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MORO E A POLÍTICA ANTI-DROGAS

MORO E A POLÍTICA ANTI-DROGAS

O PRÉ-CANDIDATO À PRESIDÊNCIA, SÉRGIO MORO

O pré-candidato à Presidência Sérgio Moro, no seu livro intitulado: Contra o sistema de corrupção [1ª edição, Rio de Janeiro: Primeira Pessoa / Editora Sextante, 2021, 287 pp.] deixou clara a sua posição contrária ao uso de drogas, bem como o seu ceticismo quanto a um abrandamento da política de repressão ao consumo das mesmas.

A respeito, o pré-candidato frisou: “Sou absolutamente contra o uso de drogas. Não vejo nada positivo no vício. Sou também cético em relação à descriminalização do tráfico de drogas como uma estratégia eficaz para privar o crime organizado de uma fonte de renda. Descriminalizar a maconha é uma coisa, mas deve-se estender o mesmo tratamento a todas as outras drogas, como o crack ou a heroína, com seu potencial devastador para o ser humano? Se não, adianta na prática descriminalizar somente o tráfico de maconha? Além disso, o traficante sempre terá vantagens sobre o Estado, porque não paga imposto e vende o seu produto muito mais barato – é o que ocorre com o contrabando de cigarros no Brasil. Metade do mercado é dominada pelo produto contrabandeado, mesmo sendo lícita a comercialização de cigarros” [ob. cit., p. 157].

Sabemos da posição politicamente correta de muitos políticos, empresários e intelectuais em face da necessidade de tolerar o consumo de tóxicos. Porém, não podemos fechar os olhos diante da realidade. É fato que os narcotraficantes gastam enormes somas de dinheiro, pelo mundo afora, em campanhas publicitárias em prol da liberação do consumo de drogas. Na Colômbia, por exemplo, nas últimas décadas do século passado, os cartéis chegaram a propor às autoridades o pagamento da dívida externa do país, “se o governo os deixasse trabalhar em paz”.

Para quem produz e distribui tóxicos é um bom negócio fazer propaganda em prol da liberação total. Os lucros dos traficantes, segundo os estudiosos, ascendiam, no início deste século, à astronómica proporção de 2.000%. Mas a dura experiência pela que passaram os países que deram livre curso ao consumo de drogas, lança sobre nós uma luz acerca do caminho a seguir. Mesmo porque já temos experiência do que acontece na sociedade quando se generaliza o uso de tóxicos. Ao longo dos últimos vinte anos, de consumidores habituais de maconha, muitos brasileiros passaram a usar corriqueiramente drogas mais pesadas, culminando com a generalização do consumo de crack, refugo da cocaína, que está destruindo vidas humanas em 98% dos municípios brasileiros. As cracolândias, infelizmente, passaram a se integrar à paisagem urbana.

Esse fenômeno da narco dependência é uma das causas das altas taxas de violência existentes no Brasil, com aproximadamente 60 mil assassinatos por ano. É a desgraça de uma guerra não declarada. Numa megalópole como o Rio de Janeiro, o estrago causado pelo narcotráfico na qualidade de vida das pessoas é enorme. A população das mais de 1200 favelas da cidade é, em boa medida, dependente do narcotráfico ou do seu espelho, as milícias, podendo-se calcular em 2 milhões o número de cidadãos reféns da guerra não declarada dos narcotraficantes [cf. da minha autoria, Narcotráfico, patrimonialismo e violência – Desafios no Brasil, 1ª ed., Campinas: Távola, 2019, pp. 17-59]

“A descriminalização – frisa Sérgio Moro -, pode ser benéfica às classes mais privilegiadas. No Uruguai, que regulamentou a venda e o consumo de maconha, as classes mais baixas continuam recorrendo ao mercado ilegal porque não conseguem adquirir a droga no mercado regulamentado devido aos preços mais altos. Agora, cabe reconhecer que alguns países, como os Estados Unidos, têm descriminalizado o tráfico de maconha sem que isso tenha gerado graves consequências, embora não aparente ter também afetado significativamente o crime organizado” [ob. cit., p. 157].

Descriminalizar pura e simplesmente, sem ter uma política preventiva mais abrangente, é um risco desnecessário. Não é fácil formular tal política, mas o fato de se tratar de algo difícil não significa que as devidas precauções não devam ser tomadas. É necessário projetar a mirada sobre um horizonte mais amplo. É imperativo dotar ao Estado dos instrumentos institucionais necessários para exercer o seu controle sobre o uso de tóxicos e sobre o crime organizado que fomenta o consumo dos mesmos. É importante, outrossim, fornecer à sociedade informações verídicas sobre os riscos do consumo de tóxicos, inclusive a maconha. Vale a pena citar, aqui, as palestras e entrevistas dadas por um especialista, o Dr. Ronaldo Laranjeira (médico psiquiatra, membro da Sociedade Paulista de Medicina e especialista em tratamento de pacientes com dependência química) [cfr. “Debate sobre a maconha” com o Dr. Ronaldo Laranjeira, in: https://youtu.be/fPS5_nIxs-o ].

