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MORO: FUNDAMENTOS ÉTICOS DO COMBATE À CORRUPÇÃO E AO CRIME ORGANIZADO

MORO: FUNDAMENTOS ÉTICOS DO COMBATE À CORRUPÇÃO E AO CRIME ORGANIZADO

SÉRGIO MORO PRONUNCIA DISCURSO DE SAUDAÇÃO AOS FORMANDOS NA UNIVERSIDADE DE NOTRE DAME (NOS ESTADOS UNIDOS), EM 2018

Dizia o jornalista e sociólogo Joelmir Beting (1936-2012) que não há crime organizado, mas Estado desorganizado. Concordo, em parte, porque o crime, notadamente o de narcotráfico, tem dado mostras de muito cálculo e planejamento, ao longo das últimas décadas. Só recordando um fato que nos afetou diretamente: a ideia de deslocar a base da produção-exportação de narcóticos do eixo andino, na América do Sul, para o eixo atlântico, tendo o Brasil como cabeça de ponte, fato que se começou a consolidar no final dos anos oitenta do século passado e que hoje nos inferniza, não foi um capricho da natureza nem uma casualidade ensejada pelos criminosos: foi uma decisão estratégica, friamente pensada pelos financiadores do narconegócio na América Latina, entre os que sobressaiam a máfia italiana e as guerrilhas que, com a queda do Império Soviético, pararam de receber mesada de Moscou via Havana e encontraram, no narcotráfico, uma nova forma de se financiarem. Os meliantes internacionais tomaram essa decisão, em face das ações sistemáticas de combate aos refinadores de coca dos países andinos de parte dos Estados Unidos, através da DEA e dos governos locais.

Pois bem: hoje podemos dizer, após os escabrosos episódios do Mensalão e do Petrolão, que lidamos com o crime organizado e com o Estado igualmente “desorganizado” em função das práticas criminosas do lavado de dinheiros escusos e da compra do silêncio por parte de agentes públicos corruptos. A corrupção em larga escala, que deu ensejo ao famoso “Mecanismo” operando a todo vapor na era lulopetista, não é uma empresa racional capitalista, mas nem por isso deixa de ter uma racionalidade orgânica que lhe permite manter incólumes os seus agentes, no seio de uma deturpação do capitalismo, que substituiu o trabalho honesto de empresários, operários e administradores, bem como o planejamento e o risco dos investidores, pelas ações à margem da lei, com funcionários corruptos se enriquecendo às custas do Tesouro da Nação e do lavado de dinheiro proveniente de negócios escusos.

Sérgio Moro, o pré-candidato que se apresenta em reuniões com empresários, estudantes e políticos, frisa, com toda razão, que não pode haver convívio nem pacto de sobrevivência entre a sociedade e o crime organizado. Com muito bom senso, o ex-juiz corta qualquer possibilidade de transigência com os criminosos e com as organizações à margem da lei, como o PCC e quejandos.

Como ponto de partida, Moro considera que o papel fundamental do funcionário público é “fazer a coisa certa”. A respeito, frisa: “Quando assumi o Ministério da Justiça, em janeiro de 2019, coordenei uma campanha entre os funcionários da pasta para reforçar a ética no serviço público e a importância de que eles a exercessem cotidianamente e, dessa forma, dessem o tom da nova administração. Os funcionários públicos têm de ser um exemplo de conduta para toda a população. O lema era: ‘Faça a coisa certa, sempre’” [Moro, Contra o sistema da Corrupção, 1ª edição. Rio de Janeiro: Primeira Pessoa / Sextante, 2021, p. 18].

Para dar o tom do clima de retidão e de seriedade que queria imprimir à sua gestão no Ministério da Justiça, Moro deflagrou uma campanha a fim de dar destaque ao imperativo de “fazer a coisa certa”, como primeiro mandamento do funcionário público.

A respeito, frisa no seu livro o ex-Ministro: “Para o lançamento da campanha, chamei o historiador Leandro Karnal, que havia conhecido alguns anos antes em um jantar em Curitiba, e o deputado federal Marcelo Calero. Considero Karnal um excelente palestrante e achei que ele certamente motivaria os funcionários do ministério. Já o deputado foi convidado para que pudesse narrar aos servidores um episódio vivido por ele em 2016, quando renunciou ao cargo de Ministro da Cultura. Calero, segundo seu relato, havia sido abordado por um colega ministro para que desse uma espécie de ‘jeitinho’ para liberar, em Salvador, uma obra embargada pelo patrimônio histórico. Recusou-se a fazê-lo e, ao denunciar a abordagem imprópria, não obteve respaldo do governo da época. Por isso preferiu renunciar ao cargo. Era o tipo de exemplo que eu queria passar aos funcionários do Ministério da Justiça e de órgãos vinculados para ilustrar o lema da campanha. É preciso fazer a coisa certa, sempre, mesmo quando é difícil” [Moro, Contra o sistema da corrupção, ob. cit., p. 18].

