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O CREDO LIBERAL DE JOHN LOCKE, JACQUES NECKER, MADAME DE STAËL, CONSTANT DE REBECQUE, GUIZOT, TOCQUEVILLE E RUI BARBOSA

O CREDO LIBERAL DE JOHN LOCKE, JACQUES NECKER, MADAME DE STAËL, CONSTANT DE REBECQUE, GUIZOT, TOCQUEVILLE E RUI BARBOSA

PORTAL DA CATEDRAL DE AMIENS - FRANÇA

Este artigo visa a divulgar o Credo Liberal de sete clássicos do Liberalismo: John Locke, Jacques Necker, Madame de Staël, Benjamin Constant de Rebecque, François Guizot, Alexis de Tocqueville e Rui Barbosa.

JOHN LOCKE (1632-1704).

O Pai do Liberalismo sintetizou, nos seus Dois Tratados sobre o Governo (1689), o cerne da sua fé liberal: “Sendo todos os homens, como já foi dito, naturalmente livres, iguais e independentes, ninguém pode ser privado dessa condição nem colocado sob o poder político de outrem sem o seu próprio consentimento. A única maneira pela qual uma pessoa qualquer pode abdicar de sua liberdade natural e revestir-se dos elos da sociedade civil é concordando com outros homens em juntar-se e unir-se em uma comunidade, para viverem confortável, segura e pacificamente uns com outros, num gozo seguro de suas propriedades e com maior segurança contra aqueles que dela não fazem parte. Qualquer número de homens pode fazê-lo, pois tal não fere a liberdade dos demais, que são deixados, tal como estavam, na liberdade do estado de natureza. Quando qualquer número de homens consentiu desse modo em formar uma comunidade ou governo, são, por este ato, logo incorporados e formam um único corpo político, no qual a maioria tem o direito de agir e deliberar pelos demais”.

“(...) Por conseguinte, o que inicia e de fato constitui qualquer sociedade política não passa do consentimento de qualquer número de homens livres capazes de uma maioria no sentido de se unirem e incorporarem a uma tal sociedade. E é isso, que dá ou pode dar origem a qualquer governo legítimo no mundo” [John Locke, Dois tratados sobre o governo, trad. de Júlio Fischer, Introdução de Peter Laslett, São Paulo: Martins Fontes, 1998, pp. 468; 472].

JACQUES NECKER (1732-1804).

 Lembremos que a Burguesia francesa, ansiosa pela estabilidade política após os ciclos sanguinolentos da Revolução de 1789 e do Terror Jacobino (1793-1794), terminou enxergando no jovem general Napoleão Bonaparte (1769-1821) o instrumento que permitiria derrubar o corrupto regime autocrático do Diretório presidido por Maximilien de Robespierre (1758-1794), substituindo-o por uma República centralizadora que giraria ao redor de um triunvirato constituído por três Cónsules, que seriam: Napoleão Bonaparte, Roger Ducos (1747-1816) e o abade Emmanuel-Joseph Sieyès (1748-1836), à maneira da antiga República Romana. Essas foram as circunstâncias em que se deu o Golpe de 18 Brumário (9 de novembro de 1799) do general Bonaparte contra o Diretório, dando início à Era Napoleônica na França.

Jacques Necker (1732-1804), banqueiro de origem suíça, representante do poderoso banco Necker et Tellusson, que tinha financiado a França na Guerra dos Sete Anos (1756-1763), foi convidado pelo rei Luís XVI (1754-1793) para que integrara o seu gabinete, como responsável pelo saneamento da economia do Reino, seriamente afetada pelas dívidas contraídas ao ensejo do mencionado conflito. Necker, um jovem economista de tendência liberal, fez uma sintomatologia da doença que Locke já tinha identificado como “o mal francês” (o estatismo). A desgraça financeira era causada, basicamente, pelo descontrolado gasto público com a nobreza improdutiva e com a pachorrenta e corrupta burocracia, aliadas incondicionais da rainha Maria Antonieta de Habsburgo (1755-1793). A receita do banqueiro-ministro da Economia era incisiva: cortar gastos e integrar o Parlamento com representantes das várias províncias eleitos pelos contribuintes, suprimindo as generosas mesadas para as classes improdutivas, a Nobreza e o Alto Clero, as quais somavam 200 mil felizardos (identificados com “zangões”, segundo Sieyès), que eram sustentados pelos impostos de 26 milhões de franceses. Essa situação tinha sido denunciada pelo próprio abade Sieyès no seu livrinho intitulado: O que é o Terceiro Estado? [Sieyès, Joseph de, Abade. Qué es el Tercer Estado? Trad. espanhola, introdução e notas de F. Ayala. Madrid: Aguilar, 1973], que constituiu o estopim da Revolução Francesa.

