Os paradoxos causados pela globalização neste início de milênio, trouxeram à tona as idéias do economista e pensador inglês, nascido em Cambridge em 1883 e falecido em Sussex em 1946. Em meio às trapalhadas dos técnicos do Banco Mundial que, em repetidas oportunidades, ao longo das últimas décadas, não conseguiram prever as crises da economia internacional (como, por exemplo, a da insolvência mexicana nos anos 90, a ensejada pelo maremoto que quase faz afundar as economias asiáticas em 1997, ou a da crise de 2008 que sacolejou o mundo inteiro, a começar pelos Estados Unidos e a Inglaterra), ficamos nos perguntando se a ciência econômica não seria mais uma espécie de coruja de Minerva que, como frisava Hegel (1770-1831), levanta voo quando as sombras da noite se aproximam, chegando tarde demais, quando o estrago já está feito.
Os dados veiculados volta e meia pela imprensa internacional, no sentido de que, com a globalização, a pobreza diminuiu no mundo por conta da criação de milhões de empregos, são positivos, mas deixam no ar outra pergunta: será que os países que possuem menos divisas e que apresentam menor nível de educação tecnológica, tiveram a mesma oportunidade de desenvolvimento? E nos países que conseguiram certo grau de desenvolvimento, como na América Latina, por conta da benéfica conjuntura para a exportação de commodities, a inserção no mercado global, por outro lado, não criou, por sua vez, sérios problemas como, por exemplo, na educação e na saúde, com fundos de pensão poderosos entrando de forma escancarada, mas olhando únicamente para os ganhos financeiros, sem levarem em consideração a queda vertiginosa da qualidade dos serviços prestados? É claro que os defensores incondicionais da globalização argumentarão que essas medidas foram tomadas com anuência das respectivas autoridades locais. Sim, responderia, mas, ao mesmo tempo, recordaria que poderosos fundos globais de investimento e fundações soi-disant “educacionais” gastam quantias biliardárias para fazer pender a opinião pública das Nações afetadas em benefício dos investidores.
O que talvez esteja acontecendo é que o movimento da economia mundial é mais complexo do que podem imaginar os especialistas. As variáveis são muito numerosas. A história humana, ao longo destas décadas, tornou-se complexa demais para ser explicada com base apenas em variáveis de caráter econômico. Não que os conhecimentos dessa ciência não sirvam. Não se trata disso. Mas é necessário inserir a apreensão dos fenômenos do terreno econômico, num pano de fundo mais amplo, que explicite as expectativas e temores dos habitantes da espaçonave Terra. Volta a ser valorizada, nestes conturbados tempos pandêmicos e de fake news, a apreensão das correntes subterrâneas da História, apreensão mais intuitiva porquanto abarca uma visão de conjunto sobre a totalidade. Intuição para a qual está mais afinada a mente dos filósofos, poetas, magos e humanistas, do que os parâmetros dos especialistas. Afinal, Ortega y Gasset (1889-1955) já alertava contra a que ele chamava de “barbárie do especialismo”, que fazia com que os técnicos soubessem muito da sua restrita área de saber, com ignorância generalizada sobre o resto [CF. Ortega, 2019, cap. XII].
Isso nos permite entender por que escritores de ficção têm sido volta e meia convidados para foros internacionais, como tem acontecido por exemplo nas reuniões de Davos, na Suíça. Na história inglesa não é raro encontrarmos renomados intelectuais de amplo espectro científico e humanístico, não especialistas em economia, formulando políticas públicas nesse setor. O grande físico Sir Isaac Newton (1643-1727) foi convidado, após o ciclo de guerras civis que solavancou a Grã Bretanha em meados do século XVII, para presidir a gestão da Casa da Moeda, ao mesmo tempo em que o médico e filósofo John Locke (1632-1704) era chamado pelo líder do Parlamento, o conde de Shaftesbury, para presidir o Conselho de Economia do Reino. A dupla brilhante Newton-Locke, que, hoje, seria merecedora do Nobel de Física e da Paz, respectivamente, encarregou-se de colocar a casa em ordem, impedindo que o Tesouro fosse sobrecarregado com emissões irresponsáveis que eram exigidas pelos burocratas e comerciantes que pretendiam lucrar com a instabilidade institucional. Newton fechou as torneiras da gastança, ao passo que o pai do Liberalismo, Locke, formulava, de outro lado, políticas sensatas para acabar de vez com a guerra civil, mediante a criação das instituições do Governo Representativo que garantiu, daí para a frente, a tranquilidade e o sucesso econômico do Reino Unido.