É claro que o pré-candidato à Presidência, Moro, não pretende encarnar a figura do justiceiro. Considera que agir “fazendo a coisa certa” exige bom senso e racionalidade. Mas destaca que é também necessária a coragem. Se algum erro for cometido no combate ao mau comportamento no serviço público, pode e deve ser corrigido. Contudo, o medo a errar não pode impedir a ação oportuna do funcionário público.

Em relação a este ponto, Moro frisa: “Às vezes o rumo certo a seguir é claro e cristalino. É óbvio, porém que nem tudo na vida é tão simples e nem sempre sabemos tão claramente qual a conduta exigida quando se precisa fazer a coisa certa. A vida nos coloca, com frequência, diante de escolhas difíceis em cenários nebulosos. É preciso avaliar todas as circunstâncias, refletir profundamente a respeito e então decidir. Como nosso conhecimento é imperfeito e ninguém é senhor da razão, há sempre o risco de errar. Nesse caso, o que importa é a pretensão de correção. Fazer a coisa certa, sempre, convive normalmente com a hipótese do erro, desde que se aja com a pretensão de correção. Em outras palavras, o erro faz parte da condição humana, o importante é querer acertar. Fazer a coisa certa, sempre, é algo que se aprende na vida. Bons exemplos são fundamentais. Gosto de dizer – e é verdade - que aprendi isso desde a infância, com meus pais (...)” [Moro, Contra o sistema da corrupção, ob. cit., p. 19].

Quais seriam as exigências do princípio de “fazer a coisa certa” no exercício do Direito, segundo Sérgio Moro? À luz das considerações que o ex-magistrado e pré-candidato à Presidência faz no seu livro Contra o sistema de Corrupção, destacaria os seguintes pontos:

1 – “Defender o direito do cliente sem ofender a outra parte” [Moro, ob. cit., pp. 20-21].

A respeito, o pré-candidato dá o seguinte testemunho: “Na metade da graduação (no Curso de Direito da Universidade Estadual) comecei a estagiar em um escritório de advocacia tributária de Maringá. É bom que se diga que Direito Penal e Processual Penal não eram minhas disciplinas preferidas na época. O advogado Irivaldo de Souza, dono do escritório, foi um grande exemplo de conduta profissional: ético, cordato e respeitoso. Ele tinha um cuidado extremo em defender o direito do cliente sem ofender a outra parte ou o juiz. Lembro-me de, certa vez, ser corrigido por ter escrito, em um rascunho para uma petição jurídica ‘o juiz errou’. Prefira ‘o juiz equivocou-se’, ele ponderou. Advocacia clássica, eficiente e educada. Hoje em dia me espanto com o comportamento de alguns advogados em suas atuações profissionais, que nem de longe têm o mesmo recato. Advogados podem ser combativos (e isso é um mérito), mas não se pode, como em qualquer profissão, perder a educação. Parte da advocacia atual, ainda que minoritária, tem uma postura muito agressiva” [ob. cit., pp. 20-21].

2 – Participar de um ambiente de formação humanística e de convívio com pessoas que compartilhem valores éticos.

Sérgio Moro destaca, na sua obra, duas circunstâncias: o grupo de amigos de seu pai integrado por advogados, promotores e juízes amigos, que despretensiosamente se reunia em Maringá com o nome de “Clube da Justiça” e a formação humanística através da leitura, nos primeiros anos de faculdade, de livros de história e filosofia. O nosso autor confessa que “estudei latim por algum tempo e resolvi fazer aulas de grego antigo para ver se seria possível ler os filósofos gregos no original” [Moro, ob. cit. p. 20].

3 – “Poder lidar com o Direito com independência e autonomia” [Moro, ob. cit., p. 21].

A respeito desse ideal, frisa Moro: “O compromisso do advogado com seu cliente não representa qualquer demérito para a profissão, mas, naquele tempo, eu queria algo diferente: poder lidar com o Direito com independência e autonomia, avaliar com clareza qual parte tinha razão. Então decidi prestar concurso para juiz federal. (...). Tomei posse como juiz em junho de 1996, prestes a completar 24 anos” [ob. cit., p. 21].

4 – “Acelerar os trâmites das ações previdenciárias. Quem tem razão, seja autor, seja réu, tem de ganhar e levar; não pode ser uma Justiça de faz de conta” [ob. cit., p. 23].

O nosso autor chegou a essa convicção a partir da sua atuação, em Curitiba, como juiz substituto em uma vara previdenciária.

