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O BRASIL DE 2023 À LUZ DAS "LEMBRANÇAS DE 1848" DE TOCQUEVILLE

O BRASIL DE 2023 À LUZ DAS

A REVOLUÇÃO DE 1848 EM PARIS

Nestes tempos instáveis de estatismo socializante em ascensão, vale a pena lembrar o que o grande Alexis de Tocqueville (1805-1859), oito anos antes de morrer, pensava acerca da paulatina derrapada da França em direção ao vazio socialista, que se manifestou na Revolução de 1848 e que pôs fim ao parcimonioso período inaugurado com a Revolução de 1830, que guindou ao poder o Rei Luís Filipe (1773-1850).

A França de 1830 teve de pagar um alto preço histórico pela Revolução, o Terror, o Consulado, a aventura imperial de Napoleão Bonaparte (1769-1821) e a volta dos Bourbons ao poder. O historiador Jean-Louis Bory (1919-1979) destaca o tamanho dos males que sofreu o país com tanta agitação: “No interior dos seus limites reduzidos e super vigiados, vive um povo de aproximadamente 32 milhões de almas (...). Dois milhões a mais do que na véspera da Revolução, mas quanto vazio causado pela desaparição de 530.000 homens das classes ativas, calculadas entre vinte e três e quarenta e quatro anos! Exsangue, em sentido exato: é o preço que custou [à França] a epopeia” [Bory, Jean-Louis. La Révolution de Juillet – 29 Juillet 1830. Paris: Gallimard / NRF, 1972].

Um terremoto destrutor, que foi seguido por um período de pouca tranquilidade com o retorno dos Bourbons ao poder, que se especializaram em sugar os escassos recursos de uma Nação, cujos inimigos, desde o exterior, queriam cobrar os dois milhões de mortos das campanhas napoleônicas. Mas a sociedade francesa buscava um apaziguamento. Esse período de paz correspondeu ao ciclo compreendido entre 1830 e 1848. Quando finalizou esse primeiro armistício em 1848, 18 anos depois, voltaram os tempos agitados e incertos.

O ano é 1848, mês de fevereiro. Ao longo de um inverno particularmente rigoroso, levantes políticos e sociais espalharam-se pela França. A população de Paris sublevou-se no final desse mês, exigindo a abdicação do Rei. Contudo, uma forte reação conservadora impôs-se tanto no Governo como na Assembleia Constituinte. Entre o fim de fevereiro e o mês de junho, milhares de operários fecharam as ruas da capital francesa com inúmeras barricadas. Começava, assim, a primeira revolução socialista dos tempos modernos. A repressão, como era de se esperar, foi sanguinolenta, tendo sido mortas, nos dias seguintes ao levante, aproximadamente cinco mil pessoas.

Em abril de 1848, Tocqueville foi eleito para a Constituinte, a fim de elaborar a nova Constituição, de inspiração republicana. O nosso autor acreditava que a volta da modalidade republicana, com Luís Napoleão (1808-1873), sobrinho de Bonaparte e eleito Presidente da Segunda República em dezembro de 1848, conteria os ânimos exaltados e, embora não alimentasse muitas simpatias pelo príncipe-presidente, decidiu apoiá-lo, junto com o grupo dos liberais moderados. Entre junho e outubro de 1849 Tocqueville desempenhou o cargo de Ministro dos negócios estrangeiros e assumiu a responsabilidade pela expedição militar enviada a Roma para restaurar o poder temporal do Papa Pio IX, Giovanni Maria Mastai-Ferretti (1792-1878).

Lembranças de 1848, foi uma obra escrita por Tocqueville em Sorrento, na Itália (entre dezembro de 1850 e março de 1851). O nosso autor tinha viajado a fim se tratar da tuberculose que o afetava. Isso ocorreu alguns anos antes de falecer, em 16 de abril de 1859, em Cannes. O autor narrou, nas suas Lembranças, o testemunho daquele acontecimento significativo da história da França, tendo reconstituído o drama revolucionário de 1848, do seu ponto de vista de simples cidadão, deputado e ex-Ministro de assuntos estrangeiros da Segunda República, que seguiu ao regime iniciado com a Revolução de Julho de 1830 e que instaurou a Monarquia liberal. Esse Governo se prolongou durante quase duas décadas, até 1848, sob a chefia, no Ministério, de François Guizot (1787-1874), expoente mais importante dos filósofos doutrinários [cf. Tocqueville, Souvenirs d´Alexis de Tocqueville. Introdução de Luc Monnier, Paris: NRF / Gallimard, 1942].

Com total desassombro e estimulado pela decisão de narrar, para as gerações futuras, os acontecimentos que testemunhou e com o compromisso inabalável de dar fiel testemunho dos fatos e da forma em que, na sua cabeça de sociólogo, se passaram as coisas, o nosso autor identificou as causas e as consequências da Revolução de 48, descrevendo os personagens com os seus vícios e virtudes.

Tocqueville nos legou um quadro complexo dos conflituosos eventos que se passaram no seio do Governo e do Parlamento em 1848, mas a sua análise se estende, igualmente, ao período anterior, em que sobressaíram os chamados “doutrinários” (entre 1830 e 1848), sob a batuta de François Guizot, cérebro do regime e primeiro-ministro. O autor não somente descreveu os fatos ocorridos, como também mergulhou na indagação do que motivou o conjunto de ações e reações que ensejaram a Revolução de 1848, tendo como única finalidade alertar as futuras gerações para a forma em que os socialistas, em luta com os liberais moderados (deputados parlamentares do grupo de Tocqueville) tentaram se apropriar do poder, em meio à insatisfação geral.

O narrador tem um único norte: o seu compromisso cidadão para com as gerações vindouras. Tocqueville nos apresenta, assim, um complexo quadro das inúmeras rixas ocorridas entre as facções em luta, ao longo do regime burguês presidido por Guizot, aprofundando nos motivos que levaram os diversos personagens a agirem e ressaltando, numa descrição vívida, as contradições entre o que os indivíduos pretendiam e o que de fato aconteceu. A narrativa tocquevilliana é, assim, teatral, como frisa o editor da versão brasileira da obra, o professor Renato Janine Ribeiro (1949-), sendo encenada sobre um pano de fundo de análise sociológica, que revela a complexidade de motivos e fatos, aparentemente contraditórios, sempre tentando encontrar os fios que comunicam esses “rios profundos”, que se escondem no fundo de um evento revolucionário, como dizia o historiador boliviano Alcides Arguedas (1879-1946).