Como os fatos transbordaram em rios de sangue, era necessária uma profunda mudança no podre sistema. Aí se encaixou o golpe de estado desferido pelo general Bonaparte, substituindo o Diretório e o seu assembleísmo por uma República centralizada ao redor de três Cónsules. Mas essa República autoritária encarnou uma continuação do desastre, pois a representação parlamentar simplesmente foi substituída por dois corpos legislativos nomeados por uma assembleia de representantes do Primeiro Cônsul, que indicava os membros do Tribunato, do Senado e do Corpo Legislativo, sem consultar à sociedade. A respeito desse sistema de governo, escreveu Necker, em 1802, na sua obra intitulada: Última síntese acerca de política e de finanças [Dernières vues de politique et de finance, offertes à la Nation Française par M. Necker. Paris: Bibliothèque de France, 2 volumes, 1802]:

"Uma fachada de sufrágio universal (simples direito de apresentação). Uma fachada de assembléias: o Senado, o Tribunato, o Corpo Legislativo. No governo uma fachada de três cônsules, sendo que o poder repousava realmente no Primeiro Cônsul. Na tarde em que o texto constitucional foi solenemente promulgado nas ruas de Paris, as pessoas perguntavam: O que há na Constituição? E a resposta era a seguinte: Há Bonaparte. O referendum sobre um texto constitucional tinha fatalmente virado um plebiscito sobre um homem" [Chevallier, Jean-Jacques, Histoire des Institutions et des Regimes Politiques de la France de 1789 à nos jours. 5ª ed. Paris: Dalloz, 1977: p. 107].

A respeito, escreveu Necker: "Mostraremos agora que toda essa organização é, ao mesmo tempo, motivo de irritação para a massa geral dos Cidadãos, bem como um atentado aos seus direitos, um estorvo para o Governo e um constrangimento prejudicial para o bem do Estado" [Necker, 1802: I, pp. 4-5].

"Um corpo político – prosseguia Necker -, absolutamente separado do movimento da Administração e que não participa da confecção das leis, uma espécie de solitário na ordem social, não poderia conservar o direito de nomear o Chefe do Estado, mesmo se ele se equivocasse uma única vez. Seria necessário que vivendo nas sombras e no silêncio, como os oráculos, tivesse a ciência e a infalibilidade destes" [Necker, 1800: I, p. 32].

E continuava assim: "Este Poder é atribuído, pela Constituição, a duas assembléias políticas, uma designada com o nome de Tribunado e a outra com o de Corpo Legislativo. A primeira é integrada por cem pessoas, com idade mínima de vinte e cinco anos; a segunda por 300 pessoas com idade mínima de trinta anos. O Governo deve propor todas as leis, o Tribunado as examina, as aceita ou as rejeita. O Corpo Legislativo se pronuncia unicamente por escrutínios, sem nenhuma discussão pública, nem secreta, sem jamais pedir um esclarecimento, sem pronunciar palavra. Uma interdição tão especial e da qual não há um modelo existente, manterá o desejo contínuo de se ver atado por um vergonhoso laço. E a Nação, que ama ouvir falar dos seus negócios e que tem direito a isso numa República, apoiaria o voto dos Legisladores desde que as circunstâncias o permitissem. O seu silêncio, o seu absoluto silêncio, mesmo que ordenado pela Constituição, prenuncia, mais do que qualquer outro indício, a presença de um dono do poder" [Necker, 1802: I, 50-51].

