A geração de estadistas que deu ensejo ao Segundo Reinado constituiu, no sentir de Oliveira Vianna, uma elite de homens de mil. Com esse termo bíblico, o sociólogo fluminense queria expressar o caráter extraordinário da elite imperial, perfeitamente afinada com a história do Brasil, mas, de outro lado, indissoluvelmente fiel aos ideais do Liberalismo. As fontes da filosofia liberal que inspiraram os nossos estadistas, têm sido estudadas ao longo dos últimos três decênios. Particular destaque nesse esforço corresponde a Miguel Reale, aos saudosos José Guilherme Merquior e Roque Spencer Maciel de Barros, a Antônio Paim, a Ubiratan Macedo, a Vicente Barreto, a José Osvaldo de Meira Penna, a João Scantinburgo, etc., e à nova geração formada à sombra deles, nos vários programas de pós-graduação em Pensamento Brasileiro, consolidados no país a partir de 1973.
A tarefa empreendida, embora bem adiantada, ainda está incompleta. Falta-nos, por exemplo, fazer o levantamento integral da influência de clássicos do liberalismo como Madame de Staël, Constant de Rebecque, Guizot, Tocqueville, Stuart Mill e Royer-Collard. Particularmente importante foi a influência exercida em nosso meio por Guizot. As suas obras eram bem conhecidas dos homens de Estado ao longo do século XIX. A noite do positivismo republicano sumiu nas sombras do esquecimento essas significativas fontes do pensamento político. O meu propósito aqui é bem modesto: lembrar alguns aspectos essenciais da vida e das idéias de Guizot, e ilustrar a forma em que estas influenciaram no pensamento de um dos nossos estadistas do Império, o visconde de Uruguai (notadamente, como destacarei mais adiante, no terreno da ética pública).
Se houve um autor que renovou os conceitos da sociologia política, esse foi François Guizot. Efetivamente, o chefe dos doutrinários pensou as categorias fundamentais dessa disciplina, para focalizar o mundo moderno. Havia, para Guizot, uma diferença básica, do ângulo da sociologia política, entre o Ancien Régime e a época moderna: enquanto os atores políticos no período medieval eram os indivíduos, na modernidade aparece um novo ator: as massas. Estranha formulação, na boca de um liberal-conservador como Guizot. Mas, por estranho que pareça, foi o pensador francês quem introduziu categorias de que depois Marx faria uso sistemático: classe social alicerçada na defesa de interesses materiais, política como luta de classes, classe habilitada para o exercício do poder, etc. Uma constatação serve de pano de fundo aos novos conceitos sociológicos de Guizot: a de que a modernidade é a época da igualdade. Esse fenômeno de horizontalização das sociedades modernas é irreversível. A tendência à igualdade forma parte desse conjunto de fatos que constituem a história subterrânea da humanidade, ou a história de longo curso do espírito humano. Inspiração hegeliana, certamente. Mas, também, profunda convicção de que não vale a pena brigar com os fatos, de que é necessário projetar as luzes da razão sobre a concretude da experiência para, a partir daí, elaborar o mapa do saber. Guizot, protestante e liberal, é também discípulo de Kant. A razão não é faculdade todo-poderosa que consegue abstrair uma idéia clara e distinta de costas para o mundo. A razão humana é basicamente, faculdade ordenadora do real. "Não se briga com os fatos sociais. Eles têm raízes onde a mão do homem não saberia chegar" [Guizot, 1984: 114], frisava o nosso autor, destacando esse caráter essencial da razão, aberta à realidade.
O mínimo que se pode dizer de Guizot é que se trata de um pensador paradoxal, que abre as portas à compreensão da política na modernidade, deitando as bases epistêmicas da sociologia política e da historiografia. Façamos de entrada uma referência direta ao pensamento de Guizot, para nos situarmos no clima de inovação que o seu pensamento sociológico representa. Escrevendo sobre a pena de morte, o nosso pensador considerava que era uma vã pretensão dos governantes modernos querer, mediante esse expediente, controlar os atores políticos. A pena de morte seria um expediente prático num contexto em que os atores políticos fossem os indivíduos, como no Ancien Régime, no seio de uma sociedade constituída por desiguais. A lição da pena de morte amedrontava o nobre e o plebeu, bem como o servo. Por que? Porque na sociedade feudal eles estavam em patamares diferentes e agiam como indivíduos atrelados a ordens ou estamentos rigorosamente delimitados. Ora, no mundo moderno, em que os atores sociais não são mais indivíduos situados em determinado estamento, mas as massas, a pena de morte é recurso inútil. Não deixarão de acontecer revoluções por causa dela. Muito pelo contrário, a pena de morte (e a guilhotina foi o símbolo dessa ineficácia), termina se voltando contra os próprios administradores da máquina de cortar cabeças. A igualdade, para Guizot, é um desses fatos novos queridos pela Providência (ou seja, na concepção laica que anima aos liberais franceses, trata-se de uma nova fase da história, que é manifestação do Espírito Absoluto ou da razão humana, na sua caminhada de séculos rumo ao seu autoaperfeiçoamento).
