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LIBERALISMO: CONCEITOS BÁSICOS (ESTADO, LEGITIMIDADE, REVOLUÇÕES E DEMOCRACIA)

LIBERALISMO: CONCEITOS BÁSICOS (ESTADO, LEGITIMIDADE, REVOLUÇÕES E DEMOCRACIA)

Retrato de John Locke no Christ Church College de Oxford

No período compreendido entre 14 e 16 de Outubro de 2024, ocorreu em Belo Horizonte a reunião da diretoria do Instituto Liberal. Sintetizo aqui as minhas considerações sobre o tema concernente aos Conceitos Básicos do Liberalismo.

Desenvolverei, neste ensaio, quatro itens: 1 – A noção de Estado na sociologia weberiana. 2 – As duas primeiras revoluções modernas (a inglesa, de 1688 e a francesa, de 1789), os seus líderes e os seus panfletários. 3 – A questão da legitimidade e o princípio da soberania popular, à luz do pensamento de Benjamin Constant de Rebecque (1767-1830). 4 – O princípio da soberania popular na tradição ibérica e na obra de Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846).

1 – A noção de Estado no contexto da sociologia weberiana.

Para Max Weber (1864-1920), o Estado é uma comunidade humana que, numa época e num território determinados, reivindica, para si, a exclusividade do exercício legítimo da força.

Segundo Weber, há três formas de legitimação da força num Estado: tradicional, racional e carismática.

A forma tradicional acontece quando o exercício da autoridade se baseia na crença da comunidade em determinada tradição que legitima o uso do poder, como por exemplo, nas antigas monarquias medievais, quando os soberanos ancoravam a sua autoridade na tradição cristã, segundo a qual, eles eram os representantes da divindade no exercício da justiça e do poder temporal sobre a sociedade. A teoria do “direito divino dos Reis” se alicerçava nessa crença.

A variante patrimonial ou patrimonialista é uma derivação da forma tradicional de legitimação e está presente nas sociedades nas quais, na modernidade, não houve a diferenciação dos interesses das classes que lutavam pela posse do poder, tendo o Estado surgido da hipertrofia de um poder patriarcal originário, que alargou a sua dominação doméstica sobre territórios, pessoas e coisas extrapatrimoniais, passando a exercer a autoridade como propriedade familiar ou patrimonial do governante, contando com o apoio, por parte dos seus subordinados, de uma devoção de tipo filial.

Segundo os estudos realizados pelo sociólogo alemão Karl Wittfogel (1896-1988), o modelo Patrimonialista vingou, sobretudo, na Rússia czarista e na China, sendo que a sua essência esteve presente no chamado “despotismo hidráulico”, (praticado no Antigo Egito pelos faraós e, na China, pelos imperadores da dinastia Chin, na remota época dos “Estados combatentes”, quando se consolidaram Estados mais fortes do que a sociedade). Traços patrimonialistas encontrar-se-iam, também, no despotismo que caracterizou aos antigos Impérios Inca e Asteca, na América pré-colombiana.

Tal modelo se difundiu na América Latina, onde o conhecido caudilhismo ibérico se consolidou em Estados mais fortes do que a sociedade, nas várias ditaduras que floresceram ao longo dos séculos XIX e XX, inclusive no Brasil, com as ditaduras castilhista (no Rio Grande do Sul), getuliana (no plano nacional) e, hoje, lulopetista, no condomínio de “autoritarismo instrumental” instaurado em 2023 sob a dupla supremacia do STF e do PT.

No México e no Peru, o Patrimonialismo deitou raízes muito antigas no despotismo hidráulico que vingou nos Impérios Inca e Asteca e que reforçou a tendência patrimonialista da colonização espanhola, tendo dado ensejo à figura hobbesiana do “Ogre Filantrópico” tão bem caracterizado pelo Nobel de Literatura, o mexicano Octavio Paz (1914-1998). No Brasil de hoje, por obra e graça do “herói sem nenhum caráter”, Lula, temos uma forma de “Ogre pilantrópico”, especialista em limpar os cofres da Nação, num modelo de estatismo cínico em ascensão. A obra do embaixador José Osvaldo de Meira Penna (1917-2017) intitulada: O Dinossauro – Uma pesquisa sobre o Estado, o Patrimonialismo selvagem e a nova casta de intelectuais e burocratas [São Paulo: Queiroz, 1988] ilustra o viés de barbárie gramsciana que acompanha a caminhada do PT rumo à hegemonia patrimonialista.

A forma racional de Estado apareceu naquelas sociedades nas quais houve uma diferenciação entre os interesses das classes que lutavam pela posse do poder. Não podendo se eliminar mutuamente, houve uma negociação entre elas, partindo para um contrato social, segundo o qual a representação dos interesses em pugna se exercia no seio de parlamentos, nos quais tomavam assento os representantes das duas classes, a dos nobres (que faziam derivar a sua autoridade da conquista da terra) e a da nascente burguesia (que se firmava no trabalho livre e na acumulação de riqueza, que constituíam as atividades econômicas).

Esse foi o tipo segundo o qual surgiram as monarquias parlamentaristas na Europa Ocidental, a partir de um contrato social, dando ensejo ao chamado “modelo contratualista” estudado por Weber. O fator que possibilitou esse modelo foi a presença, no período medieval, da tradição contratualista no feudalismo de vassalagem, que possibilitou que as respectivas sociedades se organizassem a partir da representação dos interesses em conflito. As nações que foram colonizadas pelos europeus ocidentais, notadamente os Ingleses, pelo mundo afora, terminaram herdando a índole contratualista das suas metrópoles (como foi o caso dos Estados Unidos, da Austrália, da Nova Zelândia, do Canadá, e outros países na “Commonwealth”).