A França caminhava na contramão da história dos países onde houve um amadurecimento da representação, como a Inglaterra. A respeito, Necker escrevia: "A responsabilidade dos Ministros na Inglaterra é algo real e bem concreto. Mas tudo é diferente na França. Hoje, tudo caminha em sentido contrário. Nada de Câmara dos Pares, que se imponha pelo seu caráter hereditário. Nada de assembléia política representativa da Nação. Nada de Parlamento, enfim, enraizado no espírito e no coração do povo. E além do mais, nenhuma liberdade para escrever, para opinar sem pautas e sem tutores. Como, com uma tal distribuição política, com uma desproporção tão marcante entre a autoridade Executiva e todas as outras autoridades, ousaria alguém acusar um Ministro! Essa seria uma empresa tão vã quanto perigosa" [Necker, 1802: I, 84].

Eis o sombrio quadro de morte da Liberdade, traçado pelo ex-Ministro de Luís XVI: "Que acontecerá com a Liberdade no meio de todos esses dispositivos políticos? O que o Cônsul quiser. O Tribunado poderá lhe dirigir a palavra. Mas está previsto que não é obrigado nem a escutá-lo, nem a responder-lhe. O Senado Conservador está investido do direito de anular os atos inconstitucionais. Mas ousará tal coisa? (...) E todo mundo, em determinado momento, terá medo, exceto o Cônsul" [Necker, 1802: I, 85].

A fonte de toda essa maluquice estatizante que deu ensejo à Revolução Francesa, ao Terror Jacobino, à aventura do Império Napoleônico e à desgraça totalitária do século XX, foi identificada claramente por Benjamin Constant de Rebecque (1767-1830), amigo e discípulo de Necker: o pensamento de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), que na obra Du Contrat Social (1762) explicava a sua concepção política: tudo deveria ser organizado a partir da unanimidade da sociedade ao redor do pensamento daquele que encarnasse a Vontade Geral: a turba presidida pelo Legislador e, em última instância, pelo próprio Rousseau, o novo Messias. O caminho para se conseguir a unanimidade seria o do terrorismo de Estado [cf. Rousseau, Jean-Jacques, Du Contrat Social, Paris: Garnier / Flammarion, 1966].

MADAME DE STAËL (1766-1817).

Na obra intitulada: Dez anos de Exílio (1812), a filha de Necker, Germaine Necker de Staël-Holstein, que passou a ser conhecida simplesmente como “Madame de Staël”, sintetizou a sua ideia de Liberdade, através de uma bela imagem poética tecida ao redor dos raios solares: “Não é para me escusar pelo meu entusiasmo em relação à Liberdade, que explicito as circunstâncias pessoais que contribuíram para tornar mais caro para mim esse ideal. Creio que devo me orgulhar desse entusiasmo em lugar de me escusar, pois quis dizer desde o início que o grande reproche do imperador Napoleão (1769-1821) contra mim, é o amor e o respeito que sempre tive pela verdadeira Liberdade. Esses sentimentos foram-me transmitidos como uma herança, a partir do momento em que pude refletir acerca dos altos ideais dos quais derivam as belas ações que eles inspiram. As cenas cruéis que desonraram a Revolução Francesa, não sendo mais do que tirania sob modalidade popular, não fizeram esmaecer em mim, creio, o culto à Liberdade. Poderíamos nos desencorajar em relação à França. Mas, se este país tivesse a desgraça de não possuir o mais nobre dos bens, não era necessário por isso proscrevê-lo da terra. Quando o sol desaparece do horizonte dos países do Norte, os habitantes dessas regiões não amaldiçoam os seus raios, que luzem ainda em outros lugares mais felizardos do céu” [Madame de Staël, Dix années d’exil, Edição crítica preparada por Simone Balayé e Mariella Vianello Bonifacio, Paris: Librairie Arthème Fayard, 1996, p. 46].

