil, filiei-me ao antigo PFL e participei de algumas tarefas em prol do aperfeiçoamento da vida partidária. Colaborei com o saudoso Marco Maciel (1940-2021), então vice-Presidente de Fernando Henrique Cardoso (1931-), na tentativa de reformular o Código de Esportes, sob o comando do Presidente do Conselho Nacional de Desportos, o vice-reitor acadêmico da Universidade Gama Filho e meu amigo, José Gomes Tubino (1939-2008). Colaborei, junto com Paim, na assessoria do Senador José Richa (1934-2003), um dos fundadores do PSDB, durante os debates da Assembleia Constituinte em 1987 / 1988. Considerávamos, Paim e eu, que a defesa do voto distrital por parte do ex-governador do Paraná, José Richa, seria chave para uma fundamentação adequada da representação, deformada ao ensejo do Pacote de Abril do general Geisel (1977), que tinha conferido maior peso no Congresso às regiões menos desenvolvidas do país, sobretudo Norte e Nordeste, que dependiam mais dos favores da União. Isso para tornar possível o esquema de Geisel do “autoritarismo instrumental’, ou seja, do controle autoritário, pelo executivo, do processo de abertura, para que não percorresse caminhos de uma liberdade total, mas controlada, numa descompressão lenta e gradual. A oportunidade, na elaboração da Constituição de 1988, era única, porquanto se fosse introduzida a prática do voto distrital na Magna Carta, o Congresso revestir-se-ia de uma força democrática poderosa, ligada à defesa dos interesses dos cidadãos. Seria uma autêntica revolução liberal!
Ora, como é sabido, a proposta de Richa, presidente da Comissão de Constituição e Justiça, gozava de maioria no seio dela. No dia da votação, porém, um colega de partido de Richa, o senador Mário Covas (1930-2001), deu-lhe uma rasteira, tendo comparecido à sessão da Comissão acompanhado de ameaçadores sindicalistas do Porto de Santos, para não deixar entrar ninguém na sede da Comissão. A proposta do voto distrital naufragou no seio desta e nem sequer foi apresentada na Sessão Plenária da Assembléia Constituinte, sendo que Richa já tinha costurado um amplo tecido de apoio para a sua proposta. Ficamos, assim, entregues a pífia representação proporcional, que deixa em segundo plano os interesses dos eleitores, para representar os interesses dos caciques partidários, como até hoje acontece, esvaziando, portanto, o Legislativo da representação dos interesses da Nação. A Social-Democracia brasileira nascia, assim, já torta das pernas, sem um compromisso sério para garantir uma autêntica representação parlamentar.
Cientes da necessidade de formar lideranças partidárias sérias, comprometidas com os pontos programáticos que visassem à modernização da vida política nacional, Antônio Paim e eu, com o apoio do vice-Reitor Acadêmico da Universidade Gama Filho organizamos ali, entre 1996 e 1998, o Núcleo de Estudo à Distância, para oferecer às lideranças partidárias, programas de formação doutrinária em relação aos principais Partidos afinados com a defesa do sistema representativo. Foram desenvolvidos, inicialmente, três cursos: Introdução ao Pensamento Político Brasileiro (em treze volumes), Introdução histórica ao Liberalismo (em cinco volumes) e A Social-Democracia (em cinco volumes). Os cursos eram desenvolvidos mediante a modalidade de ensino à distância, à maneira das atividades realizadas pela Open University inglesa. Os alunos recebiam, via correio, o material de estudo e encaminhavam os seus papers para avaliação, por fax. Inexistia, nessa época, ainda, o ensino on line. Atuavam como consultores para os vários programas os membros do corpo docente do Programa de Doutorado em Pensamento Luso-Brasileiro da Universidade Gama Filho.
