
MARX NÃO BUSCAVA A LIBERTAÇÃO MAS O DETERMINISMO HISTÓRICO
Depois do golpe desferido pelo STF contra as instituições democráticas, com a finalidade de tirar Lula da cadeia e elegê-lo Presidente, começamos a derrapar pela pendente que conduz ao despotismo. Já não vivemos numa democracia, onde os direitos dos cidadãos são respeitados. Vivemos num regime de força onde os Ministros do Supremo colocaram a sua vontade por cima das leis e condenam todo aquele que se opuser, a começar pelos membros do Poder Legislativo, sem observar minimamente os ritos previstos pelo Estado de Direito.
Chegamos a essa triste situação, entre outras coisas, em decorrência do fato de que a elite mandante deixou para trás o estudo da História como conhecimento dos fatos, tendo-a substituído pela construção de narrativas elaboradas, a seu bel prazer, pelo donos do poder e pelos seus porta-vozes, no caso concreto que vivemos, tentando realizar a vontade todo-poderosa do Lula. Fim decepcionante para um país que almejava ver consolidado o regime democrático, a fim de que o Brasil ocupasse o lugar que lhe corresponderia na História contemporânea, pelo tamanho e variedade da sua população, pelas expectativas dos seus cidadãos e representantes e pelos seus recursos. O PT e os seus áulicos embarcaram na rasteira opção de “construir uma nova narrativa” que reconheça Lula e os seus asseclas como portadores da responsabilidade histórica de obter a libertação completa dos oprimidos e de todos os brasileiros. A crítica que podemos levantar não se refere a algum detalhe pontual da tarefa em andamento. Trata-se de que devemos questionar, ab initio, a maluca proposta da História como Narrativa da caminhada messiânica do gênero humano para obter a sua total libertação, sob o narcótico do pensamento único.
A origem dessa pretensão messiânica já aparece na tendência historicista elaborada por Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), que definiu claramente a ambiciosa meta de entender a história humana como a caminhada do Ser, compreendida à luz de um pensamento único com ares de racionalidade total. “Conceber o que é – escreve Hegel – eis a tarefa da filosofia, pois o que é, é a razão. No que concerne ao indivíduo, cada um é filho do seu tempo; do mesmo modo, a filosofia resume seu tempo no pensamento”. Tamanha missão, dar conta de tudo, faz com que a filosofia na condição de sistema chegue sempre tarde, como a coruja de Minerva “que levanta voo quando as sombras da noite se aproximam”. É o que Hegel reconhece com os seguintes termos: “para dizer uma palavra sobre a pretensão de ensinar como deve ser o mundo, indicaremos que, em todo caso, a filosofia chega sempre muito tarde. Na condição de pensamento do mundo, ela somente aparece quando a realidade cumpriu e terminou seu processo de formação”.
Émile Bréhier (1876-1952) sintetizou assim a ambição totalizadora da filosofia hegeliana: “Daí, as grandes divisões da filosofia de Hegel: Fenomenologia do Espírito, na qual o filósofo revela a consciência elevando-se pouco a pouco, das formas elementares da sensação até a ciência; Lógica, em que o conceito se define em si; Filosofia da Natureza, que assinala o momento em que o Espírito se torna estranho a si mesmo, Filosofia do Espírito, que mostra o retorno do espírito a si mesmo no direito, na moral, na religião e na filosofia. O sistema é, portanto, uma vasta epopeia do espírito, uma experiência, como diz o próprio Hegel; em seu esforço por reconhecer-se, o espírito produz, sucessivamente, todas as formas do real: primeiro, os quadros do pensamento; depois a natureza, depois a história. É impossível captar algumas das formas isoladamente, mas somente na evolução ou no desenvolvimento que as produz” [BRÉHIER, Émile, Historia de la Filosofia, Tradução ao espanhol de D. Náñez, vol. II, 1948, p. 149].
Foi justamente contra essa ideia de totalidade sistemática e enciclopédica do espírito humano, que reagiu a corrente da denominada esquerda hegeliana que pretendeu, no dizer de Karl Marx (1805-1883) e de Friedrich Engels (1820-1895), “colocar a dialética em pé, a qual em Hegel tinha ficado de pernas para o ar”. No entanto, a mencionada corrente permaneceu fiel ao hegelianismo num aspecto: na reivindicação de que todas as formas culturais são criações humanas, determinadas já não pelo espírito, mas pelas necessidades materiais do homem.