Em relação à descriminalização do consumo de drogas, frisa Moro: “Cabe reconhecer que esse é um problema de difícil solução. De todo modo, sempre entendi que ele demanda ações globais. Não há como descriminalizar somente em um país, tornando-o um paraíso para traficantes e consumidores de drogas e atraindo um turismo indesejável” [ob. cit., p. 157].

Sérgio Moro recorda o que se passou em termos das ações contra o crime organizado, especificamente no Rio de Janeiro, uma cidade refém do tráfico. A expectativa do pré-candidato, quando estava à frente do Ministério da Justiça e Segurança Pública, era criar uma grande força-tarefa da Polícia Federal, para efetivar investigações continuadas contra o crime organizado, identificando as organizações criminosas atuantes nessa cidade e no Estado, a fim de neutralizá-las.

   A propósito, Moro escreve: “Revendo retrospectivamente os fatos, faltou, em 2019, uma ação mais contundente contra o crime organizado no Rio de Janeiro. Minha intenção era criar uma grande força-tarefa no âmbito da Polícia Federal, para investigar organizações criminosas fluminenses: não só as facções, como o Comando Vermelho, mas também as milícias. Em relação a essas, aliás, a atuação da Polícia Federal é imprescindível, tendo em vista a conexão entre elas e grupos da polícia local, o que gera dificuldades no trabalho de investigação e repressão” [ob. cit., p. 158].

Uma caracterização bastante fiel da situação de extrema inseguridade e violência vivida pelo Rio de Janeiro, com motivo do domínio do crime organizado, foi feita, em 1996, pelo então deputado federal Roberto Campos: “A Guanabara - frisava - sofre de um círculo vicioso e da síndrome do medo. É uma trágica causação circular. O desemprego provoca a marginalidade; a marginalidade gera a violência; a violência afasta investidores e agrava o desemprego; e o desemprego fomenta a marginalidade. Os investidores nacionais vivem sob a ameaça do seqüestro ou têm de pagar tributo a traficantes e pseudo-sindicalistas para diminuição de roubos. Ao tempo de Brizola, as multinacionais, além disso, dificilmente dariam prioridade a um Estado cujo governador as considerava espoliadoras e causadoras de perdas internacionais, atitude há muito abandonada pela China, Cuba e Vietnã. Na paisagem medieval, os morros eram ocupados por templos, mosteiros e castelos. Os morros do Rio se tornaram fortalezas do crime, onde pequenos comerciantes têm de pagar pedágio para continuarem no negócio, e uma população pobre e honesta tem de se submeter às ordenanças dos criminosos que controlam o direito de ir e vir. O esvaziamento desta nova Bósnia é duplo. Fogem os turistas e fogem os investidores. Em 1984, o Rio recebeu 623 mil turistas; 5 anos depois, apenas 471 mil, numa época de crescimento explosivo do turismo mundial. Perdera sua condição de capital política para Brasília, perdeu a gala de capital financeira para São Paulo, a de cartão postal turístico para o Nordeste e a de grande porto comercial para Vitória, onde os custos portuários são mais baixos. A Belacap é uma órfã a ser resgatada, e não uma pérola a ser invejada” [Campos, Roberto de Oliveira, “O Rio de Janeiro, o futuro e nós”, O Globo, Rio de Janeiro, 13/11/1996: Caderno 1, p. 7].

O tráfico de drogas tornou-se forte na cidade do Rio, basicamente por dois motivos: o populismo dos governadores (Chagas Freitas e, sobretudo, Leonel Brizola), e a decisão dos produtores internacionais de tóxicos de tornar o Brasil foco de produção, não apenas de comercialização de drogas. Em relação a esse ponto, foi uma cruel coincidência o Rio ter mergulhado no caos de violência e decadência ilustrado por Roberto Campos?

Aparentemente, sim. Mas, examinadas as coisas mais de perto, não. Houve uma deliberação clara do crime organizado, no sentido de incluir o Brasil no organograma de produção/consumo/exportação de tóxicos. Não esqueçamos que o narcotráfico constitui a maior multinacional do planeta, que rivaliza com as companhias petroleiras. O comércio global de drogas proibidas, anualmente e a nível mundial, era calculado, nos anos 90, em 500 bilhões de dólares [dados da Revista The Economist, de 1990]. Ora, seria ingênuo pensar que os chefões da droga tivessem a mentalidade do quitandeiro da esquina. Muito pelo contrário, planejavam friamente os seus negócios.