Uma anotação psicológica: Alexis de Tocqueville, seriamente doente, vê que seus dias se aproximam do fim. Decide, então, como se diz vulgarmente, “chutar o pau da barraca” e descrever a política francesa como ela é, sem subterfúgios nem temores. Vale a pena citar, para apreender esse contexto psicológico e moral, as palavras dos dois primeiros parágrafos de Lembranças de 1848: “Momentaneamente afastado do teatro das atividades – frisa Tocqueville - e não podendo também me dedicar a nenhum estudo continuado, em virtude do precário estado de minha saúde, vejo-me na solidão reduzido a refletir por um instante sobre mim, ou melhor, a encarar os acontecimentos contemporâneos nos quais fui ator ou dos quais fui testemunha. Parece-me que o melhor emprego que posso fazer de meu ócio é reconstituir esses acontecimentos, descrever os homens que deles vi participar e assim clarificar em minha memória, na medida do possível, os traços confusos que formaram a fisionomia indecisa do meu tempo”.

“Ao tomar essa resolução, – prossegue Tocqueville – também tomei uma outra à qual não serei menos fiel: as lembranças serão um descanso ao meu espírito, não uma obra literária. Serão reconstituídas para mim, exclusivamente. O escrito será um espelho no qual me distrairei olhando meus contemporâneos e a mim, não um quadro destinado ao público. Meus melhores amigos dele não terão conhecimento, pois quero conservar a liberdade de descrever sem lisonja tanto a mim quanto a eles. Quero compreender e revelar sinceramente os motivos que nos fizeram agir, a mim e aos outros – e, para que a expressão das palavras seja sincera, é necessário que a obra permaneça inteiramente secreta” [Tocqueville, Lembranças de 1848 – As jornadas revolucionárias em Paris. Trad. de Modesto Florenzano, Introd. de Renato J. Ribeiro, Prefácio de Fernand Braudel. São Paulo: Penguin / Companhia das Letras, 2011, p. 41].

Feito esse esclarecimento acerca do ponto de vista em que se sitúa o autor para contar a história da Revolução de 1848, Tocqueville delimita estritamente o espaço de tempo por ele pesquisado: “Não é meu propósito – frisa – fazer com que as minhas lembranças remontem além da Revolução de 1848, nem trazê-las aquém da minha saída do ministério, em 30 de outubro de 1849. É somente dentro desse período que os fatos a ser descritos têm alguma relevância, ou que minha posição permitiu observá-los bem” [Tocqueville, Lembranças de 1848, ob. cit.: 42].

Tocqueville inspirou-se, para os textos acima citados, nas Rêveries du promeneur solitaire de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), (Lembranças do caminhante solitário), mais exatamente no começo da obra, no capítulo intitulado: “Primeiro passeio”. A propósito, frisa o editor brasileiro da obra, Renato Janine Ribeiro: “O filósofo, banido do convívio social, afirma – com uma amargura que não vemos em Tocqueville – que está sozinho na Terra, não tendo sociedade nem amigos e que o único que lhe resta é escrever um ‘informe diário dos seus devaneios’, do qual ninguém mais terá conhecimento, e que será como um espelho da sua alma” [Ribeiro, Renato Janine, “Notas”, in: Tocqueville, Lembranças de 1848, ob. cit.: 358].

A seguir, frisa o editor: “As semelhanças permitem ressaltar as divergências. Tocqueville tem ainda amigos; não narra devaneios, mas sua experiência de ator político; o espelho será o da sociedade. Finalmente, há enorme diferença entre o Rousseau pobre que trilha os campos a ‘aplicar o barômetro à sua alma’, e o nobre que se vale do ócio para refletir; do otium no sentido forte do termo, o lazer dedicado ao pensamento, à vida contemplativa, em contraste com a vida ativa, ou o negotium, quando nos consagramos aos afazeres públicos. Tendo cumprido seu quinhão nos negócios da sociedade, até como ministro, Tocqueville agora pode meditar sobre eles e ela – um tanto como Maquiavel (1469-1527), quando, exilado de Florença, compunha O príncipe” [Ribeiro, Renato Janine, “Notas”, apud Tocqueville, Lembranças de 1848, ob. cit.: 358].

Destaquemos, com o historiador francês Fernand Braudel (1902-1985), no Prefácio da obra: “(...) Tocqueville tem o sentido agudo das realidades sociais, observa-as, esforça-se por explicá-las. Deve-se qualificar, sem hesitar, este sentido agudo do sociológico, mas é a experiência histórica que o acompanha e o conduz. Sociologia e história são, em Tocqueville, uma única e mesma maneira de observar a sociedade, e o prazer que sentimos em lê-lo deve-se, por um lado, à aliança de um pensamento tão próximo do nosso com uma linguagem antiga, tão estranha aos clichês do nosso tempo. A expressão que emprega – a guerra ou o combate de classes – tem uma ressonância curiosa; (...) mas a política interessa bem menos a Tocqueville do que a sociedade, que em seu conjunto ele percebe como uma realidade subjacente à realidade política, como ‘fundamento da vida política’. Pois, quando os revolucionários visam a sociedade, eles dirigem, aos olhos de Tocqueville, seus ataques ‘mais embaixo do que ao governo’. (...). Bem entendido, como todo sociólogo, Tocqueville pergunta-se, sem responder, se há ‘leis imutáveis que constituem a própria sociedade’. Mas quem, hoje, responderia a esta questão embaraçosa? Em todo caso, essa realidade social subjacente comanda, aos seus olhos, os fenômenos da superfície (...).” [Braudel, Fernand, Prefácio – escrito em 1977 -, apud Tocqueville, Lembranças de 1848, ob. cit.: 24. Palavras em itálico destacadas por mim].

Sintetizarei o que me parece essencial na obra, especialmente no capítulo intitulado por Tocqueville: “Origem e caráter das lembranças. Fisionomia geral da época que precedeu à Revolução de 1848. Sinais precursores da Revolução” [Tocqueville, Lembranças de 1848, ob. cit.: 42]. Destacarei dois grandes pontos: I - Tocqueville e 1848. II - Reflexões, à luz de Tocqueville, acerca do Brasil atual.