Marx reformulou, assim, o historicismo hegeliano, colocando-o no contexto do chamado por ele de materialismo histórico. Os aspectos essenciais do historicismo de Marx poderiam ser sintetizados da seguinte forma: segundo ele, a consciência da necessidade nasce não apenas da exterioridade da natureza, mas também da própria história humana, da interioridade das condições históricas, da sociedade humana e de suas formas, bem como das relações e condições que influem em sua consolidação. O estímulo para o movimento e a transformação é interior à própria realidade humana, não apenas natural e exterior. A necessidade é, portanto, não apenas exigência natural, mas também força geradora e motora da história. Em vez do homem abstrato da natureza, temos o homem concreto e vivo da história por meio da classe social; o homem que adquiriu consciência de classe na defesa dos seus interesses materiais, o proletário organizado para a luta; esse é o principal ator da história. A massa humana, que tinha sido idealizada por Ludwig Feuerbach (1804-1872), encontra em Marx uma formulação concreta e atuante [cf. MARX, ENGELS, HESS. A ideologia alemã, trad. de C. Bruni e M. Nogueira, São Paulo: Hucitec, 1987].
Apontemos, en passant, de onde provieram os conceitos-chave de Marx na seara sociológica: classe social, política como luta de classes, luta de classes em defesa de interesses materiais, consciência de classe, classe habilitada para dirigir o processo libertador, “Proletários do mundo uni-vos” em lugar de "Industriais da França uni-vos e enriquecei-vos" (como pregava Guizot). Ora, tais categorias e slogans foram encontrados pelo jovem Marx, casado com a aristocrata Jeny Von Westphalen (1814-1881), quando da sua permanência em Paris, guiado pelo poeta romântico alemão Heinrich Heine (1797-1856), pelos idos de 1842, lendo o curso de História da França realizado por François Guizot (1787-1874) na Sorbonne, curso que, aliás, foi frequentado, no final dos anos 1820, pelo jovem advogado e aristocrata Alexis de Tocqueville(1805-1859). Quem fez a descoberta desse achado foi o grande estudioso do marxismo, o mineralogista e historiador russo Georgi Plekhanov (1850-1932). Marx tinha formatado os seus conceitos sociológicos básicos à luz do pensamento de um dos fundadores da historiografia e da sociologia francesas, o conservador Guizot, mas despindo essas categorias de qualquer referência ao transcendente ou a uma moral de índole cristã. Paradoxos da história das ideias!
Alexis de Tocqueville, em A Democracia na América, considerava que os historiadores que escrevem para as grandes multidões buscam ser compreendidos com facilidade e simplificam a complexidade da História, considerando-a uma realidade em si, que evolui à maneira de um ser vivo. É um processo de substancialização do devir humano, que já tinha sido tentado por Claude-Henri de Saint Simon (1760-1825), Pai do Messianismo Político, na sua obra intitulada: La Physiologie Sociale [Introd. de Georges Gurvitch, Paris: PUF, 1965]. Tocqueville antecipava-se, assim, à crítica que os neokantianos fariam posteriormente, com Heinrich Rickert (1863-1936) à testa, à tendência abstrata da Escola Histórica de Friedrich Carl von Savigny (1779-1861), que terminaria inspirando ao próprio Hegel e à corrente da esquerda hegeliana.
Em relação à historiografia que se pratica nos séculos democráticos, Tocqueville escreveu o seguinte: “Os historiadores que vivem nos séculos democráticos mostram tendências inteiramente contrárias [aos historiadores que escrevem nos séculos aristocráticos]. A maior parte deles quase não atribui influência alguma ao indivíduo sobre o destino da espécie nem aos cidadãos sobre a sorte do povo. Mas, em troca, atribuem grandes causas gerais aos pequenos fatos particulares (...). Quando (...) todos os cidadãos são independentes uns dos outros, e cada um deles é frágil, não se descobre um que exerça um poder muito grande nem, sobretudo, muito durável sobre a massa. À primeira vista, os indivíduos aparecem absolutamente impotentes em relação a ela e dissera-se que a sociedade marcha sozinha pelo concurso livre e espontâneo de todos os homens que a compõem. Isso leva naturalmente o espírito humano a procurar a razão geral que pode, assim, atingir, a um tempo, tantas inteligências e voltá-las simultaneamente para o mesmo lado” [TOCQUEVILLE, A democracia na América, trad. de N. Ribeiro da Silva, 2ª edição, Belo Horizonte: Itatiaia / São Paulo: Edusp, 1977, p. 375].