O comunicador e jornalista Amauri Mello [“Crime a futuro”, O Globo, 13/06/2003] lembrava que, em 1989, a máfia italiana estava interessada em incrementar os negócios do narcotráfico no Brasil, diante do combate que estavam sofrendo, da parte dos Estados Unidos e dos governos locais, os cartéis andinos da coca. Segundo Amauri, que trabalhou na Europa, policiais italianos tiveram uma série de conversas nesse ano com jornalistas latino-americanos (entre os que ele se encontrava), acerca das últimas pesquisas dos órgãos de segurança da Itália, em relação aos negócios do narcotráfico.

A propósito dessas conversas, frisava o mencionado jornalista: “Mal engatinhávamos no consumo de drogas mais glamourosas como a cocaína. O brasileiro era bom de marijuana, diziam os oficiais da Guarda Finanziaria, entidade policial italiana que trata desde crimes tributários até lavagem de dinheiro e associação mafiosa. Mas, afirmavam, em pouco tempo o Brasil seria o maior fornecedor de cocaína do mundo. Os argumentos, observados agora, à luz do tempo, pareciam fantasiosos. Vamos percorrê-los: 1) o Brasil possui imensas e livres fronteiras; 2) a pobreza no interior das áreas da Amazônia e do Centro-Oeste é permanente; 3) a população, sempre crescente, reúne uma classe média de muitos milhões de pessoas, clientes potenciais da droga, então tida como chique; 4) as legislações que tratam de imigração, estabelecimento de estrangeiros e assemelhados são quase um convite; 5) fronteiras com o mar de mais de oito mil quilômetros; o litoral de Rio de Janeiro, São Paulo e Santa Catarina repleto de ilhas e ilhotas com grandes fluxos de turismo argentino (na época, claro); 6) miscigenação total; encontra-se brasileiro com nome de árabe, chinês, japonês, turco, boliviano, etc.; 7) consumismo e lazer marcam o comportamento de ricos e pobres, facilitando festas e estas drogas...” [Amauri Mello, “Crime a futuro”, O Globo, 13/06/2003. Cf., da minha autoria: Narcotráfico, patrimonialismo e violência: Desafios no Brasil. 1ª edição. Campinas: Távola Editorial, 2019, pp. 25-37].

Sérgio Moro considera, no seu livro, que era necessário, primeiro, esperar para consolidar devidamente a Polícia Federal, a fim de poder passar à ação. Essa consolidação previa a realização de concurso público. O planejamento terminou sendo atropelado pela pandemia de Covid-19, bem como pela crise deflagrada no seio da Polícia Federal. A respeito, frisa: “Entretanto, no início de 2019 a PF sofria com escassez de efetivo, devido à falta de realização de concursos públicos pelos governos anteriores. Entendi que era mais apropriado aguardar o concurso em andamento e a convocação dos aprovados para formar essa força-tarefa, o que só ocorreu no fim daquele ano. Mas o plano foi atropelado pelas urgências da pandemia de Covid-19 e pela crise na própria Polícia Federal que resultou na minha saída do governo” [ob. cit., p. 158].

Sérgio Moro imaginou duas etapas de atuação: primeiro, elaborar um projeto piloto que serviria de laboratório para as ações que, ulteriormente, seriam desenvolvidas no Rio. Esse projeto passou a ser denominado de “Em frente Brasil”. Segundo o pré-candidato, “Um dos propósitos do projeto (...), desenvolvido na minha gestão, era servir de laboratório para, futuramente, ser empregado no Rio de Janeiro. Escolhemos cinco cidades, uma para cada região do país, com base nos seus elevados índices de violência: Ananindeua (PA), Goiânia (GO), Paulista (PE), Cariacica (ES) e São José dos Pinhais (PR). A ideia era integrar as forças de segurança das três esferas da Federação – União, estados e municípios – para, por meio de atuação conjunta, saturar ações de policiamento ostensivo, inclusive com o uso da Força Nacional de Segurança Pública e da Polícia Rodoviária Federal. À Polícia Federal caberia auxiliar na investigação das gangues locais com o objetivo de desmantelá-las” [Sérgio Moro, Contra o sistema de corrupção, ob. cit., p. 158].

Paralelamente, o pré-candidato e então Ministro da Justiça e Segurança Pública passou a desenhar as ações sociais a serem desenvolvidas nas áreas escolhidas. Encontro, aqui, uma semelhança com as políticas públicas deflagradas pelos governos municipais e departamentais da Colômbia, nas principais cidades afetadas pela violência do narcotráfico e da guerrilha, no período compreendido entre 2002 e 2007. Não basta reprimir os traficantes armados. É necessário, também, deflagrar ações sociais continuadas em benefício da população que tinha ficado refém dos grupos armados [cf., da minha autoria, Da guerra à pacificação: a escolha colombiana. Campinas: Vide Editorial / CEDET, 2010, pp. 101-136].

