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MODERNIDADE, INFORMAÇÃO E REFORMA SOCIAL

MODERNIDADE, INFORMAÇÃO E REFORMA SOCIAL

A Ilha São Luís com a nova dimensão geométrica planejada pelos urbanistas de Luís XIV.

A razão cartesiana, na Modernidade, no plano social, percorreu duas etapas: a primeira, ao longo do século XVII, quando se concretizou num Centro de poder identificado com as monarquias absolutas. A segunda etapa ocorreu ao longo dos séculos XVIII e XIX, ao ensejo da transposição do poder da monarquia absoluta para as assembleias, representantes dos interesses das classes sociais.

As mais claras manifestações da primeira etapa foram os reinados de Carlos I Stuart (1600-1649), da Inglaterra e Luís XIV (1638-1715), da França. A razão, dona e senhora da verdade, passou a ocupar o lugar da tradição, que a Igreja controlava ao longo da Idade Média. Migrou, com o cartesianismo, do altar para o indivíduo, encarnada no Monarca Absoluto.

As manifestações da segunda etapa foram as chamadas Revoluções Burguesas, que colocaram o poder em mãos das assembleias representativas dos interesses das classes sociais. Nos séculos XVIII e XIX, a razão social migrou dos soberanos absolutos para as sociedades civis, convertidas em detentoras do poder, concretizado nas assembleias. As Assembleias, nos Parlamentos, passaram a acolher a representação dos interesses não somente da antiga Nobreza, mas também dos da Burguesia e dos Trabalhadores (o Proletariado). Foram se desenvolvendo os Partidos Políticos, como instrumentos de representação dos interesses das classes e como caminhos expeditos para a conquista do poder nos pleitos eleitorais. Consolidaram-se Partidos de extração burguesa, nobiliárquica (conservadora) e trabalhadora. Isso se deu, de forma clara, na Inglaterra, na França e na Alemanha [cf. Vélez, 2007: 21-119].

A verdade social, no terreno do Absolutismo, foi resumida por Luís XIV, o Rei Sol, da França, na famosa frase: “L´État c´est moi”. O Rei-Sol passou a tudo iluminar a partir do seu Palácio, em Versalhes, espalhando as linhas geométricas e a ordem harmônica no espaço social. Do Palácio Real, como raios, as linhas retas passaram a pôr ordem na caótica estrutura urbana medieval, cheia de ruelas improvisadas, tudo amontoado caoticamente ao redor do Palácio Real. A empresa organizadora começou, em Paris, pelas pontes, ocupadas por construções amontoadas, e, também, pela Ilha São Luís, que viu as ruelas serem transformadas em avenidas amplas, traçadas geometricamente, dando ensejo à ordem retangular. Essa ordem se espraiou pela Europa afora [cf. Fierro – Sarazin, 2006: 7-15; 64-66; 133-137]. A verdade é que a ordem retangular não era nova: já as Cidades Antigas, na Grécia e no Império Helenístico de Alexandre o Grande (356 a.C-326 a.C), tinham consagrado a construção do espaço urbano conforme padrões geométricos que se estenderam à Capital do Império Romano, a partir de duas linhas retas que se cruzavam formando uma quadrícula [cf. Escolar, 2001: 44-56].

Na cidade de Lisboa, em meados do século XVIII, o marquês de Pombal (1699-1782), após o terremoto que destruiu boa parte do centro antigo, mandou traçar o novo espaço, no Rossio, com ruas matematicamente desenhadas. Foi sob a inspiração do Absolutismo que o prefeito (prévot des marchands) da capital francesa, Etienne Turgot, em 1729, mandou desenhar o Plano de Paris a voo de pássaro, que terminou mostrando como, aos poucos, a velha desordem medieval ia dando lugar ao moderno espaço urbano e, deste, se espraiando pelo país afora numa noção de ordem em que os interesses do Estado estavam ciosamente preservados pelo Monarca e os seus Conselhos, na obsessiva preocupação de garantir a grandeza da Nação Francesa, na diplomacia, no comércio, nas artes, nas ciências, na arquitetura, no urbanismo, na guerra e na política.