No relacionado ao primeiro ponto, desenvolverei seis itens: 1 – O triunfo da Classe Média na Revolução de Julho de 1830. 2 - A política tout-court, certamente, interessava pouco a Tocqueville, mais preocupado em encontrar os elos de ligação entre a riqueza e a sociedade. 3 - Na França, segundo Tocqueville, “um governo erra sempre, ao tomar como seu único ponto de apoio os interesses exclusivos e as paixões egoístas de apenas uma classe”. 4 – O rei Luís Filipe (1773-1850) ajudou a agravar as coisas, reforçando a pendente da perda do sentido moral da classe dirigente, a Burguesia. 5 – A tendência de Luís Filipe para a mediocridade e para tornar refém a Burguesia, acelerou o processo de corrupção da classe dirigente. 6 – Tocqueville, “profeta da liberdade” no seu tempo: somente poderemos ser livres se lutarmos corajosamente contra os que pretendem “comprar” a nossa faculdade de ir e vir e de decidir.

Já no que tange ao segundo ponto, desenvolverei algumas reflexões sobre o Brasil atual, à luz do pensamento de Tocqueville.

I - TOCQUEVILLE E 1848.

1 – O triunfo da Classe Média na Revolução de Julho de 1830.

Tocqueville explica a Revolução de 1830 “pelo advento e ‘triunfo da classe média’, de ‘seu espírito ativo, industrioso, frequentemente desonesto’.” Assim, frisa o nosso autor, “ela (a classe média) não só se tornou a única dirigente da sociedade, mas também se converteu em sua arrendatária. Alojou-se em todos os cargos, aumentou prodigiosamente seu número e habituou-se a viver quase tanto do tesouro público quanto de sua própria indústria. De onde [proveio] uma exploração abusiva, destruidora, por fim, do equilíbrio mesmo da sociedade e do seu próprio privilégio” [Tocqueville, apud Braudel, Fernand, “Prefácio”, Lembranças de 1848, ob. cit.: 25].

Mais adiante, para caracterizar as relações entre os interesses da classe média e a Revolução socialista, frisa Tocqueville: “Dona de tudo, como não tinha sido e não será talvez jamais nenhuma aristocracia, a classe média, que precisa ser chamada de classe governamental, tendo-se aquartelado no poder e logo depois em seu egoísmo, adquiriu um ar de indústria privada, onde cada um de seus membros quase só pensava em assuntos públicos para canalizá-los em benefício de seus interesses privados, esquecendo facilmente, em seu pequeno bem-estar, as pessoas do povo” [Tocqueville, Lembranças de 1848, ob. cit.: 43]. Parece como se Tocqueville descrevesse a nossa capacidade de nos isolarmos do mundo e da sorte dos nossos semelhantes, para somente auferirmos as vantagens que nos oferece o Estado Patrimonial, cujos dirigentes gerenciam o bem público como privado, se apropriando inescrupulosamente daquele para nos cooptar.

Houve, pois, uma contradição: a classe média, geradora de riqueza e dona da livre iniciativa, terminou se tornando caudatária das riquezas do Estado, para as quais contribuíam os burgueses com o seu trabalho e a sua independência. Ora, essa contaminação “com as riquezas do Estado” constituiu o vírus que fez amolecer a ética do trabalho da classe média dirigente e que abriu a porta para os socialistas, amigos, antes de mais nada, dos dinheiros públicos.

Fosse nos dias de hoje, diríamos que os empresários brasileiros – como outrora os franceses - enfraqueceram o seu poder de barganha ao se aliarem ao Centrão, regiamente alimentado com os recursos do Tesouro que financia os Partidos Políticos, com a incrível soma de 5,8 bilhões de reais e com as “emendas parlamentares”, que multiplicam pelo menos por 10 o montante do já bilionário fundo partidário a serviço dos cooptados. Na França de Tocqueville, a burocracia estatizante, insensivelmente, passou a governar em benefício dela própria, cada vez mais dependente e corrompida pelos estamentos que administravam o Tesouro. A pergunta que surge espontaneamente seria a seguinte: “Não seria esse um caso similar ao que acontece, hoje em dia, na sociedade brasileira?”

2 - A política tout-court, certamente, interessava pouco a Tocqueville, mais preocupado em encontrar os elos de ligação entre a riqueza e a sociedade.

“A política, frisa Fernand Braudel, interessa bem menos a Tocqueville do que a sociedade, que em seu conjunto ele percebe como uma realidade subjacente à realidade política, como ‘fundamento da vida política’. Pois, quando os revolucionários visam a sociedade, eles dirigem, aos olhos de Tocqueville, seus ataques ‘mais embaixo do que ao governo’. (...). Em todo caso, essa realidade social subjacente comanda, aos seus olhos, os fenômenos da superfície. Assim, como explicar a Monarquia de Julho, em outras palavras, as sequências da Revolução de 1830, senão pelo advento e ‘triunfo da classe média’, de ‘seu espírito ativo, industrioso, frequentemente desonesto’? Assim, ela não só se tornou a única dirigente da sociedade, mas também se converteu em sua arrendatária. Alojou-se em todos os cargos, aumentou prodigiosamente seu número e habituou-se a viver quase tanto do tesouro público quanto de sua própria indústria. De onde uma explosão abusiva, destruidora, por fim, do equilíbrio mesmo da sociedade e do seu próprio privilégio” [Braudel, Fernand. “Prefácio”, apud Tocqueville, Lembranças de 1848, ob. cit.: 25].

Em face desse fenômeno de ocupação, pela classe média, de todos os espaços políticos, Tocqueville frisa: “Esses vícios derivavam dos instintos naturais da classe dominante (...). [Mas] o rei Luís Filipe muito contribuiu para reforçar tais vícios; foi o acidente que tornou a enfermidade mortal” [Tocqueville, apud Braudel, “Prefácio”, Lembranças de 1948, ob. cit.: 25]. A propósito deste ponto, frisa Braudel: “Tocqueville liga assim a responsabilidade do rei com as responsabilidades da burguesia e é nesse sentido profundo que esboça, se eu forço o seu pensamento, uma teoria da explosão das revoluções (...)”.

3 - Na França, segundo Tocqueville, “um governo erra sempre, ao tomar como seu único ponto de apoio, os interesses exclusivos e as paixões egoístas de apenas uma classe”.

