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MULHERES, SEDUÇÃO E PODER: A JOVEM JULIANA E O MARQUÊS DE POMBAL

MULHERES, SEDUÇÃO E PODER: A JOVEM JULIANA E O MARQUÊS DE POMBAL

A JOVEM ISABEL JULIANA DE SOUZA COUTINHO PAIM (1753-1793) QUE ENFRENTOU O PODEROSO MARQUÊS DE POMBAL

Qualquer forma de autoritarismo é inaceitável, porque choca contra a nossa natureza que aprecia a liberdade de ir e vir, de pensar, de inventar, de trabalhar e de agir. Esse é o clima natural do ser humano, sendo o controle sobre a liberdade individual algo que se sobrepõe a nós, contrariando a nossa natureza. Precisamos, em certas circunstâncias, abrirmos mão das nossas preferências, em matéria de interesses práticos, em prol de negociarmos alternativas que se ajustem melhor aos interesses da maioria. Mas isso implica em várias condições, sendo a primeira contar com um Parlamento livremente eleito pelos cidadãos, a fim de ter os nossos interesses materiais representados com fidelidade, possibilitando, assim, a negociação entre eles, nos momentos em que se torne necessário definir uma linha de ação que melhor os represente.

Aqui se situaria a negociação entre os representantes dos cidadãos, em prol do bem comum, e sem que eles abram mão das suas liberdades e princípios fundamentais. Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), infelizmente, nos vendeu uma mercadoria falsa: abrir mão da nossa liberdade, para garantirmos a felicidade de todos e a paz geral, desconhecendo sumariamente os mecanismos da representação e a dinâmica do governo alicerçado no Parlamentarismo. Essa alternativa encerra uma “contradictio in terminis” como diziam os escolásticos, pois não há saída boa compatível com a perda da liberdade e com o despotismo que emerge da aniquilação da representação de interesses.

Lendo as Memórias do duque de Palmela (1781-1850) [Transcrição, prefácio e edição de Maria de Fátima Bonifácio, Alfragide – Portugal: Publicações Dom Quixote, 2010, 416 páginas] encontro a história de uma jovem de estonteante beleza, Isabel Juliana de Sousa Monteiro Paim (1753-1793), que, com a idade de 14 anos, foi obrigada pelo pai, de família nobre, a se casar com José Francisco de Carvalho e Daun, o segundo filho do marquês de Pombal (1699-1782), a fim de cumprir com o desejo do déspota, que quis integrar a bela jovem ao convívio da sua família. Ora, o jovem José Francisco era portador de uma séria deficiência mental que o tornava inapto para o casamento. A respeito, escreve Palmela: “Este casamento, ao qual os parentes da minha mãe anuíram sem muito gosto, e só porque não ousavam, como então ninguém ousava em Portugal, resistir à imperiosa vontade do marquês de Pombal, encontrava por parte de minha mãe, cujo espírito e elevação de caráter eram muito extraordinários na sua idade, uma invencível aversão fundada, não só na antipatia que tinha ao marido que lhe queriam dar, mas também, creio eu, até certo ponto, por ódio ao marquês de Pombal, à família dele, e mais que tudo por uma inclinação que já começava a ter entrada no seu coração. Esta inclinação, que ninguém na sua família suspeitava, era-lhe inspirada por meu pai, o jovem Alexandre de Sousa Holstein (1751-1803) “mancebo então da mesma idade que ela (pouco mais ou menos quatorze anos)”, que estudava no Colegio dos Nobres e que era amigo do primo irmão de Juliana, D. Rodrigo de Sousa Coutinho (depois conde de Linhares, “criado juntamente com ela na mesma família”).

“Assim prosseguia a trama desta intriga amorosa (...) ignorada por todos – frisa Palmela -, e de que eram cônscios os principais atores, quando chegou o prazo fixado para o casamento de minha mãe com José Francisco Daun. Quantos esforços a menina educada na sujeição de seus pais, privada de auxílio para resistir às suas ordens, pôde empregar, foram por ela postos em prática para rejeitar ou pelo menos afastar um enlace que ela considerava como a maior desgraça. Todos foram baldados. A autoridade, não tanto de seu pai, que estava distante, e quase se compadecia dela, como de sua avó, e de uma tia sua, mulher ambiciosa, de carácter violento, [que] chegou ao excesso das ameaças e até da coacção para suplantar a constância de minha mãe. Finalmente, decidindo-se ela a ceder só em aparência, a fim de ganhar tempo por esta maneira, já que outro qualquer recurso lhe era tolhido, deixou-se arrastar à celebração da cerimônia eclesiástica, sem que todavia fosse possível obriga-la a pronunciar as palavras essenciais para a validade do sacramento do matrimônio. Consta mais, que na véspera desse casamento declarara expressamente ao eclesiástico a quem se confessara, no ato da confissão, que ia violentada para o altar; e que o tomava como testemunha para poder provar, em todo o tempo, a falta do seu consentimento”.

