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LULA E A ÉTICA DO ATRASO

LULA E A ÉTICA DO ATRASO

LULA LÍDER SINDICAL

O meu amigo Ubiratan Jorge Iorio, em belo artigo publicado recentemente na Revista Oeste [“O furor arrecadador do atual governo”, 4 de agosto de 2023] recordava as principais façanhas petistas em matéria tributária, que constituem uma pesada rede para não deixar nenhum peixe fora do arrastão.

Segundo o estudo citado por Ubiratan [IBPT, “Quantidade de normas editadas no Brasil: 34 anos da Constituição Federal de 1988”] existem, hoje, 4.869 normas referentes ao pagamento de tributos. “O hospício é tal que, frisa Ubiratan, se fossem impressas em papel A4, com fonte Arial, tamanho 12, e postas em fila, a parafernália tributária totalizaria, segundo os autores do estudo, um segmento de reta de aproximadamente 6,6 quilômetros. O projeto de reforma vai agravar esse labirinto, uma vez que durante alguns anos as duas legislações vão coexistir”. De acordo com o Tesouro Nacional, lembrava Ubiratan, “da carga total de 33,71 do PIB, 22,78 são tributos federais; 8,59 do PIB, estaduais, e apenas 2,34 do PIB municipais. A reforma, se aprovada, vai aumentar a centralização da arrecadação”.

Essa dança maluca da arrecadação lembra aquele baile dos místicos turcos que giram cada vez mais rápido: a ciranda tributária brasileira é, realmente, estonteante e ninguém a entende. Só há uma certeza: a arrecadação não pára, como não pára, também, o tamanho da máquina pública. Convenhamos que foram os governos esquerdistas os que, desde Fernando Henrique até o presente ciclo lulopetista, mais incrementaram os mecanismos arrecadatórios, fazendo disparar as porcentagens de crescimento da tributação. Não sei se os leitores se lembram daquele “publicano nada republicano”, Secretário da Receita Federal num dos governos de Fernando Henrique, que respondeu a uma aflita contribuinte que indagava o porquê ela deveria pagar uma conta tão alta: “a sua obrigação, minha senhora - respondeu a insensível publicano - é pagar, não perguntar!”

Serão desenvolvidos, neste ensaio, os seguintes itens: I – Adoção da “Ética do atalho” ou do preconceito contra a riqueza e o trabalho produtivo, no contexto do Patrimonialismo Ibérico. II - A Corrupção imposta como Mecanismo de apropriação da riqueza, no ciclo lulopetista. III – Conclusão.

I - ADOÇÃO DA ÉTICA DO “ATALHO” OU DO PRECONCEITO CONTRA A RIQUEZA E O TRABALHO PRODUTIVO, NO CONTEXTO DO PATRIMONIALISMO IBÉRICO.

É evidente que o despautério arrecadatório típico do Estado, no Brasil, tem um piso de convicções morais nada éticas, que foi sendo formado e fortalecido, através dos séculos, pelo crescimento indevido da máquina pública do Estado Patrimonial. Os países onde foram feitas as reformas protestantes, no século XVI, deram um passo adiante na formulação das bases racionais da arrecadação, com o famoso princípio de “não taxação sem negociação”.

Já nos países ibéricos, formados a partir do crescimento descontrolado de um centro de poder familístico, consolidado ao ensejo do fortalecimento de uma autoridade patriarcal originária, esta alargou a sua dominação doméstica sobre territórios, pessoas e coisas extrapatrimoniais, encarando as posses dos súditos como propriedade familiar ou patrimonial dos governantes e praticando uma política de arrecadação confiscatória, em benefício dos donos do poder [Cf. Max Weber, Economia e Sociedad, trad. espanhola de J. Medina Echavarría et alii, México: Fondo de Cultura, 1944, vol IV; Raimundo Faoro, Os donos do poder – Formação do patronato político brasileiro. 1ª edição, Porto Alegre: Livraria do Globo, 1958, 2 vol. Antônio Paim, A querela do estatismo – Natureza dos sistemas econômicos: o caso brasileiro. 2ªedição. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1994].