Recobrou vigência, hoje, como na época da Renascença, o binômio intellectus/ratio (entendimento/razão), que o cardeal Nicolau de Cusa (1401-1464) postulava no século XV: com a segunda apreendemos o verificável empiricamente e matematizável; com o primeiro captamos, de maneira intuitiva e holística, aquilo que não é passível de racionalização rigorosa, porquanto permanece envolto nas sombras do inexplicável [cf. Cusa, 2018]. A minha hipótese para a redescoberta de Keynes é a seguinte: o pensador de Cambridge tem algo a dizer hoje, porque é mais um humanista do que um técnico; ou melhor, porque deu embasamento, nas humanidades, às suas previsões no terreno da macroeconomia.
Testemunho dessa atualidade é a bibliografia que tem sido dedicada ao pensador de Cambridge. Efetivamente, desde os anos noventa foram publicados inúmeros livros e ensaios que exploram aspectos os mais variados da vida e da obra do economista de Cambridge. Sem pretender uma lista exaustiva, podemos mencionar os seguintes: Robert Skidelsky, Keynes (1999); M. Jacinto Nunes, O pensamento de Keynes (1998); D. E. Moggridge, Keynes (1993); Philip Arestis e Malcolm Sawyer, The relevance of Keynesian Economic Policies today (1997); Gilberto Tadeu Lima, João Sicsú, Luiz Fernando de Paula (organizadores), Macroeconomia moderna: Keynes e a economia contemporânea (1999); Ricardo Vélez Rodríguez, Keynes: doutrina e crítica (1999); Paul Wattick, Marx & Keynes: The Limits of the Mixed Economy (2020); F. J. C. de Carvalho, “Características essenciais do método de Keynes na Teoria Geral” (2003); Ricardo Crespo, El pensamiento filosófico de Keynes: descubrir la melodía (2005); P. Davidson, John Maynard Keynes, (2007); do mesmo autor, Post-Keynesian Macroeconomic Theory. (1994); G. Dostaler, Keynes and his Battles (2007); B. Guerrard, J. Hillard, The Philosophy and Economics of John Maynard Keynes (1992); G. Harcourt, The Structure of Post-Keynesian Economics (2006); Luiz Gonzaga Belluzzo, O tempo de Keynes nos tempos do capitalismo, (2021), etc.
Neste ensaio abordarei parte da mencionada bibliografia de dois ângulos: 1) Keynes, perfil de humanista; 2) Keynes, perfil de economista. Concluirei destacando a atitude que devemos ter, hoje, face aos acertos e desacertos das políticas intervencionistas protagonizadas pelo keynesianismo radical dos economistas cepalinos.
1) Keynes, perfil de humanista
A base sobre a qual se alicerçou a atividade do Keynes economista, foi a sua ampla formação humanística. De índole oceânica, o nosso autor marcava o ambiente em que se encontrava pela inteligência viva e pelo seu interesse em todos os aspectos da realidade. Ele próprio considerava que "(...) o mestre economista deve possuir uma rara combinação de atributos. Deve ser matemático, historiador, estadista, filósofo, até certo ponto. Deve entender os símbolos e falar em palavras. Deve contemplar o particular em termos do geral e tocar no abstrato e no concreto num mesmo voo de pensamento. Deve estudar o presente à luz do passado para os propósitos do futuro. Nenhuma parte da natureza do homem ou de suas instituições deve ficar inteiramente fora de suas cogitações. Ele deve ser determinado e desinteressado, simultaneamente; alheio e incorruptível como um artista e, no entanto, por vezes tão materialista quanto um político" [Keynes apud Skidelsky, 1999: 21]. O nosso autor constituía, assim, uma encarnação do que os italianos da Renascença chamavam de uomo singolare, espírito mundano preocupado com o desenvolvimento harmonioso de todos os aspectos humanos, desde as artes até as técnicas. Keynes teve, ao longo de sua vida, excepcional desempenho nos mais variados terrenos: negócios, administração de companhias de seguros e investimento, serviço público, mecenato, produção teatral, editoração, jornalismo e docência universitária.