HENRI-BEJAMIN CONSTANT DE REBECQUE (1767-1830).

Pouco antes de morrer, Benjamin Constant pronunciou o que talvez tenha sido o seu último discurso no Parlamento, em 13 de setembro de 1830. O tema, a liberdade de imprensa, resumia os seus ideais liberais, acalentados ao longo da vida. Eis as suas palavras:

“Senhores, seria inútil destacar, perante homens tão esclarecidos quanto vos, a influência salutar da imprensa. Ela tem sido, ao longo dos últimos dezesseis anos, a nossa única garantia contra um governo opressor (quando podia sê-lo), ou hipócrita (quando não ousava ser opressor). Quando numa Câmara, triste produto de eleições fraudulentas, uma minoria insignificante defendia os direitos da nação, a imprensa, deixada livre por não sei que fatuidade inconsequente de um ministro presunçoso, foi a nossa única salvaguarda. Ela transmitiu as sãs doutrinas até o momento em que a França soube aproveitar uma imprudência inexplicável para quebrar os grilhões por meio de eleições novas. Enfim, depois do ultraje de 8 de agosto, a imprensa foi a única que livrou o combate à morte contra um poder armado de fraude e maquiador do assassinato. E quando os dias de perigo passaram, foi ainda a imprensa que nos precedeu no campo de batalha, atraindo sobre ela, antes que sobre nós, a proscrição e a morte. Ao seu apelo, o povo tem-se armado. Seguindo o povo nós viemos, e a imprensa, o povo e nós temos, em virtude de um triunfo miraculoso, derrotado a tirania. Se nos dermos conta do que é a imprensa, encontraremos este simples caminho: ela é a palavra alargada, é o meio de comunicação no seio do grande número, assim como a palavra é o meio de comunicação entre alguns. Ora, a palavra é o veículo da inteligência e a inteligência é a soberana do mundo material. Tais vantagens colocam-na por cima de quaisquer desvantagens. É necessário, sem dúvida, diminuir os possíveis inconvenientes por meio de boas leis. Mas não se deve jamais sacrificar a imprensa, sem a qual uma nação não é mais do que um agregado de escravos. Com a imprensa, há desordem às vezes. Sem a imprensa, sempre há escravidão. E nessa servidão também há desordem, pois o poder ilimitado vira louco” [Constant de Rebecque, apud Larousse, Pierre, Grand Dictionnaire Universel du XIXe. Siècle. Paris: Larousse, vol. V, 1865: p. 1017].

FRANÇOIS GUIZOT (1787-1874)

Guizot foi o ideólogo e o líder dos Doutrinários, aquela geração liberal que fez a crítica ao absolutismo e que elaborou a proposta liberal-conservadora que desaguou na Revolução de Julho de 1830, que estabeleceu o sistema representativo gerido pela elite liberal, à frente da classe média de empresários e intelectuais, cuja influência se estendeu ao longo do período que vai de 1830 até 1848. A ideia central de Guizot foi a de entender a evolução política europeia ao longo da Idade Média, à luz de uma imagem hegeliana: a luta entre dois princípios opostos que foram os responsáveis pela configuração das instituições modernas ao redor do governo representativo. Os pólos dessa antítese foram constituídos, segundo Guizot, pela Ordem romana e pela Liberdade bárbara. A simbiose desses princípios opostos, sem anulá-los, ensejou o surgimento da Europa Moderna, que foi tipificada por Guizot como uma complexidade ao redor do dístico “Liberdade e Ordem”.