A respeito, confessa: “Ali, por outra perspectiva, presenciei a perversidade do sistema judiciário. Era elevado o número de pessoas que recorriam à justiça para obter o reconhecimento do direito a uma pensão ou a uma aposentadoria (...). Mas, se a legislação contemplava aquele direito, não era certo indeferi-lo administrativamente quando o pleiteante tinha razão. A Justiça Federal vivia abarrotada de ações nas quais se impugnavam indeferimentos administrativos, e elas tramitavam por anos, gerando situações de extrema injustiça. Particularmente, me incomodava a demora para ver o resultado de ações nas quais se reclamavam benefícios previdenciários decorrentes de doença ou de incapacidade para o trabalho. (...). Comecei, como juiz, a acelerar os trâmites das ações previdenciárias, realizando mais audiências e tentando resolver tudo de maneira concentrada (...)” [Moro, ob. cit., p. 22-23].

5 – Prestar uma atenção especial, na área penal, ao devido processo “que é, acima de tudo, uma questão de prova”.

A essa conclusão chegou Sérgio Moro a raíz do seu trabalho na 2ª Vara Criminal de Curitiba (que posteriormente seria renomeada 13ª Vara Federal Criminal), bem como a partir da pós-graduação (focalizando o Direito Penal e o Processual Penal) no mestrado e doutorado cursados na Universidade Federal do Paraná, bem como dos cursos que fez no exterior, notadamente na Universidade de Harvard, em 1998.

Da sua passagem pela Universidade americana, o nosso autor tirou a seguinte conclusão: “Em Harvard, abri os olhos para o Direito norte-americano, na época mais avançado que o do Brasil nas disciplinas de que eu gostava, como Direito Constitucional .(...). Os norte-americanos possuem uma visão bem mais pragmática do Direito, diferentemente dos brasileiros. A Justiça tem de ser efetiva. Dos instrumentos disponíveis no Judiciário dos Estados Unidos, o plea bargain é um dos mais relevantes. A admissão de responsabilidade pelo acusado na ação penal em troca de redução substancial da pena pode gerar algumas distorções, mas, sem dúvida, traz eficácia para o funcionamento da Justiça no país, já que dá rapidez à tramitação da ação penal. O plea bargain é utilizado em mais de 90% dos processos criminais nos Estados Unidos. Como Ministro da Justiça (...) tentei introduzir o instrumento no Brasil, mas a resistência e o preconceito, de parte do Congresso, prevaleceram” [Moro, ob. cit., p. 25].

À luz da experiência tida nos seus estudos nos Estados Unidos, Moro faz uma crítica ao excessivo formalismo jurídico na área criminal “(...) que acaba servindo como escudo protetor para acusados com algum poder econômico, capazes de contratar advogados com competência para manejar o intrincado sistema processual penal brasileiro. Por aqui, a busca pela verdade no processo penal transforma-se, muitas vezes, na tentativa de anular todo um trabalho do policial, do procurador ou do juiz a partir de pequenas falhas formais que, na maioria dos casos, em nada prejudicam a qualidade das provas nem afetam direitos fundamentais do acusado (...). Nossa Justiça, excessivamente formal, ao obscurecer o compromisso com a verdade e com a realização da Justiça na forma da lei, acaba sendo censitária [fixando a atenção no nível elevado de renda] – seus resultados dependem da capacidade do acusado de, por meio de bons advogados, levantar filigranas formais para encerrar o caso nos tribunais, muitas vezes generosos com esse tipo de argumento, sem que se avalie a culpa ou a inocência do acusado” [Moro, ob. cit., pp. 25-26].

6 – “A sociedade tem o direito de saber sobre as acusações da prática de crimes por agentes públicos e igualmente de acompanhar o que faz a Justiça em relação a essas acusações” [Moro, ob. cit., p. 95].

Acerca deste princípio, o pré-candidato Moro considera que não faz sentido a crítica ao papel divulgador da imprensa, em relação à apuração e combate aos crimes praticados por quem quer que seja, sempre e quando da divulgação não surja empecilho para o funcionamento correto do Judiciário.

Acerca desse ponto, frisa o nosso autor: “A publicidade irrestrita conferida aos processos da Lava Jato, incluindo documentos, audiências e julgamentos, permitiu que a imprensa e a sociedade acompanhassem todos os acontecimentos, dia a dia, desde o início da operação. A percepção de que a grande corrupção era disseminada no Brasil foi confirmada e superada pelos fatos e pelas provas. O sistema de corrupção foi exposto e o Brasil, de certa forma, colocado no divã: como o país pôde permitir grau tão elevado de deterioração institucional, com o pagamento de subornos tendo se tornado rotina em contratos públicos?” [Moro, ob. cit., p. 95].