 No caso da crise enfrentada pela burguesia em 1848, destaca Tocqueville, “os abusos, a irresponsabilidade da classe privilegiada, sua falência moral preparariam as catástrofes”. A propósito, frisa Braudel: “Foi assim que agiu a antiga aristocracia francesa (...). Será este o mal francês permanente? Em todo caso é ‘uma reflexão que com muita frequência apresentou-se ao meu espírito’, confia-nos Tocqueville. Viva então a Inglaterra ´o único país do mundo onde a aristocracia continua a governar’.” [Tocqueville, apud Braudel, Fernando. “Prefácio”, in: Tocqueville, Lembranças de 1848, ob. cit.: 25-26. Palavras colocadas em itálico pelo autor].

4 – O rei Luís Filipe ajudou a agravar as coisas, reforçando a pendente da perda do sentido moral da classe dirigente, a Burguesia.

O soberano, segundo Tocqueville, só possuía uma virtude: a coragem. “Não gostava das letras ou das belas-artes, mas amava a indústria com paixão (...). Esclarecido, fino, flexível e tenaz, voltava-se somente para o útil e era dominado por um desprezo tão profundo pela verdade, que suas luzes estavam obscurecidas (...); conhecia profundamente os homens, mas apenas por seus vícios. (...). Seu amor pelo poder e pelos cortesãos pouco honestos era tão natural que parecia ter-se originado no trono. (...). Chefe da burguesia, solidificou o que não passava de uma propensão natural dessa classe; seus vícios casaram-se em família e essa união, que a princípio constituía a força de uma das partes, resultou na desmoralização da outra e acabou por arruinar as duas” [Tocqueville, Lembranças de 1848, ob. cit.: 44-45].

5 – A tendência de Luís Filipe para a mediocridade e para tornar refém a Burguesia, acelerou o processo de corrupção da classe dirigente.

Ora, o rei somente buscava uma coisa: a satisfação imediata do seu utilitarismo e a vaidade que ele confundia com o bem-estar pessoal. A burguesia, com a cooptação dela pelo trono, se nivelou por baixo. O rei confidenciou a Tocqueville que, apesar das brigas com a sua mulher e dos casamentos de familiares com esposas espanholas, que instalaram a confusão no seu círculo íntimo, conseguia “mener mon fiacre” (“conduzir a minha carruagem”). Tocqueville, ironicamente, escreve: “Creio de resto que Luís Filipe enganara-se e, para dizer em sua própria linguagem, penso que os matrimônios espanhóis muito contribuíram para ‘verser son fiacre’” (“fazer capotar a sua carruagem”) [Tocqueville, Lembranças de 1848, ob. cit.: 46, palavras em itálico destacadas por Tocqueville].

O Parlamento fechou-se na luta em prol de manter os seus privilégios, abrindo mão das discussões substantivas em torno aos problemas da Nação. A respeito, Tocqueville afirma: “Nesse mundo político assim composto e conduzido, o que mais faltava, sobretudo no período final, era a vida política propriamente dita. Ela não podia nascer nem se manter no círculo legal que a Constituição havia traçado; a antiga aristocracia estava vencida, o povo estava excluído. Como todos os assuntos eram tratados entre os membros de uma só classe, segundo seus interesses e seu ponto de vista, não se podia encontrar um campo de batalha onde os grandes partidos pudessem guerrear. Essa singular homogeneidade de posição, de interesse e consequentemente de visão, que reinava naquilo que monsieur Guizot tinha chamado de ‘o país legal’, tirava dos debates parlamentares toda originalidade e toda realidade; portanto, toda paixão verdadeira. Passei dez anos de minha vida na companhia de grandes talentos que se agitavam incessantemente sem poder inflamar-se, empregando toda a sua perspicácia em descobrir motivos de graves dissentimentos sem encontrá-los” [Tocqueville, Lembranças de 1848, ob. cit.: 47].

1848 revela, segundo Tocqueville, o lânguido fim de uma época em que foi conquistada a estabilidade com um alto preço: o aviltamento do Parlamento e da Representação. Havia grandiosidade na rotina e nas formas, mas eram apenas aparências. Uma cena tão falsa quanto aquela de Pedro o Grande (1672-1725) inaugurando em 27 de maio de 1703 a nova cidade de São Petersburgo, construída em prazo exíguo com a férrea ajuda do seu amigo favorito, Alexandre Menchikov (1673-1729), mas ostentando uma riqueza que não existia. Os sofridos camponeses arregimentados para a obra foram obrigados a confeccionar, em madeira, multicoloridas e lindas fachadas que não passavam de tapumes, ricamente desenhados. Passada a festa da inauguração da cidade, o Czar voltou para Moscou e os trabalhadores tiveram de desmantelar o set da representação, em questão de dias. São Petersburgo voltava a ser o que era: um conjunto de fachadas erguidas sobre terras lamacentas e inóspitas. Somente décadas depois a cidade se tornaria o que hoje é, uma bela urbe, a mais ocidentalizada do Império russo.

6 – Tocqueville, “profeta da liberdade” no seu tempo: somente poderemos ser livres se lutarmos, corajosamente, contra os que pretendem “comprar” a nossa faculdade de ir e vir, de falar, de escrever e de decidir.

Tocqueville pensava que, em tempos de revolução, como os que encarava a França em 1848, o dever cívico consistia em cada um ficar no seu lugar e, desde ali, prestar um serviço à sociedade, fazendo o correto na vida profissional e sendo solidário com os seus concidadãos, alertando-os para o risco da perda definitiva da liberdade sob o poder dos socialistas e participando, ativamente, das organizações cívicas que lutassem pela sua própria dignidade.

Foi o que aconteceu no memorável 24 de fevereiro de 1848, data em que se deu a abdicação de Luís Filipe. Nesse momento, embora tivesse sido tomada às pressas, pelos liberais moderados, a decisão de dar continuidade à Monarquia, entregando o poder, como regente, à Duquesa de Orléans (1814-1858), mãe do herdeiro do trono, o Duque de Nemours (1838-1894) que contava apenas com 10 anos de idade, a assembléia pretendia garantir a representação da sociedade no Parlamento, a fim de frear a crescente agitação das ruas. A maré revolucionária conduzida pelos socialistas, no entanto, invadiu, armada, a assembléia, colocando em risco a integridade física da Duquesa e do Duque. Eles terminaram sendo expulsos do recinto parlamentar. O Parlamento foi dissolvido e os revolucionários escolheram o novo gabinete. Estava consumada a Revolução de 1848. Lembrando esses fatos, Tocqueville escreveu: “Em um motim, tal qual em um romance, o mais difícil é inventar o final” [Tocqueville, Lembranças de 1848, ob. cit.: 95].