Eis, a propósito destas considerações introdutórias, um texto bastante significativo de Guizot, tirado da sua obra de 1822 intitulada De la peine de mort en matière politique: "Não há desigualdades insuperáveis, não há privilégios para a Providência. Ela penetra tudo. Os castigos ou os prêmios que ela tem na sua mão valem para todos. Ninguém está mais ao abrigo dos fracassos, da doença, dos sofrimentos da alma, e cada um pode enxergar na sorte do seu vizinho a imagem e o prenúncio da sua própria sorte. Esta comunidade de condições, esta paridade de chances, esta igualdade sob a mão de Deus, não é o menos poderoso dos nexos que unem os homens. Essa comunidade os põe em confronto uns com os outros, ela os iguala nos mesmos sentimentos, ela os impede de se isolarem na luta em prol dos seus interesses ou na diversidade das suas situações. Ela os junta enfim constantemente sob leis semelhantes e os faz sentir que não são, uns em face dos outros, nem diversos nem estrangeiros. Dessa forma, o Ser soberano fez o destino do homem. Assim, o estado atual da sociedade começa a trilhar o caminho do seu destino político. As mesmas leis são dadas, são oferecidas a todos as mesmas chances. As idéias, os sentimentos, os interesses comuns se expandem e se fortalecem. Tudo tende a ensinar aos cidadãos que eles são passíveis de sofrer os mesmos males, todos estão expostos aos mesmos perigos, ninguém pode ficar indiferente à sorte mútua. Mas, ao mesmo tempo, tudo lhes fornece os meios para se comunicarem, para se apoiarem reciprocamente. Assim, de um lado, muitas mais existências individuais têm importância e força e, de outro lado, todas as existências estão estreitamente entrelaçadas, umas condicionam as outras, se alertam mutuamente acerca daquilo que as afeta ou as ameaça e se protegem em face da necessidade" [Guizot, 1984: 111]. Esse será, certamente, o marco conceitual sobre o qual um discípulo de Guizot, Alexis de Tocqueville, construirá a sua interpretação da experiência democrática nos Estados Unidos da América.
O estudo do liberalismo dos doutrinários é importante para nós, no Brasil e no resto da América Latina, pois como frisa Ortega y Gasset, as idéias liberais penetraram no universo ibérico e ibero-americano pela mão da França. "No século XIX, o centro é a França, para bem ou para mal. A Inglaterra, que em todos os campos antecipou-se ao continente, não influiu nunca nele de forma direta. Sempre foi necessário que exercesse uma influência particular sobre a França e esta logo a transmitisse à sua volta" [Ortega, 1990: 8]. Ao seguirmos a trilha dos doutrinários, poderemos compreender mais claramente como o liberalismo conseguiu inspirar movimentos sociais e políticos, num meio sociocultural (como o francês do período da Restauração), que oscilava entre o absolutismo e o espírito revolucionário, que são, queiramos ou não, os dois extremos em que se movimenta ainda o jogo político nos países latino-americanos.
Quatro itens serão desenvolvidos no presente artigo: I - Perfil bio-bibliográfico de François Guizot; II - O pensamento político de Guizot; III - A influência de Guizot no liberalismo conservador brasileiro do século XIX, e IV – A ética pública de Guizot e de Paulino Soares de Souza.
I - Perfil bio-bibliográfico de François Guizot
Cinco momentos podemos distinguir na vida de François Guizot: em primeiro lugar, período da infância, da primeira formação e do início da vida intelectual ao ensejo dos seus estudos universitários, entre 1787 e 1812. Em segundo lugar, etapa de início da vida profissional, entre 1812 e 1820, em que o nosso autor trabalhou como funcionário de segundo escalão do governo francês, em vários cargos (secretário ministerial, conselheiro do Estado, etc.) e elaborou, junto com o grupo dos doutrinários, as primeiras propostas encaminhadas a consolidar a representação política. Em terceiro lugar, etapa de reflexão entre 1820 e 1830, em que o nosso autor ficou por fora do poder, mas pensou de maneira sistemática a solução para os problemas da representação; ao longo dessa etapa, Guizot aprofundou a sua amizade com os colegas doutrinários e deu continuidade, junto com eles, aos estudos políticos. Nesta época ficaram definidas as linhas mestras do projeto de governo para a França, que Guizot realizou no momento seguinte. Em quarto lugar, etapa de atuação política entre 1830 e 1848, em que o nosso autor se tornou sucessivamente ministro da instrução, ministro do interior, ministro de assuntos estrangeiros e primeiro-ministro da monarquia liberal de Luís Filipe e elaborou a reforma do ensino e das instituições do governo representativo. Esta foi a época mais brilhante de sua vida. Em quinto lugar, etapa de retiro do governo e de ação social entre 1848 e 1874, em que Guizot, afastado definitivamente do serviço público em 1858, passou a trabalhar na consolidação das bases sociais da representação, notadamente reforçando as associações civis ligadas às igrejas protestantes; essa última etapa foi vivida pelo nosso autor na mansão de Val-Richer, onde terminou os seus dias, rodeado de seus filhos e netos.
