Nestes dias de mudança de estação, com o friozinho chegando acompanhado dessa garoa teimosa que nos persegue por horas a fio, revejo, saudoso, papéis que recebi dos meus amigos ao longo dos últimos anos. Deparei-me com a cópia da entrevista dada por Jean Guitton (1901-1999) ao economista, jornalista e professor da Faculdade Sciences Po de Paris, Yan Moulier-Boutang (1949-) em 24 de outubro de 1986 (que me foi remetida pelo saudoso amigo Antônio Paim) e que tinha sido inserida pelo entrevistador na sua obra intitulada: Louis Althusser, une biographie, vol I: La Formation d´un mythe, 1918-1945: La Matrice, (Paris: Le Livre de Poche, Coleção Biblio-Essais, 2002, pp. 209-210). A entrevista de Jean Guitton foi publicada no número 101 da revista Commentaire, Paris, edição de Primavera, 2003, p. 152.
A cultura francesa foi marcada pelo fenômeno do estetismo cartorial estimulado pelo Rei Sol, Luís XIV (1638-1715), que organizou, a partir de Versailles, uma vasta rede de contatos com “intendentes da cultura”, que cobriam a França e que ensejaram a materialização da vida do espírito como espetáculo do soberano e da sua corte. O Nobel de Literatura e escritor peruano Mario Vargas Llosa (1936-) publicou, há alguns anos, a obra intitulada: A sociedade do espetáculo, para identificar o fenômeno de massificação via redes, que capturou a Cultura ao longo do que vá corrido do século XXI e que será o fenômeno predominante desta etapa secular da caminhada da Humanidade. Pois bem: na Sociedade do Rei Sol quem queria um lugar “ao sol” precisava cumprir algumas regras básicas ditadas pelo centralismo real em todas as áreas da atividade social, nessa espécie de “colbertismo” que, surgido na indústria e no comércio, se espraiou numa regulamentação burocrática das demais atividades como as artes, a estratégia, a religião e a vida social em geral, com regras emanadas do Trono de Versailles. Quem não as cumprisse ficava, por assim dizer, por fora da história.
Ora, a liturgia da “sociedade de Corte” tinha as suas normas detalhadas, sendo a principal delas “como conseguir ser enxergado pelos intendentes reais da Cultura”, a fim de ter parte na festança da corte. O cidadão aspirante a participar da alta cultura tinha de decorar todas as regras de “bom gosto” e de “bom comportamento”. As exigências eram para todos os que praticassem as artes, qualquer que fosse a sua especialidade: música, pintura e artes plásticas, poesia, romance. Dessa mega liturgia praticada ao longo dos séculos XVII e XVIII, a França herdou um amplo catálogo de comportamentos e normas sociais a serem seguidas à risca, para não cair na noite do esquecimento real. A França toda foi tomada de assalto pelo espírito de corte, sendo uma das preocupações fundamentais dos cidadãos como proceder para não desagradar aos grandes, o que equivaleria hoje a “estar de moda”.
Não há dúvida de que o Brasil herdou o espírito de corte, não apenas com o lado pejorativo de grupinhos de parasitas e fait-néants, essa impertinente e útil espécie de aspones ou despachantes, mas com a intermediação de profissionais organizadores de eventos, dotados de uma sensibilidade toda especial, em face das grandes figuras do mundo da moda e da cultura. Embora nos trópicos a moda não fosse a mesma que na Europa, no entanto copiaram-se, nestas latitudes, as regras de uma rigorosa etiqueta a ser observada em reuniões sociais ou em eventos culturais. O grande Tobias Barreto (1839-1889) inventou um expediente para criticar o processo de mimetismo social escondido por trás das firulas da Monarquia tupiniquim: passou a enviar, regularmente, à Corte do Palácio de São Cristóvão, um jornalzinho satírico intitulado: Brasilianische Zeitung, no qual o aguerrido publicista reagia contra a liturgia dos retóricos palacianos “emasculados pelos cabeleireiros franceses”. O fato de ser redigido em alemão tinha um endereço certo: o núcleo mais íntimo dos aduladores reais, que ficariam muito ofendidos com o fato de um reles advogado de interior ousar criticá-los, logo na língua da corte dos Habsburgos, tão enaltecida pelas preferências familiares da dinastia brasileira, ao ensejo do casamento de Dom Pedro I com dona Maria Leopoldina da Áustria (1797-1826) “a mulher que arquitetou a independência do Brasil” segundo reza a tradição historiográfica.
