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IMMANUEL KANT (1724-2024) E O MODELO DA REPÚBLICA DAS LUZES.

IMMANUEL KANT (1724-2024)  E O MODELO DA REPÚBLICA DAS LUZES.

TÚMULO DE KANT NA CATEDRAL DE KÖNIGSBERG

O grande filósofo alemão nasceu em 22 de abril de 1724 e faleceu em 12 de fevereiro de 1804. Kant, talvez o mais metropolitano de todos os filósofos, nasceu e morreu, no entanto, sem ter saído da sua cidade, a antiga Königsberg (Kaliningrado), na Prússia Oriental (atualmente um enclave russo entre a Polônia, a Lituânia e o Mar Báltico). Vale a pena comemorar o tricentenário do grande pensador, para recordar a sua herança no que tange à forma ideal de governo. Justamente porque sofremos, hoje, no Brasil, com uma arrumação do poder bastante diferente da sugerida pelo filósofo alemão, pai do republicanismo democrático.

A onda de cinismo e corrupção a que temos assistido ao longo dos últimos anos no Brasil, deixa transparecer uma coisa: estamos longe do ideal republicano que, na tradição liberal, encontrou em Kant um dos seus mais importantes formuladores. Direi, na parte final deste item, em que pontos o Brasil em particular e a América Latina, de um modo geral, se afastaram do ideal republicano apresentado pelo filósofo alemão. Primeiro, destacarei alguns dos seus conceitos básicos.

Immanuel Kant defendia a organização livre dos Estados como fundamento para a paz. Uma estrutura política, para ser sadia, pensava o mestre alemão, deveria se alicerçar no respeito à pessoa humana e ao seu mais prezado direito, a liberdade. Só a constituição do Estado como República garantiria essas duas exigências. Nem o despotismo de um, nem o de vários, poderiam ser aceitos, pois a vontade pública é, neles, utilizada como se fosse a vontade particular do governante. Nas formas despóticas de organização política, o governo trata o povo como se fosse a sua propriedade.

A Constituição Republicana, segundo Kant, é aquela que se encontra estabelecida de conformidade com os seguintes três princípios: 1- da liberdade dos membros de uma sociedade enquanto indivíduos; 2- da dependência de todos em relação a uma única legislação comum, enquanto súditos; 3- da conformidade com a lei da igualdade de todos os súditos, enquanto cidadãos. Essa forma de governo é a única que decorre da idéia do contrato imaginário e sobre a qual devem se fundar os países modernos, preservando o ideal da Justiça e as normas jurídicas de um povo.

A Constituição Republicana, ainda segundo o mestre alemão, além de ter brotado da pura fonte do conceito do direito, tem a vista posta na paz perpétua. Se o consentimento dos cidadãos é necessário para decidir se deve haver guerra ou não, nada é mais natural que eles pensem muito, antes de começar um jogo tão maligno.

Para Kant, é essencial à forma republicana de governo a representação e a separação entre os poderes legislativo e executivo. Duas formas de governo tornam impossível a República: o despotismo de um (tirania) e o de todos (democracia da vontade geral). Nestas duas formas de governo é a mesma a pessoa que legisla e a que executa a lei. Quanto mais reduzido for o número de pessoas do poder estatal e quanto maior for a representação delas, tanto mais aberta estará a constituição à possibilidade do republicanismo.

Ao longo das últimas décadas, a maior parte dos países latino-americanos enveredaram pelo duvidoso caminho dos “populismos constitucionais”, que visam a instaurar regimes que se auto-perpetúam com as bênçãos das suas respectivas sociedades, conduzidas ardilosamente pelos mandatários de plantão a fazer reformas plebiscitárias que garantam a hegemonia dos donos do poder, sem que haja a mínima possibilidade de alternância no poder e com a destruição das instituições republicanas, como o funcionamento da oposição, a preservação e o aperfeiçoamento do governo representativo e a liberdade de imprensa. As estruturas políticas surgidas dessas reformas partiram para a ignorância em relação à pessoa humana e ao seu direito mais prezado, a liberdade, como está acontecendo na Venezuela, na Bolívia e na Nicarágua e como começa a acontecer, infelizmente, entre nós.

O centro motor dessa maré montante é hoje o regime venezuelano, que estendeu os seus tentáculos sobre os quatro cantos da América Latina, financiando com os abundantes petrodólares o maluco modelo da “revolução bolivariana” que tem servido de inspiração para as mudanças que se apresentam aqui e acolá. Ainda vai ser revelado o conjunto de abusos cometidos à luz do socialismo bolivariano, pelos funcionários do regime chavista, entre os que se destacava o conhecido meliante chamado pela alcunha de “El Pollo Carvajal”, um dos generais de Chávez, que bolou o esquema de infiltração nos países latino-americanos, mediante os narcodólares venezuelanos, provenientes dos escusos negócios dos narcotraficantes, que receberam pleno apoio e garantias de “trabalho” na Venezuela. Sob as asas de “El Pollo” abrigaram-se inúmeros “pintinhos” totalitários, entre os que se contava Lula, na época da sua segunda campanha presidencial, quando disputou o poder, em 2002, com o candidato tucano.

A Venezuela de Chávez e Maduro transformou-se em foco irradiador da instabilidade regional, em decorrência da louca corrida armamentista desatada pelo truculento coronel e os seus seguidores. Os chavistas, sem dúvida nenhuma, pautam a confusa agenda política do nosso Continente. O Brasil terminou refém desse modelo, notadamente no que tange à escolha dos rumos da política externa, voltada para um populismo esdrúxulo que sacrifica os interesses do nosso país nas fantasias terceiro-mundistas que levaram Lula a prestigiar o presidente iraniano, num momento em que ele era seriamente questionado por ignorar as políticas antinucleares assinadas pelo Irã junto às Nações Unidas. De Lula, de Chávez e dos demais líderes populistas latino-americanos, poder-se-ia dizer o que Kant criticava como despotismo de um só ou de alguns, que utiliza a vontade pública como se fosse a vontade particular do governante e do seu séquito de bajuladores. Os vários chefes populistas latino-americanos unificam-se nesta negativa caracterização: tratam o povo como se fosse a sua propriedade.

As Constituições Republicanas e as práticas políticas que pipocam na América Latina como fruto das “revoluções bolivarianas” estão sendo estabelecidas de acordo a três antiprincípios, que reforçam a velha tradição patrimonialista de gerir o Estado como propriedade particular do governante e que se contrapõem, diametralmente, aos princípios republicanos apregoados por Kant.

Chávez e companhia partiram, nas suas reformas constitucionais “bolivarianas” dos seguintes princípios: 1- a negação da liberdade dos membros da sociedade enquanto indivíduos; 2 - a não dependência de todos em relação a uma única legislação comum, enquanto súditos (pois os governantes de plantão não estão submetidos, nem os seus colaboradores, à lei vigente para todos); 3- a conformidade de todos eles com a lei da desigualdade de todos os súditos, enquanto cidadãos (existem cidadãos de primeira, de segunda ou de terceira, dependendo da sua proximidade da esfera dos donos do poder).

Voltarei, em outras postagens, à magnífica obra de Kant, que renovou as perspectivas da Filosofia nos séculos XIX, XX e XXI.