Infância, primeira formação e início da atividade intelectual.- François Pierre Guillaume Guizot nasceu em Nimes em 4 de outubro de 1787, no seio de uma família da velha burguesia protestante e morreu na sua mansão de Val-Richer, situada na municipalidade de Saint-Ouen-le-Pin, em 1874. O seu pai, André-François Guizot-Gignoux era brilhante advogado e foi guilhotinado no ano II da Revolução (1794), pelo fato de ter tomado parte na insurreição federalista, num momento, frisa Rosanvallon [1985: 403], "em que o confronto entre os membros do partido da montanha e os girondinos exprimia também a luta do pequeno povo católico contra a burguesia protestante". A influência paterna foi, nesse menino de seis anos, curta mas expressiva. A respeito, escreve o biógrafo de Guizot, Gabriel de Broglie: "Da prisão, o pai escreveu cartas ao seu filho, as únicas lembranças que ele conservou. Numa delas o pai frisava: Tu me prometes que te esforçarás para falar bem. Quando estivermos juntos, ensinar-te-ei a escrever" [Broglie, 1990: 16]. Uma das caraterísticas do jovem Guizot foi precisamente a capacidade retórica, desenvolvida com afinco durante a sua formação e que lhe seria de grande utilidade ao longo da vida, tanto na política quanto nas atividades sociais.
Morto o pai, a situação ficou muito difícil para a viúva Madame Guizot (cujo nome de solteira era Elisabeth Sophie Bonicel). Ela decidiu educar os seus dois filhos em Genebra, onde se respirava maior liberdade e onde encontrou apoio de parte da sua família residente na Suíça. Na capital deste país, num ambiente marcado pela cultura liberal e o pietismo protestante, o futuro estadista recebeu a sua primeira formação. O pano de fundo religioso foi decisivo na educação do jovem Guizot. A respeito dessa influência, escreve G. de Broglie: "Das suas famílias paterna e materna Guizot herdou a tradição protestante mais exigente, aquela do Deserto. Durante toda a sua vida teve oportunidade de estudar e distribuir pequenas notas de sermões assinados por algum Guizot, pertencente a algum dos ramos dos ancestrais. Ele aprofundou ainda a fé lhe dedicando parte da sua obra e da atividade, nos Conselhos da Igreja protestante e no seio de seu Sínodo. Falou-se então do papado de Guizot. Ele foi efetivamente o primeiro protestante a governar a França depois de Sully. No entanto, reformado nenhum esteve tão próximo da Igreja católica, tanto pelas suas concepções religiosas quanto pela sua ação pública" [Broglie, 1990: 14].
A figura da mãe foi muito importante para o jovem exilado. "A sombra desta mulher exigente ficará presente na vida de François Guizot, até o falecimento dela, em 1848", escreve Rosanvallon [1985: 403]. A respeito da decisiva influência que a personalidade materna teve na vida do nosso autor, escreveu G. de Broglie: "Ela projetou o seu amor conjugal perdido sobre um sentimento materno absoluto, que se exprimiu como amor. O seu filho mais velho foi o objeto principal da sua paixão. Ele se assemelhava ao seu pai pelo caráter e pelo espírito. Ela jamais admitiu de bom grau as presenças femininas perto dele. Ele dedicou-lhe um respeito, uma submissão, um parti pris por ela que jamais tiveram decréscimo, mesmo quando ocupava as mais altas funções. Entre ela e ele estabeleceram-se relações de alma para alma, de uma exigência e de uma força extremadas. A primeira educação que ela lhe deu formou, nele, o homem, tendo-lhe inculcado o sentido heroico e a espiritualidade, a inflexibilidade de caráter e a sensibilidade, o domínio de si e a necessidade da confidência. Há em vós duas coisas inesgotáveis, infinitas: a ternura e a coragem, confessava ele à sua mãe em 1840" [Broglie, 1990:17].
A primeira formação do nosso autor deu-se, pois, no ambiente genebrino. Em que pese o fato de a cidade viver sob um espírito rigorosamente calvinista, longe portanto da vida noturna e da agitação parisiense (as portas da cidade fechavam-se às seis horas da tarde durante o inverno e às dez da noite durante o verão), no entanto circulavam nos estabelecimentos de ensino as idéias liberais provenientes da Alemanha e da Inglaterra. Os ares da modernidade não deixavam, portanto, de estarem presentes no meio freqüentado pelo nosso autor. A Suíça era indiscutivelmente um reduto da liberdade. "Genebra é o meu berço intelectual", escrevia Guizot, anos mais tarde, a um dos seus condiscípulos [Broglie, 1990: 18]. Cursou os estudos preliminares no Ginásio fundado por Calvino. Em 1801 iniciou o curso de humanidades na Academia. Estudou com profundidade os autores clássicos, bem como os rudimentos das ciências e das matemáticas. O jovem Guizot complementou as disciplinas humanísticas com o aprendizado de cinco línguas, o latim, o grego, o italiano, o inglês e o alemão. A formação física não estava ausente, seguindo os conselhos do filósofo de Genebra: o jovem praticava regularmente a natação, a equitação e se exercitava na arte do desenho. Como era costume na época, o educando recebeu também uma formação em artes e ofícios, tendo-se destacado como excelente marceneiro e torneiro. Foi um estudante aplicado, como revela o fato de ter recebido o prêmio do Instituto Dejoux.