A respeito da atitude tomada por Tocqueville, o autor das Lembranças dá o seguinte testemunho acerca da sua decisão de permanecer no seu lugar no Parlamento: “Depois de ter observado por um instante esta sessão extraordinária, apressei-me em ocupar meu lugar costumeiro nos bancos altos do centro esquerdo; sempre tive por máxima que, em momentos de crise, não só é necessário estar presente na assembléia da qual se faz parte, como também é preciso manter-se no lugar onde habitualmente se é visto” [Tocqueville, Lembranças de 1848, ob. cit., p. 88]. No instante em que a multidão popular, armada e enfurecida, colocou em risco a integridade dos Duques, o próprio Tocqueville abandonou a sua cadeira parlamentar e se precipitou em direção à porta por onde tinham saído, a fim de garantir a sua fuga. O nosso autor não deixou de registrar a sua compaixão para com a princesa. A respeito, frisa: “Confesso que a única coisa que verdadeiramente me emocionou em toda a jornada foi a visão daquela mulher e daquele menino sobre os quais recaía todo o peso de faltas que não haviam cometido. Muitas vezes, considerei com compaixão a princesa estrangeira (era alemã) jogada no centro de nossas discórdias civis; quando fugiu, a lembrança dos seus olhares tristes, doces e firmes, que eu vira passeando pela Assembléia durante aquela longa sessão, voltou vivamente à minha memória; senti-me tão cheio de compaixão ao pensar no perigo que iria acompanhar sua fuga que me levantei de repente e lancei-me em direção ao ponto em que acreditei (segundo os conhecimentos que tinha sobre os lugares) terem ido buscar asilo, abri caminho por entre a multidão, atravessei a sala de conferências, passei pelo vestiário e cheguei até a escada secreta que leva do postigo da rua de Bourgogne ao sótão do Palácio” [Tocqueville, Lembranças de 1848, ob. cit.: 93-94].

Tocqueville conclui seu relato com a seguinte observação acerca do caráter da duquesa: “Havia presenciado sua chegada ao trono com desgosto e, se colaborara fielmente para mantê-la, fizera-o visando o interesse público e não por afeição. A meus olhos, essa família só possuía um único atrativo: o dos grandes infortúnios” [Tocqueville, Lembranças de 1848, ob. cit.: 94].

II - REFLEXÕES, À LUZ DE TOCQUEVILLE, ACERCA DO BRASIL ATUAL

Neste segundo ponto analisarei, à luz do pensamento de Tocqueville nas suas Lembranças de 1848, alguns aspectos relativos à situação política do Brasil em 2023.

A Monarquia de Julho, para Tocqueville, se exauriu. “Alguns fatos ruidosos de corrupção descobertos ao acaso – destaca o nosso autor - haviam alertado a nação de que outros escondidos existiriam por toda parte, convencendo-a de que toda a classe governante estava corrompida e inspirando-lhe por essa classe um desprezo tranquilo, o qual era tomado como uma submissão confiante e satisfeita. O país estava dividido em duas partes, ou melhor, em duas zonas desiguais. Na de cima, que era a única que devia conter toda a vida política da nação reinavam a languidez, a impotência, a imobilidade, o tédio; na de baixo, ao contrário, a vida política começava a manifestar-se por sintomas febris e irregulares, que o observador atento podia captar com facilidade. Eu era - frisa Tocqueville - um desses observadores e, embora não imaginasse que a catástrofe estivesse tão próxima e pudesse ser tão terrível, sentia a inquietude nascer e crescer pouco a pouco em meu espírito e nele se enraizar, cada vez mais, a ideia de que caminhávamos em direção a uma nova revolução. Esse fato marcou uma grande mudança em meu pensamento, pois o apaziguamento e a placidez universais, que se haviam seguido à Revolução de Julho, tinham-me feito acreditar, durante longo tempo, que estava destinado a passar a minha vida em uma sociedade entorpecida e tranquila (...). [Tocqueville, Lembranças de 1848. Ob. cit.: 48-49].

Conclusão semelhante podemos tirar acerca da máscara com que ocultou o rosto a República Federativa do Brasil, que deveria ter-se originado no voto dos cidadãos e que, entre 2020 e 2023, tornou-se um remedo republicano, surgido a partir de um novo centro de poder emergente da própria estrutura burocrática do Estado Patrimonial.

Tal novo centro passou a girar ao redor da Magistratura, alçada à vaporosa entidade de um novo “Poder Moderador”, integrado pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Tribunal Superior Eleitoral. Tudo se fundamentou na crença explicitada por um dos Ministros do STF, de que o papel da Magistratura deveria consistir em “formatar a sociedade brasileira” à maneira pombalina, fortalecendo a força, supostamente todo-poderosa, do novo “Poder Moderador”, a serviço das pretensões vingativas e megalomaníacas do ex-presidente Lula, “descondenado dos seus crimes” pelo STF e eleito presidente com apoio da máquina eleitoral.

A nova política de retorno ao passado começou pelo desmonte da “Operação Lava-Jato”, que tinha colocado na cadeia grandes empresários e políticos corruptos que roubaram dinheiros do Tesouro, apoiados pelo então Presidente, Lula, no seu segundo mandato. Ora, a verdade é que a Lava-Jato fundamentou-se em processos guiados rigorosamente pela legislação em vigor e com total respeito pelas normas jurídicas estabelecidas.

A operação “desmonte” da Lava-Jato foi rápida, tirou logo Lula da cadeia e passou a conceder benesses aos antigos empresários condenados por corrupção, com a devolução dos dinheiros furtados. Tratou-se, sem sombra de dúvidas, de uma versão macunaímica do fim da Operação “Mãos Limpas” da Itália. No Brasil, não houve generais assassinados pela máfia a serviço dos corruptos, como ocorreu na Itália. Mas a corrupção das instituições republicanas, no Brasil, serviu como caldo de cultura para os causídicos traçarem o itinerário pacientemente programado nas instâncias dos altos escalões da Magistratura, em acordo vergonhoso com o ex-presidente Lula. A nova proposta de governança, além do espírito pombalino, louvava-se da proposta do sociólogo Oliveira Vianna (1883-1951), apresentada ao presidente Getúlio Vargas (1883-1954) na última fase da sua vida política, com a proposta de criação de um Conselho Nacional, que faria as vezes de Poder Moderador, a ser integrado por Magistrados das altas Cortes e por alguns parlamentares especialmente escolhidos pelo Executivo [cf. da minha autoria, Oliveira Vianna e o papel modernizador do Estado brasileiro, Londrina: Editora da Universidade de Londrina, 1997: 196-200].