A respeito dessa violência praticada contra aquela moça que seria a sua mãe, frisa Palmela: “Parecerá impossível que uma senhora de catorze anos, educada quase num retiro completo, vivendo em Portugal numa época em que ninguém se lembrava sequer de respirar contra a prepotência do marquês de Pombal, tomasse a resolução de lhe resistir num ponto para ele de tamanha importância; e de resistir não só a ele face a face, mas às seduções da marquesa de Pombal e de toda a sua família. Quando as seduções se reconheceram inúteis, resistiu do mesmo modo às ameaças; e quase às violências, que contra ela se quiseram empregar. O que parece mais impossível ainda é que esta guerra em que combatia uma desamparada menina, contra um ministro diante do qual Portugal inteiro tremia, contra a sua própria família enfim; contra os atrativos da riqueza e da grandeza, de que estava cercada, se prolongasse por mais dois anos sem abalar a constância da sua resolução. Igualmente impossível parece que no decurso daquele tempo não transpirasse nem fosse suspeitado por ninguém, o motivo secreto que lhe inspirava semelhante constância”.

Palmela prossegue, assim, a narrativa das desventuras amorosas da sua mãe com o casamento forjado: “Para explicar em parte esta singular história, é preciso dizer que José Francisco Daun, então criança da idade de minha mãe, parecia totalmente destituído de inteligência, e até da esperteza ordinária nos rapazes da sua idade. O marquês de Pombal havia sido infeliz nos seus filhos; e este de que se trata, sobre todos, era quase notoriamente imbecil, e foi conhecido por tal até o termo da sua vida. A não ser esta circunstância, não é provável que minha mãe, posto que pelo seu carácter e talento fosse inteiramente o contrário do seu suposto marido, pudesse levar até ao fim o plano que havia traçado, ou que, pelo menos, pudesse conservar-se tanto tempo sem se descobrir, e sem provocar uma crise. Pode portanto dizer-se, que na conspiração doméstica de que vou falar, José Francisco Daun foi o inconsciente cúmplice mais útil de minha mãe”.

A respeito do que se passou na intimidade do lar, enquanto a jovem vivia a encenação de um casamento que não tinha sido consumado, frisa Palmela: “(...) Ouvi dizer, e creio que é certo, que só uma criada entrava na confidência perigosa da sua vida íntima, enquanto permaneceu em casa do marquês de Pombal. Ouvi, também, que na noite que se seguiu ao seu simulado casamento, teve ela o acordo, e a coragem de mandar coser pelo meio os lençóis da cama em que a deitaram com o indivíduo que queriam dar-lhe por marido, e que, passados os primeiros momentos desta cerimônia, depois de se retirarem os parentes o obrigara a levantar-se da cama, onde nunca mais depois disso consentiu que ele entrasse, conseguindo pelo ascendente do seu espírito um predomínio que apenas pode acreditar-se, e em virtude do qual obteve dali por diante, não só que ele dormisse numa cama separada em outro quarto, mas também, que não revelasse a ninguém, por um longo espaço de tempo, o que se passava no aposento conjugal”.

Não foi fácil à adolescente suportar essa vida de aparência. “O mistério, porém, - frisa Palmela - não era de natureza que pudesse durar sempre. Transpiravam indícios dele pela tristeza em que minha mãe vivia, pelo desabrimento com que recebia as carícias e as finezas da família de Pombal, pelas expressões que de quando em quando soltava; e por fim, ainda que tarde, creio que também pelas queixas do principal interessado neste negócio. No intervalo dos dois anos mencionados, haviam cessado inteiramente as raras e recatadas manifestações de afecto e correspondência que tinham existido entre meu pai e minha mãe. Meu pai, receoso com razão, de que viessem a recair sobre ele as suspeitas e as iras do marquês de Pombal, quando se lhe abrissem os olhos, cedendo às solicitações de alguns amigos íntimos, havia decidido sair de Portugal para entrar na Ordem de Malta”.