Keynes recebeu uma refinada educação, no ambiente destinado às elites na Inglaterra vitoriana. O aspecto mais marcante da sua vida familiar era, de um lado, a sofisticação cultural e, de outro, a valorização do livre debate das idéias. A família Keynes descendia de um cavaleiro normando que chegara com Guilherme o Conquistador, que foi coroado com o nome de Guilherme I Rei da Inglaterra (1028-1087). Origem nobre semelhante encontramos, curiosamente, em outro liberal, Alexis de Tocqueville (1805-1859), pertencente à descendência de Guilherme Clarel, companheiro de armas de Guilherme o Conquistador na famosa Batalha de Hastings, em 1066. Esse pano de fundo de humanismo liberal certamente foi decisivo para a abertura intelectual do jovem Keynes.
Estudou Filosofia e Humanidades em Eton, uma das mais importantes public schools inglesas, tendo recebido já na sua vida familiar influência do filósofo Henry Sidgwick (1838-1900), amigo dos seus pais. Realizou os seus estudos superiores na Universidade de Cambridge, num ambiente acadêmico presidido pela abertura multidisciplinar, tendo freqüentado ali cursos de matemática, política, administração pública e economia. A esposa de Keynes, a bailarina russa Lydia Lopokova (que o nosso autor conhecera quando ela se apresentou em Londres junto com o balé de Daghilev), escreveu que Keynes "era mais que um economista", pois ele mesmo achava que "todos os seus mundos" fertilizavam seu pensamento econômico.
A respeito dessa amplitude de perspectivas, escreveu o seu mais importante biógrafo, o historiador britânico Robert Skidelsky (1939-): "Não estava predeterminado, tanto pela origem como pelo talento, que Keynes faria da economia a obra de sua vida. O pai era lógico e economista, porém sua carreira não era bom augúrio para o filho: terminou na administração da Universidade. A inteligência de Keynes era ampla demais, seu espírito ativo demais, para um trabalho acadêmico altamente especializado. Ao escrever seu Tratado sobre a probabilidade ele esgotou seu interesse sério pela lógica: era por demais restrita para sua mente. A pessoa deve poder usar o cérebro estética e praticamente. A psicologia da moeda, e do jogo do mercado de capitais o fascinou desde cedo; seus dotes administrativos poderiam ter feito dele um alto funcionário público do império; era um escritor maravilhoso. No final, pôde usar a economia como veículo para todas as suas obsessões e talentos, porém foi o estado incerto de um mundo em choque pela guerra que fez da economia sua vocação" (Skidelsky, 1999: 20-21).
O próprio Keynes considerava que a falta de uma visão ampla do mundo, decorrente da pouca cultura, era o principal empecilho que afetava aos economistas da sua época. A respeito, frisa Skidelsky (1999: 21-22): "Na meia-idade, reclamava muito porque os jovens economistas não tinham a devida instrução, não eram capazes de se basear numa cultura vasta para a interpretação dos fatos econômicos. Esta é uma pista para o que deu errado na economia e, aliás, na revolução keynesiana. Keynes despertou o ardor dos técnicos, mas eles continuaram a ser técnicos. Utilizaram seus instrumentos, mas não conseguiram atualizar seu ponto de vista".