Essa reação que sepultou a Lava Jato, passou a obstaculizar, de forma progressiva, o governo do Presidente Bolsonaro legitimamente eleito em 2018, judicializando todas as suas decisões, de forma a sabotar uma administração liberal-conservadora que tinha emergido da vontade popular, apesar da criminosa intervenção para anulá-la com a tentativa de assassinato de que foi vítima o novo Presidente, às vésperas do segundo turno que o elegeu. Bolsonaro, alcunhado injustamente de “nazista” pela grande imprensa nacional e internacional, conseguiu, já no poder, colocar a economia em ordem e diminuir o tamanho do Estado, aproximando a máquina pública da sociedade, acendendo um raio de esperança de que a República passasse a ser o instrumento da cidadania para o seu desenvolvimento.

Destaquemos que nos pleitos eleitorais para prefeituras e corpos legislativos locais, realizados durante o mandato de Bolsonaro, houve um aumento significativo de prefeitos e vereadores alinhados com o então Presidente. Já nas eleições gerais de fim de 2022, houve um crescimento expressivo do número de senadores e deputados federais partidários de Bolsonaro.

O novo “Poder Moderador” fez tudo menos moderar, negando acintosamente a essência de tal Centro de Moderação, extinto com a queda do Império em 15 de novembro de 1889, sob uma modalidade de dominação inspirada na “ditadura científica”, apregoada pelos Positivistas. As sucessivas crises pelas que tem passado a República brasileira ao longo dos seus 134 anos de vida, provieram do abandono da sadia tradição liberal-conservadora que deu ensejo ao Império, com a estabilidade que os Historiadores ressaltam, num Continente em que prevaleceram, ao longo dos séculos XIX e XX, regimes caudilhistas inspirados na filosofia de Rousseau (1712-1778), que fizeram pipocar o enorme Império espanhol numa colcha de retalhos, cuja essência se confunde com a instabilidade institucional típica da América Latina.

As façanhas protagonizadas pelo novo “Poder Moderador” ensejado pela elevação do STF-TSE a centro do governo consistiram, em primeiro lugar, na “descondenação” de Luís Inácio Lula da Silva de sua condição de presidiário (condenado por corrupção e enriquecimento ilícito), para se tornar candidato presidencial da frente unida das esquerdas e que, graças à “engenharia política” das urnas eletrônicas, foi guindado ao poder da Presidência. A voz dos que clamavam para que houvesse um reforço do sistema eleitoral, no qual constasse o voto impresso como garantia de lisura do voto eletrônico, foi violentamente calada pela Magistratura, com multas e prisões dos “suspeitos”. Sem dúvida que nesse “novo pacto” republicano, teve papel de destaque o Partido da Social-Democracia Brasileira chefiado por Fernando Henrique Cardoso (1931-), concretizando a chamada por Robert Dahl (1915-2014) de “tentação social-democrata” (com o abandono, pelos social-democratas, da inspiração liberal e com a sua substituição por uma forma de socialismo autoritário) [cf. Paim, Antônio, “A tentação social-democrata”, Carta Mensal, Rio de Janeiro – Confederação Nacional do Comércio, Volume 37, Número 429]. Para os que duvidam dos descaminhos tucanos, a figura de um importante membro do PSDB, convertido na campanha em militante de um partido de esquerda, Geraldo Alkmin (1952-), hoje vice-presidente de Lula, diz tudo.

Seis messes se passaram após a posse do presidente Lula, sendo os fatos que mais se destacam na sua gestão, as caríssimas viagens internacionais do casal presidencial (no que vai corrido do ano já vão para mais de quatro “tournées” com centenas de convidados pagos pelo Tesouro Nacional e com pedidos da primeira dama para a aquisição, pela Presidência da República, de "um avião mais confortável" em substituição ao ainda novo Airbus que serve ao Palácio do Planalto). É evidente o descontrole sobre os gastos públicos (tendo o atual governo furado o teto de gastos previsto pela legislação em vigor), com a retórica populista dos discursos presidenciais que prega, aos quatro ventos, que o atual governo é cem por cento democrata, defendendo ditadores latino-americanos, a começar por Cuba e exaltando regimes como os da Venezuela e da Nicarágua. Não podemos esquecer, nesta anámnese das “conquistas” de Lula, o alinhamento internacional do Brasil com as potências de esquerda do antigo mundo comunista, onde prevaleceu o agigantamento descontrolado do Estado sobre a sociedade (Rússia e China).

Deve-se recordar, também, dentre os “feitos” do atual governo, a “solidariedade” presidencial para com governos autoritários de esquerda vizinhos do Brasil, como a Argentina e a Venezuela, e a crise da representação, substituída por um proceso geral de cooptação do Executivo sobre os parlamentares, tendo sido engrossado o chamado “Centrão” ao redor da defesa dos interesses patrimonialistas da Presidência da República e da sua coorte esquerdizante. De outro lado, congressistas dos Partidos de oposição, eleitos por milhões de cidadãos, vão sendo condenados pela mais alta corte, STF-TSE, à perda dos seus mandatos e, alguns deles, à prisão, pelo delito de “fazer oposição”. Como se fosse pouco, Lula deixou claro o seu desprezo pela Ucrânia, tendo impedido que o Brasil a ajudasse militarmente, mediante o envio de blindados para auxílio humanitário e munições. Foi clara a opção do presidente brasileiro, nesse conflito, se colocando ao lado do país agressor, a Rússia e contra as potências ocidentais, alinhadas na OTAN. 

Voltando à nossa realidade, o atual presidente ignorou o respeito devido ao Congresso, presidindo vergonhosamente o movimento em prol da cassação do mandato do novo deputado pelo Paraná, Deltan Dallagnol, o mais votado no seu Estado de origem. O ódio do governo Lula para com esse deputado decorre da sua participação na Operação Lava-Jato e das críticas feitas à ausência de espírito democrático do atual ocupante do  Planalto. “Por que o governo do ‘ditadura nunca mais’ não faz coro às vozes que clamam por democracia em toda a América Latina?” – perguntava, em recente artigo, Deltan Dallagnol – e respondia: “A explicação para o silêncio de Lula é simples: democracia é admitida pelo lulismo como um meio, quando é útil, para os fins da esquerda, que admite igualmente meios antidemocráticos para os mesmos fins. O apoio às ditaduras de esquerda é coerente com as ações e projetos do lulismo no Brasil” [Deltan Dallagnol, “Maduro, Ortega e as ditaduras de Lula”. Gazeta do Povo, Curitiba, 01-06-2023].