A forma carismática se concretiza naquelas sociedades nas quais o poder se legitima pelo carisma do governante, que faz dele uma pessoa com significado especial para a comunidade, em decorrência do especial valor que ele encarna. Esta seria, para Weber, uma forma bastante subjetiva e precária de legitimação, que pode ocorrer nas formas tradicional e racional de dominação, como uma força complementar posta a serviço do processo de legitimação.

2 - As duas primeiras revoluções modernas (a inglesa, de 1688 e a francesa, de 1789), os seus líderes e os seus panfletários.

Nessas revoluções houve panfletários e líderes que canalizaram a insatisfação com os poderes existentes, visando à sua mudança para formas mais acordes com as expectativas das correspondentes sociedades.

Examinemos essas revoluções:

2.1 – A Revolução Inglesa de 1688, conhecida como a “Revolução Gloriosa”, teve em John Locke (1632-1704) o seu mais eficaz “panfletário” e ideólogo, ao ser divulgado, na Holanda, o resumo daquela que seria a sua obra intitulada: Tratado sobre o Governo Civil, publicada anonimamente na Inglaterra em 1689. O líder da Oposição Liberal (whig) e chefe do Parlamento, Anthony Ashley Cooper, conde de Shaftesbury (1621-1683), encontrava-se no exílio na República de Holanda, junto com Locke (seu assistente), e ali foi preparada a entrada em cena do príncipe Guilherme de Orange, (1650-1702), o qual, casado com a princesa inglesa Maria, era comandante do Exército holandês e invadiu a Inglaterra, tendo deposto o soberano absoluto Jaime II (1633-1702), da Casa Stuart, pai da princesa Maria. Guilherme assumiu o poder, sendo coroado em 1689 pelo Parlamento inglês como Rei William III, ao lado da sua esposa, coroada como Rainha Maria da Inglaterra. O ponto central do novo regime consistiu na Monarquia Constitucional, que colocava no centro do poder o Parlamento, tendo o Rei jurado obediência a ele.

2.2 – A Revolução Francesa de 1789, inspirada na tríade “Liberdade, Igualdade, Fraternidade” apregoada pelos Enciclopedistas, foi motivada pelo absolutismo e a corrupção que grassava no regime do Rei Luís XVI (1754-1793). Um autor, que era membro da Assembléia Nacional e da Convenção como representante da sua comuna, o padre Joseph Sieyès (1748-1836) escreveu o livrinho intitulado: O que é o Terceiro Estado? Nele, Sieyès discutia qual era o poder realmente constituinte na França, identificando-o com o Terceiro Estado.

O Clero, na Assembleia Nacional francesa, contava com 291 deputados eleitos, a Nobreza com 270 e o Terceiro Estado com 578 delegados. Ora, frisava Sieyès, o Clero era integrado por 84.400 pessoas, ao passo que a Nobreza era constituída por 110.000 indivíduos, sendo o grosso da população do país representado no Terceiro Estado e integrado por uma multidão que oscilava entre 25 e 26 milhões de habitantes (que eram os pagadores de impostos, pois o Clero e a Nobreza não pagavam). A quem corresponderia ter a maioria na Assembleia Nacional? A resposta de Sieyès era clara: “O Terceiro estado abarca (...) tudo quanto pertence à nação; e tudo o que não é o Terceiro estado não pode ser considerado como da nação. O que é o Terceiro estado? Tudo”.

A dinâmica da Revolução terminou sendo polarizada pelo democratismo apregoado por Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), cujo ensinamento fundamental consistia em supor que a felicidade da Nação decorria da unanimidade do corpo social ao redor do Legislador. O livro de Rousseau intitulado: Do Contrato Social (1762), no capítulo 8º estabelecia o seguinte: como a condição para a felicidade social decorria da unanimidade, deveria simplesmente ser aniquilada qualquer oposição, mediante a intervenção da polícia do Estado. Essa ideologia radical inspirou, primeiro, a Convenção e, depois o Diretório, dando ensejo a uma radicalização progressiva que desaguou no Terror Jacobino. O poder era expressão da Vontade Geral que apregoava que a sobrevivência da Nação encarnava-se no Legislador. Temos aí a origem longínqua do hodierno totalitarismo.

Na França, a casa foi colocada em ordem por um poder absoluto originado da necessidade de pôr fim ao Terror Jacobino, que terminou vitimando na guilhotina os próprios líderes do Diretório. O general Bonaparte (1769-1821) deu um golpe de Estado, criou o Consulado e elegeu-se Primeiro Cônsul da República Francesa, tendo promulgado a Constituição de 1800, que fazia dele, Napoleão, o Primeiro Cônsul Vitalício da República. Em 1804, o Consulado foi transformado pelo Senado em Império, tendo sido coroado Napoleão Bonaparte como primeiro Imperador dos Franceses, que reinaria até a derrota definitiva em Waterloo (1815), comandada pelos Ingleses.

A evolução política na Europa Ocidental e no resto do mundo canalizou-se sob a influência da Revolução Gloriosa Inglesa ou da Revolução Francesa. Nos países antigamente dominados pela Inglaterra, surgiram instituições de governo representativo, dando ensejo a governos de corte parlamentar ou presidencialista bicameral (como os Estados Unidos da América), tendo o modelo parlamentar bicameral subsistido no Canadá, na Austrália, na Nova Zelândia, e em outros países integrantes da Commonwealth.