Luís XIV teve a ousadia de derrubar as muralhas da Paris medieval, substituindo-as pela novidade que as cidades holandesas, conquistadas pela burguesia, mostravam a todo o mundo: os “wulvarts” ou “boulevards” demarcados esteticamente por fileiras de árvores. Com as armas de fogo e a artilharia tendo sido incorporadas à Grande Armée, estava garantida, com rapidez e eficácia, a segurança da França [cf. Vélez, 2007: 99-103]. Ali onde fosse necessário, a Grande Armée iria combater aquele que ousasse atentar contra a segurança nacional. Ainda o turista hodierno fica impressionado, quando visita a cidade alemã de Heidelberg, com o belo castelo que, de um monte central, domina o panorama da cidade. Um detalhe salta à vista: a torre principal jaz derrubada por terra. Incúria da prefeitura local para com o principal monumento público? Não. A torre, deitada por terra, foi um alerta deixado, para a posteridade, pelo exército de Luís XIV, que a mandou derrubar com tiros de canhão, a fim de mostrar que a ordem medieval, garantida pelas muralhas, de nada servia. Os tempos, a partir do século do Absolutismo, seriam outros. A Idade Média já era. E a França encarnava a racionalidade política.

A segurança não dependia mais das muralhas nas cidades, mas de uma diplomacia racional e habilidosa, em que os interesses do país fossem preservados, à sombra de tratados assinados com os soberanos estrangeiros, estreitamente vigiados pelos exércitos do Rei e por uma miríade de cultos diplomatas. Luís XIV consolidou, assim, uma estratégia de demarcação de fronteiras e de respeito a elas, reforçando a ideia de soberania nacional. Esse aspecto entrou, definitivamente, na cultura política da França. O alargamento de fronteiras, ocorrido ao longo dos séculos XVII e XVIII, inclusive após a Revolução de 1789, com as guerras napoleônicas, alicerçar-se-ia sobre essa concepção de estratégia moderna. O que Napoleão Bonaparte (1769-1821) pretendeu fazer foi garantir a segurança das fronteiras, mediante uma série de alianças com os principados e reinos estrangeiros, que davam fundamento à supremacia do país no cenário europeu. A ideia napoleônica do “bloco continental” confirmava a estratégia de soberania formulada por Luís XIV [cf. Vélez, 2007: 199-222].

A gestão do Estado incorporou a especialização dos vários Conselhos em funções racionalmente previstas e contando com cargos de hábeis administradores especializados nas suas funções. A racionalidade da nascente empresa capitalista passava a irradiar as luzes do conhecimento na gestão da coisa pública. O Capitalismo, na sua variante mercantilista, iluminou o Absolutismo.

Os soberanos absolutistas passaram a gerir, de forma ciosa, as comunicações e a circulação de notícias destinadas aos seus súditos e aos governos estrangeiros. Nessa empreitada, tanto Luís XIV, como Napoleão Bonaparte e dom José I de Portugal (com a intermediação inapelável do seu ministro Marquês de Pombal), foram hábeis manipuladores da informação. Na época da Revolução Francesa era generoso o número de jornais que circulavam em Paris, mais de trezentos. Napoleão, em 1800, Primeiro Cônsul, decidiu pôr ordem na bagunça revolucionária, revelada claramente na impossibilidade de acordos na Assembleia dos Quinhentos. Tomou, então, duas providências: impôs a unanimidade dos seus decretos fechando, manu militari, a Assembleia e reduzindo drasticamente o número de jornais, de trezentos para apenas trinta, rigorosamente controlados pelos seus intendentes. Daí para a proclamação do Império, em 1804, foi um só passo. A informação e as decisões das assembleias passaram a ser controladas, diretamente, pelos soberanos absolutistas.

Entre 1870 e 1914, conforme destacou José Ortega y Gasset (1883-1955) em A rebelião das massas [cf. Ortega, 2016] ocorreu um fenômeno, que já tinha sido identificado por Oswald Spengler (1880-1936) na sua clássica obra intitulada: La decadencia de Occidente [Spengler 2011]: as massas se multiplicaram. Na época de Ortega, já era clara essa mutação acelerada: as aristocracias passaram a desempenhar uma função minoritária nas sociedades ocidentais. Aquilo que, ao longo do século XIX, foi sendo preparado com os abruptos movimentos reivindicatórios do proletariado no ludismo, passou a virar o clima predominante na época. Graças aos avanços das ciências (o surto de cólera foi controlado em Londres em 1810, mediante a purificação das águas do rio Tâmisa, através dos distritos sanitários em que a cidade foi dividida), e graças, também, à democratização das sociedades ocidentais, ensejada pela social-democracia e pela revolução na agricultura, de que dá testemunho o pensador tcheco-austríaco Karl Kautsky (1854-1938) [cf. 1988], nos seus estudos estatísticos sobre o aumento da produção da classe média rural na Europa Central. A sociedade europeia cresceu, se enriquecendo e quintuplicando o número de habitantes.