Particularmente teve muito sucesso o curso sobre A Social- Democracia, que foi coordenado pelo diplomata e ex-decano de extensão da UNB, Carlos Henrique Cardim. O Curso contava com cinco unidades publicadas em textos independentes: 1 – Socialismo moral e socialismo doutrinário (da minha autoria); 2 – Elaboração teórica que desembocou na social-democracia (da autoria de Antônio Paim); 3 – Formação e evolução dos principais partidos socialistas (da autoria de Antônio Paim); 4 – Avanços teóricos da social-democracia (da minha autoria); 5 – Perspectivas da social-democracia (da autoria do embaixador Carlos Henrique Cardim). A edição dos textos foi feita pela Editora da Universidade Gama Filho, com apoio do Instituto de Humanidades (de Londrina) e da Fundação Teotônio Vilela (de Brasília). A parte metodológica do Curso foi coordenada pela professora Maria Clutilde de Abreu, que tinha estudado na Espanha o funcionamento da Universidade de Ensino à Distância (UNED) de Madri.
Foram indubitáveis os méritos do primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso o qual, com a elaboração do Plano Real quando esteve à frente do Ministério da Fazenda no governo Itamar Franco (1930-2011), conseguiu integrar uma equipe eficiente para terminar o processo de saneamento da economia, fortemente abalada pela inflação descontrolada. A principal medida para dar sustentação à economia foi a privatização de empresas públicas. Estatais deficitárias como o Sistema Telebrás e a Companhia Vale do Rio Doce (empresa do setor de mineração e siderurgia) foram vendidas ao setor privado. Com os vultuosos recursos obtidos dessas privatizações, foi possível desenvolver programas sociais de amplo espectro, no terreno da educação e da assistência aos menos favorecidos.
O controle sobre a inflação e a estabilidade produzida na economia pelo Plano Real permitiram que, em 1997, o governo de Fernando Henrique conseguisse aprovar, no Congresso, a reforma constitucional que permitia a reeleição presidencial. Foi aberta, assim, a porta para o segundo governo social-democrata chefiado pelo próprio Fernando Henrique Cardoso, entre os anos de 1999 e 2002.
A Social-Democracia brasileira, no entanto, derrapou no próprio sucesso, ao não ter conseguido consolidar a alternância no poder com os liberais do PFL, que lhe tinham dado fiel sustentação e que seriam os naturais sucessores na continuação das reformas iniciadas. Numa radical mudança de rumo, Fernando Henrique traiu os liberais e passou a se aproximar do Partido dos Trabalhadores, cujo líder, Luiz Inácio Lula da Silva (1945-), tinha feito uma oposição desleal aos seus dois governos, presidida pelo slogan “Fora FHC ! ”. Notadamente durante o segundo governo de Fernando Henrique, os petistas infernizaram a vida dos produtores rurais com incontáveis invasões de terras produtivas (como no Pontal do Paranapanema, em São Paulo) e com episódios violentos protagonizados pela militância dos sem-terra no Norte e no Nordeste do país, bem como em áreas promissoras do agronegócio, no Sul, Sudeste e Centro-Oeste do País. Os movimentos radicais se fortaleceram com a falta de pulso dos sociais-democratas, que toleraram, de forma irresponsável, as investidas das lideranças radicais pelo país afora.
Um infantil esquerdismo tomou conta do PSDB no segundo governo de FHC, que terminou se voltando, definitivamente, contra os liberais e pavimentado o caminho para o triunfo de Lula, nas eleições presidenciais de 2002. O PSDB, como partido social-democrata, passou a se envergonhar do processo das privatizações e estas não aconteceram a contento ao longo do segundo mandato tucano. O PSDB terminou renegando as suas autênticas raízes social-democratas e se fechando numa máquina partidária que, paulatinamente, foi se distanciando da representação de interesses dos cidadãos e se aproximando da esquerda irresponsável.
Só assim se explica a estranhíssima aliança dos tucanos, nos dias atuais, com inimigos irreconciliáveis da véspera, os petistas, sob o comando de Lula, acompanhado pelo outrora socialdemocrata de convicção, o ex-governador de São Paulo, Geraldo Alkmin (1952-), hoje companheiro de chapa do ex-presidiário. Valeria, em relação ao tardio esquerdismo de FHC, a afirmação de Lenine: “o esquerdismo, doença infantil do comunismo”. No caso, o slogan poder-se-ia formular assim: “O esquerdismo, doença infantil da social-democracia brasileira”!