Do ângulo antropológico, o problema fundamental que apresenta esse tipo de historiografia consiste, segundo de Tocqueville, naquilo que pressupõe uma concepção determinista. “Os historiadores que vivem nos séculos democráticos – frisa a respeito o pensador francês - não recusam, pois, apenas atribuir a alguns cidadãos o poder de agir sobre o destino do povo; ainda tiram aos próprios povos a faculdade de modificar a sua própria sorte e os submetem ora a uma providência inflexível, ora a uma espécie de cega fatalidade. Segundo eles, cada nação é invencivelmente ligada, pela sua posição, sua origem, seus antecedentes, sua natureza, a certo destino, que nem todos os esforços poderiam modificar. Tornam as gerações solidárias umas das outras e, remontando assim, de época em época e de acontecimentos necessários em acontecimentos necessários, à origem do mundo, compõem uma cadeia cerrada e imensa, que envolve todo o gênero humano e o prende. Não lhes basta mostrar como se deram os fatos; comprazem-se ainda em mostrar que não podiam dar-se de outra forma. Consideram uma nação que chegou a certo ponto da sua história e afirmam que foi obrigada a seguir o caminho que a conduziu até ali. Isto é muito mais fácil que mostrar como teria podido fazer para seguir um melhor caminho” [TOCQUEVILLE, A democracia na América, ob. cit., p. 377].
Tocqueville previa a entropia histórica que o historicismo provocaria na cultura humana do século XX, à sombra do dogmatismo totalitário. Se o determinismo é a regra dos fatos humanos, a fatalidade é senhora da história e a liberdade pessoal desaparece. A respeito, afirma: “Se essa doutrina da fatalidade, que tem tantos atrativos para aqueles que escrevem a história nos tempos democráticos, passando dos escritores a seus leitores, penetrasse assim em toda a massa de cidadãos e se apoderasse do espírito público, pode-se prever que logo paralisaria o movimento das sociedades novas e reduziria os cristãos a turcos. Direi mais: que semelhante doutrina é particularmente perigosa à época em que nos encontramos; nossos contemporâneos acham-se muitíssimo inclinados a duvidar do livre-arbítrio, porque cada um deles sente-se limitado por todos os lados pela sua fraqueza, mas ainda atribuem de boa vontade força e independência aos homens reunidos em corpo social. É necessário que nos guardemos de obscurecer essa ideia, pois se trata de restabelecer a dignidade das almas e não de completar a sua destruição” [TOCQUEVILLE, A democracia na América, ob. cit., ibid.].
A invenção da História como narrativa insere-se nesse contexto dogmático de atribuir aos fatos gerais, que se identificam com a classe social dos despossuídos, o desenvolvimento da trama da libertação dos proletários, que são os chamados a possuir a Terra. O paciente estudo dos fatos, tais como se passaram, é perda de tempo. O importante é a intuição da Causa Motriz da História no seu devir: os interesses da classe oprimida na sua luta contra os opressores e a agenda daqueles que embarcaram nessa guerra messiânica de libertar os oprimidos. Assim, a História vira uma Teologia da Salvação dos oprimidos, formulada a partir dos interesses daqueles. É o conceito que Antonio Gramsci (1891-1937) entende como “intelectual orgânico”, aquele que se mantém fiel à defesa dos oprimidos. A luta pela libertação dos oprimidos está presidida, pois, pela necessidade e pela certeza absoluta de que terá pleno sucesso. Não há como se contrapor, pois, a essa verdade que transcende a História e que se identifica com a libertação definitiva dos oprimidos mediante a implantação do Comunismo. No grande mar em que morreu a liberdade, morre também a inteligência dos indivíduos. Se alguém quer pensar, deve fazê-lo na direção certa da História da Redenção dos Oprimidos. Essa será a única verdade possível.
Neste contexto de solidão e absurdo, sem liberdade e sem consciência, mergulha a proposta messiânica do Lula e da sua patota. O único que os novos messias sabem fazer a contento é passar a conta do seu messianismo pífio aos otários de sempre, os pagadores de impostos!