Justamente aí ancora o delírio arrecadatório dos Estados Patrimoniais, dentre os quais, na América Latina, o Brasil é o exemplar por excelência, segundo afirmava o saudoso sociólogo francês Alain Touraine (1925-2023). Dos vários países de Iberoamérica – frisava o sociólogo da Haute École des Sciences Sociales, de Paris - há alguns que se identificam como Governos mais ou menos autoritários e centralizadores. Mas, entre eles, só há um que constitui um verdadeiro Estado e esse país é o Brasil [cf. Touraine, Alain. Palavra e sangue: Política e Sociedade na América Latina. Trad. de Iraci Poletti, São Paulo: Trajetória Cultural / Campinas: Unicamp, 1989]. Desde os seus começos, o Estado brasileiro foi uma realidade mais forte do que a sociedade.

Nesse item de uma força centrípeta que a todos espolia, os nossos ancestrais Portugueses foram mais eficientes que os seus vizinhos Espanhóis, os quais não conseguiram manter unido o enorme Império ultramarino que, já no século XVII, ultrapassava em muito a extensão da Colônia Portuguesa nas Américas. Em meados do século XVIII (quando da definitiva assinatura do Tratado de Madri, em substituição do velho Tratado de Tordesilhas), as colônias espanholas eram inferiores em território à colônia portuguesa na América do Sul.

Portugal criou, no longínquo século XVI, uma Academia de Cartografia, encarregada de confeccionar os mapas que, regularmente, seriam apresentados ao Papa, que arbitrava a distribuição do Novo Mundo entre os dois Impérios Ibéricos, o Português e os Espanhol, a partir da primeira assinatura do Tratado de Tordesilhas em 7 de junho de 1494. Os Cartógrafos dos Reinos de Castela e Aragão achavam que o Papa estaria predisposto em favor do Império de Madri, pelo fato deste contar com dois Pontífices espanhóis, Alfonso Borja (1378-1455) que tomou o nome Calixto III e o seu sobrinho, Rodrigo de Borja (1431-1503) que o sucedeu com o nome de Alexandre VI.

Os Cartógrafos da Corte de Madri elaboraram os primeiros mapas, cujos limites favoreciam os interesses da Espanha (Ferber, 1495; Cantino, 1502; Peritos de Badajoz, 1524; Oviedo, 1545). Tendo os Cartógrafos Portugueses substituído os espanhóis, no início do século XVI, foram mais espertos. Criaram, em Lisboa, uma escola de Cartografia que passou a prestar serviços aos Papas. Os Cartógrafos de Lisboa empurraram, progressivamente, em direção aos Andes, a linha divisória entre os dois Impérios na América do Sul. Resultado da história: os Portugueses se apropriaram de grande parte dos territórios do Império Espanhol sem disparar um tiro, apenas alterando a linha demarcatória entre as duas Potências Coloniais, de tal forma que, em meados do século XVIII, a Colônia Portuguesa nas Américas, o Brasil, já era um território de tamanho continental, ao passo que as Colônias da América Espanhola tinham sido reduzidas a um conjunto de extensões territoriais muito menores. É isso que revelam os mapas elaborados pelos Cartógrafos Portugueses (Ribeiro, 1519; Pedro Nunes, 1537; Albernaz, 1631; João Teixeira, 1642; Costa Miranda, 1688), nos quais aparece o limite entre os dois Impérios progressivamente deslocado em direção aos Andes.

A assinatura definitiva do Tratado de Madri (1750) em substituição ao antigo Tratado de Tordesilhas, foi preparada pelo diplomata brasileiro Alexandre de Gusmão (1695-1753), Secretário do Rei de Portugal, Dom João V (1689-1750). A nova linha demarcatória sagrou os limites do Império Continental Português, que foi rapidamente ocupado, nas áreas limítrofes com a América Espanhola, por um conjunto de postos militares dos quais é uma amostra o Forte do Príncipe da Beira (a maior construção estratégica de Portugal fora da Europa). Espertamente, o Secretário do Rei tinha introduzido, no texto do novo Tratado, um arrazoado proveniente do Direito Romano, o princípio do “Uti Possidetis”, para legitimar juridicamente a ocupação das novas terras situadas dentro dos límites definitivos do Brasil com a América Espanhola.