Ao longo destes anos destacaram-se na formação de Guizot duas orientações intelectuais: de Pierre Prévost, no terreno da filosofia e do pastor Peschier, no cultivo das ciências físicas e morais. A respeito do sentido em que se deram essas influências, escreve G. de Broglie: "Dois professores exercem sobre ele uma grande influência. No terreno da filosofia, Pierre Prévost é um erudito, correspondente de várias academias estrangeiras, brilhante adepto da ideologia inspirada no movimento enciclopédico, discípulo de Kant, Condillac, Destutt de Tracy e Degérando. Os seus ensinamentos, muito pouco metafísicos e nada espiritualistas, abrem contudo o espírito do futuro doutrinário e continuarão a orientar os seus trabalhos por meio de correspondência regular, ao longo de uma dezena de anos. A física e a moral são ensinadas pelo pastor Peschier, espírito mais estreito e mais austero que limita o seu curso a uma demonstração do catecismo e a uma exposição da moral cristã, mas com uma dedicação e um calor que farão reviver a sua lembrança na memória do seu aluno" [Broglie, 1990: 20].
Mas o ambiente cultural da cidade foi também, como frisamos, importante escola para o nosso autor. Anexada a Suíça ao Império napoleônico, Genebra converteu-se na cidade mais cosmopolita da França. Poder-se-ia resumir essa influência no que denominaríamos de espírito de liberdade e de modernidade. G. de Broglie sintetizou da seguinte forma essa variável da educação do nosso autor nos idos de 1804: "A permanência em Genebra enriqueceu Guizot de muitas outras maneiras. Penetrou numa sociedade de convicções religiosas, de paixão pedagógica e de ardor intelectual. Teve acesso especialmente ao conhecimento das civilizações estrangeiras. Esta capital de um departamento francês vivia como as cidades universitárias alemãs. Ele aprendeu ali a língua, a literatura e a filosofia alemãs, antes do que as novidades literárias parisienses. Na época do Bloco continental, Genebra era a única cidade francesa a cultivar estreitas e antigas relações com a Inglaterra. Ele fala a língua, lê os autores, as publicações e os jornais ingleses e descobre a vida moderna através das realidades britânicas. Sob todos esses aspectos, a Suíça o seguirá até Paris no ano seguinte" [Broglie, 1990: 21].
Aos dezenove anos, como frisa Larousse [1865: 1640], Guizot “veio a Paris com a sua pobreza, a sua ambição, o seu orgulho e a sua tristeza”. Não teve, como vimos, nem infância nem juventude comuns. Esse vazio era preenchido, em compensação, com “uma ambição amarga e concentrada” [Larousse, 1865: 1641]. Começou a trabalhar, em Paris, como preceptor na casa do antigo representante suíço perante o governo francês, Stapfer, humanista liberal, em cuja biblioteca o jovem Guizot completou a sua formação literária. Ao mesmo tempo, iniciou, em fins de 1805, os seus estudos na Faculdade de Direito. Por intermédio de Stapfer foi introduzido no salão de Suard, onde conheceu os principais escritores da época. Dessas duas personagens, Stapfer e Suard, Guizot recebeu uma significativa influência intelectual. Através do primeiro, o nosso autor entrou em contato com a cultura germânica, então pouco conhecida na França; pela intermediação de Charles de Villers, efetivamente, o humanista suíço tinha descoberto a Crítica da Razão Pura de Kant, que Guizot teve oportunidade de ler na sua biblioteca. De Suard, por sua vez, o jovem Guizot recebeu a valorização da literatura inglesa, bem como o apreço pelas idéias liberais do constitucionalismo e do governo representativo. Suard admirava o regime bicameral britânico. Daí emergiu o interesse de Guizot pelo liberalismo inglês e o seu projeto de fazer amadurecer na França as instituições da representação política.
Um quadro da evolução equilibrada ocorrida na personalidade do jovem Guizot foi assim traçado pelo seu biógrafo, destacando os anseios de formação humanística, o cultivo do desenvolvimento corporal, o progressivo distanciamento em relação à vida pacata da sua terra natal e a atração cada vez maior exercida, sobre ele, pela agitada vida cultural parisiense: "Muito rapidamente cansa-se com o estudo do direito. É aprovado nos exames em outubro de 1806 e abandona a Escola no trimestre seguinte. Decididamente, a carreira de advogado não era a sua vocação. Entrega-se por conta própria ao aperfeiçoamento do grego, do latim, do inglês e chega a estudar árabe com M. de Sacy. Lê muito obras de história e romances. Continua a enviar algumas dissertações aos seus colegas da Sociedade de estudos em Genebra. Pratica também o desenho, a natação, a equitação, o manuseio das armas. De acordo a um retrato seu feito por Mademoiselle Greuze e que ele envia a Nimes, parece ter desabrochado. Mas a família acha que as suas cartas refletem um pouco de indiferença. Sem dúvida que as relações provincianas não limitam mais a sua existência e a vida de Paris começa a atrai-lo" [Broglie, 1990: 24].
