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MIRABEAU, EDUARDO CUNHA E O SENADOR JARBAS VANCONCELLOS: DOIS TEXTOS DE UM PASSADO RECENTE.

MIRABEAU, EDUARDO CUNHA E O SENADOR JARBAS VANCONCELLOS: DOIS TEXTOS DE UM PASSADO RECENTE.

HONORÉ GABRIEL RIQUETI, CONDE DE MIRABEAU (1749-1791). PRESIDIU O PARLAMENTO FRANCÊS NOS CONFUSOS EPISÓDIOS DA REVOLUÇÃO FRANCESA E, QUANDO MORREU, FOI ENTERRADO COMO HERÓI DA REPÚBLICA FRANCESA NO PANTEÃO.

Vez por outra, lembrar o que pensamos no passado talvez nos ajude a melhor conhecer o presente. Em face dessa campanha confusa que se arrastou penosamente em meio a denúncias de parte e parte (de Lula contra Bolsonaro e de Bolsonaro contra Lula), talvez nos ajude a compreender a complexidade das variáveis que se entrecruzam, ver o que pensávamos de instantes igualmente complicados nas décadas passadas. Selecionei, para lembrar, dois textos que têm como eixo a figura de Honoré Gabriel Riqueti, conde de Mirabeau (1749-1791), ao ensejo de reflexões feitas sobre o segundo governo de Lula (em 2009) e sobre o segundo mandato, não terminado, da presidente Dilma (2016).

1 - MIRABEAU E O SENADOR [Blog “Rocinante”, 25-02-2009].

Há pessoas que intuem a natureza das coisas, como o astuto parlamentar francês Mirabeau, que dirigiu a Luís XVI (1754-1793) as seguintes palavras, no início da Revolução Francesa: “Comparemos o novo estado de coisas com o Antigo Regime; aí encontrareis motivo para consolos e esperanças. Uma parte dos atos da Assembléia Nacional, a mais considerável, é evidentemente favorável ao governo monárquico. Não significará nada, por acaso, ter um país sem parlamento, sem governo de Estado, sem corporação de clérigos, de privilegiados, de nobreza? A idéia de constituir uma única classe de cidadãos teria agradado a Richelieu (1585-1642), pois esta superfície igual facilita o exercício do poder. Alguns reinos de governo absoluto não teriam feito tanto em prol da autoridade real, quanto este único ano de Revolução”.

A entrevista concedida pelo Senador Jarbas Vasconcelos à revista Veja (18/02/2009), foi um fato revelador da natureza da política brasileira. Nada do que o parlamentar falou era desconhecido do grande público. Que Sarney é uma raposa que manteve as coisas como estavam no Senado, atendendo aos seus compromissos clientelísticos, todo mundo sabia disso; que o PMDB era uma agremiação fisiológica, não há como negá-lo; que a corrupção não foi inventada pelo primeiro governo Lula, mas que era prática consolidada na vida pública do nosso país, é lição que até as criancinhas sabiam; que o PT rasgou a túnica da virgindade política, logo após o início do primeiro mandato lulista, com o festival de falcatruas que deu ensejo ao mensalão, era meridiano como a luz do meio-dia; que o Brasil perdeu a oportunidade de, tendo um governo com amplo apoio popular, efetivar as reformas necessárias, não havia como negá-lo; que o legislativo foi emasculado por um executivo hipertrofiado e dono da bola da iniciativa legiferante, isso já todos sabíamos; que a política brasileira tornou-se um festival de safadezas, em que os seus protagonistas cuidavam, em geral, unicamente do seu, sem olhar para o bem do país, era coisa conhecida. Então, por que tanta celeuma em face da entrevista do Senador?

Por dois motivos, no meu entender. Primeiro: se Lula não inventou a corrupção, à luz da entrevista de Jarbas Vasconcelos ficou claro que a democratizou. O presidente, no sentir do Senador, com a sua retórica de banalização desse mal, decretou um “liberou geral” para a leviandade política. A instituição da presidência tem, na história da República brasileira, um peso enorme, herdado da desastrosa progênie do castilhismo-getulismo. Lula não inventou a hipertrofia do executivo na vida da nação. Mas colocou toda essa influência a serviço da banalização dos deslizes na gestão da coisa pública. Ser corrupto virou coisa normal, se colocarmos a infinita compreensão do presidente para com os seus subordinados, em face dos inúmeros episódios de corrupção da vida pública patrocinados por eles (as escabrosas histórias do mensalão, dos sanguessugas, dos cartões corporativos, dos grampos das agências oficiais, da intimidação da imprensa, dos inquéritos e CPIs abafados pela base aliada, do terrorista anistiado pelo ministro da Justiça, dos esportistas cubanos que pediam asilo, entregues ao ditador do Caribe pelo mesmo ministro, etc.).