Gilberto Paim (1919-2020) assim sintetiza os efeitos produzidos pelo Tratado de Madri: “Foram altamente significativos os objetivos alcançados por esse Tratado. Pelos seus termos, a Colônia do Sacramento seria permutada pelo território dos Sete Povos das Missões. Com a revogação do Tratado de Tordesilhas, ficou consagrada a posse portuguesa da Amazônia, desde a fronteira da Colômbia (Nova Granada) até o antigo Mato Grosso, reconhecendo-se como território luso o deserto de Laguna até a margem oriental do rio Uruguai. Atribui-se ao teor do documento a transferência para o Rio de Janeiro da capital do vice-reino, então sediada em Salvador, na Bahia. Foi também criada a Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, seguida de outro fato de importância estratégica, com o início da construção do Forte Príncipe da Beira, em Rondônia, da Fortaleza de Macapá, no Amapá, e do Forte de Tabatinga, no extremo oeste do que viria a ser o Estado do Amazonas” [Gilberto Paim, De Pombal à abertura dos Portos, Rio de Janeiro: Editorial Escrita, 2011: pp. 8-9].

 Ora, nesse contexto patrimonialista do Império Colonial Português, firmou-se uma ética de cunho contrarreformista que execrava o lucro, segundo o saudoso historiador das ideias Antônio Paim (1927-2021), a qual serviu como chão axiológico para a prática de uma moral contrária ao trabalho e à acumulação de riquezas. Isso contrastou, segundo Paim, com o surgimento da nossa primeira iniciativa capitalista, quando, graças à influência modernizadora do conde duque de Olivares (1547-1685), Ministro de Felipe II (1527-1598), surgiu no Nordeste uma autêntica empresa capitalista no Ciclo da Cana de Açúcar, a partir da acumulação de riqueza pelos judeus pernambucanos no século XVII, ao ensejo da União Ibérica, que juntou as Coroas Espanhola e Portuguesa (entre 1580 e 1640) [cf. Paim, Antônio, Momentos decisivos da História do Brasil, 2ª edição, Campinas: Vide Editorial, pp. 79-166].

Retomada a vida independente do Reino de Portugal por Dom João IV em 1640, as pretensões modernizadoras de Olivares foram substituídas pelas investidas da Inquisição Portuguesa contra a iniciativa modernizadora da Espanha, fazendo emigrar os judeus pernambucanos para os Estados Unidos (onde fundaram a sinagoga de Manhattan), origem da potência financeira e comercial que caracterizou os empreendimentos dos Cristãos Novos em território norte-americano.

Consolidou-se, assim, no Brasil, uma economia de costas à modernidade, com a condenação do lucro por parte dos Reis e dos Inquisidores e com a apropriação, por parte dos Soberanos Portugueses e dos Dignitários Eclesiásticos, das riquezas acumuladas pelos cristãos novos, as quais foram investidas em luxo religioso por parte da Monarquia, com a edificação do Convento de Mafra e de numerosos Castelos e Igrejas, que correspondiam às expectativas imperiais dos Monarcas Portugueses e criaram uma arquitetura barroca de tipo religioso, acabando de vez com as tentativas de fazer surgir o capitalismo nestas terras. A Inquisição portuguesa organizou um agressivo dispositivo de perseguição aos judeus e de apropriação dos seus bens, com a ajuda de práticas medievais de tortura aplicadas pelos Inquisidores a serviço do Santo Ofício e da Coroa.