No resto da Europa, na Asia, na Africa e na América Latina terminou prevalecendo a influência francesa, com Repúblicas instauradas a partir de processos revolucionários inspirados no democratismo de Jean-Jacques Rousseau. A gesta libertadora de Simón Bolívar (1783-1830) foi canalizada pelo duvidoso caminho da busca da unanimidade ao redor do líder, tendo o Libertador cogitado numa presidência vitalícia para manter unidas as Repúblicas libertadas.

Mas o que terminou acontecendo foi uma crônica instabilidade e a prática do populismo, que se espraiou ali onde mais força tiveram líderes carismáticos, como os tradicionais caudilhos latino-americanos. No Brasil, reinou uma mistura entre a tradição parlamentarista britânica, herdada do Império, e a República caudilhista polarizada pelo positivismo e pelo cientificismo marxista.

Particularmente dramática foi a lição deixada pelo Libertador Simón Bolívar. Partidário convicto do modelo rousseauniano, que consagrava o líder das Repúblicas formadas a partir da expulsão dos espanhóis, Bolívar terminou impedindo que, nas cinco Nações por ele libertadas (Venezuela, Colômbia, Equador, Peru e Bolívia) se fortalecesse o governo representativo, deixando a faculdade de legislar nas mãos dele próprio, pois se considerava o Libertador dessas nações. O resultado imediato foi a ingovernabilidade.

Bolívar, doente e amargurado, terminou sendo expulso pelos Congressos dos países por ele libertados e morreu na Quinta de San Pedro Alexandrino, à beira do mar Caribe, perto da cidade histórica de Cartagena de Indias, quando se dirigia para o exílio, na Inglaterra. Como o seu médico francês, o Dr. Próspero Révérend lhe recomendasse esquecer Rousseau e a sua ditadura republicana, e passasse a se inspirar nos ensinamentos liberais de Benjamin Constant de Rebecque (1769-1830), que considerava a soberania um poder limitado, reduzido à organização externa da sociedade, mas que não podia invadir a esfera íntima do indivíduo, a sua liberdade, as suas posses, as suas crenças religiosas e as convicções morais que regravam a sua vida privada, Bolívar rejeitou fortemente o liberalismo de Constant e passou a defender o exercício de uma autoridade vitalícia e pessoal sem limites, pronunciando, irado, as seguintes palavras, com as quais liquidou a proposta do seu médico, de aderir ao liberalismo moderado: “Por favor, caralho, deixem-nos fazer tranquilos a nossa Idade Média!” [apud García Márquez, El general en su laberinto. Bogotá: La Oveja Negra, 1989, p. 130].

O liberalismo de Constant era, para Bolívar, algo impraticável. A respeito, “el Libertador” frisava: “No fundo, já conhecemos a mesma insensatez de Benjamin Constant, o maior pasteleiro da Europa, que esteve contra a revolução e depois com a revolução, que lutou contra Napoleão e depois foi um dos seus áulicos, que muitas vezes se deita republicano e amanhece monarquista, ou ao contrário e que, agora, constituiu-se como depositário absoluto da nossa verdade, por obra e graça da prepotência européia” [apud García Márquez, El general en su laberinto. Ob. cit., p. 128].

3) A questão da Legitimidade e o princípio da soberania popular, à luz do pensamento de Benjamin Constant de Rebecque.

A respeito, Constant de Rebecque frisava em Princípios de Política: “Os modernos Estados consolidaram-se à sombra do princípio da soberania do povo, ou seja, da supremacia da vontade geral sobre qualquer vontade particular (...). Tal princípio se aplica a todas as instituições. A teocracia, a realeza, a aristocracia são, quando dominam os espíritos, a vontade geral. Quando não os dominam, não são mais do que força. Numa palavra: no mundo só existem dois poderes: um, ilegítimo, a força; outro legítimo, a vontade geral. Mas, ao mesmo tempo que se reconhecem os direitos dessa vontade, ou seja, a soberania do povo, é necessário, é urgente, conceber bem a sua natureza e determinar devidamente a sua extensão. (...). O reconhecimento abstrato da soberania do povo não aumenta em nada a soma de liberdade dos indivíduos, e se lhe for atribuída uma amplitude indevida, pode-se perder a liberdade, apesar e contra esse mesmo princípio”.

No seguinte texto da mesma obra, Constant deixa definidos, de forma bem clara, os limites da soberania popular: “Numa sociedade fundada na soberania do povo, é evidente que nenhum indivíduo, nenhuma classe, possuem direito a submeter o resto à sua vontade particular; mas é falso que a sociedade, no seu conjunto, possua sobre os membros uma soberania sem limites”.

Quais seriam esses limites? – Constant responde: “A universalidade dos cidadãos é soberana no sentido de que nenhum indivíduo, nenhuma facção, nenhuma associação parcial pode se arrogar a soberania se ela não lhe foi delegada. Mas disso não se segue que a universalidade dos cidadãos, ou aqueles que foram investidos com a soberania, possam dispor soberanamente da existência dos indivíduos. Existe, pelo contrário, uma parte da vida humana que é, por natureza, individual e independente e que fica à margem de toda competência social. A soberania só existe de modo limitado e relativo. Onde começa a independência e a existência individual, se detém a jurisdição dessa soberania” [o destaque, em negrito, é meu].