Com o advento da Social-Democracia na Alemanha, a partir do socialismo democrático de Ferdinand Lassalle (1825-1864) e em decorrência da vigorosa militância de Eduard Bernstein (1850-1932), para afastar as massas trabalhadoras dos comunistas e chefiar um plano de reformas a partir das iniciativas dos trabalhadores, democraticamente organizados, estes passaram a se preparar, no plano político e econômico, a fim de conquistar o poder no Parlamento, pelo voto, fato que aconteceu, na Alemanha, na última década do século XIX. Esse mesmo movimento de conquista do poder por parte dos trabalhadores se deu na Inglaterra, com o Labour Party, e na França, com o Partido Socialista, nos primeiros decênios do século XX.

Ao longo da primeira pós-guerra, entre 1920 e 1930, (Ortega escreve o seu ensaio em 1928), uma grande massa inculta toma conta do pedaço nas urbes europeias. Meio século atrás, no final da década de 1870, Karl Marx (1818-1883) deixava, aos domingos, que as suas filhas, acompanhadas de um velho amigo, chamado genericamente de “O Professor”, fossem ver os desfiles da guarda real inglesa, nas amplas avenidas circundadas de jardins, em Londres [cf. Wilson, 1986: 308-315]. O autor de O Capital observava, com inveja, como a nova classe, a burguesia, não somente tinha inovado na produção de bens, serviços e mercadorias, mas, também, tinha desenvolvido programas para uso do tempo livre, antes restritos à velha e corrupta aristocracia de Versalhes, com divertimentos que atraiam multidões, coisa inimaginada, séculos atrás, ainda sob a férula de ferro dos velhos costumes feudais.

Vinte anos após a Revolução Francesa, confessava Benjamin Constant de Rebecque : “No mundo, só existem dois poderes: um, ilegítimo, a força; outro, legítimo, a vontade geral” [Constant, 1970: XVII]. Ora, se a dica da força para controlar a “vontade geral”, mediante o terror do Estado, tinha sido dada por Jean-Jacques Rousseau (1716-1778) na sua obrinha Do Contrato social (1762), à luz do qual se cometeram todas as tropelias e violências de que foi capaz a Revolução Francesa (1789), culminando com o Terror jacobino, a única forma de evitar essa dura saída consistiria em formar a opinião pública, respeitando o indivíduo. Isso se conseguiria mediante o constitucionalismo moderno, que pusesse limites à soberania do Estado, tarefa para a qual eram essenciais: a preservação dos indivíduos e dos seus direitos inalienáveis, para o qual eram de enorme importância não somente a propriedade privada, como, também, a liberdade religiosa, a de expressão (mediante a imprensa livre), a tolerância de cultos e o funcionamento dos partidos políticos. A importância definitiva conferida por Constant à vivência religiosa como um dos fatores constitutivos da individualidade, foi destacada pelo professor Marco Antônio Barroso, na sua tese de doutorado [cf. Barroso, 2016].

Desse trabalho se desincumbiram, na França, os Doutrinários, à cuja testa estava François Guizot (1787-1874), tendo sido Constant de Rebecque e Madame de Staël (1766-1817) as figuras precursoras daqueles. Para Constant, o ideal da igualdade somente se poderia realizar, de forma civilizada, mediante a conquista prévia da liberdade dos indivíduos. E o papel da imprensa, nessa tarefa, era insubstituível, como lembra José Alvarez Junco, na introdução que escreveu para Princípios de Política: “Para completar o regime constitucional, Constant faz alusão à liberdade de imprensa e à autonomia local. Vale a pena (...) sublinhar o valor desta parte de sua teoria. Constant defendeu a liberdade de imprensa, mais constante e entusiasticamente do que qualquer outro, na sua época: a liberdade de imprensa educa politicamente um povo, ajuda a controlar o governo, protege os direitos individuais, estimula a livre discussão, ajuda a julgar o fundamento de todas as acusações... Não é em Princípios de Política onde Constant defende essa ideia com mais força, porém assinala, suficientemente, que, para a imprensa, não cabe a censura prévia, mas unicamente a repressão ulterior para aqueles que provoquem delitos de Direito comum, insultem ou caluniem, e, em todo caso, o julgamento deve ser efetivado por jurados” [Constant, 1970: XXX].