O texto de Jean Guitton reproduz o cenário preparatório para participar do mundo da inteligência e da cultura, via Academias de Artes e de Letras. Os conselhos dados por Jean Guitton aos novéis pretendentes a participar desse elevado ambiente, inserem-se no que poderíamos denominar de folclore para tomar carona no vagão luxuoso do trem da modernidade e das boas maneiras, cumprindo exatamente com as normas que fossem necessárias para se sair bem nas provas de ingresso nesse exclusivo mundo. A respeito, escreve Guitton: “eu dava orientações aos meus alunos do curso preparatório das Grandes Escolas, lhes dizendo: vou ensinar você a ter sucesso. Por exemplo, eu dizia a Althusser (1918-1990): você quer ser o primeiro na prova de agregação? Vou lhe dar um curso para você ser o primeiro em agregação, um curso que, de resto, ele seguiu”. (Esclareçamos que a “agregação” é, na França, o equivalente do concurso público para poder participar da gestão cultural, nas políticas de Estado e na iniciativa privada. Trata-se, portanto, de uma importante via de acesso ao sucesso dentro do sistema).
Guitton prossegue assim as suas declarações em torno ao concurso de “agregação”: “Se trata de passar a impressão de que a sua cópia é a melhor, apenas uma impressão. Não se trata de que a cópia seja a melhor, isso é claro. Trata-se de que o examinador, esse homem fatigado, dê a você uma nota melhor do que aquela que ele atribui aos outros. O que fazer? Eu tinha regras: a primeira, tratava-se de fazer citações; eu tinha elencado, então, os cinco tipos de citação que era preciso fazer: Heidegger, Husserl, Hegel. Era preciso haver, também uma citação de Aristóteles, uma de Plotino, uma de Parmênides; era necessário distribuí-las ao longo do texto: era preciso explicar como redigir a introdução e a conclusão; eu lhes fazia decorar as frases-tipo que produzem um excelente efeito; não se tratava de ser um gênio, apenas de passar a impressão de sê-lo”.
“Mais tarde, - prossegue - quando estudei o poeta e filósofo Paul Valéry (1871-1945), percebi que ele faz a mesma coisa na sua Introdução ao método de Leonardo da Vinci (1452-1519), que constitui um tratado sobre o procedimento para dar a impressão de que se possui o gênio ali onde não existe, atitude corriqueira, aliás, de Valéry ao longo da sua vida, dando ensejo ao um fingimento genial, mas mesmo assim fingimento. Ele escreveu, de forma genial, poemas que davam a impressão de que era um gênio. Jules Romains (1885-1972), que o conhecia muito bem, tinha escrito um livro para se burlar dele: Os criadores na série dos Homens de boa vontade. Um certo Stradivarius escreve um poema de Valéry com os seus trucos. O autor do Cemitério Marinho se divertia muito pois, como dizia a Jules Romains: “É isso mesmo que eu escrevo!”. Na época, eu chamava isso de estratégia e Althusser disse-me sempre que guardou na memória as minhas lições sobre essa matéria. Todas as vezes que empreendia alguma coisa: ser recebido primeiro, chegar a ser o filósofo mais conhecido de nossa época, ele aplicava a estratégia do “de que se trata?” – “Claro, excelente, brilhante, fulgurante, mesmo quando não estava em forma, tais são os calificativos que aparecem constantemente no jornal do concurseiro [Louis Althusser] para caracterizar o curso do seu mestre [Jean Guitton] sobre Descartes, sobre Lachellier, sobre Bergson, sobre Arte e Moral”.