A respeito da construção do Convento de Mafra, o engenheiro e historiador João Teixeira Soares (1848-1927) escreveu o seguinte: “Dom João V, durante 33 anos gastou milhões de cruzados na construção do Convento de Mafra, enchendo-o de sinos, carrilhões, alfaias, livros – e alguns frades. Gastou à larga para edificar uma mole gigantesca que poderia albergar dois regimentos de infantaria e vários serviços públicos. Que fez Pombal? Instala no Convento o Projeto Plebeum fundado em 1772, encarregando os Regrantes de Santo Antônio de educar os alunos. Abre o convento ao público, areja-o em contato com a visitação popular. Esse pequeno fato demonstra sem dúvida grande mudança de mentalidade” [João Teixeira Soares, O Marquês de Pombal, Rio de Janeiro: Alba, 1961, apud Paim, A querela do estatismo, 2ª edição, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1994: p. 77].

A respeito dos projetos modernizadores desenvolvidos durante a União Ibérica, Antônio Paim escreveu: “(...) A historiografia brasileira tem obscurecido o fato de que o Brasil, no século XVII, era mais desenvolvido que os Estados Unidos. Se não desvendarmos as razões do declínio (da mudança), jamais estaremos em condições de compreender por que, nos três séculos subsequentes, terminam sempre em fracasso as tentativas de nos colocar entre as nações capitalistas do Ocidente (...)” [Antônio Paim, Momentos decisivos da história do Brasil, ob. cit., p. 31].

O Marquês de Pombal (1699-1782), em carta dirigida ao seu sobrinho Governador do Maranhão, recomendava a este, para garantir o exercício do poder, se apoiar no povo rude do interior, combatendo com obstinação a nobreza de sangue e a burguesia das cidades, as únicas que, se se organizassem, poderiam colocar em risco o seu poder. O plano de Pombal, aliás, louvava-se da experiência dos Czares da Rússia, de esmagamento da nobreza de sangue e da burguesia, a fim de manterem intocado o seu poder absoluto. Para isso, lembremos que, desde Ivan o Terrível (1530-1584), foram criados, pelos Czares, cargos “tschin” de nobreza burocrática, incondicionalmente fiel ao Soberano.

O autocratismo do Marquês de Pombal corrigiu o atraso econômico dos Reis de Portugal, colocando as obras que eles empreenderam, pelo menos, a serviço da ilustração de uma sociedade que não tinha largado as sombras medievais. Pombal esclareceu o seu povo, mas não o democratizou. Em matéria de ilustração, ficou a meio caminho. Apenas educou os jovens, para que a sociedade melhor servisse ao Estado autoritário por ele administrado. No que tange à produção da riqueza, Pombal achava que se trataria de dotar o Estado de auxílios intelectuais, ilustrando os altos funcionários com a ciência aplicada, a fim de que melhor servissem à sociedade, mantendo incólume, no entanto, a índole do “despotismo esclarecido”. A ação modernizadora de Pombal, no plano econômico, produziu o resultado de uma gestão esclarecida na tarefa de amealhar riquezas, mediante o Mercantilismo, a fim de que o Estado autoritário melhor as distribuísse entre os que se chegassem à sombra dele como seus fiéis funcionários. Mas a ideia de uma economia liberal, aberta ao enriquecimento da sociedade sem precisar da tutela estatal, não passava pela cabeça do Marquês.

O trabalho, nesse contexto de absolutismo puramente mercantilista, passou a ser desvalorizado, como atividade de párias e não de senhores. Na Península Ibérica surgiu, desde o fim da Idade Média, um tipo cultural diametralmente oposto ao moderno “homo oeconomicus”, que desde o surgimento da Idade Moderna foi se fortalecendo na Europa, acompanhando o fenômeno de nascimento e expansão das cidades, origem da nascente burguesia. As características do tipo ibérico, do cavaleiro cristão que Manuel García Morente (1886-1942) define como defensor de uma causa e dono de virtudes nobiliárquicas como o anseio de grandeza, o arrojo, a altivez, a valorização do palpite emocional sobre o frio cálculo, o personalismo e o culto da morte, modelaram-se ao longo de toda a história da Espanha e de Portugal, sobretudo durante o episódio que foi tão decisivo na vida do povo peninsular: a luta de vários séculos contra os muçulmanos, em defesa da sua própria existência e da Cristandade. Essa defesa da cultura nativa (hispânica e portuguesa) diante do invasor, foi percebida desde o início como a defesa de si mesmo.