Valha aqui repetir as palavras do Senador: “A corrupção sempre existiu, ninguém pode dizer que foi inventada por Lula ou pelo PT. Mas é fato que o comportamento do governo Lula contribui para essa banalização. Ele só afasta as pessoas depois de condenadas, todo mundo é inocente até prova em contrário. Está aí o Obama dando o exemplo do que deve ser feito. Aqui, esperava-se que um operário ajudasse a mudar a política, com seu partido que era o guardião da ética. O PT denunciava todos os desvios, prometia ser diferente ao chegar ao poder. Quando deixou cair a máscara, abriu a porta para a corrupção. O pensamento típico do servidor desonesto é: Se o PT, que é o PT, mete a mão, por que eu não vou roubar?”

Segundo motivo da celeuma causada pela entrevista: Lula, para manter o alto grau de popularidade, terminou corrompendo os eleitores de baixa renda, mediante uma política assistencialista escancarada, corporificada nos programas da Bolsa Família. “O marketing e o assistencialismo de Lula – frisava Jarbas Vasconcelos – conseguem mexer com o país inteiro. Imagine isso no Nordeste, que é a região mais pobre. Imagine em Pernambuco, que é a terra dele. Ele fez essa opção clara pelo assistencialismo para milhões de famílias, o que é uma chave para a popularidade em um país pobre. O Bolsa Família é o maior programa oficial de compra de votos do mundo. (...). Há um benefício imediato e uma conseqüência futura nefasta, pois o programa não tem compromisso com a educação, com a qualificação, com a formação de quadros para o trabalho”.

E para ilustrar esse caráter nefasto do mencionado programa, o Senador contou uma história que se passou na terra dele, Pernambuco: “Há um restaurante que eu frequento há mais de trinta anos no bairro de Brasília Teimosa, no Recife. Na semana passada, cheguei lá e não encontrei o garçom que sempre me atendeu. Perguntei ao gerente e descobri que ele conseguiu uma bolsa, para ele e outra para o filho, e desistiu de trabalhar. Esse é um retrato do Bolsa Família. A situação imediata do nordestino melhorou, mas a miséria social permanece”.

Lula conseguiu a façanha de unificar o país numa única classe, a dos dependentes do favor oficial.

2 - CUNHA E MIRABEAU [Blog “Rocinante”, 14-05-2016].

Eduardo Cunha e o Marquês de Mirabeau (1749-1791) foram testemunhas vivas de um regime que morre. O parlamentar francês assistiu de camarote à derrubada, na França, do Ancien Régime e participou do governo tumultuado que, após a Revolução de 1789, instaurou a Assembleia Nacional, tendo sido presidente dela. O ex-presidente da Câmara dos Deputados do Brasil presidiu a sessão que iniciou o fim do regime lulopetista, com a aprovação do parecer que recomendava o processo de impeachment da presidente Dilma. Um e outro se destacaram, nas suas respectivas épocas, pela prática da arte da sobrevivência política. Ambos conheciam, com perfeição de relojoeiro suíço, as engrenagens da máquina pública. Identificaram a linha divisória entre duas eras e, por causa disso, conseguiram sobreviver no cenário político. Defenderam o Poder Legislativo. Cunha e Mirabeau destacaram-se dos seus contemporâneos pela atitude fria e calculista em face da maré dos acontecimentos que se avolumaram sobre as suas respectivas Nações, sem perder o rumo do que deveriam fazer para que as instituições funcionassem: derrubar Dilma, no caso de Cunha, implantar a monarquia constitucional com regime parlamentar, no caso de Mirabeau. Ambos suscitaram ódios mefistofélicos contra as suas pessoas. Vale a pena, ao menos por curiosidade, tentar entender essas duas paradoxais figuras.

Mirabeau remou contra a corrente dos que pensavam que a Revolução Francesa tinha destruído completamente as práticas centralizadoras do Antigo Regime. “A Revolução Francesa tem um caráter satânico”, dizia o tradicionalista francês José de Maistre (1753-1821). O esquisito deputado francês, Mirabeau, considerava que era esta precisamente a linha histórica que unia a Monarquia e as novas instituições saídas da Revolução. Menos de um ano depois da queda da Bastilha, assim escrevia Mirabeau em carta secreta dirigida ao rei Luís XVI (1754-1793), segundo o testemunho autorizado de Tocqueville (1805-1859) no seu clássico O Antigo Regime e a Revolução: “Comparemos o novo estado das coisas com o antigo regime: lá nascem os consolos e as esperanças. Uma parte dos atos da Assembleia Nacional – a mais considerável – é evidentemente favorável ao governo monárquico. Não significará nada ser sem parlamento, sem governo de Estado, sem corpo de clero, de privilegiados, de nobreza? A ideia de formar uma só classe de cidadãos teria agradado a Richelieu (1585-1642): esta superfície igual facilita o exercício do poder. Alguns reinos de um governo absoluto não teriam feito tanto em prol da autoridade real que este único ano de Revolução”. Assim conclui Tocqueville a sua menção a Mirabeau: “(Isso) era entender a Revolução como um homem capaz de dirigi-la!”