Uma anotação de política internacional para terminar estes arrazoados. Não foi apenas no Brasil onde os sociais-democratas se perderam nos seus avanços. Isso, de uma forma ou de outra, terminou ocorrendo também na Europa e nos Estados Unidos. Os governos sociais-democratas acompanharam o reerguimento da Europa Ocidental no ciclo denominado de “30 gloriosos anos” (1945-1975), ao longo dos quais se recompôs a economia outrora destroçada pela guerra.
Nos Estados Unidos, depois dos brilhantes anos do conservadorismo reaganista (1981-1989) e de Bush pai (1989-1993), que colocou limite aos excessos da esquerda, o país voltou a cair num declive esquerdizante com o governo de Clinton (1993-2001). Após o ciclo de reação antiterrorista neocon que se seguiu à guerra contra o terror deflagrada por George W. Bush (2001-2009), ao ensejo dos atentados de 11 de setembro de 2001, a esquerda socialdemocrata voltou ao poder nos Estados Unidos pela mão de Obama (2009-2017) e de Biden (atualmente), após este último ter ascendido ao poder em substituição ao polêmico conservador Donald Trump (2017-2021).
As esquerdas europeia e norte-americana passaram a tratar de formatar uma liderança global que solucionasse, de forma planejada, os problemas globais, escorada no acelerado crescimento do capital financeiro potencializado pela revolução da informática. As novas esquerdas social-democratas, pelo mundo afora, sentiram-se chamadas a um planejamento global da economia internacional, criando uma espécie de estandardização da educação e da cultura, com pautas globais escoradas no sucesso da integração de 1,7 bilhões de pessoas ao mercado global, ao longo dos últimos decênios.
Mas o que podemos concluir de tudo isso é que a esquerda socialdemocrata derrapou no próprio sucesso. Achou que tinha chegado ao “fim racional da história”, como conhecido scholar americano batizou esse sucesso desenhado com cores hegelianas. Lamento que brilhantes intelectuais social-democratas, no Brasil, tenham fechado fileiras ao redor desse messianismo tech, tomando carona, paradoxalmente, justo no trem de um candidato que representa o atraso do Estado Patrimonial e da confusão do público com o privado, à maneira como Lula fez e promete que fará num novo governo. Num triste finale de teor macunaímico, o ex-presidiário Lula, que foi investigado, processado e preso pela Justiça nas suas várias instâncias, terminou sendo solto por "problemas processuais" alegados pelo STF, sem que os seus crimes, no entanto, tivessem prescrito. Ao redor do antigo ex-presidente, os tucanos, a começar pelos seus dois representantes máximos, FHC e Geraldo Alkmin, cerraram fileiras em torno a Lula, para sepultar de vez a Operação Lava-Jato e tentar elegê-lo no próximo dia 30, sem uma proposta clara de desenvolvimento para o País e sem uma palavra que explicasse, aos eleitores, o por que dessa escolha torta. Sem choro nem vela a Social-Democracia brasileira desce ao túmulo, junto com o seu novo líder, o ladrão e ex-presidiário Lula. Os tucanos, costumeiramente no muro, pularam para o lado errado!
Voltará a antiga elite petista a se encarrapitar na cúpula do Estado, à sombra do mito de Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, genialmente cantado por Mário de Andrade (1893-1945) no seu romance modernista de 1928? Ver para conferir. Pelo menos, o eleitorado deu um recado direto aos aventureiros no 1º turno destas confusas eleições: "A Lava Jato deve continuar"! Não tem outra significação a expressiva eleição de um Congresso de tendência conservadora, alinhado com pautas saneadoras na trilha da Lava-Jato, que guindou ao Senado o corajoso juíz que processou, julgou e condenou Lula em 2018.