O liberalismo social formulado por Alexis de Tocqueville (1805-1859) ancora nessa tradição doutrinária e, também, na observação que o autor fez, nos Estados Unidos, da forma em que se consolidou a democracia americana, na visita de estudos que fez a esse país, entre abril de 1831 e março de 1832, ao longo de nove meses, em companhia do seu colega de magistratura, em Versalhes, Gustave de Beaumont (1802-1866). Ambos os jovens visitaram vários estabelecimentos penitenciários da América, onde tinha sido aplicado o sistema de prisão celular. Como resultado dessa pesquisa, os magistrados publicaram, em 1833, o informe intitulado: Acerca do sistema penitenciário nos Estados Unidos e sua aplicação na França que foi premiado pela Academia Francesa [cf. Tocqueville, 1984].

Mas, realmente, a viagem de Tocqueville e Beaumont tinha outra finalidade: estudar a forma em que funcionava a primeira grande democracia do mundo, nos Estados Unidos da América, onde tinham vingado os dois ideais por eles cultuados: a liberdade e a democracia. O contato que Tocqueville teve com os doutrinários foi anterior à sua viagem à América. Em 1829-1830, Tocqueville frequentou os cursos que François Guizot (1787-1874) ministrou na Sorbonne sobre a história da França. Como lembra Françoise Mélonio, Tocqueville foi um “ouvinte atento”, que “tomava notas nas quais se vê a admiração do discípulo” [Mélonio, 1993: 17]. Mas, por outro lado, um discípulo crítico, que tinha sofrido, na pele da sua família nobre, os excessos da Revolução, que era focalizada pelo frio Guizot de uma forma mais distanciada e formalista. Particularmente, nosso autor encontrava dificuldade em aceitar a ideia de Guizot de superar o ciclo revolucionário num regime fundado apenas no voto censitário.

Sem dúvida que a influência de Guizot foi decisiva em Tocqueville, em que pese o reparo que acabamos de mencionar. O cerne dessa influência consistiu na insistência do velho doutrinário em “inculcar nas novas gerações o respeito pelo passado, para restabelecer a unidade da Nação ao longo dos séculos” [Mélonio, 1993: 17].

Tocqueville assimilou perfeitamente a herança dos doutrinários, notadamente de Guizot. “A obra de Tocqueville – escreve Françoise Mélonio – nasce do sentimento da precariedade do compromisso efetivado, pela monarquia constitucional, entre a reivindicação igualitária e a herança do Antigo Regime. Tocqueville vivenciou esse sentimento nas desgraças de sua família. Mas ele lhe deu uma forma racional, graças à leitura das obras dos seus antepassados. Desde 1828 ele se afasta do radicalismo dos seus familiares, ao repudiar a ilusão de uma volta ao passado: ele aceita 1789 como uma ruptura definitiva na história da França. No início, ele compartilha com os liberais ou os doutrinários, seus antepassados, o sentimento de pertencer a obscuras gerações de momentos de mudança. Com eles, observa a democracia ‘correndo a margens cheias’ [expressão cunhada por Royer-Collard em discurso pronunciado em 17 de maio de 1820]. Como eles, crê no caráter irresistível do curso dos acontecimentos. ‘Os rios não remontam em direção à fonte. Os fatos acontecidos não viram nada’ [expressão de Guizot]. A obra de Tocqueville seguirá interminavelmente a metáfora fluvial introduzida pelos doutrinários. Ao aceitar o diagnóstico dos liberais, Tocqueville faz também seus os objetivos deles. Pois, tudo está destruído, é então tempo de reconstrução. Tarefa difícil. A paixão de destruir, que sobrevive à Revolução, mantém a sociedade em estado de guerra civil. Depois de 1820, a Restauração é alvo de complôs renovados, que manifestam a impossibilidade de um consenso em relação às instituições” [Mélonio, 1993: 16].

Mas, se Tocqueville é tributário dos doutrinários, no entanto, os supera. A defesa da liberdade, que no pensamento daqueles se traduziu num certo formalismo, que pretendia garantir as conquistas da Revolução apenas para a burguesia comodamente instalada no poder, no nosso autor constitui imperativo categórico a ser consolidado e garantido para todos os Franceses. Tocqueville abre-se à democracia, que vivencia, de fato, na América, por meio do caminho da defesa da liberdade para todos.

