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MADAME DE STAËL, JACQUES NECKER E O LIBERALISMO DOUTRINÁRIO: UMA JORNADA LIBERAL NO ILAN (ARAÇATUBA -SP)

MADAME DE STAËL, JACQUES NECKER E O LIBERALISMO DOUTRINÁRIO: UMA JORNADA LIBERAL NO ILAN (ARAÇATUBA -SP)

CAPA DA OBRA DE RICARDO VÉLEZ RODRÍGUEZ SOBRE O LIBERALISMO FRANCÊS

“O Liberalismo Doutrinário foi o que de mais importante houve na Europa no século XIX” - José Ortega y Gasset (1883-1955).

No sábado 21 de Setembro de 2024, na sede do Instituto Liberal da Alta Noroeste (ILAN), em Araçatuba (SP), tive a honra de receber os diplomas de membro honorário e membro graduado do Instituto Liberal da Alta Noroeste, que me credenciam como guardião da Filosofia Liberal Austríaca. Atendi a convite formulado pelo Presidente do ILAN, o engenheiro Rodrigo Piernas Andolfato (que preside o Conselho Deliberativo), tendo sido recebido em Araçatuba pelo Diretor de Eventos do ILAN, o advogado e professor Rogério Torres e a sua esposa Maria. Rogério foi meu aluno na Universidade Federal de Juiz de Fora, na Faculdade de Direito, entre 2010 e 2013. Fiz o lançamento da minha obra intitulada: O Liberalismo Francês - A Tradição Doutrinária e a sua influência no Brasil [1ª edição, Londrina: Editora EDA - Educação, Direito e Alta Cultura, 2003. Apresentação de Antônio Paim]. O lançamento ocorreu depois de um breve Curso sobre o conteúdo da obra.

Foram abordados nesse Curso os seguintes itens: 1- Madame de Staël (1766-1817) e Jacques Necker (1732-1804) precursores do Liberalismo Doutrinário; 2 – Benjamin Constant de Rebecque (1767-1830) e a sua influência no Brasil; 3 – François Guizot (1787-1874) e a sua influência no Brasil; 4 – A problemática da democracia em Alexis de Tocqueville (1805-1859) e Raymond Aron (1905-1983); 5 – A presença de Tocqueville no Brasil; 6 – Alexis de Tocqueville, ministro de assuntos estrangeiros da França, estrategista e estudioso das relações internacionais.

Neste breve artigo resumirei o conteúdo do primeiro capítulo, intitulado: “Madame de Staël e Jacques Necker, precursores do Liberalismo Doutrinário”. Madame de Staël, cujo nome completo era Germaine Necker de Staël-Holstein, casou-se com embaixador da Suécia na Corte de Versailles, o Barão Erik Magnus Staël von Holstein (1749-1802), com quem teve seis filhos. Madame de Staël representa um espírito aberto à modernidade mas, ao mesmo tempo, crítico dela. O seu pensamento caracterizou-se pela defesa incondicional da liberdade acompanhada do reconhecimento de que é possível conciliar os interesses individuais com os da comunidade. Ela foi a mais ferrenha crítica do despotismo do imperador Napoleão Bonaparte (1769-1821), fato que, embora incomodasse muito ao autocrático mandatário, não impediu, no entanto, que nas suas memórias intituladas Memorial de Santa Helena, Bonaparte reconhecesse o valor da sua feroz crítica, com a seguinte frase: “É necessário reconhecer que se trata de uma mulher de grande talento; ela permanecerá”. Simone Balayé, a mais importante biógrafa de Madame de Staël, escreveu: “Ela incomoda pelo seu espírito de livre exame e pela educação que herdou das Luzes”. Como lembra a sua biógrafa, Madame de Staël frisava: “O grande reproche do Imperador Napoleão contra mim é o amor e o respeito que sempre tive pela verdadeira liberdade”.

No Diário do seu prolongado exílio (que se estendeu de 1804 até 1814), Madame de Staël registrou a valorização da liberdade, aliada à esperança de que, algum dia, a França acolhesse a defesa desse bem supremo: “Se este país tivesse a desgraça de não possuir o mais nobre dos bens (a liberdade), não era necessário por isso proscrevê-lo da terra. Quando o sol desaparece do horizonte dos países do Norte, os habitantes dessas regiões não amaldiçoam os seus raios, que luzem ainda em outros lugares mais felizardos do céu” (Dez anos de exílio).

É justamente pela valorização incondicional da liberdade que Madame de Staël passou à história como precursora do movimento dos Doutrinários, que se centrou na valorização desse bem. “A Inglaterra – frisava o historiador Godechot – é a terra da liberdade. É graças a essa liberdade que inspira a Madame de Staël, que a Inglaterra conseguiu vencer Napoleão”. “Como entendia ela a liberdade?” – pergunta Godechot. - E responde: “A liberdade de ir e vir, a liberdade de cada um, tanto homem quanto mulher, viver como lhe aprouver”.