Em relação a esse ponto, frisa o historiador colombiano Jaime Jaramillo Uribe (1917-2015), que foi um dos meus mestres na Colômbia: “Ao término dessa contenda e ao se iniciar a Época Moderna, que já vinha amadurecendo (...) no Continente e nas Ilhas Britânicas, tinha se constituído na meseta castelhana um tipo de homens cujas virtudes não eram as do homo oeconomicus. A descoberta da América e a luta pelo Império que inesperadamente lhe doava a história, firmaram o seu caráter cavalheiresco e heroico e terminaram por frustrar a formação, em Castela, do tipo que construiu a economia moderna do capitalismo e, com isso, a possibilidade de que a Espanha assimilasse o espírito das novas formas de vida, sobretudo o moderno ethos do trabalho” [Jaime Jaramillo Uribe, El pensamiento colombiano en el siglo XIX, 2ª edição, Bogotá: Temis, 1974: pp. 9-14].

II - A CORRUPÇÃO IMPOSTA COMO MECANISMO DA APROPRIAÇÃO DA RIQUEZA, NO CICLO LULOPETISTA.

No longo ciclo lulopetista, que se estende de 2003 até os tempos atuais (excluindo, logicamente, o período do governo Bolsonaro, entre 2019 e 2022) o fenômeno da corrupção, entendido como enriquecimento a partir do Estado, sofreu um processo de tecnificação que os comunicadores denominaram de “O Mecanismo”, ao ensejo da Lava-Jato, como conjunto de práticas escusas que esvaziaram os cofres do Estado e enriqueceram agentes públicos corruptos e empresários à margem da lei.

Antônio Paim, lembrando os desacertos do lulismo, escreveu na segunda edição da sua obra intitulada: Momentos decisivos da história do Brasil: “A conclusão (...) é a de que, nesse conjunto de desacertos, criamos uma estrutura destinada à preservação do status quo, o Estado Patrimonial, que se tem revelado imbatível. Seu último feito consistiu precisamente na cooptação do Partido dos Trabalhadores (PT), a organização que parecia destinada a minar seus fundamentos, notadamente no que respeita às relações do mundo do trabalho, onde o patrimonialismo havia estruturado sistema inamovível, com absurdos tais como a sustentação de sindicatos com base em impostos”,

“Ao contrário de corresponder àquela expectativa - continua Paim -, seria justamente o PT que empreenderia um passo que bem pode estar destinado a fechar-nos de vez à realização daquele que seria o nosso autêntico projeto nacional. Trata-se de que haja conseguido enterrar de vez o projeto de constituição da ALCA. Ao invés de estarmos integrados ao que seria o mais provável desfecho do atual ciclo da globalização – a criação de mercado constituído pela junção dos Estados Unidos com a União Europeia -, ingressaremos num período de marginalização cujas dimensões e consequências serão certamente funestas. (...). A par disto, tivemos de efetuar atualizações pontuais. Tive que atualizar o que pode ser duradouro e não apenas momentâneo, como se dá no presente, o fato de que da desarticulação do elemento liberal não haja resultado a constituição no país de uma agremiação política que a encarnasse, bem como a comprovação, pela pesquisa contida no livro A cabeça do brasileiro [Rio de Janeiro: Record, 2007], da autoria de Alberto Carlos Almeida, de que a cúpula da burocracia estatal brasileira, sustentáculo da tradição patrimonialista, representa os sentimentos e as aspirações da maioria de nossa população. Por certo que isto pode mudar, mas enquanto tal não se der, não se vislumbra no horizonte quando poderá ocorrer o cumprimento da aspiração de sair do patrimonialismo” [Paim, Momentos decisivos da história do Brasil, 2ª edição, Campinas: Vide Editorial, 2014, p. 13-14].