A respeito dessa complexa evolução política e cultural, frisava Guizot na sua História da Civilização Européia (1828): “Duas grandes forças e dois grandes direitos, a Autoridade e a Liberdade, coexistem e se combatem naturalmente no seio das sociedades humanas. No mundo antigo, até na Europa cristã, embora em parte alguma nenhuma delas tenha anulado mais plenamente a outra – que Deus não o permita -, o predomínio, um predomínio resoluto e permanente, tem pertencido sempre a uma ou a outra; as nações tinham vivido tanto sob o jugo quase absoluto da Autoridade, quanto vítimas das contínuas tempestades da Liberdade. O caráter glorioso e original da civilização europeia, desde que se desenvolveu sob a influência evidente ou obscura, aceita ou desconhecida, do Evangelho, tem sido que a Autoridade e a Liberdade tenham vivido e crescido juntas, ombro a ombro, lutando sempre sem jamais reduzir-se mutuamente à impotência, sujeitas ambas a oscilações, a vicissitudes da sorte, que através de uma longa série de séculos têm traçado o destino dos governos e dos povos. A Europa cristã nunca sofreu o império indiscutido de um dos dois princípios rivais; sempre o vencido ficou apto para se defender e com possibilidades de vencer, por sua vez”.

“Enquanto descrevia as origens e o processo da civilização europeia, fiz ressaltar este grande caráter, mais como historiador e não como advogado, sem tomar partido por um ou contra o outro dos dois princípios que presidem simultaneamente esta história. Os escritores que me têm feito o honor de me combater são advogados declarados do princípio de Autoridade e francos adversários do princípio da Liberdade. Eu mudaria de posição e de conduta se procedesse como eles e, para responder, me tornasse advogado do princípio de Liberdade e adversário do princípio de Autoridade. Faltaria à verdade histórica e ao meu próprio pensamento. Não o farei, portanto”.

“Tampouco o farei porque sou daqueles que, passando do estudo a uma cena mais agitada, têm buscado, na ordem política, a harmonia ativa da Autoridade e da Liberdade, a sua harmonia no seio da sua própria luta, de uma luta confessada, pública, contida e regrada numa arena legal. Não foi mais do que um sonho, ou bem é uma dessas grandes e legítimas esperanças da humanidade que custam muito caro e se desvanecem mais de uma vez, no momento em que se crê tocar a meta, mas que no final se realizam quando Deus julga que os homens já pagaram o seu preço? O futuro dir-nos-lo-á. Na espera da sua sentença, insisto em pensar que essa é a boa causa, a causa da civilização cristã e europeia. Comprometo o meu dever e a minha honra em ser-lhe fiel. F. Guizot – Val-Richer” [Guizot, Historia de la civilización en Europa. Prefacio a la sexta Edición. Prólogo: “Guizot y la Historia de la civilización en Europa” de José Ortega y Gasset. Madrid: Alianza Editorial. Coleção “El Libro de Bolsillo”, nº 5, pp. 13-15].

ALEXIS DE TOCQUEVILLE (1805-1859).

Para Tocqueville, O Antigo Regime e a Revolução, publicado em 1856, três anos antes da sua morte, é uma obra de maturidade, onde culmina as suas reflexões sobre a forma em que se consolidou o Antigo Regime na França. Contrasta, no texto escolhido para esta coletânea, o tema da ausência da Liberdade no Antigo Regime, com a defesa incondicional desse Ideal. Tocqueville sabe que a sua vida está em declínio. E decide, nesta obra, abrir espaço para externar a valoração que ele tem da Liberdade, o seu grande Norte. Ouçamos a voz emocionada do nosso autor, na defesa do seu Ideal de vida:

“Alguns hão de acusar-me de mostrar, neste livro, [Tocqueville, O Antigo Regime e a Revolução. Trad. de Yvonne Jean; apresentação de Z. Barbu; introdução de J. P. Mayer. Brasília: Editora da UnB. São Paulo: Hucitec, 1989, pp. 46-47] um gosto muito intempestivo pela Liberdade – a qual, segundo me dizem, é algo com que ninguém mais se preocupa na França. Só pedirei àqueles que me fariam esta censura lembrar-se que esta tendência é muito antiga em mim. Há mais de vinte anos, falando de uma outra sociedade, escrevia quase textualmente o que vão ler aqui”.