Em relação à maneira como nosso autor entende o seu ideal liberal e democrático, em contraposição à forma tacanha em que era concebido pelos doutrinários, Françoise Mélonio escreve: “Mas o self-government não é mais do que um dos aspectos da auto regulação da sociedade. Tocqueville faz de toda a vida social uma grande escola de responsabilidade; na ordem jurídica, pela participação de todos no júri, na ordem da opinião, por uma reflexão sobre os partidos e os jornais, que ele designa com o termo genérico de ‘associação’. Polêmica, a argumentação de Tocqueville é dirigida contra a feição conservadora dos publicistas liberais ou doutrinários, que rapidamente se tinham mostrado infiéis à liberdade exigida por eles sob a Restauração, ao fazer votar as leis de 16 de fevereiro de 1834 acerca do anúncio e da venda de jornais, de 10 de abril de 1834 sobre as associações, de setembro de 1835 após o atentado de Fieschi.

Toda a estratégia de Tocqueville consiste em mostrar que a ordem tão cara aos conservadores não pode ser garantida senão graças à liberdade de se reunir, que eles negam precisamente ao cidadão francês. É necessário arriscar, estamos envolvidos. Não há meio-termo entre a servidão e a extrema liberdade. Todas as políticas de frear a história, todos os sonhos de uma ordem estabelecida, decorrem dessas ‘ilusões em que adormecem geralmente as nações doentes’. A democracia não é o lugar da identidade miraculosa entre os homens, mas é aquele regime que se consolida na relação entre as classes antagônicas” [Mélonio, 1993: 37].

A ‘conversão’ de Tocqueville ao ideal democrático efetivou-se, de forma clara, em sua viagem à América. “É possível datar as etapas dessa conversão”, escreve Françoise Mélonio. “Em Nova Iorque, onde permanece de 11 de maio a 2 de julho de 1832, Tocqueville é, no começo, muito reticente. Essa sociedade de mercado onde o governo está ainda na infância, não possui nada que possa seduzir um jovem aristocrata. ‘Tudo quanto observo não me entusiasma’, anota ele então, ‘pois aposto mais na natureza das coisas que na vontade do homem’. Mas ele não pode deixar de invejar o patriotismo do povo norte-americano e a tranquilidade com a qual ele ‘se mantém em ordem, graças somente ao sentimento de que não há mais salvaguarda contra si mesmo do que em si mesmo’. A conversão se completa em Boston (7 de setembro – 3 de outubro), onde Tocqueville, ao descobrir o que é a liberdade bem regrada, adere a uma democracia que, de resto, triunfa irresistivelmente. É tão somente agora, no fim de setembro, que ele decide escrever um livro sobre as instituições americanas, para testemunhar, entre os Franceses, que a democracia feliz existe, pois a tem encontrado (...)” [Mélonio, 1993: 29-30].

Vale a pena citar o trecho da carta em que Tocqueville relata o novo projeto a seu primo, Luís de Kergolay (1804-1880): “Descrever muito exatamente o que seria necessário esperar e temer da liberdade. Nós temos tido na França, nos últimos cem anos, a anarquia e o despotismo sob todas as suas formas, mas jamais nada que se assemelhasse a uma república. Se os monarquistas pudessem ver a marcha interior de uma república bem organizada, o respeito profundo que se tem ali pelos direitos adquiridos, a pujança desses direitos nas massas, a religião da lei, a liberdade real e eficaz de que ali se goza, o verdadeiro reino da maioria, o progresso cômodo e natural que ali seguem todas as coisas, perceberiam que abarcam, sob um nome comum, estados diversos que nada possuem de análogo. Os nossos republicanos, por sua vez, sentiriam que o que temos chamado de República não tem sido mais do que um monstro que não se saberia classificar (...), coberto de sangue e de sujeira, vestido de farrapos, ao som das querelas da antiguidade” [Mélonio, 1993: 30].

A democracia na América, de Tocqueville [cf. 1992] constituiu, inicialmente, duas obras, as popularmente chamadas Primeira e Segunda democracia. A primeira foi publicada em 1835, em dois volumes, A segunda apareceu em 1839, em 4 volumes. A Primeira democracia constituiu mais uma descrição daquilo que o nosso autor observou na América. Já na Segunda democracia encontramos uma dimensão mais abstrata. Conforme salientou Pierre Larousse: “A obra de Tocqueville sobre a democracia americana se divide, quanto ao fundo, em duas partes: na primeira, vê-se um observador que analisa; na segunda, um pensador que medita e julga” [Larousse, 1865, v. 15].