As sombras dos algozes se aproximam lentamente do senador Sérgio Moro, o corajoso ex-juiz e hoje Senador, que condenou Lula por enriquecimento ilícito. Já são vários os jornalistas condenados por “delito de opinião”, com emissoras de rádio e TV obrigadas a sair do ar ou a suprimir programas de informação política; são vários também os jornalistas desmonetizados e punidos com o fechamento das suas redes, ou com o exílio de fato, pelo crime de emitir comentários críticos ao governo. Nem os empresários escaparam: estão sendo julgados e certamente serão punidos, alguns deles que, em conversas privadas pelo Whattsapp, se pronunciaram contra Lula.

 De outro lado, as grandes reformas do Estado (como a tributária) têm sido colocadas pelos representantes do governo à serviço do presidente e do seu partido, enfraquecendo o papel do Parlamento na integração do novo Conselho Federativo, que aplicará uma “mais justa” distribuição dos dinheiros públicos entre os entes federativos, privilegiando aqueles que, como os do Nordeste, fecham com Lula. Uma reedição desavergonhada do famoso “Pacote de Abril de 1977” do general Ernesto Geisel (1907-1996). Deve ser mencionada, também, a tentativa bem-sucedida do governo de cooptar os comandantes das Forças Armadas. Os militares de carreira já são obrigados a participar de uma nova onda de formação estratégica, à sombra da “colaboração técnica” com os comunistas chineses.

Por outra parte, devemos recordar a retórica esquerdizante do presidente na recente reunião do Foro de São Paulo, que alinhou o atual ocupante do Palácio do Planalto como seguidor do comunismo; (Lula declarou, nessa oportunidade que “não me incomoda ser chamado de comunista”). Duas semanas depois, o atual presidente não teve dificuldade para dizer, simplesmente, que era comunista e que ia implantar essa modalidade de governo no país. Devemos recordar, também, a obediência cega, à margem da lei, do “Poder Moderador” da Magistratura, aos mínimos desejos do presidente. Não podemos esquecer a crise da segurança pública, após a cooptação do crime organizado (com o STF proibindo às polícias de entrar nas favelas) e com decisões malucas do Supremo que favorecem grandes narcotraficantes (que têm recebido de volta os narcóticos apreendidos pela polícia) e com a liberação de vários deles, que tinham sido condenados pela prática de narcotráfico internacional. 

Parece como se o atual presidente planejasse cooptar o crime organizado, através dos benefícios que facções, como o PCC, vêm recebendo. Essa tolerância extrema com os mercadores da morte, levou, nos últimos meses, a um reforço significativo da presença do Primeiro Comando da Capital, a principal força do narcoterrorismo, na estratégica região da Amazônia [cf. Ítalo Lo Re. “Relatório mundial liga PCC e outras facções a crimes na Amazônia Legal”. O Estado de S. Paulo, 28-06-2023, p. A 16]. Assistimos, enfim, à reviravolta da segurança pública e dos direitos humanos, com os cidadãos sendo presos por delitos de opinião e com a detenção arbitrária de centos de manifestantes, que foram aprisionados nos acampamentos em frente ao Comando do Exército em Brasília, acusados de planejar um golpe de Estado e de destruir patrimônio público nos recintos dos Três Poderes, nos eventos acontecidos no dia 8 de janeiro deste ano.

Convém não esquecer que, segundo analistas políticos isentos, a destruição do patrimônio da Nação teria começado “de dentro para fora” dos prédios públicos (que teriam sido ocupados, previamente, por ativistas profissionais que destruíram obras de arte, mobília, documentos e recintos). As acusações contra os “subversivos” e as suas respectivas prisões e condenações foram praticadas à margem da lei, ignorando o devido processo jurídico. O ente Acusador é o “Poder Moderador”, que se diz vítima e que faz o papel de denunciante, juíz e executor das sentenças. Nunca se viu tamanha desordem no funcionamento do aparato jurídico a serviço do Estado. A vítima é, sempre, como se pode ver, o cidadão inerme, que foi posto à margem da vida pública pelos poderosos de plantão e que vê desconhecidos os seus direitos básicos.

Falando do desarranjo das políticas públicas do atual governo no terreno da economia, conhecido jornalista explicitou os interesses pouco claros de Lula na sua recente viagem à China. A respeito, o jornalista José Roberto Guzzo frisou: “O Brasil precisa de dólar como precisa de oxigênio; sem dólar não se compra nenhum dos produtos que a economia brasileira exige para sobreviver, a começar pelo petróleo. O presidente defendeu publicamente, em seus discursos, a submissão do Brasil aos interesses econômicos e políticos da China – sendo a principal comprovação disso a proposta de que os chineses deixem de pagar as exportações brasileiras em dólares, como sempre foi e como todo mundo faz, e passem a pagar em yuans”. [José Roberto Guzzo, “Trapaça, mentira e entreguismo: como foi a viagem de Lula à China”, Gazeta do Povo, Curitiba, 17-04-2023].

Encerremos esta descida ao inferno de Dante com as palavras do mesmo jornalista Guzzo, acerca das prisões arbitrárias dos manifestantes no dia 8 de janeiro do presente ano: A respeito, o jornalista escreveu: “Não há hoje no Brasil um escândalo que possa se comparar, em matéria de sordidez, de perversidade e de pura e simples violação maciça da lei, com o campo de concentração montado há seis meses em Brasília pelo ministro Alexandre de Moraes e seus colegas do STF. É a pior, mais extensa e mais prolongada agressão à Constituição Federal, ao Código Penal, às leis processuais e aos direitos essenciais do cidadão, que jamais foi cometida na história do Brasil – nenhuma tirania, militar ou civil, durante a Colônia ou a República, cometeu uma infâmia tão maligna (...).” [José Roberto Guzzo, “Nunca o Brasil viu uma infâmia tão grande quanto as prisões políticas em massa feitas pelo STF". Gazeta do Povo, Curitiba, 06-07-2023].