Notemos que a soberania pára diante do indivíduo. Ele constitui o maior obstáculo para o poder total. A respeito, frisa Constant: “Rousseau ignorou essa verdade e o seu erro tem feito do seu Contrato Social, tão frequentemente invocado em favor da liberdade, o instrumento mais terrível de todos os gêneros de despotismo. Definiu o contrato celebrado entre a sociedade e os seus membros, como a alienação completa e sem reservas de cada indivíduo, com todos os seus direitos, à comunidade. Para nos tranquilizar sobre as consequências de abandono tão absoluto de todas as partes da nossa existência em proveito de um ser abstrato, diz-nos que o soberano, ou seja, o corpo social, não pode prejudicar nem o conjunto dos seus membros, nem a cada um deles em particular; que no ato de se dar cada um por completo, a condição é igual para todos e que ninguém tem interesse em tornar essa doação onerosa para os demais; que ao se dar cada um a todos, não se dá a ninguém; que cada um adquire sobre todos os associados os mesmos direitos que ele lhes cede, e ganha o equivalente de tudo o que perde, com maior poder para conservar aquilo que tem”.

“Mas – continua Constant – (Rousseau) esquece que todos esses atributos preservadores que confere ao ser abstrato que chama de soberano, resultam de que esse ser compõe-se de todos os indivíduos sem exceção. Ora, logo assim que o soberano tem de fazer uso do poder que possui, ou seja, tão logo como há de proceder a uma organização prática da autoridade, não podendo o soberano exercê-la por si mesmo, delega-a e todos esses atributos desaparecem. Ao estar, necessariamente, de grau ou por força, a ação que se executa em nome de todos, à disposição de um só ou de alguns, resulta que ao se dar um a todos, não é verdade que não se dê a ninguém; pelo contrário, se dá aos que atuam em nome de todos [o destaque é meu]. Daí que, ao se dar por completo, não entra numa condição igual para todos, já que alguns se aproveitam exclusivamente do sacrifício do resto; não é verdade que ninguém tenha interesse em tornar onerosa a condição dos demais, posto que há associados que estão fora da condição comum. Não é verdade que todos os associados adquirem os mesmos direitos que cedem; não todos ganham o equivalente daquilo que perdem, e o resultado daquilo que sacrificam é, ou pode ser, o estabelecimento de uma força que lhes tire aquilo que têm”.

O arrazoado rousseauniano ficou tão retorcido e inaceitável, que o próprio Rousseau teve medo das consequências. A respeito, frisa Constant: “Aterrado pela imensidade do poder social que acabava de criar, não soube em que mãos depositar esse poder monstruoso, e não encontrou outro preservativo contra o perigo que incorpora tal soberano, que um expediente que torna impossível o seu exercício. A declaração da soberania não podia ser alienada, nem delegada, nem representada. Era declarar, em outros termos, que não podia ser exercitada; era anular, de fato, o princípio que acabava de proclamar”.

Daí proveio o caos que a teoria rousseauniana produziu nas nações em que foi aplicada, como aconteceu no estado de soçobra permanente que passou a reinar em todas as Repúblicas Bolivarianas e nos demais países da América espanhola que implantaram os ensinamentos de Rousseau.

Constant deixou claro que os cidadãos possuem direitos individuais e independentes de qualquer autoridade social ou política. De outro lado, fica estabelecido que qualquer autoridade que viole esses direitos é ilegítima. Quais os direitos dos cidadãos? Constant responde: “os direitos dos cidadãos são: a liberdade individual, a liberdade religiosa, a liberdade de opinião, que compreende o direito à sua livre difusão, o desfrute da propriedade, a garantia contra todo ato arbitrário. Nenhuma autoridade pode atentar contra esses direitos sem renunciar ao seu próprio título”. O nosso autor conclui: “Ao não ser ilimitada a soberania do povo e ao não bastar a sua vontade para legitimar tudo quanto quer, a autoridade da lei, que não é mais do que a expressão verdadeira ou suposta dessa vontade, tampouco é ilimitada”.

Quanto aos sacrifícios que devemos fazer em prol do bem público (ou da “maioria”), frisa Constant: “Devemos muitos sacrifícios à tranquilidade pública. Seríamos culpados perante a moral se, devido a um zelo inflexível pelos nossos direitos, resistíssemos a todas as leis que nos parecessem feri-los; mas não estamos obrigados a obedecer aquelas pretensas leis cuja influência corruptora ameaça as partes mais nobres da nossa existência, aquelas leis que não só restringem nossas liberdades legítimas, mas nos impõem ações contrárias a esses eternos princípios de justiça e de piedade que o homem não pode deixar de observar sem se degradar e desmentir a sua natureza”.

E conclui: “Sempre que uma lei parecer injusta existe o dever positivo, geral, irrestrito, de não cumpri-la. Essa força de inércia não comporta transtornos, nem revoluções, nem desordens. Nada justifica ao homem que presta o seu assentimento a uma lei que considera iníqua. O terror não é uma escusa mais valiosa do que qualquer outra paixão infamante. Deus confunda quantos docilmente servem como autômatos aos seus donos, agentes infatigáveis de todas as tiranias existentes, denunciadores póstumos de todas as tiranias derrubadas”.