O cerne da inspiração humanística de Keynes centrava-se na sua filosofia social e nos seus pressupostos morais. O nosso autor baseou-se em Henry Sidgwick no que tange à filosofia social. Eis os aspectos essenciais da concepção deste autor (denominados de Pressupostos de Harvey Road e muito semelhantes, aliás, aos princípios pedagógicos que inspiravam aos nossos positivistas ilustrados): a) O governo da Grã Bretanha deve estar nas mãos de uma aristocracia intelectual, que use o método da persuasão para formar o cidadão; b) em conseqüência, a opinião pública não pode ser manipulada autoritariamente, mas apenas orientada de forma esclarecida; c) as reformas sociais, portanto, devem ser feitas mediante a discussão e a participação dos cidadãos. Como destacou Moggridge [1993: 2], "estes pressupostos constituíram importantes fatores na prática, por Keynes, da persuasão pública".
No que tange às idéias morais foi marcante, para a geração de Keynes, a filosofia de George Edward Moore (1873-1958). Na sua obra principal intitulada: Principia ethica (1903), Moore inseria-se na velha tradição escocesa do common sense, ao escrever o seguinte: "O que diz um filósofo deve ser minuciosamente examinado à luz do sentido que correntemente se dá às palavras que usa" [in: Vélez, 1999: 19]. Essa moral proveniente do senso comum levou os jovens pertencentes ao Clube dos Apóstolos (ao qual Keynes filiou-se durante os seus anos de estudo), a formularem uma espécie de religião ética que não deixava de ter as suas semelhanças com o Apostolado positivista (embora sem o dogmatismo que caracterizaria a este). A respeito, escreveu Quentin Bell: "Na Inglaterra vitoriana, os apóstolos do progresso (...) limparam as suas igrejas de sacramentos, altares, sacerdotes e púlpitos, não deixando mais nada do que uma nua estrutura de princípios éticos" [cit. por Moggridge, 1993: 2].
A religião ética formulada por Keynes e os seus amigos, tinha elevada dose de individualismo libertário, como deixa transparecer o testemunho do próprio Keynes acerca do espírito que animava aos jovens intelectuais congregados ao redor do Bloomsbury Group: "Nós repudiávamos uma responsabilidade pessoal que nos obrigasse a obedecer regras gerais. Reclamávamos o direito de julgarmos o mérito de cada caso individual e postulávamos que a sabedoria, a experiência e a disciplina pessoal eram os meios para procedermos corretamente. Isto constituiu parte muito importante da nossa fé, violenta e agressivamente defendida, e para o mundo exterior essa foi a nossa mais óbvia e perigosa caraterística" [cit. por Moggridge, 1993: 5].
As idéias do Bloomsbury Group constituíram, certamente, uma crítica frontal ao moralismo vitoriano e à religiosidade de fachada imperante. As convicções humanísticas de Keynes evoluiriam, na sua maturidade, para a defesa de um ideal de ética econômica preocupada com o imperativo da justiça social, preservando, no entanto, o exercício da liberdade e a prática do governo representativo. Uma posição bem próxima do que foi o liberalismo democrático formulado por um utilitarista moderado como John Stuart Mill (1806-1873), ou por um liberal social da talha de Alexis de Tocqueville (1805-1859). Expressão clara da mencionada preocupação ética são as seguintes palavras escritas por Keynes no seu ensaio intitulado O fim do laissez-faire, de 1926, e referidas à versão de darwinismo social imperante na sua época, que condenava à morte os seres mais frágeis: "Isto implica que não deve haver perdão ou proteção para os que empatam o seu capital ou o seu trabalho na direção errada. Este é um método para elevar ao topo os negociantes mais bem sucedidos, mediante uma luta cruel pela sobrevivência, que seleciona os mais eficientes através da falência dos menos eficientes. Não se leva em conta o custo da luta, mas apenas os lucros do resultado final, que se supõe serem permanentes. Como o objetivo é colher as folhas dos galhos mais altos, a maneira mais provável de alcançá-lo é deixar que as girafas, com os pescoços mais longos, façam morrer à míngua as espécies de pescoços mais curtos (...)" [Keynes, 1984: 116-117].