Em 1806 o nosso autor filiou-se a franco-maçonaria, numa loja pertencente ao rito escocês. Parece ter sido esse um episódio isolado de juventude, pois não restaram registros desse fato nem nos seus escritos posteriores nem nas referências dos seus contemporâneos. Data do ano de 1807, no final do verão, a visita que Guizot fez, na Suíça, a Madame de Staël, que foi assim narrada por G. de Broglie: "A estadia em Genebra foi o último episódio da vida de estudante romântico de Guizot. Já curioso por conhecer os grandes nomes, ele escrevia a Madame de Staël, se apresentando como recomendado por Suard para lhe pedir uma entrevista e afirmando: Todos aqueles que têm sabido sentir Corinne têm possivelmente o direito de conhecê-la. Madame de Staël respondeu-lhe prontamente de forma muito atenciosa: Eu vos conheço, senhor, pela reputação e se bem a vossa espirituosa carta teria sido suficiente para me inspirar o desejo de conhecer-vos, o vosso nome vinha-se somar ao interesse por esta carta. Dessa forma a mulher aureolada pela glória de Corinne e rodeada pela tempestuosa relação com Benjamin Constant, acolhia com prontidão um jovem desconhecido que ainda não era um escritor, sendo apenas um jornalista debutante. Ele foi convidado para jantar no dia 28 de agosto, não em Coppet mas no Petit Ouchy, perto de Lausanne, onde Madame de Staël tinha instalado o seu cenáculo para melhor encontrar o seu amante infiel. O recém chegado de Paris foi colocado ao lado da dona da casa, interrogado e festejado por esses exilados ilustres. Ele se apontou inclusive um sucesso ao citar o célebre artigo que Chateaubriand acabava de publicar contra Napoleão, no Mercure de France: ‘Em vão Nero prospera, pois Tácito já nasceu no Império...’ Essa passagem magnífica, declamada com a sua bela voz grave, entusiasmou a Madame de Staël, que lhe disse: ‘Estou segura de que vós representaríais muito bem a tragédia. Ficai conosco e participai na encenação de Andrômaca...’ Guizot preferiu escapar em direção a Hermione, declinou o convite, mas conservou pela vida afora a lembrança da estadia de um dia na brilhante companhia da romancista" [Broglie, 1990: 26-27].
Neste período Guizot iniciou a colaboração em diversos jornais e revistas. Esse trabalho começou no jornal Publiciste, controlado por Suard. Na medida em que o jovem articulista ia se destacando pela qualidade dos seus textos, outras oportunidades se abriram para ele em várias publicações periódicas como Archives littéraires de l'Europe, Mercure, Mischellen für die Weltkrunde (editado na Suíça). O jovem Guizot publicou a sua primeira obra em 1809, intitulada: Nouveau Dictionnaire des synonimes. Os seus escritos já testemunhavam uma rara capacidade de trabalho, bem como grande maturidade intelectual. Charles de Rémusat deu uma boa definição do que era a disciplinada personalidade de Guizot com as seguintes palavras: "Ele parece uma idéia em marcha" [apud Broglie, 1990: 39].
Em 1812, aos vinte e cinco anos de idade, Guizot casou-se com Elisabeth-Charlotte-Pauline de Meulan, quatorze anos mais velha do que ele, de origem nobre e muito atuante nos salões literários e no jornalismo. Tinha-a conhecido neste meio, entre os colaboradores do Publiciste. Em que pese a diferença de idade, o nosso autor estabeleceu com ela uma relação cheia de amor, respeito e amizade intelectual. Com ela Guizot publicou, entre 1811 e 1814, a revista intitulada Annales de l’éducation, a fim de difundir as idéias humanísticas liberais no meio do grande público, junto com estudos acerca do pensamento dos grandes educadores como Rabelais, Montaigne, Kant, etc. Graças à proximidade da sua mulher com os chefes do Partido Real, abriram-se para o jovem escritor as portas da carreira política, que constituía a meta da sua ambição. Datam desta primeira fase da sua vida intelectual as seguintes obras: De l’état des Beaux Arts en France et Du Salon de 1810; L’Espagne en 1808; Vies des poëtes français du siècle de Louis XIV. Ao ensejo destes trabalhos tornou-se conhecido do todo-poderoso reitor da Universidade Imperial, Fontanes, que o vinculou a ela, em 1812, como suplente da cadeira de história moderna, da qual virou titular pouco tempo depois. Um ano antes, Pierre Royer-Collard tinha sido nomeado para a cadeira de história da filosofia.
Etapa de início da atividade profissional, entre 1812 e 1820.- Na primeira Restauração, Royer-Collard (de quem o nosso autor tinha virado amigo na Sorbonne), recomendou-o ao abade de Montesquiou, ministro do interior, que o escolheu como secretário geral. O seu início na carreira política não foi brilhante, pois viu-se obrigado a colaborar na preparação de uma impopular lei contra a imprensa, tendo participado do comitê de censura ao lado de Frayssinous. Quando do retorno de Napoleão Bonaparte da Ilha de Elba, no regime dos cem dias, Guizot conservou durante mais algum tempo o seu lugar no ministério, tendo sido destituído logo depois da assinatura do Ato Adicional. O nosso autor encontrou-se com Luís XVIII em Gand, onde participou da redação do famoso número do Moniteur (órgão oficial da nobreza no exílio) que se insurgia contra a usurpação napoleônica. Com o retorno dos Bourbons ao poder, foi nomeado Secretário Geral da Justiça pelo ministro Barbé-Marbois. Em 1816, em protesto contra a política altamente repressiva desatada pelo governo, retirou-se da função pública que ocupava.