Madame de Staël prenunciou o movimento da emancipação feminina, num momento em que às mulheres só se reconhecia o direito de ficar em casa ou de ir para o convento. Em dois romances, a grande escritora deixou concretizada a imagem que ela tinha da mulher. Ressalta, sobretudo, a liberdade, em termos ideais, ou a falta dela, na vida concreta de início do século XIX. Em Delfina, a autora reivindica a concepção de uma mulher que fala e que participa da vida social. A obra foi recebida na França como uma crítica radical contra o machismo cultural que dominava à época. Napoleão ficou furioso com essa crítica de Madame de Staël e comentou : “bem que eu gostaria de lhe fazer cortar os cabelos e trancafiá-la num convento”. Madame de Staël não teve os cabelos cortados nem foi para o convento, mas amargou a pena de desterro da sua Pátria durante 10 anos.

Já o romance Corina ou da Itália é de tom cosmopolita e europeu e evoca as transformações sociais que estavam ocorrendo na França, na Inglaterra e especialmente na Itália, no início do romantismo. A obra é a história de uma mulher, a poetisa Corina, que inaugura o debate sobre a condição feminina e reivindica o direito das mulheres para levarem uma vida independente, vivendo como lhes aprouvesse, no caso de Corina como escritora, que personifica Madame de Staël, “a mulher mais extraordinária que jamais existiu”, como escreveu o romancista e crítico literário Stendhal, ou como dizia Benjamin Constant de Rebecque, que foi amante da escritora. Constant caracterizava-a como “um ser aparte, um ser superior, desses que só aparecem um a cada século”. O próprio Napoleão frisava que via, em Madame de Staël, “Uma perigosa mensageira da liberdade”.

Ora, Madame de Staël se levantou acima do ideal por ela acalentado, chegando a se tornar uma referência não só para as mulheres do seu tempo, mas também para as vindouras, na medida em que se apresenta como ela é, uma mulher que, acima de tudo, sente a vida com o seu coração e fala a título de mulher e de mãe, solidária com as demais mulheres, porque sente o seu mundo, o amor e as suas realizações, temores e frustrações. Essa dimensão dramática e intimista permeia o pequeno ensaio intitulado: Reflexões sobre o processo da Rainha, por uma mulher (publicado em 1793 após a condenação à guilhotina da Rainha Maria Antonieta). A pequena obra é uma queixa dolorida de uma mulher como as outras, que assistiu à inacreditável injustiça da morte da Rainha da França, cuja memória foi simplesmente destruída no assassinato de reputação de que foi vítima, no seu julgamento pelos membros do Comité de Salvação Pública. A rainha Maria Antonieta, que defendia o Antigo Regime de privilégios, não teve oportunidade sequer de salvar a sua reputação como mãe, tendo sido injustamente culpada do execrável crime de ter abusado sexualmente do seu filho pequeno. Embora crítica dos privilégios antiquados do Ancien Régime, Madame de Staël enxerga em Maria Antonieta, não a Rainha da antiga monarquia, mas uma mulher que, no sofrimento, na solidão da cadeia e na morte, personificou os padecimentos e as mortes das mulheres injustiçadas e tidas como escória social.

Contrasta esse drama com a lucidez e a força das críticas levantadas por Madame de Staël contra o absolutismo político, que no tempo de Madame de Staël tinha nome: Bonaparte. A respeito, a notável escritora frisava que, na formulação, por Napoleão, da nova Constituição de 1800, que daria vida à República Francesa, “O general Bonaparte tomou bem rápido do sistema do segundo cônsul, Sieyès, aquilo de que ele precisava, a anulação da eleição de deputados pela Nação. Sieyès tinha proposto listas de elegíveis, nas quais o Senado poderia escolher os representantes do povo, sob o nome de Tribunos e Legisladores. Não havia eleição popular direta: apenas listas, de onde o Senado escolhido por Bonaparte indicava os ‘representantes’ do povo. Os magistrados hereditários eram possíveis como ‘sábios vitalícios’ (aristocracia conservadora)”. O que faltava na nova Constituição? Perguntava Madame de Staël; e respondia: “Mas uma parte do governo, aquela que aprova os impostos, deve emanar diretamente da Nação”. Ora, frisava Madame de Staël, “o poder na nova Constituição não emanava do povo, mas do Primeiro Cônsul, Bonaparte”.