O desenlace para a história do casamento não consumado foi o seguinte, segundo Palmela: “Chegou, finalmente, (...) depois de dois anos, o momento em que se descobriu o estado em que se haviam conservado os dois supostos cônjuges, reconhecendo-se não ter havido neste matrimônio nem consumação, nem comunidade de habitação. Chegou, também, o momento em que o marquês de Pombal, em toda a sua altivez e dureza, cansado de lutar contra uma mulher, na qual deparara com uma força de resistência que não havia encontrado em toda a Monarquia portuguesa, desde o Rei até o ínfimo vassalo, resolveu desistir da empresa e pôs ele mesmo mãos à obra para desmanchar o casamento que tanto se empenhara em concluir. Raiou o dia em que se revelou ao público o mistério deste consórcio. Separaram-se, então, os chamados cônjuges. Intentou o marquês de Pombal, ele mesmo, em nome de seu filho perante o Tribunal da Nunciatura um processo de divórcio em breve terminado. As provas da nulidade do matrimônio eram bem fáceis de coligir, não só porque a esposa se conservava virgem; mas porque as declarações dos dois contraentes eram acordes, positivas, corroboradas pelo testemunho tanto dos familiares como do confessor (...), e por um sem-número de outras circunstâncias”.

Quanto à documentação acerca da veracidade desses eventos, frisa Palmela: “Os autos do processo existem no meu cartório, assim como existe no cartório do meu cunhado marquês de Santa Iria (Luís Roque de Sousa Coutinho Monteiro Paim) irmão de minha mãe, e representante da sua família, a curiosa correspondência a este respeito do marquês de Pombal com meu avô Dom Vicente, e de minha mãe com seu pai. Pronunciada a nulidade do matrimônio, saiu a minha mãe da casa do marquês de Pombal, com o júbilo que pode imaginar-se, e também suponho que com grande satisfação da família em que tinha vivido, e que devia sentir alívio em separar-se de hóspeda tão adversa. Mas não saiu para sua casa porque o Marquês não era homem para perdoar, nem para poupar os seus inimigos. Saiu com uma ordem real para o Convento de Santa Joana de Lisboa, onde era abadessa uma irmã do marquês de Pombal, da qual teve pelo espaço de um ou dois anos de sofrer o tratamento mais rigoroso e insultante. Passado esse espaço conseguiu ser transferida para um convento em Évora, onde, à exceção do inconveniente inevitável da clausura e prisão, gozava de todas as consolações que a amizade e a delicadeza das freiras podiam conceder-lhe. Viveu tranquila naquele retiro, posto que sem comunicação com o mundo exterior por espaço, parece-me, de sete anos, isto é, até a morte de El-Rei Dom José, época do desenlace de todos os dramas de família, constante sempre na solidão e no silêncio, sem renunciar um só instante aos seus sentimentos”.

Passados esses 11 anos de separação forçada, por fim os jovens Juliana e Alexandre conseguiram se reaproximar para, algum tempo depois, se unirem em matrimônio. Assim refere Palmela essa nova circunstância: “(...) Não tardaram portanto um e outro, logo que cessou o domínio do marquês de Pombal e se abriram as prisões do Estado às suas numerosas vítimas, entre as quais entrava também minha mãe, em dar os passos necessários para se unirem em matrimônio dois entes que há tanto tempo se achavam ligados em recíproco afeto, e que tantas tribulações haviam padecido nos seus amores. Este enlace, por parte de meu pai, não experimentava dificuldade, porque a única, proveniente da falta de fortuna, era suprida pela generosidade de minha avó. Não acontecia, porém, o mesmo pela outra parte, porque meu avô Dom Vicente, homem bastantemente egoísta, e que não conhecia minha mãe desde a primeira infância, não se mostrava inclinado a aprovar o enlace, até porque conservava algum desamor pelos desgostos que [minha mãe] involuntariamente lhe atraíra, quando se divorciara do filho do marquês de Pombal”.