Vale a pena detalhar um pouco o relacionamento de Guizot com Royer-Collard. Advogado católico, este último tinha quarenta e nove anos quando conheceu o jovem Guizot e desde o início estabeleceu-se entre ambos uma verdadeira simbiose de idéias, ao ponto que o próprio Guizot confessaria mais tarde: "Quatro pessoas influíram realmente em mim, sobre o que eu posso ser, sobre o que eu poderei me tornar ou fazer. Ele é uma dessas pessoas. O único homem" [apud Broglie, 1990: 42]. Duas das outras três pessoas eram, indubitavelmente, a sua mãe e a sua primeira mulher, Pauline. A terceira pessoa foi a sua segunda mulher, Eliza, sobrinha de Pauline, com quem Guizot casou em 1828, depois do falecimento desta. A influência de Royer-Collard certamente foi definitiva, ao ponto que G. de Broglie [1990: ibid.] considera que o amigo e inspirador dos doutrinários "substituiu no espírito de Guizot as figuras da mãe e de Pauline. Ninguém podia encarnar melhor do que ele a pregação dos princípios de energia e de cumprimento do dever, que escutava às vezes da boca de sua mãe".
Royer-Collard, denominado jocosamente de "doutrinário" pelo fato de que durante longos anos ensinou no colégio dos Padres da Doutrina, introduziu o jovem Guizot no círculo dos seus amigos liberais. Intelectual atuante no governo, formou no jovem que se iniciava nas lides do pensamento e da ação política, o caráter combativo de quem luta por conseguir ver realizadas as idéias em que acredita. A propósito dessa formação, escreveu Guizot: "Ele fez muito mais do que me conseguir trabalho na minha carreira. Ele contribuiu realmente para o meu desenvolvimento interior e pessoal. Ele me abriu perspectivas e me desvendou verdades que, sem o seu concurso, jamais teria descoberto" [apud Broglie, 1990: 43]. Caracterizando melhor o peso que a personalidade do amigo teve na formação política do nosso autor, frisa G. de Broglie: "Foi pelas suas qualidades intelectuais que Royer-Collard influenciou Guizot. O seu dogmatismo natural se armava com uma significativa dialética. A sua lógica implacável não estava desprovida nem de paixão, nem de imaginação. Ele colocava ao serviço do seu raciocínio uma argumentação robusta e eficaz, formulada com uma linguagem precisa, eloqüente e bela. A sua força e a originalidade do seu pensamento consistiam em juntar os fatos em categorias abstratas, em transformá-los no domínio das idéias, e em entrelaçar, enfim, as idéias num sistema lógico e convincente. Dessa escola, Guizot se revelaria o mais brilhante dos discípulos" [Broglie, 1990: 43].
Pela mão de Royer-Collard, Guizot entrou em contato com o grupo de pensadores espiritualistas que constituiu um primeiro núcleo teórico, de onde emergiria, logo a seguir, a geração dos doutrinários. Desse primeiro núcleo formavam parte Degérando, Ampère, Gallois, Raynouard, Fauriel, Maine de Biran e Victor Cousin. Com este último, cinco anos mais novo do que o nosso autor, Guizot teve estreita amizade e empreenderia, anos mais tarde, o longo processo de reestruturação do sistema de ensino na França. O ecletismo esclarecido defendido por Cousin não deixava de se aproximar do liberalismo moderado apregoado por Guizot [cf. Cousin, 1969: 55]. Embora alguns deles (como era o caso de Royer-Collard) colaborassem com o governo napoleônico, todos buscavam alternativas para superar o ambiente de radicalismo revolucionário e de autoritarismo. Esse seleto grupo de filósofos buscava um novo tipo de doutrina que, sem repetir os erros dos Enciclopedistas, pudesse inspirar um movimento de regeneração para a França, se voltando para o culto à tradição, sem cair no saudosismo dos ultras, que suspiravam por uma volta do Ancien Régime.
Entre 1815 e 1820 Guizot, como frisamos anteriormente, ocupou vários cargos no segundo escalão do governo francês. É interessante destacar que nas várias funções por ele desempenhadas, já se nota uma linha de atuação: pensar e institucionalizar o governo representativo e criar mecanismos que defendam o estado de direito contra os surtos revolucionários. Assim, nos anos de 1815 e 1816 o nosso autor atuou como secretário geral do Ministério da Justiça, sob os ministros Pasquier e Barbé-Marbois sucessivamente. É clara a política de inspiração liberal defendida por Guizot neste período. A respeito, escreve G. de Broglie: "É especialmente como conselheiro do ministro, mais do que como secretário geral, que estuda os grandes projetos políticos: o regime eleitoral e o regime da imprensa, a responsabilidade dos ministros e o papel da Corte dos pares como alta Corte, a reorganização administrativa e a legislação criminal. Esses temas constituirão o campo de batalha entre liberais e ultras durante cinco anos. Nas fileiras liberais é Guizot o especialista mais escutado. Já em 1815 apresenta o seu primeiro projeto de lei eleitoral. Coloca dois princípios: em primeiro lugar, a eleição dos deputados por um único colégio de todos os eleitores reunidos na capital do departamento; em segundo lugar, a identificação do eleitorado reservado aos contribuintes que pagam trezentos francos de impostos diretos. Sobre esses pontos essenciais, que colocam em jogo todo o equilíbrio político entre os grandes proprietários de terras e a grande e a pequena burguesia, e que alimentarão tantos debates apaixonados, o pensamento de Guizot se firma muito rapidamente, de forma refletida e sem que haja, no futuro, mudanças significativas. Ele redige também uma ordenança estabelecendo a hereditariedade da pairia, ponto de partida para uma nova aristocracia liberal, e um projeto de lei contra os surtos sediciosos, a fim de lutar contra os agitadores e os tumultos" [Broglie, 1990: 59].