À frente de uma Câmara dos Deputados desmoralizada pela corrupção lulopetista, Cunha conseguiu construir ampla maioria favorável à aprovação do impeachment contra a presidente, fazendo, assim, com que o Parlamento se tornasse caixa de ressonância da voz das ruas, nas multitudinárias manifestações que percorreram o país desde Junho de 2013, exigindo o fim da corrupção organizada e estimulada pelo Partido do Governo, a partir do Executivo. O deputado carioca não se abalou com os processos que começaram a desabar sobre a sua cabeça: manteve firme o leme da nau parlamentar, sem pestanejar e sem se impressionar com os xingamentos vindos da praça pública e do próprio Congresso. Foi notável a sua calma diante dos gritos dos desafetos na votação do impeachment, no dia 17 de Abril (de 2016). E conduziu com mão firme a histórica sessão até o término da votação. Convenhamos que oposicionista nenhum ao governo Dilma conseguiu agir com tamanha coragem e determinação.

É claro que Cunha utilizou os seus dotes de esperto timoneiro nas idas e vindas da Comissão de Ética da Câmara, jogando com paciência e cálculo bem dosado, para esvaziar por repetidas vezes as investidas dos seus colegas parlamentares, irritando sobremaneira a ala governista, que não conseguiu ver aprovado o pedido de cassação do seu mandato, antes da aprovação do impeachment. Conhecedor dos interesses ocultos dos seus colegas na Câmara dos Deputados e tendo claro o complexo mapa do equilíbrio do poder nessa quadra da história brasileira, o presidente da Câmara, depois deposto do seu cargo por sentença do STF, protelou o quanto pôde o seu julgamento na Comissão de Ética.

Não que Eduardo Cunha não tivesse transgredido. Mas as suspeitas da magistratura e de setores da sociedade contra ele custaram a se confirmar, até se tornarem julgamento consumado. Restava aos seus desafetos a incômoda sensação de que, embora transgressor, tinha colaborado decisivamente para a valorização do Legislativo, em face das amarras com que o lulopetismo ameaçou acabar com as liberdades neste país. Vivo fosse, Bernard de Mandeville (1670-1733) repetiria o bordão do seu romance A fábula das abelhas (1714): “Vícios privados, virtudes públicas”.

O que salta à vista desses episódios é que, em política, como apregoava o doutrinário francês François Guizot (1787-1874), o homem público tem de “escutar a massa” e não apenas a parcela que o ameaça ou que o adula. Se há algo pelo que Cunha e Mirabeau serão lembrados, é pelo fato de terem agido, na frente política, de olho naquilo que deveria ser a ação de homens públicos: que decisões tomar para melhor responder ao que as massas esperam do poder, em determinada quadra histórica. No caso do paralelo que tracei nestas linhas, é claro que Cunha e Mirabeau empanaram a sua imagem de homens públicos ao terem defendido, também, interesses particulares escusos. Mirabeau era acusado pelos seus colegas, os nobres, de uma vida dissoluta que os desmoralizava perante a população, que já não aturava com paciência os excessos de uma corte constituída por parasitas. Cunha tinha sobre si a suspeita de ter recebido polpudas propinas decorrentes de atos de corrupção relacionados ao desvio de dinheiro da Petrobrás.

Na época, considerei que, nessa quadra da vida política brasileira, a cassação de Cunha e a sua saída da vida pública, teriam ajudado a desanuviar o horizonte tumultuoso que então atravessava o Congresso, mormente depois da ópera bufa, interpretada pela regente Dilma, pelo seu primeiro-violino Cardozo, na AGU, e pelo ator de segunda classe, o deputado Maranhão na Presidência dessa Casa. A saída do padrinho de Maranhão, Eduardo Cunha, tornou-se necessária, notadamente nesse momento,, quando defendia a permanência do seu pupilo à frente da Câmara dos Deputados.

Graças aos paradoxos que oferece, sempre, a história, Cunha e Mirabeau saíram do palco pela porta dos fundos da cena política. Ao que consta, Mirabeau morreu envenenado por algum dos seus muitos inimigos situados à esquerda e à direita do palco político (lembremos que a dicotomia famosa foi inventada na Revolução Francesa). Cunha, por sua vez, foi vítima da metralhadora-giratória dos inúmeros processos ensejados pela Justiça, nessa conturbada quadra da história brasileira.

Se o PT já é coisa do passado, a onda de corrupção e de descaro em face do dinheiro público deve virar também coisa do passado. Cunha, em que pese o fato de ter colaborado decisivamente na instauração do processo de impeachment, não poderá continuar na Câmara dos Deputados. A sociedade brasileira perdeu a confiança na sua ação política, por conta das denúncias de corrupção levantadas contra ele pelo Ministério Público.