A elaboração da obra foi complexa, não se tendo limitado o autor à reprodução das notas de viagem. Uma profunda meditação sobre os materiais coletados, bem como sobre as relações entre os sistemas políticos americano e francês, precedeu à escrita de A democracia na América. Estudioso do caminho percorrido por Tocqueville na elaboração dessa obra, James T. Schleifer (1942-) escreve: “A primeira viagem de Alexis de Tocqueville à América do Norte foi concluída em 20 de fevereiro de 1832, data em que o navio Le Havre partiu de Nova Iorque rumo à França. Mas sua visita de nove meses tinha sido somente o prólogo de uma segunda viagem, que se estenderia pelos oito anos seguintes: o período da composição de A democracia na América (...). Há tempo os intelectuais perceberam o fato de que os ingredientes que compõem A democracia são muitos e variados. Alguma coisa deve o livro ao ambiente em que se movimentava Tocqueville, particularmente ao panorama intelectual e político da França de começo do século XIX. A obra revela os estigmas da juventude e a educação do autor. Baseia-se nas intensas experiências de primeira mão que ele e Gustave de Beaumont (1802-1866) tiveram dos Estados Unidos e do presidente Andrew Jackson (1767-1845). Responde também às cartas e ensaios de amizades norte-americanas e europeias que lhe ajudaram; a uma longa lista de materiais impressos; às opiniões e críticas de parentes e amigos que leram os primeiros rascunhos; às suas experiências na França durante a redação da Democracia; responde, por último, às suas crenças, dúvidas e ambições pessoais. No entanto, a narração da elaboração do livro exige uma reavaliação geral dessas fontes e, ao mesmo tempo, coloca questões mais específicas. Quando e em que medida determinados homens, livros ou acontecimentos afetaram A democracia? As leituras de Tocqueville e as suas conversas acerca dos diferentes temas eram adequadas? Como conciliava ele opiniões e informações contraditórias? Quais as fontes que, em última instância, eram as mais importantes? Revelam os rascunhos ou manuscritos de trabalho algumas raízes novas não suspeitadas?” [Schleifer, 1987: 15-16].

O debate ensejado por Tocqueville na França e na América, efetivou-se, na Inglaterra, por obra dos utilitaristas, dentre os quais se destacaram Jeremy Bentham (1748-1832), John Stuart Mill (1806-1873) e Henry Sydwick (1838-1900). Tocqueville acompanhou de perto os debates desses pensadores, em decorrência da afinidade de ideais e da amizade que o ligavam a Stuart Mill, de que dá testemunho a correspondência trocada entre eles [Cf. Tocqueville / Mill, 1985]. Partindo do pressuposto de uma dignidade humana básica, que deveria ser garantida para todas as pessoas, em decorrência da herança axiológica judaico-cristã (todos somos pessoas com dignidade, pelo fato de termos sido criados à imagem e semelhança de Deus), os utilitaristas pensaram os caminhos através dos quais seria possível garantir, a todos, condições de vida dignas. No final do século XIX o debate estendeu-se, na Inglaterra, às minorias, incluindo as mulheres. O papel da imprensa foi fundamental nessa tarefa. Os utilitaristas foram notáveis publicistas, editores de revistas dedicadas ao debate sobre os grandes temas ligados à justiça social. A democratização das discussões sobre justiça social estendeu-se, obviamente, à imprensa. O Iluminismo já tinha dado a sua contribuição, nesse terreno, nos Estados Unidos, com as discussões acerca da elaboração da Constituição de Filadélfia e das formas de se manter a democracia nas recém-libertas treze colônias da América do Norte. Boa parte dessa discussão terminou sendo publicada na obra O Federalista [cf. Hamilton / Madison / Jay, 1973].

A nossa história, em Ibero-America, desenvolveu-se sempre entre dois extremos antidemocráticos. De um lado, o velho absolutismo ibérico e o seu herdeiro, o caudilhismo; de outro, o anarquismo revolucionário. A liberdade foi, nesse contexto de barbárie, a grande vítima. Na obra de Tocqueville encontramos uma proposta original para iluminar a luta pela conquista da autêntica democracia nos nossos países. Alexis de Tocqueville mostrou que o caminho deveria ser o da defesa da liberdade para todos os cidadãos. Após a queda do Muro de Berlim e, com ela, do modelo de democracia sem liberdade proposto por Marx, o modelo tocquevilliano de democracia liberal está em alta e é capaz de inspirar, ainda, os processos de renovação política e de reforma do Estado, em andamento no Brasil e no resto da América Latina [cf. Vélez, 1998].

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