Constant destaca que a falsa docilidade perante os que ofendem a liberdade, é um pecado funesto que somente produz maior desprezo face à dignidade humana. Refere-se à própria história da França nos seguintes termos: “Durante os anos terríveis que tivemos de viver, dizia-se a nós que, se alguém servia às leis injustas, era somente para torná-las menos rigorosas, já que o poder, cujo depósito se aceitava, ensejaria maiores males confiado em mãos menos puras. Transação falsa que abria uma carreira sem limites a todos os crimes! Cada um enganava a sua própria consciência e cada degrau de injustiça achava dignos executores. Não vejo por que em tal sistema alguém não se tornava carrasco da inocência, com o pretexto de estrangulá-la mais docemente”.

Constant tira as seguintes onze consequências dos seus arrazoados:

1) “A soberania do povo não é ilimitada; está circunscrita pelos limites que lhe demarcam a justiça e os direitos dos indivíduos”.

2) “A vontade de todo um povo não pode tornar justo aquilo que é injusto”.

3) “Os representantes de uma nação não têm o direito de fazer aquilo que não pode fazer a própria nação”.

4) “Nenhum monarca, qualquer que seja o título que invoque, já se fundamente no direito divino, já no direito de conquista ou no assentimento do povo, possui um poder sem limites”.

5) “Se Deus intervém nos assuntos humanos, é apenas para sancionar a justiça”.

6) “O direito de conquista não é outra coisa que a força, não é um direito, já que favorece àquele que o pratica”.

7) “O assentimento do um povo não poderia legitimar aquilo que é ilegítimo, posto que um povo não pode delegar em ninguém uma autoridade que não possui”.

8) “Se se reconhece que a soberania tem limites (ou que não existe nenhum poder ilimitado), ninguém ousará reclamar semelhante poder”.

9) “Os atentados mais monstruosos do despotismo de um, somente se deveram, com frequência, à doutrina do poder ilimitado de todos”.

10) “A limitação da soberania é verdadeira e praticável. Será garantida primeiro pela força (que garante todas as verdades reconhecidas pela opinião). De uma forma mais precisa, será garantida pela distribuição e equilíbrio de poderes”.

11) “Encerrada assim a soberania dentro dos seus justos limites, nada há para temer. Retira-se dos indivíduos ou das assembleias a sanção aparente que pretende obter um assentimento que eles dirigem, ou uma sanção aparente que não pode sancionar nada”.

O indivíduo é, pois, para Constant, a realidade fundamental, de cuja associação e dinâmica emerge o corpo social e que é o centro ao qual se refere o processo de legitimação das leis. O indivíduo preside, assim, o corpo político, que emerge da associação dele aos seus semelhantes, sempre tendo como referência a sua dignidade e a sua vontade.

Édouard Laboulaye, na Introdução ao Curso de Política Constitucional de Constant [Cours de Politique Constitutionnelle, 2ª édition, Paris: Guillaumin et Cia. 1872, vol. I, pp. XI-XII] sintetizou, nos seguintes termos, o conceito de Constant acerca da Liberdade dos Modernos: “Nos modernos, pelo contrário, o cidadão não pede mais do que uma coisa: ser livre em todas as suas ações privadas. Se ele quiser formar parte do governo, não é para reinar no fórum, votar as leis, fazer julgamentos, eleger magistrados; é para garantir que nada o atrapalhará na sua legítima independência. O problema mudou: a antiguidade coloca em primeiro lugar a soberania política, ela subordina e sacrifica o indivíduo ao Estado; os modernos colocam em primeiro lugar o indivíduo, o Estado não sendo mais do que uma garantia. Em Roma, o cidadão eclipsa o homem; em Paris e em Londres, se é homem de entrada, ou seja, chefe de família, proprietário, fabricante, operário, escritor, artista, cristão, filósofo; e se é cidadão, ou seja, eleitor, jurado, guarda nacional, apenas para manter o livre exercício dos direitos individuais. O Estado perdeu importância na mesma proporção em que o indivíduo cresceu”.

A descoberta do indivíduo constitui, certamente, a grande novidade dos Modernos. Essa descoberta focaliza diretamente a pessoa na sua concretude. Do ângulo econômico, pode caracterizar essa concretude como trabalhador do campo, operário, dono de terras ou empresário. O indivíduo é a razão de ser do Estado e da organização social. E, através das atividades do indivíduo, da arte, da religião, do processo produtivo, por exemplo, se penetra no universo da História da Cultura, das crenças e das instituições religiosas, da livre iniciativa empresarial, etc. Ortega definiu bem essa dinâmica quando falou: “Eu sou eu e as minhas circunstâncias, e se não as salvo, não me salvo eu”. Ou seja: sou um indivíduo situado numa concretude correspondente às minhas circunstâncias. Para dar conta de mim, preciso abarcar essas circunstâncias nas quais se encarna a minha essência.

Constant considerava que, na caracterização do indivíduo “cidadão” da modernidade, era necessário começar pelo indivíduo. Não existem essências universais. A nossa essência se traduz em concretudes, ou como diziam os nominalistas, em “estidades”. E, a primeira delas, na vida social, é a nossa concretude material e intelectual, graças à qual trabalhamos, somos empreendedores e nos tornamos proprietários. No terreno da transformação do mundo ocorre nosso empreendedorismo e, no plano da organização da nossa vida civil, elaboramos soluções motivadas pelas necessidades da vida social, ali onde moramos, na nossa comuna ou município.