O economista de Cambridge achava repulsivo esse tipo de utilitarismo extremado, que chocava contra o que Tocqueville denominava de “interesse bem compreendido”, formulado na trilha da defesa dos interesses individuais sem sacrificar, no altar do individualismo, os princípios morais consolidados em máximas universais como o “não matarás” apregoado pelo Decálogo.
2) Keynes, perfil de economista
Em que pese as críticas feitas à concepção econômica keynesiana, há um consenso entre os estudiosos: o pensamento do mestre de Cambridge conserva o seu valor em muitos aspectos. As palavras do professor português M. Jacinto Nunes [1998: 9] traduzem essa realidade: "Fui keynesiano, e ainda hoje, descontada a circunstancialidade da sua teoria, as suas limitações, as correcções que lhe foram feitas e as contribuições dos noviclássicos (...) ainda penso, como muitos autores, que Keynes continua a ser um referencial que não pode ser posto de lado (...)".
A principal obra de Keynes, na qual ele desenvolveu a sua nova concepção das relações econômicas, superando o pensamento clássico dos seus mestres Alfred Marshall (1842-1924) e Arthur Cecil Pigou (1877-1959), é a sua Teoria Geral do Emprego, do Juro e do Dinheiro (publicada em 1936). O nosso autor buscava, nela, uma nova explicação para as flutuações econômicas, a fim de propor remédios concretos para a crise que enfrentava o capitalismo, sacrificando multidões de desempregados pelo mundo afora. Keynes era consciente de que trilhava, na sua obra, caminhos novos, aos quais chegara graças à colaboração dos seus discípulos e às constantes discussões com os seus colegas de profissão, os economistas. Considerava que a sua proposta deveria ser discutida pela sociedade, não apenas pelos especialistas.
A propósito, escrevia Keynes no prólogo à primeira edição inglesa da sua Teoria Geral, em dezembro de 1935: "O autor de um livro como este, trilhando caminhos desconhecidos, terá que apoiar-se muito na crítica e na troca de idéias se quiser evitar uma proporção indevida de erros. É surpreendente como em que coisas tolas pode-se acreditar temporariamente se se pensa sozinho por tempo demasiado, particularmente na Economia (bem como nas outras ciências morais), em que muitas vezes é impossível submeter as idéias que se tem a um teste conclusivo, quer formal, quer experimental (...)" [Keynes 1983: 4].
No que tange às soluções para a crise enfrentada pelo capitalismo, Keynes considerava que era possível, mediante uma moderada intervenção do Estado na fixação das taxas de juros e na tributação, estimular a economia para superar as crises e garantir o pleno emprego. O nosso autor estava longe de propor uma socialização, pelo Estado, dos meios de produção. O que ele apresentava eram algumas medidas limitadas que garantissem o funcionamento do sistema capitalista, preservando o exercício da liberdade e o sistema representativo.
Estas idéias ficam bem claras nas "Notas finais sobre a Filosofia Social a que poderia levar a Teoria Geral" [Keynes, 1983: 256]. Assim se referia o nosso autor ao que ele caracterizava como implicações conservadoras das suas propostas reformistas: "As implicações da teoria exposta nas páginas precedentes são, a outros respeitos, razoavelmente conservadoras. Embora essa teoria indique ser de importância vital o estabelecimento de certos controles sobre atividades que hoje são confiadas, em sua maioria, à iniciativa privada, há muitas outras áreas que permanecem sem interferência. O Estado deverá exercer uma influência orientadora sobre a propensão a consumir, em parte através de seu sistema de tributação, em parte por meio da fixação da taxa de juros e, em parte, talvez, recorrendo a outras medidas. Por outro lado, parece improvável que a influência da política bancária sobre a taxa de juros seja suficiente por si mesma para determinar um volume de investimento ótimo. Eu entendo, portanto, que uma socialização algo ampla dos investimentos será o único meio de assegurar uma situação aproximada de pleno emprego, embora isso não implique a necessidade de excluir ajustes e fórmulas de toda a espécie que permitam ao Estado cooperar com a iniciativa privada. Mas, fora disso, não se vê nenhuma razão evidente que justifique um Socialismo de Estado abrangendo a maior parte da vida econômica da nação. Não é a propriedade dos meios de produção que convém ao Estado assumir. Se o Estado for capaz de determinar o montante agregado dos recursos destinados a aumentar esses meios e a taxa básica de remuneração aos seus detentores, terá realizado o que lhe compete. Ademais, as medidas necessárias de socialização podem ser introduzidas gradualmente sem afetar as tradições generalizadas da sociedade".