Napoleão, segundo a Constituição de 1800, organizou as finanças públicas para melhor se apropriar da riqueza dos cidadãos, mediante impostos extorsivos. A respeito, Madame de Staël escrevia: “Quando ele encontra a honestidade em algum lugar, poder-se-ia dizer que os seus artifícios sofrem um grande desconcerto, como quando o diabo é derrotado nas suas maquinações mediante o signo da cruz”. Em outro escrito, a nossa autora refere-se ao ditador com estas palavras, que se poderiam aplicar, inteirinhas, hoje, ao jurista calvo que nos deixa de cabelo em pé: “A sua norma de comportamento era a negação da moral e se pautava unicamente pela vontade de poder esmagando a dignidade das pessoas. O seu grande talento consiste em amedrontar os fracos e tirar proveito dos homens imorais”. Reforçando o que Madame de Staël escrevia sobre a desonestidade napoleônica, frisava em outro lugar: “Tudo quanto ele buscava e não cessou de buscar nos homens era o talento e a ausência de caráter”.

Foi esse o procedimento mediante o qual Napoleão cooptou os seus dois colegas de Consulado, Sieyès e Cambacérès. Do primeiro, que era deputado à assembléia Nacional, tirou a ideia de esvaziar as eleições, somente permitindo que fossem eleitos aqueles que se afinassem incondicionalmente com o novo centro do poder, Bonaparte. Ora, foi isso que Sieyès tinha feito na Assembléia Nacional: prestigiar aqueles deputados que, na Convenção, tinham cerrado fileiras com os que se aliaram aos donos do poder, os Jacobinos da Convenção Nacional. Com o Segundo Cônsul, Cambacérès “que tinha aprendido a se submeter durante a Convenção, tendo aprovado de olhos fechados o Tribunal Revolucionário que instalou o Terror” a identidade era total, pois aprovou entusiasticamente todas as medidas ditatoriais dele.

Madame de Staël sistematizou as suas críticas ao Bonapartismo, ao redor de cinco variáveis: cênica ou estetizante, cultural, política, religiosa e imperial. Analisemo-las:

1 – Variável cênica ou estetizante.- Madame de Staël considerava que o despotismo napoleônico tinha se inserido no contexto do complexo cultural estetizante, que já existia no imaginário francês, tornando os atores políticos comediantes que desempenhavam uma função no palco. O segredo da teatralidade bonapartista consistiu em democratizar as expectativas de ter intimidade com o poder, no sentido de que cada cidadão poder-se-ia considerar apto a ser confidente do déspota, algo assim, como ter os “três segundos de glória” nesta época de “selfies” e “tic-tocs”. Eram distribuídos, pelos ajudantes do ditador, numerosos folhetos nos quais se dizia que “Bonaparte não queria ser nem Monk, nem Cromwell, nem sequer César, porque esses eram (...) papéis já representados. (...) O que interessava não era persuadir realmente, mas sugerir àqueles que queriam ser enganados uma frase que pudessem repetir a qualquer um. (...). Pode-se colocar a Nação toda inteira (...) no segredo de uma comédia: ela achar-se-á orgulhosa de se sentir confidente (...)”.

2 – Variável cultural.- O Imperador antecipou-se aos grandes comunicadores do século XX, ao encarar a Nação como massa que poderia ser formatada de acordo às informações que lhe fossem repetidas dia e noite. Bonaparte antecipou Goebbels (1897-1945). Em relação às habilidades do Imperador francês como comunicador, frisava Madame de Staël: “O sistema de Bonaparte era avançar mês a mês, passo a passo, na carreira do poder. Preferia que se carregasse as tintas sobre as decisões que pretendia tomar, a fim de que, quando elas se tornassem concretas, aparecessem como mais brandas ao público do que se temia”.

3 - Variável política.- O terror policial foi a grande arma de que Bonaparte fez uso para quebrar os laços de solidariedade na França e assim governar sem oposição. A nobreza recebeu um recado: o fuzilamento gratuito de um nobre representante da mais alta aristocracia, o duque de Enghien (em 1804). A burguesia recebeu um recado direto: se uma burguesa poderosa e rica como Madame de Staël foi desterrada, tendo sido confiscados os seus bens, ninguém estaria seguro.

4 – Variável religiosa.- A estratégia de Napoleão consistiu em ir colocando lentamente a religião na órbita do poder temporal. Com a Concordata de 1800, o Primeiro Cônsul iniciou um processo de cooptação da Religião Católica, que passou a girar ao redor dele como guardião dos seus interesses: se dizendo católico fez com que a religião estabelecida passasse a lhe servir.