O pano de fundo da democracia, como por exemplo na América, é concretizado pela liberdade de associação que garante a diversidade de empreendimentos econômicos e sociais. Essa liberdade de associação, que será reconhecida por Alexis de Tocqueville (1805-1859) como a grande mola da democracia americana, garante ao edifício social uma estrutura forte, muito mais eficiente que a ordem estatal vinda de cima, a partir de um modelo geral pensado pelos administradores públicos. Pela porta da nossa sociabilidade, partimos para construir, no governo, a representação de interesses, nos Parlamentos e nos Congressos [cf. Tocqueville, A democracia na América. (Tradução brasileira, prefácio e notas de Neil Ribeiro da Silva. 2ª edição, Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1977). Segunda Democracia, 2ª parte, capítulos V a VII, pp. 388-400].

4 – O princípio da Soberania Popular na tradição ibérica e na obra de Silvestre Pinheiro Ferreira.

O Estado português, já desde a Revolução de Avis (1385) consolidou-se como Estado patrimonial. Alexandre Herculano (1810-1877) destacou a ausência de feudalismo em Portugal e a forma em que os príncipes cristãos, que venceram os sarracenos, passaram a administrar o Reino como propriedade particular, tendo sido nesse ponto influenciados pela cultura política muçulmana [cf. Herculano, História de Portugal, Lisboa: Bertrand & Aillaud, 1914, volume I]. Lúcio de Azevedo (1855-1933), na sua obra Épocas de Portugal Econômico [4ª edição, Lisboa: A. M. Teixeira, 1978] identificou o Reino de Portugal como empresa do Rei, que presidia inicialmente uma monarquia agrária, para se tornar depois “Mercador de Mercadores”. O mercantilismo da empresa ultramarina esteve indissociavelmente ligado à característica centrípeta e privatizante do exercício do poder monárquico. Raymundo Faoro (1925-2003) analisou detalhadamente a forma em que se consolidou o estamento burocrático da monarquia portuguesa, alicerçado na fidelidade pessoal ao monarca, na progressiva substituição da nobreza de sangue medieval pela de funcionários públicos, na submissão da burguesia à empresa do Rei, bem como na incorporação do Direito Romano, a partir da ação definitiva do Mestre de Avis (Dom João I de Portugal, 1357-1433) [Cf. Faoro, Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro, 1ª edição, Porto Alegre: Globo, 1958, vol. I]. Francisco José de Oliveira Vianna (1883-1951), no magistral estudo intitulado: Introdução à história social da economia pré-capitalista no Brasil (1958) mostrou que o comportamento da nobreza decadente portuguesa se pautou, a partir dos “fumos da Índia”, pelos critérios da improdutividade e do consumo suntuário, ensejando assim a forte tendência orçamentívora. Em síntese, o Brasil herdou de Portugal a estrutura patrimonial do Estado. Esse fato foi estudado, além de Faoro, por Simon Schwartzman [Bases do autoritarismo brasileiro, 1982], Antônio Paim [A querela do estatismo, 1978], Fernando Uricoechea [O Minotauro imperial, 1978], Wanderley-Guilherme dos Santos [Ordem burguesa e Liberalismo político, 1978] e José Osvaldo de Meira Penna [O Dinossauro, 1988].

Mas se o Brasil herdou de Portugal a estrutura e a tradição patrimonialistas do Estado, herdou, também, a luta que se travou, ao longo de séculos, no seio das sociedades ibéricas, entre o estatismo centrípeto e a tradição consuetudinária e libertária do antigo Direito Visigótico. Weber, aliás, já tinha chamado a atenção para o fato de que sociedades presididas por Estados patrimoniais poderiam abraçar, no seu seio, tradições contratualistas, que entrariam em atrito com o caráter centrípeto das instituições políticas e que, dinamizadas em virtude de processos endógenos e exógenos, poderiam progredir até desenvolver formas de dominação de tipo contratualista. A evolução da Espanha e de Portugal nas últimas três décadas do século XX, corresponderia a um processo desse tipo. Convém destacar que Weber reconhece, também, a possibilidade de involução de sociedades de caráter contratualista para sociedades de tipo patrimonialista, em virtude do predomínio da tendência autocrática e do esfacelamento da solidariedade social. Esse teria sido o caso ocorrido na Rússia, a partir da adoção de processos diretoriais, de origem mongólica, pelo Principado de Moscou (no século XIII), como anota o estudioso Lewis Thambs no seu ensaio de 1979 intitulado: “A influência da geopolítica na formulação da política internacional e da estratégia das grandes potências” [cf. Thambs, in: Seminário Internacional de Política e Estratégia, São Paulo, Convivio, 1979, p. 8 (mimeo)].

Essas duas tradições, a patrimonialista-tuteladora e a libertária, são bem antigas. A primeira deita raízes no duradouro e profundo influxo que exerceu, na Península Ibérica, a cultura muçulmana, com o seu viés centrípeto e paternalista em política. A dominação dos Califados árabes (entre 710 e 1490), certamente foi responsável pela incorporação às práticas administrativas dessa carga de nepotismo, de clientelismo, de indiferenciação entre público e privado que vieram a florescer na América Latina no conhecido fenômeno do caudilhismo. Trata-se, evidentemente, de uma tradição cultural paradoxal, que de um lado renovou a intelligentsia ibérica com o legado das Universidades de Córdova e de Toledo, nos brumosos confins da Idade Média, mas que, no terreno político, revelou-se claramente despótica, até o ponto de pretender cooptar a variável religiosa como raison d´État do absolutismo. É o que aconteceu na Espanha e em Portugal sob a dominação dos Áustrias, ao ensejo da tutela exercida sobre o catolicismo, considerado pelos soberanos espanhóis e portugueses como religião de cruzada, destinada a reforçar o Império no contexto da Contrarreforma, fato que levou o pensador português Fidelino de Figueiredo (1888-1967) a caracterizar as políticas estatizantes de Carlos V (1500-1558) e Filipe II (1527-1598) como instauradoras de uma “alfândega cultural” [cf. Fidelino de Figueiredo, As duas Espanhas, Lisboa: Guimarães, 1959].