“(...) Nestes tipos de sociedades onde nada é fixo, cada um sente-se constantemente aferroado pelo temor de descer e o ardor de subir e como o dinheiro, ao mesmo tempo que lá se tornou a marca principal que classifica e distingue os homens, também adquiriu uma singular mobilidade, passando sem cessar de mãos em mãos, transformando a condição dos indivíduos, elevando ou rebaixando as famílias, quase não há mais ninguém que não tenha de fazer um esforço desesperado e contínuo para conserva-lo ou adquiri-lo. A vontade de enriquecer a qualquer preço, o gosto dos negócios, o amor ao lucro, a procura do bem-estar e dos prazeres materiais lá são portanto as paixões mais comuns. Essas paixões facilmente espalham-se em todas as classes, penetram até naquelas até então mais alheias e conseguiriam rapidamente enervar e degradar a nação inteira se nada viesse pará-las. Ora, faz parte da própria essência do despotismo favorecê-las e espalhá-las. Estas paixões debilitantes ajudam-no, desviam e ocupam a imaginação dos homens mantendo-os longe dos negócios públicos e fazem que a simples ideia de revolução os faça tremer. Só o despotismo pode fornecer-lhes o segredo e a sombra que colocam a cupidez à vontade e permitem angariar lucros desonestos ao desafiar a desonra. Sem ele teriam sido fortes, com ele reinam”.

“Ao contrário, só a Liberdade pode combater eficientemente, nesta espécie de sociedades, os vícios que lhes são inerentes e pará-las no declive onde deslizam. Com efeito, só a Liberdade pode tirar os cidadãos do isolamento no qual a própria independência de sua condição os faz viver para obrigá-los a aproximar-se uns dos outros, animando-os e reunindo-os cada dia pela necessidade de entender-se, de persuadir-se e de agradar-se mutuamente na prática de negócios comuns. Só a Liberdade é capaz de arrancá-los ao culto do dinheiro e aos pequenos aborrecimentos cotidianos de seus negócios particulares, para que percebam e sintam sem cessar a pátria acima e ao lado deles. Só a Liberdade constitui, vez ou outra, o amor do bem-estar por paixões mais enérgicas e elevadas, fornece à ambição objetivos maiores que a aquisição das riquezas e cria a luz que permite enxergar os vícios e as virtudes dos homens”.

“As sociedades democráticas que não são livres podem ser ricas, adornadas e até magníficas e poderosas, graças ao peso de sua massa homogênea; nelas podemos encontrar qualidades privadas, bons pais de família, comerciantes honestos e proprietários dignos de estima; nelas veremos até mesmo bons cristãos, pois a pátria daqueles não é deste mundo e a glória de sua religião é produzi-los no meio da maior corrupção dos costumes e debaixo dos piores governos: o império romano em sua extrema decadência estava repleto deles. Mas o que nunca se verá em sociedades semelhantes, ouso dizê-lo, são grandes cidadãos e principalmente um grande povo, e não tenho medo de afirmar que o nível comum dos corações e dos espíritos não cessará nunca de baixar, enquanto houver união da igualdade e do despotismo”.

“Eis o que eu pensava e dizia há vinte anos. Tenho de confessar que, desde então, nada aconteceu no mundo que me levasse a pensar e falar diferentemente. Tenho demonstrado a boa opinião que eu tinha da Liberdade num tempo em que alcançou o apogeu, não acharão ruim que nela eu persista quando a abandonam”.

“(...) Até os déspotas não negam a excelência da Liberdade. Somente que a querem só para eles e sustentam que todos os outros não são dignos dela. Assim não é sobre a opinião que se deve ter sobre a Liberdade que existem divergências, e sim sobre a maior ou menor estima em que se tem os homens. E é assim que se pode dizer a rigor que o gosto mostrado para o governo absoluto está em relação exata com o desprezo que se tem para com o seu país. Peço que me permitam esperar mais um pouco antes de me converter a este sentimento”.

RUI BARBOSA (1849-1923).