São sobejamente conhecidas as críticas levantadas em face do pensamento keynesiano, ao longo das décadas de 70 e 80 do século passado. Joan Violet Robinson (1903-1983) identificou uma geração de "keynesianos bastardos", responsáveis pela simplificação da teoria do mestre de Cambridge. Ludwig von Mises (1881-1973), por sua parte, caracterizou o keynesianismo como um "iluminismo burocrático", vizinho do velho "despotismo esclarecido". Harry Gordon Johnson (1923-1977) simplesmente não acredita na existência de uma "revolução keynesiana". Friedrich Hayek (1899-1992), por sua vez, detém-se assinalando os "preconceitos cientificistas do keynesianismo". Henry Lepage (1941-) sintetizou com claridade o que seria a crítica liberal ao keynesianismo: esta doutrina, certamente, produziu resultados assombrosos no mundo, tendo ensejado os "trinta gloriosos anos" (1940-1970), período no qual a humanidade experimentou o maior crescimento econômico já conhecido na sua história. Mas os mecanismos cogitados por Keynes perderam validade, num mundo que aprendeu a conviver com as intervenções esporádicas do Estado na economia e em meio a atores econômicos que terminaram aprendendo como se adiantarem ao fator surpresa. O keynesianismo desgastou-se e precisaria ser modificado. Essa, aliás não seria uma solução alheia ao espírito de Keynes, que achava que as suas propostas eram basicamente temporárias e experimentáveis, sendo suscetíveis, portanto, de crítica.
Embora tenha sido deixada de lado nas políticas econômicas adotadas pelos países capitalistas nas décadas de 80 e de 90, a doutrina de Keynes conserva plena validade, notadamente se nos defrontarmos com o extremo do neo-liberalismo que constitui, segundo frisou o megainvestidor húngaro-americano George Soros (1930-), um "fundamentalismo de mercado" [Soros, 1998]. Considerar o jogo econômico como algo aberto a inovações, abordar a questão dos grandes capitais especulativos não como o arquétipo que deve pautar as relações internacionais, mas como um aspecto da globalização suscetível de receber regras claras de funcionamento, discutir os aspectos sociais da atual crise financeira internacional, analisar a ética econômica que subjaze às várias propostas de formulação de uma nova ordem econômica internacional, salientar o pesado preço que está sendo pago pelos países em vias de desenvolvimento, são problemas que lorde Keynes certamente discutiria e o levariam a inventar novas formas de política econômica que respondessem às angústias da Humanidade neste novo milênio.
Mostrar a atualidade do pensamento keynesiano na abordagem dos problemas mencionados, esse é o mérito de duas das obras que mencionei no início deste ensaio: a de Philip Arestis e Malcolm Sawyer, The relevance of keynesian economic policies today e a organizada por Gilberto Tadeu Lima, João Sicsú e Luiz Fernando de Paula, Macroeconomia moderna: Keynes e a economia contemporânea. Como frisam os organizadores desta última obra na apresentação, "Os autores pós-keynesianos (...) rejeitam qualquer teoria que parta da hipótese de existência de uma mão invisível reguladora automática da operação de uma economia capitalista, replicando que são as expectativas dos agentes e a incerteza em relação ao futuro que efetivamente comandam o nível de emprego. Nesse contexto, acreditam que políticas intervencionistas podem alterar comportamentos e induzir decisões privadas de gasto. Pós-keynesianos defendem, tal como Keynes, um papel permanente para o governo, em que este deve criar um ambiente estável e seguro para a ação dos agentes privados, de modo a reduzir ou mesmo eliminar os riscos globais ou macroeconômicos que afetam a economia. Prevenção à crise é preferível à socorro à crise que deve ser o objetivo primário de um governo responsável - esta é, portanto, a prioridade do planejamento econômico para os pós-keynesianos" [Lima, Sicsú, de Paula, 1999: 23].