A tradição libertária é, contudo, mais antiga e se filia ao direito consuetudinário de origem visigótica, que veio a florescer nas “Cartas de Foral” e na vida municipal, tão fortemente enraizada nas práticas políticas ibéricas. Essa é a tradição que permitiu o renascimento das instituições do governo representativo e a prática da democracia parlamentar na Espanha e em Portugal, na segunda metade do século passado, de forma a se integrarem esses países plenamente à Comunidade Europeia.

Testemunho bastante antigo dessa tradição libertária é dado pelos Foros Aragoneses, na fórmula recitada pelo justiça-mor, no ato de coroação do Rei: “Nós, que valemos cada um tanto quanto vós e que, juntos, valemos mais do que vós, vos fazemos nosso Rei e Senhor, com a condição de que conserveis nossos foros e liberdades, ou se não, não!

Foi essa tradição libertária que inspirou aos príncipes cristãos, no início do século VIII, na luta da Reconquista, que se estendeu até o final do século XV. Apesar de que os cristãos tivessem sido influenciados pela cultura política muçulmana, ao longo dos oito séculos de dominação estrangeira, no entanto, preservaram-se, nas práticas políticas ibéricas, elementos fundamentais da tradição cristã libertária. Esse núcleo poderia ser identificado com a valorização das Câmaras Municipais, cuja origem remonta, segundo o estudioso espanhol Francisco Martínez Marina (1754-1833), às Cortes medievais. “O autenticamente tradicional em Castela – escreve o historiador José María Ots Capdequí (1893-1975), sintetizando o pensamento liberal de Martínez Marina – tinha sido a existência de um regime político que descansava igualmente na autoridade dos Monarcas e na pujança autônoma das cidades, representadas nas altas esferas do governo pelos seus procuradores, que tiveram parte ativa e destacada nas reuniões das Cortes. O contrário dessas boas tradições democráticas foram os ideais absolutistas, exaltadoras sem freio do poder pessoal dos Reis, que introduzimos na Espanha, como em outros povos da Europa Ocidental, com a adoção do Direito Romano Justiniano, e que chegaram a culminar no governo político da nação, com a entronização infeliz das dinastias estrangeiras” [Ots Capdequí, José María. Historia del derecho español en América y del derecho indiano. Madrid: Aguilar, 1968, p. 10]. A tradição municipalista foi portadora do ideal libertário e contribuiu eficientemente, ao longo dos séculos, para mitigar a tradição patrimonialista.

Tão forte foi a presença da tradição liberal municipalista na mentalidade política ibérica, que chegou a inspirar a um dos maiores teóricos da Segunda Escolástica, o jesuíta Francisco Suárez (1548-1617) que, na sua obra De legibus ac Deo legislatore (Acerca das leis e Deus legislador), publicada em 1613, defendia a ideia da soberania popular [Cf. Francisco Suárez, De Legibus ac Deo Legislatore – Livro I, Da Lei em Geral. Apresentação de Mendo Castro Henriques. Introdução e tradução de Gonzalo Moita. Lisboa: Editora Tribuna da História, 2004, 434 páginas].

Com razão escreve o historiador colombiano Jaime Jaramillo Uribe (1917-2015), referindo-se à repercussão dessas ideias no meio ibero-americano: “Não era absolutamente necessário o contato com as correntes do pensamento francês e inglês do século XVIII, para que fossem divulgadas, nas últimas gerações neo-granadinas da época colonial, as ideias de soberania popular, de poder limitado por normas jurídicas e de livre eleição dos governantes pelo povo, porque essas ideias eram patrimônio comum do pensamento escolástico espanhol e da escola do direito natural, ambos estudados nas Universidades coloniais desde o século XVII. De tal espírito estava impregnada a geração dos precursores da Independência – inclusive a educação de Antonio Nariño (1765-1823), o tradutor dos Direitos do Homem – e ainda na primeira geração republicana” [Jaramillo Uribe, Jaime, El Pensamiento Colombiano en el siglo XIX, 2ª edição, Bogotá: Temis, 1974, pp. 103-104].

A grande contribuição de Silvestre Pinheiro Ferreira consistiu em ter deitado as bases que possibilitaram o trânsito pacífico, no Brasil, da monarquia absoluta para a constitucional, o que correspondeu à mitigação da tradição patrimonialista-tuteladora pela libertária-contratualista. O mestre Antônio Paim sintetizou da seguinte forma a atuação do pensador português: “Com a Revolução Constitucionalista do Porto e sua repercussão no Brasil, decide o Monarca entregar a chefia de seu governo a Silvestre Pinheiro Ferreira, em fevereiro de 1821, que nele acumula as pastas de Exterior e de Guerra. Nessa condição regressa com o Monarca a Portugal, afastando-se do governo em 1823, em vista dos propósitos absolutistas que logo se configurariam. Coube, portanto, ao ilustre pensador a espinhosa missão de efetuar o trânsito da monarquia absoluta para a constitucional, e em meio a clima de todo desfavorável, lutando contra os que apenas ganhavam tempo e somente desejavam a volta da situação antiga e, simultaneamente, cuidando de isolar o radicalismo” [Paim, “A superação do empirismo mitigado na obra de Silvestre Pinheiro Ferreira”, In: Vários autores, Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846): Bibliografia e estudos críticos, (Apresentação de Vivaldo Costa Lima). Salvador-Bahia: Centro de Documentação do Pensamento Brasileiro, pp. 54-59, 1983].