Entre 1816 e 1817 Guizot desempenhou as funções de conselheiro de Estado. A sua preocupação nesse novo cargo continuou sendo a mesma: garantir a concretização do governo representativo, fazendo com que surgisse uma autêntica representação nacional. A propósito desta política de autêntico sabor liberal, escreve G. de Broglie: "Ele justifica o censo eleitoral alicerçado no princípio de que o direito de eleger é conferido de acordo à capacidade de eleger bem. É necessário pois fixar o censo numa cifra tal que possibilite que os interesses pessoais se confundam com os grandes interesses nacionais e sejam inseparáveis des interesses de todos. Há tantos inconvenientes em fixar o censo muito baixo, em face da capacidade de escolher os deputados, como em fixá-lo muito alto, reservando-o a certas classes que têm interesses caraterísticos, diferentes do interesse comum. Quando muito, a Câmara dos pares reserva a esses grandes interesses aristocráticos uma representação especial. Em outra palavras, a eleição dos deputados não tem por objeto dar mais poder aos partidários do Antigo Regime, mas de permitir o nascimento, mediante uma eleição direta, igual e sem distinção de classe entre os eleitores, a uma representação de caráter nacional" [Broglie, 1990: 63].
O grupo dos chamados doutrinários consolidou-se em 1817. A revista Le Nain Jaune foi a responsável por divulgar e consagrar essa denominação um ano antes, em 1816. Integravam esse pequeno grupo de intelectuais e ativistas liberais Royer-Collard, Prosper de Barante, Camille Jordan, Mounier, Guizot, de Serre e Germain. Mais tarde se integrariam ao grupo o jovem escritor Charles de Rémusat e o duque Victor de Broglie, casado com a filha de Madame de Staël, Albertine, e que se tornou grande amigo de François Guizot. Como se poderia caracterizar esse grupo? G. de Broglie destaca assim os traços essenciais: "Foi em junho de 1817 que se formou o grupo dos doutrinários, reunião de um pequeno número - eles caberiam num sofá, dizia-se então - de homens superiores, muito conscientes da sua superioridade, que marcaram com o seu selo possante o debate político, a política mesma e a evolução da sociedade ao longo desses anos. O pequeno grupo existia já um ano antes. (..) Todos tinham carteirinha de realistas, em virtude da Constituinte, Fructidor ou da permanência em Gand. Nenhum defendia o Antigo Regime e o seu objetivo era precisamente afirmar que se podia ao mesmo tempo ser liberal e realista. Eles se afastavam da volta aos princípios do Antigo Regime e da adesão, mesmo que especulativa, às teorias revolucionárias. O seu propósito era deitar as bases de uma nova sociedade, sem renegar nem a herança da monarquia, nem as reformas civis da Revolução" [Broglie, 1990: 65].
A força dos doutrinários consistia, segundo de Ortega y Gasset, em que tinham conseguido explicar o emaranhado de fatos aparentemente desconexos do período da Restauração, à luz de uma teoria política que desmontava os radicalismos e optava por um meio termo de moderação, preservando o que de aproveitável havia na Revolução de 1789, sem contudo negar o valor da ordem e da defesa da liberdade. A propósito, escreve o filósofo espanhol: "Esta monarquia cartista que é o fato com que se defrontam os franceses em 1815 é, como fato, matéria confusa e que ninguém por esses anos tinha conseguido digerir intelectualmente. Só um homem nascido em 1763, o solene e irônico Royer-Collard, tinha abstraído dele alguns pensamentos agudos. Deles parte Guizot para chegar a ser o verdadeiro construtor de uma doutrina política em que essa mistura de princípios - o direito histórico dos reis e o direito ideal, racional, a priori do povo - conseguem coabitar. Essa foi a doutrina dos famosos doutrinários. Esse nome revela fulminantemente o que então acontecia na superfície da história: ninguém sabia o que pensar acerca do que estava acontecendo. O grupo de Royer-Collard e Guizot foi o primeiro que dominou intelectualmente os fatos, que teve uma doutrina. E, como é inevitável, apoderou-se deles. Parece uma piada, mas é assim, irremediavelmente: a coisa mais etérea do mundo, que é a claridade, possui maior poder que o braço mais forte" [Ortega, 1990: 9-10].