Conclusão
É importante, nos tempos confusos em que o Brasil mergulhou, termos uma ideia clara da contribuição dada por Keynes à nossa tradição da gestão econômica. Porque se bem o economista de Cambridge abriu uma perspectiva liberal para corrigir os rumos tortos pelos que tinha enveredado a economia mundial no período entre guerras, no entanto, ao longo dos anos 30 e 40 do século passado, por conta dos exageros do totalitarismo, o intervencionismo estatal por ele arquitetado precisava de uma calibragem, que foi iniciada pelo próprio Keynes, levando em conta a praxe do governo representativo e da preservação das liberdades. Essa tarefa de dosagem da variável intervencionista foi ampliada, de 1970 para cá, pelos críticos keynesianos liberais e conservadores, aspecto que desenvolvi detalhadamente nos meus escritos sobre Keynes [cf. Vélez, 1999 e 2019].
Abordo aqui, apenas, um ponto, ligado à forma em que o keynesianismo foi desenvolvido no meio latino-americano no contexto do pensamento cepalino, desenvolvido pelo economista argentino Raúl Prebisch (1901-1986), notadamente nos seus trabalhos publicados na Revista da CEPAL. Prebisch, efetivamente, firmou a linha estruturalista no seio do pensamento econômico latino-americano, tendo influenciado em autores como Celso Furtado (1920-2004), Aldo Ferrer (1927-2016), Maria da Conceição Tavares (1930-), etc., que terminaram reforçando a tendência estatizante presente em autores que desenvolveram a Teoria da Dependência como André Gunder Frank (1929-2005), Theotónio dos Santos (1936-2018), Vânia Bambirra (1940-2015), Ruy Mauro Marini (1932-1997), Fernando Henrique Cardoso (1931-), José Serra (1942-), etc.
O keynesianismo conseguiu equilibrar o desenvolvimento capitalista. Mas, por conta do intervencionismo estatal descontrolado, na nossa tradição ibero-americana de patrimonialismo, reforçou-se essa tendência no meio latino-americano, tendo sido desenvolvida uma versão de capitalismo estatal, ou seja de mais patrimonialismo, por conta da doutrina cepalina. Se em países com tradição liberal e de controle sobre o estatismo, o keynesianismo foi surpreendido pelo corporativismo e o atraso que viciava o setor público sindical, como na Grã Bretanha dos anos 70 – sendo necessária a coragem de uma liberal-conservadora pé na terra como Margareth Thatcher (1925-2013) para frear esse surto estatizante, ao longo da década seguinte – cabe imaginar os efeitos perversos que o estatismo cepalino terminou gerando entre nós. A carga tributária, no Brasil, tornou-se insustentável, por conta das “correções” feitas no seio das propostas da CEPAL, acolhidas com entusiasmo pelas nossas elites de esquerda [cf. Fassina et alii, 2005]. É necessária, diante disso, uma atitude de vigilância e de crítica, defendendo sem meias tintas os ideais da livre iniciativa e do mercado. O próprio keynesianismo sofreu, na América Latina, mormente no Brasil, um viés estatizante que teria sido rejeitado, com certeza, pelo grande economista de Cambridge. A carga tributária brasileira situa-se entre as mais altas do mundo, sendo que cresceu exponencialmente, ao amparo de governos de inspiração social-democrata e socialista, no período compreendido entre 1995 e 2005 [cf. Lima e Rezende, 2017: pp. 240-241].
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