Pinheiro Ferreira retomou a tese, defendida por John Locke no seu Segundo Tratado sobre o governo civil (1689) da antecedência dos direitos naturais individuais aos direitos da sociedade. Esta surgiu, precisamente, para garantir os direitos naturais à vida, à liberdade e às posses. O ponto de partida do pensador português era, portanto, nitidamente liberal e haveria de informar toda a sua restante concepção política. Em face dos extremos do democratismo jacobino (que conduziu à Revolução e ao Terror, na França), e do absolutismo monárquico (que tanto sangue fez verter na Península Ibérica), Silvestre Pinheiro Ferreira optou, decididamente, pela hegemonia do Estado entre os demais grupos sociais e pela sua reformulação no contexto da Monarquia Constitucional, conforme tinha sido pensada pelos publicistas franceses do período da Restauração, notadamente por Benjamin Constant de Rebecque. Seguindo a lição de Thomas Paine (1737-1809), para quem “uma Constituição não é um ato de governo mas de um povo constituindo um governo; e o governo sem Constituição é um poder sem direito” [Paine, The Rights of Men, New York: Doubleday, 1961, p. 420].

Como destacou o professor Ubiratan Borges de Macedo (1937-2007), o constitucionalismo representou, na verdade, no contexto da evolução histórica do liberalismo, a tentativa de institucionalização jurídica da teoria política lockeana [cf. Macedo, “O liberalismo político”, in: Antônio Paim (organizador) Evolução histórica do Liberalismo, Belo Horizonte: Itatiaia, pp. 33-34].

Pinheiro Ferreira inspirou-se nos cinco poderes propostos por Benjamin Constant de Rebecque nos seus Princípios de política (1810). O “Poder Neutro” de Constant seria denominado por Pinheiro Ferreira de “Poder Conservador” e inspiraria o “Poder Moderador” da Constituição do Império do Brasil de 1824. A sua finalidade consistiria em restabelecer o equilíbrio, no momento de choque dos demais poderes. O jurista e filósofo português sintetizou a sua concepção constitucionalista na obra intitulada: Manual do cidadão em um governo representativo, ou princípios de direito constitucional, administrativo e das gentes [Paris: Gravier & Allaud, 1834, 2 volumes].

Eis as palavras com que Pinheiro Ferreira iniciava o seu Manual do cidadão em um governo representativo: “O Projeto de código constitutivo que hoje publicamos é a pura expressão das opiniões políticas que de quarenta anos a esta parte havemos constantemente professado. Consultados em 1814 pelo monarca, a quem naquela época estavam confiados os destinos da nação sobre o meio de atalhar os males de que o reino estava ameaçado, dissemos sem rebuço que a adoção do sistema representativo era o que unicamente podia obstar à iminente catástrofe da monarquia”. [Pinheiro Ferreira, Ideias Políticas. Apresentação de Celina Junqueira, introdução de Vicente Barretto. Rio de Janeiro: PUC / Conselho Federal de Cultura / Editora Documentário, 1976].

A adoção do governo representativo significou, para o Brasil, ter-se colocado na vanguarda dos países com instituições dignas de serem admiradas pelo mundo civilizado, segundo o testemunho dado pelo maior estadista francês da época, o sociólogo François Guizot (1787-1874), ministro da Monarquia de Julho: “(...) Quais são os caracteres do soberano de direito, os caracteres que se derivam da sua mesma natureza? Em primeiro lugar, é único; posto que só há uma verdade, uma justiça, não pode haver tampouco mais do que um soberano de direito. É, também, permanente, sempre o mesmo. A verdade tampouco muda. Está colocado numa situação superior, alheia a todas as vicissitudes, a todos os riscos deste mundo. Em certo modo, não pertence ao mundo mais do que como espectador e como juíz: é o seu papel. Pois bem, senhores, esses caracteres racionais, naturais, do soberano de direito, é a realeza quem os reproduz exteriormente sob a forma mais sensível, que parece a sua mais fiel imagem. Abri a obra em que Benjamin Constant representou tão engenhosamente a realeza como um poder central, um poder moderador, elevado por cima dos acidentes, das lutas da sociedade, e que só intervém nas grandes crises. Não é essa, por assim dizer, a atitude do soberano de direito no governo das coisas humanas? É necessário que haja nessa ideia algo muito apropriado para impressionar os espíritos quando passou com tal rapidez dos livros aos fatos. Um soberano fez dela, na Constituição do Brasil, a base mesma do seu trono; a instituição real está representada nela como um poder moderador, levantado sobre os poderes ativos, à maneira de espectador e juiz das lutas políticas” [François Guizot, Historia de la civilización en Europa. (Desde la caída del Imperio Romano hasta la Revolución Francesa). Prólogo: “Guizot y la Historia de la Civilización en Europa”, de José Ortega y Gasset. (Tradução ao espanhol de Fernando Vela). Madrid: Alianza Editorial, 1990, p. 212].

Essa era a impressão que o mundo civilizado tinha do governo brasileiro, o qual, com o Império, experimentou mais de cinco décadas de estabilidade e paz, num Continente, como o sul-americano, condenado à barbárie por inúmeros conflitos civis. Visão bem diferente da situação de instabilidade crônica, corrupção e violência política que afetam, nos dias que correm, o nosso cenário republicano.

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