Esta Conclusão mostra que, em matéria de subversão da ordem republicana, estamos repetindo, no Brasil, a Revolução Socialista de 1848 na França, tendo sido anulado o Congresso pela cúpula da ditadura em andamento, com o alinhamento fisiológico do Centrão e com a distribuição regular de regalias e de verbas entre os congressistas que decidam colaborar com os novos donos do poder. O executivo corrupto, corrompe os representantes do povo.

Contamos, ainda, felizmente, com corajosos Deputados e Senadores e, também, com Representantes das Câmaras inferiores em estados e municípios que labutam intensamente, arriscando a sua segurança pessoal, ao tentar conter o avanço do crime institucionalizado. Deveremos, os cidadãos, reforçar a Frente Única de Oposição por eles constituída, a fim de evitarmos a tomada total do Estado e a definitiva entrega das nossas instituições aos socialistas de plantão.

Nesse caminho de defesa do que nos é caro, devemos imitar o exemplo de Tocqueville, participando, como eleitores vigilantes, dos atos que apoiam os mandatos dos nossos Congressistas, que não se venderam à cooptação reinante. Podemos reforçar, como Cidadãos, as iniciativas dos nossos Deputados, Senadores, Deputados Estaduais e Vereadores fiéis às suas obrigações, apoiando as propostas que os nossos representantes apresentam, combatendo com eles a corrupção sistêmica, protestando contra as violações dos direitos humanos cometidas pelos que estão no poder, apresentando alternativas viáveis na área da nossa especialidade e voltando a ocupar as ruas, como fizemos em anos anteriores.

Um dos aspectos mais importantes da sadia atuação da nova classe política, integrada por congressistas efetivamente fiéis aos desejos mais profundos da sociedade brasileira, é a proposta de um combate sem trégua contra a corrupção, já iniciada pela Operação Lava Jato. A propósito, o ex-juiz Sérgio Moro que condenou Lula em 2017, escreveu, na sua obra intitulada: Contra o sistema da Corrupção [1ª edição. Rio de Janeiro: Editora Primeira Pessoa, Rio de Janeiro, 2021, pp.105-106]: “(...) O juiz precisa esclarecer os fatos e ouvir as respostas do réu sobre os termos da acusação. Nesta etapa, a busca é pela verdade, não pela condenação. (...). Há juristas que não concordam com esse entendimento, sob o argumento de que a verdade é inalcançável e o processo penal seria, por consequência, uma espécie de jogo, sendo indiferente o resultado. Sempre entendi que essa teoria é uma bobagem. O objetivo do processo penal é fazer justiça na forma da lei, respeitando, claro, os direitos do acusado, mas também os da vítima. Para isso, é importante fazer, por meio de provas, a melhor reconstrução histórica do que aconteceu. Não se busca aqui uma verdade absoluta, mas a verdade prática, própria da razão humana. Não posso concordar com aqueles que acham que o resultado de um julgamento é indiferente à lei ou à Justiça. Se for assim, vamos legitimar as fake news e os fatos alternativos, já que tudo é relativo e o conhecimento humano é impreciso. Nada mais incorreto. Fazer justiça na forma da lei, pesquisar os fatos e agir com correção são ações importantes e, se você, como juiz, não acredita nisso, está na profissão errada”.

Os socialistas têm pânico da força que ostentamos os liberais-conservadores quando decidimos ocupar a praça pública, como aconteceu em anos anteriores. O núcleo duro da ditadura socialista, cujo chefe é Lula, teve de proibir que fossem exibidos as fotografias e os vídeos do passado 7 de setembro, com os milhões de brasileiros de todas as idades que formaram aquela maré verde-amarela que os petistas e demais membros da esquerda troglodita odeiam. Pois vamos sair novamente às ruas e incomodá-los. Ainda é tempo de tirá-los do poder em eleições que não consigam ser fraudadas, com registro impresso do voto. Mãos à obra. O Brasil é a nossa casa e não podemos deixar que a destruam os totalitários de plantão.

A luta contra o autoritarismo e o atraso representado pela defesa incondicional do Patrimonialismo pela esquerda, tem um alcance realmente grande. Antônio Paim, no prefácio à segunda edição do seu livro intitulado: Momentos decisivos da história do Brasil [Campinas: Vide Editorial, 2014, 2ª edição, pp. 13-14] sintetiza o papel importante desempenhado por Lula e o PT na manutenção do nosso atraso de séculos: “Ao contrário de corresponder àquela expectativa [de luta contra o atraso], seria justamente o PT que empreenderia um passo que bem pode estar destinado a fechar-nos de vez à realização daquele que seria o nosso autêntico projeto nacional. Trata-se de que haja conseguido enterrar de vez o projeto de constituição da ALCA. Ao invés de estarmos integrados ao que seria o provável desfecho do atual ciclo de globalização – a criação de mercado constituído pela junção dos Estados Unidos com a União Européia -, ingressaremos num período de marginalização cujas dimensões e consequências serão certamente funestas (...)” [Paim, Antônio, Momentos decisivos da história do Brasil [ob. cit.: 13-14].

Termino estes arrazoados com a citação do valoroso deputado gaúcho Marcel Van Hattem (1985-), autêntico representante da nova geração de parlamentares brasileiros. O atual momento é particularmente grave para o PT. Porque a sociedade brasileira já sabe para onde tal agremiação caminha: para a corrupção (que se converteu em sistêmica sob a proteção do Lula) e para o total desmantelamento da democracia brasileira.

Estas são as premonitórias palavras de Van Hattem: “No linguajar sertanejo, disse-me um colega parlamentar nesta semana em conversa de plenário: ‘Uma cobra mal morrida tem que aparecer de novo para que a matemos definitivamente’. Assim ilustrava ele a volta de Lula e do PT ao poder. O deputado reagia ao meu comentário sobre como a catástrofe que tem sido esse início de governo e a consequente erosão do já pouco apoio popular de Lula, agravada pela falta de suporte parlamentar, e que poderia em breve significar um fim ainda mais melancólico para os petistas do que aquele representado pelo impeachment de Dilma e a prisão de Lula. Para quem teve apoio explícito do Judiciário e a omissão decisiva do Legislativo para voltar ao poder, vir a ser rechaçado pelo mais importante numa democracia que é o próprio povo, representa, de fato, um fim definitivo” [Marcel van Hattem, “Piorar para melhorar”, Gazeta do Povo, Curitiba, 12-04-2023].

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