“No Brasil – conclui Paim – o arcaico é identificado com o que Roberto Damatta (1936-) comprovou ser a nossa característica central: ‘um país hierárquico no qual a posição social e a origem são fundamentais para definir o que se pode e o que não se pode fazer; para saber se a pessoa está acima da lei ou se terá de cumpri-la’. A comprovação empírica dessa identificação não deu lugar à discussão que, supostamente, deveria ocorrer inevitavelmente. Foi bloqueada como tudo quanto, no plano teórico ou ideológico, contraria a elite burocrática, a serviço da qual se têm colocado sucessivos segmentos da intelectualidade” [Paim, Momentos decisivos da história do Brasil, ob. cit., p. 376].

Finalizando a sua análise, Paim sintetiza assim a tese fundamental de Alberto Carlos de Almeida: “Para a população de baixa escolaridade, que apoia a quebra de regras patrocinada pelo ‘jeitinho brasileiro’, há também uma tendência em mostrar-se tolerante com a corrupção. Para muitas dessas pessoas, não há ‘esquecimento’ das denúncias; elas simplesmente não são importantes” [Alberto Carlos de Almeida, A cabeça do brasileiro, ob. cit., p. 27]. A respeito, frisa Paim: “Essa verificação correlaciona-se diretamente com a tese defendida pelos autores que tipificam o Estado brasileiro como Estado Patrimonial. Nesse tipo de estrutura estatal, a alta burocracia e parte da elite política consideram que podem lidar com seus recursos como se fossem uma propriedade particular. (...). Nessa direção, a pesquisa dirigida por Alberto Carlos Almeida permite-lhe concluir que grande parte da população brasileira é patrimonialista, não tem espírito público, sendo a favor de mais intervenção do Estado na economia” [Paim, Momentos decisivos da história do Brasil, ob. cit., pp. 376-377].

Se pegarmos toda a documentação produzida pela direção petista, desde a fundação do Partido até os dias atuais, encontraríamos três grandes etapas: Na primeira, antes de ganhar as eleições de 2003, os petistas simplesmente apostavam na realização, no Brasil, do comunismo à maneira cubana. “O traço comum a toda essa documentação, produzida em 22 anos – frisa Paim – consiste na adesão a um regime político assemelhado ao de Cuba, que tecnicamente denomina-se de sistema cooptativo. Vale dizer, a escolha da elite dirigente dá-se pela cooptação efetivada por aqueles que se encontram no poder. Ao longo da década de oitenta, o PT deu provas de que seu propósito consistia em chegar ao poder pela força. Buscou criar no país uma situação revolucionária que lhe permitisse ‘virar a mesa’, como então se dizia. Este ciclo encerra-se praticamente com o desempenho eleitoral alcançado em 1989” [Paim, Para entender o PT, Londrina: Edições Humanidades, 2002, p. 2].

Paim descreve a segunda etapa como formalizada no Programa do PT apresentado em 1994, cujo cerne seria o seguinte: “Admite-se que possa chegar ao poder pelo voto mas, consumada a vitória, (o Partido) introduzirá profundas modificações no sistema representativo, visando torná-lo uma democracia popular, isto é, idêntico ao regime assim denominado que vigorou no Leste Europeu ao tempo em que se subordinava à União Soviética” [Paim, Para entender o PT, ob. cit., pp. 2-3].

A terceira etapa foi assim caracterizada por Paim: “Finalmente, no curso da campanha eleitoral de 2002, o PT inaugura uma terceira fase, que consiste na adesão ao Estado de Direito” [Paim, Para entender o PT, ob. cit., p. 3]. Estaríamos, segundo Paim, nesta terceira fase, com toda a atenção do Partido dedicada ao aperfeiçoamento da democracia e das instituições republicanas, como consta do “Programa de Governo do PT – Campanha Eleitoral de 2002”, documento que Paim transcreve no final do seu livro Para entender o PT, [Anexo, pp. 51-71].

Paim faleceu em 2021, mas as suas antenas já adivinhavam o que estaria por vir, com a radicalização dos petistas ao redor da tentativa de destruir o combate à corrupção patrocinada pela Operação Lava-Jato e com a busca de uma hipótese de “virada da mesa” à maneira chavista.