O grande Liberal Rui, como Tocqueville, quer deixar clara a herança que dedicou aos brasileiros. Se por alguma coisa deverá ser lembrado, pensava ele, será pela sua defesa incondicional da Liberdade, que o estimulou à sua gigantesca obra de reflexão acerca do Mundo Jurídico. Ora, este não se entenderia se não houvesse Liberdade. É uma lição simples e definitiva.

“Meu país – frisa Rui nas suas lapidares palavras - conhece o meu credo político, porque o meu credo político está na minha vida inteira. Creio na Liberdade onipotente, criadora das nações robustas; creio na lei, emanação dela, o seu órgão capital, a primeira das suas necessidades; creio que, neste regime, não há poderes soberanos, e soberano é só o direito, interpretado pelos tribunais; creio que a própria soberania popular necessita de limites, e que esses limites vêm a ser as suas Constituições, por ela mesma criadas, nas suas horas de inspiração jurídica, em garantia contra os seus impulsos de paixão desordenada; creio que a República decai, porque se deixou estragar confiando-se ao regime da força; creio que a Federação perecerá, se continuar a não saber acatar e elevar a justiça; porque da justiça nasce a confiança, da confiança a tranqüilidade, da tranqüilidade o trabalho, do trabalho a produção, da produção o crédito, do crédito a opulência, da opulência a respeitabilidade, a duração, o vigor; creio no governo do povo pelo povo; creio, porém, que o governo do povo pelo povo tem a base da sua legitimidade na cultura da inteligência nacional pelo desenvolvimento nacional do ensino, para o qual as maiores liberalidades do tesouro constituíram sempre o mais reprodutivo emprego da riqueza pública; creio na tribuna sem fúrias e na imprensa sem restrições, porque creio no poder da razão e da verdade; creio na moderação [Rui Barbosa, "Resposta a César Zama". Discurso no Senado Federal em 13 de outubro de 1896. Obras Completas de Rui Barbosa, Vol. XXIII, 1896, tomo V, pp. 37-38].

BIBLIOGRAFIA

Barbosa, Rui. "Resposta a César Zama". Discurso no Senado Federal em 13 de outubro de 1896. Obras Completas de Rui Barbosa, Vol. XXIII, 1896, tomo V, pp. 37-38.

Chevallier, Jean-Jacques, Histoire des Institutions et des Regimes Politiques de la France de 1789 à nos jours. 5ª ed. Paris: Dalloz, 1977.

Constant de Rebecque, Henri-Benjamin. Principios de política. (Tradução do francês por Josefa Hernández Alonso; Introdução de José Alvarez Junco). Madrid: Aguilar, 1970.

Guizot, François. Historia de la civilización en Europa. Prefacio de F. Guizot a la sexta Edición. Prólogo: “Guizot y la Historia de la civilización en Europa” de José Ortega y Gasset. Madrid: Alianza Editorial. Coleção “El Libro de Bolsillo”, nº 5.

Larousse, Pierre, “Constant de Rebecque, Henri-Benjamin”, in: Grand Dictionnaire Universel du XIXe. Siècle. Paris: Larousse, vol. V, 1865, pp. 1016-1017.

Locke, John. Dois tratados sobre o governo. Trad. de Júlio Fischer, Introdução de Peter Laslett, São Paulo: Martins Fontes, 1998.

Necker, Jacques. Dernières vues de politique et de finance, offertes à la Nation Française par M. Necker. Paris: Bibliothèque de France, 2 volumes, 1802.

Rousseau, Jean-Jacques, Du Contrat Social, Paris: Garnier / Flammarion, 1966.

Sieyès, Joseph de, Abade. Qué es el Tercer Estado? Trad. espanhola, introdução e notas de F. Ayala. Madrid: Aguilar, 1973.

Staël, Madame de. Dix années d’exil, Edição crítica preparada por Simone Balayé e Mariella Vianello Bonifacio, Paris: Librairie Arthème Fayard, 1996.

Tocqueville, Alexis de. O Antigo Regime e a Revolução. Trad. de Yvonne Jean; apresentação de Z. Barbu; introdução de J. P. Mayer. Brasília: Editora da UnB. São Paulo: Hucitec, 1989.