Mas a índole violenta e continuamente vingativa do velho Ministro de Dom José não baixou a guarda. A respeito, escreve Palmela: “Devo consignar aqui uma circunstância assaz indicativa e característica da vingança do marquês de Pombal, e que se acha comprovada por uma carta original dele, que eu li, e existe no cartório do marquês de Santa Iria. Não satisfeito com o castigo que impôs à minha mãe, prendendo-a por tantos anos na clausura de um convento, quis, também, privá-la da sucessão de seu pai, e ordenou por escrito em nome de El-Rei a meu avô, que já era viúvo de há muitos anos, (para que) tratasse de passar a segundas núpcias, e concluísse quanto antes o seu casamento. É esta uma singular anedota daqueles tempos! Demonstra bem até onde se estendia a autoridade do ministro. Meu avô, já velho de mais de sessenta anos, residindo em Paris havia muito tempo, e sem a menor intenção de casar, julgou-se obrigado a obedecer à ordem que havia recebido. Procurou com efeito uma noiva em França, e casou dentro em pouco tempo com Mademoiselle. Canillac, uma das pessoas mais elegantes e belas da nobreza francesa, da qual teve depois um filho que é o actual marquês de Santa Iria, privando assim por consequência minha mãe, que por tantos anos havia sido reputada herdeira da sua casa, da sucessão que por sua morte lhe haveria de vir. Vi uma carta de minha mãe, escrita alguns anos depois, na qual felicitando seu pai pelo nascimento deste marquês de Santa Iria, com expressões de afecto filial, lhe dizia que o seu único sentimento era que este seu irmão não tivesse nascido muitos anos antes, porque assim lhe teria poupado as angústias e desgraças com que o triste título de herdeira havia amargurado a sua existência”.

Como toda história de Ministros cruéis e vingativos deve ter o seu fim, não foi diferente a história de amor de Juliana e Alexandre. A respeito, frisa Palmela: “Poucas semanas depois da celebração do casamento, partiram meu pai e minha mãe para Turim, onde nasceu, no ano seguinte, um primeiro filho, que viveu poucos dias. Sucessivamente tiveram quatro mais, dos quais fui o primeiro e único varão. As outras três foram Mariana, Teresa e Catarina, nascidas uma em Turim, em 1784, as outras duas em Dinamarca, em 1786 e 1788, as quais vieram a casar com o conde d’Alva, hoje marquês de Santa Iria, com o conde Vila Real e com o conde de Linhares, sendo esta última a única em vida na atualidade”.

Contudo, os 11 anos de reclusão forçada deixaram a sua marca no corpo da jovem que teve de enfrentar, sozinha, a sua cruel prisão. Alexandre, o jovem marido de Juliana, que tinha entrado na carreira diplomática, teve de realizar constantes viagens, sem que conseguisse levar consigo a sua esposa e filhos. Residiu, com eles, na Dinamarca, onde nasceram as três filhas, irmãs mais novas de Palmela. As constantes viagens, a maternidade e os trabalhos domésticos para educar os quatro filhos, terminaram por desgastar a já frágil saúde de Juliana, que faleceu prematuramente, em Genebra, para onde tinha se transladado em busca de melhores cuidados médicos. A vida da bela Juliana Paim extinguiu-se com a idade de 39 anos.

Quis a História que o modelo pombalino de despotismo e crueldade para com todos os que se opunham à dominação do momento, mas especialmente para com os mais frágeis, se repetisse neste Brasil que sofre hoje as agruras de um neo Pombalismo encarnado no STF (que chamou para si a tarefa de “formatar” a consciência cidadã). Um Ministro, especialmente vingativo, projeta sobre campos e cidades a sombra do algoz inapelável para com as suas vítimas, especialmente as mais frágeis, como por exemplo essa mãe, que ganhava a vida com o seu trabalho manual e que, vítima na prisão em que foi trancafiada por pretender destruir as instituições republicanas, definha hoje, paciente de um implacável câncer, sem que lhe seja concedida sequer a mais humanitária das providências, retirar a tornozeleira para poder receber a quimioterapia que aliviaria a sua doença terminal.

Encerro esta lembrança da jovem Isabel Juliana de Souza Coutinho Paim, recordando que o meu querido mestre, Antônio Paim (1927-2021), quis honrar a memória da sua corajosa ancestral, dando à filha mais velha o nome de Juliana. Cito, para dar um fecho dourado nas lembranças de Palmela em relação à sua mãe, o seguinte trecho das suas Memórias:  " Desta primeira e longa viagem através da Itália e da Alemanha, bem poucos vestígios restam ainda em minha memória. Só me lembro que, passando por Berlim, desejaram meu pai e minha mãe ser apresentados ao grande Frederico II, cuja fama escurecia naquele tempo a de todos os reis da Europa, e dirigiram para isso as suas solicitações. Este monarca, porém, achava-se já naquele tempo gravemente enfermo da moléstia de que pouco depois faleceu. Por isso se escusou de conceder a audiência pedida, dizendo contudo, quando se lhe falou em minha mãe, cuja história era geralmente conhecida: Voilà une femme que je voudrais connaître"  [Memórias do duque de Palmela, ob. cit., p. 68]