Em relação ao planejamento das ações sociais a serem deflagradas nas cidades em que já tivesse ocorrido a intervenção das forças de segurança, frisa o pré-candidato: “Ao mesmo tempo, solicitei o apoio dos demais ministérios, especialmente aqueles envolvidos em ações sociais, para intensificar o trabalho nas cidades escolhidas. Prevenção e repressão qualificadas e ações sociais fariam a diferença na diminuição da violência. Claro que o ideal seria universalizar essa fórmula para todas as cidades do país. Mas, como os recursos eram escassos, fazia sentido focalizar as cidades mais violentas. Com ações planejadas e unificadas, o Estado tem condições de vencer os desafios impostos pela violência urbana e também aqueles decorrentes do crime organizado. As forças de segurança eliminam, com prisões e policiamento ostensivo, os grupos criminosos locais, e o poder público investe em serviços para amparar os cidadãos” [ob. cit., pp. 158-159].

Eu próprio, na minha condição de Ministro da Educação, participei das sessões em que participaram vários Ministérios (MEC, Casa Civil, Cidadania, Defesa, Saúde, Economia, Infraestrutura). Sérgio Moro acredita no papel do Estado e das suas ações, quando programadas devidamente. Ressaltando o papel insubstituível do Estado, frisa: “Não há desculpa para a ausência do Estado. Se os recursos são poucos, é preciso ter foco. Intensifica-se a presença policial ostensiva em um bairro violento, instauram-se investigações especiais para prender as gangues locais e, ao mesmo tempo, revitalizam-se escolas e unidades de saúde, asfaltam-se ruas, conserta-se e amplia-se a rede de iluminação pública. Se há dificuldade, por exemplo, para se ter ensino em tempo integral em todo o país, pode-se começar a adotá-lo nos bairros mais violentos, a fim de dar um futuro digno para crianças e adolescentes vulneráveis à criminalidade das ruas” [ob. cit., p. 159].

Avaliação das propostas.

Em três pontos o pré-candidato Moro sintetiza a prestação de contas de sua proposta de Segurança Pública denominada de “Em Frente Brasil”:

1 – “A grande dificuldade, em uma Federação como a brasileira, é planejar e coordenar esses esforços. O programa ‘Em Frente Brasil’ tinha como objetivo servir como um laboratório, para posteriormente ser ampliado para outros pontos do país – Rio de Janeiro, inclusive. Enquanto estive no ministério, o programa estava em andamento. A coordenação da parte da segurança, dependente, em nível federal, apenas do Ministério da Justiça e Segurança Pública, funcionou: foram criados os mecanismos para integrar as forças de segurança e coordenar as suas ações” [ob. cit., p. 159].

2 – “Os resultados foram diferenciados: houve redução na criminalidade em algumas das cidades escolhidas e, em outras, houve uma queda seguida de crescimento. Os assassinatos caíram expressivamente em: Ananindeua/PA, de 371 em 2018 para 151 em 2019 e 84 em 2020; em Goiânia/GO, de 409 em 2018 para 267 em 2019 e 235 em 2020; e em Paulista/PE, de 119 em 2018, para 85 em 2019 e 81 em 2020. Já em Cariacica/ES, os resultados não foram tão positivos, com 156 assassinatos em 2018, 148 em 2019, mas 174 em 2020, o mesmo ocorrendo em São José dos Pinhais/PR, com 69 assassinatos em 2018, 59 em 2019, mas 67 em 2020” [ob. cit., p. 159, nota 1. A respeito desta nota, o Autor cita a seguinte fonte: Sinesp -https://www.justiça.gov.br/sua-segurança-publica/sinesp-/bi/dados-segurança-publica. Aceso em 15/09/2021].

“Como programa experimental – frisa o Autor -, a disparidade de resultados deveria ser estudada para avaliar os acertos e os erros. Um deles foi que a parte dos demais serviços e ações sociais, que dependia de outros ministérios, avançou de maneira muito lenta, seja por falta de maior apoio ao projeto pela Presidência da República, seja pela inércia inerente à burocracia estatal” [ob. cit., pp. 159-160].

3 – “Independentemente da minha saída do governo, o programa deveria continuar, pois a concepção do projeto é correta: integrar as forças de segurança federais, estaduais e locais para a prevenção e repressão qualificada da criminalidade nas cidades mais violentas, somando-se a isso ações de cunho econômico e social. Claro que haveria dificuldade de levar a Força Nacional a todas as cidades nas quais ela seria necessária, mas mesmo assim a coordenação entre as forças de segurança poderia ser promovida apenas com a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Federal e as forças locais, o que já seria um ganho. Seria imprescindível, porém, que os demais ramos do governo atuassem com maior intensidade para providenciar os serviços sociais de amparo à população local” [ob. cit., p. 160].