5 – Variável imperial.- O projeto de Napoleão foi o de unificar toda a Europa (o antigo Império Romano) ao seu redor, como tinha feito o Imperador Carlos Magno (Rei dos Romanos em 800, Rei dos Lombardos em 774, Rei dos Francos em 768). Esse conjunto de reinos era o seu “Sistema”, lembrando o Sistema Solar, estudado pelo professor de matemática de Napoleão Bonaparte na Escola Militar em Paris, Pierre Simon de Laplace (1749-1827) na obra intitulada Mecânica Celeste. Uma pequena anotação: Bonaparte queria estabelecer uma comparação entre a mecânica celeste do Sistema Solar e a sua obra como unificador da Europa nas guerras de conquista deflagradas após se tornar Imperador. Ora, Napoleão queria que, assim como havia um centro do Sistema Solar (que ele pretendia ser Deus, coisa que Laplace não pensava, pois os seus conceitos eram eminentemente matemáticos, não de cunho religioso), de forma análoga, o Imperador dos Franceses poderia ser identificado como o Centro do Sistema Político europeu. Bonaparte não gostou de que Laplace não identificasse o Centro do Sistema Solar com Deus, frustrando o último passo da sua megalomania, que pretendia ocupar o lugar de Deus no sistema proposto.

Jacques Necker professava uma concepção liberal laica do sistema político europeu, destacando que a sua estabilidade dependeria da defesa da Liberdade dos Cidadãos, algo semelhante à ideia defendida por Kant na sua Paz Perpétua (1795). Para Necker, o princípio fundamental que pautava a sua ação política consistia em merecer a confiança da Nação. Diante desse imperativo, tudo deveria ser posto em segundo plano: riqueza, honrarias, ambições. Em Considerações sobre a Revolução Francesa Madame de Staël escreveu: “Depois dos seus deveres religiosos, a opinião pública era o que mais o preocupava. Ele sacrificava a fortuna, as honras, tudo o que os ambiciosos buscam, à estima da Nação. E esta voz do povo (...) tinha para ele alguma coisa de divino. A menor mancha sobre a sua reputação constituía, para ele, o maior sofrimento que poderia ter na vida. A finalidade mundana de suas ações, o vento de terra que o fazia navegar, era o amor à reputação. Um ministro do Rei da França não tinha, aliás, como os ministros ingleses, uma força independente da Corte. Ele não podia manifestar em público, na Câmara dos Comuns, nem o seu caráter, nem a sua conduta. E inexistindo liberdade de imprensa, os panfletos clandestinos tornavam-se mais perigosos ainda”.

O pai de Germaine acreditava no princípio, que será característico dos Doutrinários, de que em política não vale o pensamento especulativo sozinho, sem referi-lo ao processo histórico apreendido vivencialmente. Esse processo, mais as tradições que dele emergem, precisam ser levados em consideração por quem quiser compreender as realidades ligadas ao exercício do poder, ou por quem pretender modificar as instituições políticas de um país. A respeito, Necker escrevia em Últimas anotações acerca de política e finanças: “Se os homens atribuem um grande valor à experiência, é ela que dá consistência às ideias complexas ou fugidias, é ela que ensina as verdades que o raciocínio não poderia apreender anteriormente com suficiente força”.

A política exige uma reflexão projetada sobre o processo histórico. De nada adiantaria discutir, em teoria, se para a França seria melhor a República ou a Monarquia. Necker considerava que seria necessário levar em consideração as circunstâncias concretas do país e o homem com que os franceses contavam à frente do governo: Bonaparte. Somente partindo desse ponto seria possível achar um caminho para encontrar o rumo da liberdade e da democracia. O resto seria elucubração vazia. “É necessário estudar previamente o que se pode fazer com o homem necessário e nós damos esse nome a Bonaparte”. Necker considerava que, não tendo sido estabelecida na Constituição Republicana de Bonaparte uma verdadeira representação dos interesses populares no Parlamento, a eleição não tinha nenhum sentido e as instituições republicanas careciam de autenticidade. (...) Concede-se ao povo um direito de indicação que não significa nada para ele e que aborrecerá ao Governo se esse direito for respeitado”. E concluía assim: “Uma fachada de sufrágio universal (simples direito de apresentação). Uma fachada de assembleias: o Senado, o Tribunato, o Corpo Legislativo. No governo, uma fachada de três Cônsules sendo que o poder repousava realmente no Primeiro Cônsul. Na tarde em que o texto constitucional foi solenemente promulgado nas ruas de Paris, as pessoas perguntavam: ‘O que há na Constituição?’ E a resposta era a seguinte: 'Há Bonaparte'.

Fiquei realmente impressionado com o compromisso do Presidente do ILAN e dos membros do Instituto, para implantar na região práticas administrativas afinadas com a Liberdade Econômica, na forma do livre empreendedorismo defendido pela Escola Austríaca de Economia. Com iniciativas como essa, abre-se uma perspectiva alvissareira para que o Brasil atinja um desenvolvimento expressivo, de índole autenticamente liberal e em sintonia com os países ocidentais que mais progrediram ao longo dos séculos XX e XXI.