Em relação ao manjado argumento de corrutos como Lula de que a Operação Lava Jato constituiu uma criminalização da política, o nosso autor desmonta rapidamente a falácia, nos seguintes termos: “Os críticos diziam que queríamos fazer sensacionalismo e julgar os casos com base na opinião pública. Os hipócritas, aqueles que pagavam ou recebiam suborno, assim como seus aliados, alegavam que buscávamos criminalizar a política. Nada mais falso, já que apenas cumpríamos a Constituição. Ou seria preferível varrer tudo para debaixo do tapete a fim de que ninguém soubesse? Quanto à criminalização da política, quando alguém me convencer de que pagar ou aceitar subornos fazem parte do exercício da boa política, concordarei com o argumento. A publicidade tinha ainda o efeito salutar de prevenir a obstrução da Justiça. Ou alguém pensa que isso não foi tentado durante a Operação Lava Jato?” [Moro, ob. cit., pp. 95-96].

7 – “O objetivo do processo penal é fazer Justiça na forma da Lei, respeitando, claro, os direitos do acusado, mas também os da vítima” [Moro, ob. cit., p. 195].

O nosso autor explica esse princípio com as seguintes palavras: “Para isso, é importante fazer, por meio de provas, a melhor reconstrução histórica do que aconteceu. Não se busca aqui uma verdade absoluta, mas a verdade prática, própria da razão humana. Não posso concordar com aqueles que acham que o resultado de um julgamento é indiferente à lei ou à Justiça. Se for assim também vamos legitimar as fake news e os fatos alternativos, já que tudo é relativo e o conhecimento humano é impreciso. Nada mais incorreto. Fazer Justiça na forma da lei, pesquisar os fatos e agir com correção são ações importantes e, se você, como juiz, não acredita nisso, está na profissão errada” [Moro, ob. cit., pp. 105-106].

8 – Respeito para com a pessoa do acusado.

Nas investigações realizadas com motivo da repressão ao crime organizado, Moro deixou claro que um ponto de partida importante para quem representa a Justiça consiste em manter, sempre, uma atitude de respeito para com a pessoa do acusado. Colocou esse princípio em prática quando teve de interrogar o perigoso narcotraficante Fernandinho Beira Mar.

A respeito, o nosso autor escreveu: “Tratar o acusado com consideração significa não enganá-lo ou abusar de sua falta de conhecimento sobre questões jurídicas, muitas vezes complexas. O certo a fazer, naquela circunstância, era orientá-lo a consultar o seu advogado antes de produzir aquele documento [contando sua versão dos fatos]. Eu disse, portanto, que ele tinha todo o direito de escrever uma carta relatando sua versão dos fatos, mas que o documento teria de ser anexado aos autos. Não haveria outra medida possível. Aconselhei-o a refletir bastante sobre o conteúdo da carta e, antes de escrevê-la e enviá-la conversar com o advogado para que este avaliasse a conveniência ou não daquela atitude”.

“Foi uma conversa cordial e respeitosa – continua Moro -. Sempre entendi que, como juiz, era meu dever tratar as partes, mesmo os acusados dos crimes mais graves, com todo o respeito e consideração. Se alguém cometeu um delito, deve ser punido na forma da lei e, após o julgamento, com as sanções cabíveis. Não há espaço para tratar o acusado com desrespeito. Para mim, na sala de audiência, o acusado sempre foi chamado de ‘senhor’ ou, sendo mulher, de ‘senhora’, pouco importando o teor da acusação. A abordagem respeitosa indica profissionalismo. É, aliás, o que faz a maior parte dos juízes, promotores e advogados. Sempre considerei lamentáveis ofensas ou mesmo o tratamento informal, com o pronome ‘você’, em audiências judiciais, ainda que a utilização desse pronome, muitas vezes, seja decorrente mais de descuido do que de qualquer intenção de ofender” [Moro, ob. cit., p. 139].

9 – Fé nas Instituições e não nos salvadores da Pátria.

Os problemas sociais têm de se resolver, numa República, à luz das Instituições e não de forma carismática, como se quem governa fosse o Salvador da Pátria. Este é o grande defeito do populismo, que relativiza as Instituições de Direito e passa a centrá-lo tudo na figura de quem exerce o poder, como se se tratasse de um Messias.

A respeito dessa posição, escreve o nosso autor: “Sempre tive em mente que nós, brasileiros, não podemos depender de ‘salvadores da pátria’. Herança da colonização portuguesa, nosso sebastianismo atrapalha o bom desenvolvimento do país. Mais do que um ou outro personagem, precisamos ter fé em nossas instituições, no Estado de Direito e, sobretudo, na democracia” [Moro, ob. cit., p. 118].