III - CONCLUSÃO.

No entanto, o Mestre ainda apostava na boa fé da liderança petista e destacava a urgência de o PT levar adiante duas providências:

1 – “A primeira seria a correspondente elaboração teórica que justifique o novo posicionamento. Os ciclos anteriores da vida do PT caracterizam-se por haver proporcionado uma grande elaboração teórica. Nessa, contudo, o que aparece é a recusa da social-democracia, em especial do encaminhamento que lhe deu Tony Blair (1953-) ao propor a denominada terceira via. Além disso, não há uma franca adesão ao socialismo democrático ocidental nem a correspondente condenação da experiência comunista” [Paim, Para entender o PT, ob. cit., pp. IX-X].

2 – “A segunda providência seria definir com clareza quem fala em nome do PT. As facções totalitárias que abriga em seu seio estão habituadas a dispor de grande autonomia” [Paim, Para entender o PT, ob. cit., p. X].

A realidade revelou-se mais complexa e problemática. A partir da intervenção da alta cúpula da Magistratura – representada pelo STF e pelo TSE – foi aberta a porta para construção de uma nova narrativa que apagasse os fatos de corrupção sistêmica que deram ensejo à Operação Lava-Jato, com o conjunto de julgamentos e condenas legais dos principais artífices dessa complicada teia de crimes contra o Tesouro da Nação e contra as Instituições Republicanas. O horizonte parecia que seria favorável a um futuro de paz e tranquilidade. Pelo contrário, contradizendo as expectativas, com a mencionada intervenção da alta cúpula da Magistratura, num modelo heterodoxo de bonapartismo togado, tudo ficou confuso e voltaram à estaca zero as esperanças em prol do aperfeiçoamento das nossas instituições de governo representativo e da vigência plena do estado de Direito.

Num único ponto houve, contudo, solução à segunda providência sugerida pelo Mestre Paim: “definir com clareza quem fala em nome do PT”. Nessa torrente verborrágica de palanque que passou a ser o clima retórico do Primeiro Mandatário, todo mundo sabe, hoje, quem fala em nome do PT: o Presidente Lula e mais ninguém.

BIBLIOGRAFIA

ALMEIDA, Alberto Carlos de. A cabeça do brasileiro. Rio de Janeiro: Record, 2007.

IBPT. “Quantidade de normas editadas no Brasil: 34 anos da Constituição Federal de 1988”, apud IORIO, Ubiratan Jorge. “O furor arrecadador do atual governo”. In: Revista Oeste, 4 de agosto de 2023.

IORIO, Ubiratan Jorge. “O furor arrecadador do atual governo”. In: Revista Oeste, São Paulo, 4 de agosto de 2023.

 FAORO, Raimundo. Os donos do poder – Formação do patronato político brasileiro. 1ª edição, Porto Alegre: Livraria do Globo, 1958, 2 vol.

JARAMILLO Uribe, Jaime. El pensamiento colombiano en el siglo XIX. 2ª edição, Bogotá: Temis, 1974.

PAIM, Antônio. A querela do estatismo – Natureza dos sistemas econômicos: o caso brasileiro. 2ª edição. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. 1994.

PAIM, Antônio, Momentos decisivos da História do Brasil. 2ª edição, Campinas: Vide Editorial, 2014.

PAIM, Antônio. Para entender o PT. Londrina: Edições Humanidades, 2002.

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SOARES, João Teixeira. O Marquês de Pombal. Rio de Janeiro: Alba, 1961.

TOURAINE, Alain. Palavra e sangue: Política e Sociedade na América Latina. Trad. de Iraci Poletti, São Paulo: Trajetória Cultural / Campinas: Unicamp, 1989.

VÉLEZ Rodríguez, Ricardo. Patrimonialismo e a realidade latino-americana. 2ª edição revisada. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, BIBLIEX. 2017.

WEBER, Max. Economia y Sociedad. 1ª edição em espanhol. (Trad. de J. Medina Echavarría et alii). México: Fondo de Cultura, 1944, vol IV.