Jean Touchard, por sua vez, caracteriza os doutrinários como portadores de uma proposta política eminentemente moderada. Eles "oferecem uma doutrina do justo meio entre os defensores do Antigo Regime e os partidários da democracia. Para eles, a Carta é a última palavra da sabedoria, o ponto final da época revolucionária. Como o Parlamento não representa a nação mas os interesses dos cidadãos, o voto deve ser reservado aos proprietários e às capacidades, que são suficientemente ilustrados como para expressar uma opinião de peso" [Touchard, 1972: 404].
Voltemos à atuação de Guizot. Em que pese os vaivéns da política, o nosso autor continuou fiel à sua tarefa intelectual. Data deste período a obra intitulada Du gouvernement répresentatif et de l’état actuel de la France (1816); este escrito, reimpresso várias vezes com alguns acréscimos, constituiu o manifesto inicial dos doutrinários, à cuja testa encontrava-se, como frisamos, Royer Collard. Monarquista constitucional, Guizot colocou-se numa posição intermediária entre os ultras e os radicais. Em decorrência da atuação agressiva dos ultras, Guizot deixou o governo após o assassinato do duque de Berry, e passou a formar parte da oposição. Vale a pena destacar aqui a estratégia utilizada por Guizot no seio dos doutrinários, com a finalidade de ver triunfantes as suas idéias. O nosso autor tratava de concretizar os seus pontos de vista numa publicação que atingisse o grande público, ao mesmo tempo que, da tribuna parlamentar, os seus amigos defendiam os pontos de vista explicados por ele na imprensa. Tratava-se de fazer surgir uma corrente de opinião favorável aos ideais do liberalismo.
Etapa de reflexão, entre 1820 e 1830.- A partir de 1820 e até 1830, Guizot ficou por fora do governo. Este período, como frisamos anteriormente, foi dedicado pelo nosso autor ao seu aperfeiçoamento intelectual, bem como ao estreitamento dos laços com os seus amigos doutrinários. No entanto, parte essencial desse período foi preenchida com a vida familiar, que lhe serviria de alicerce, a partir de então, para as lutas políticas. Testemunho do amor e dedicação à sua esposa foi dado pelo próprio Guizot, em carta escrita a Pauline no início do período em apreço: "De perto, amo-te porque te vejo; de longe, amo-te porque sinto falta de ti. És tu que, sempre, completas a minha alma... Tu és tão necessária ao meu pensamento como à minha felicidade. Preciso de ti para desfrutar de mim mesmo" [apud Broglie, 1990: 82]. Outro testemunho da mesma época: "Amo-te como se poderia amar o paraíso sobre a terra. As expressões da ternura são para mim como perfumes maravilhosos vindos do céu, que eu vivo para recolher e para enviá-los a ti de volta! Escuta, minha Pauline, não é em mim, é no tempo que falta lugar para tudo aquilo que sinto. Não, a minha ternura não se limita a determinados momentos, ela está sempre aí, sempre a mesma. Em qualquer momento em que for vasculhado o meu coração, sempre será encontrada ela lá, igualmente profunda, igualmente viva. Sempre será encontrada no meu peito a mesma necessidade de ti, a mesma êxtase ao te ver, a mesma sede dos teus pensamentos, do teu amor, das tuas palavras... Tu e a felicidade que me dás, vós sois infinitos, inesgotáveis. Sempre os mesmos e sempre novos, como o meu coração por ti. E nós envelheceremos juntos para sabermos mais e o tempo dar-nos-á mais do que nos pode tirar" [apud Broglie, 1990: 79].
Em dezembro de 1820 Guizot retomou o seu curso na Sorbonne para um público variado e numeroso, integrado por estudantes e alunos livres. A respeito desse trabalho acadêmico, G. de Broglie faz a seguinte caracterização, destacando o rigor, a honestidade intelectual, a feição metodológica tipicamente doutrinária, bem como a dedicação do nosso autor: "O historiador, nele, não está ainda confirmado. De novo mergulha nos estudos, reporta-se às fontes, multiplica as análises críticas, junta uma abundante bibliografia, em particular alemã, e renova o método, como faz no mesmo período Augustin Thierry. (...) Ele mistura à história dos primeiros séculos, alusões precisas à atualidade. Sendo a cadeira da Sorbonne a sua única tribuna, ele não pode se impedir de procurar, no seu ensino ainda pouco seguro, justificativas para as suas próprias concepções políticas. Não é essa uma das caraterísticas da marcha dos doutrinários? O tema por ele escolhido identifica-se de entrada com um trabalho de erudição: as origens do governo representativo na Europa. Ao término de um ano de ensino, na conclusão da sua vigésima primeira lição, chegado ao século XIV, término do período a ser estudado, ele deve concordar com a conclusão de que o a priori da sua tese não se encontra confirmado pelo seu estudo, e de que nada anuncia por enquanto a aparição do governo constitucional, nem na Inglaterra nem no continente" [Broglie, 1990: 81-82].
Por este tempo publicou as obras intituladas Des conspirations et de la justice politique (1821), Des moyens de gouvernement et d’opposition dans l’état actuel de la France (1821) [cf. Guizot, 1988] e De la peine de mort en matière politique (1822) [cf. Guizot, 1984]. Estas obras são representativas de um estilo muito peculiar, de quem faz oposição de maneira construtiva, analisando criticamente a situação mas deixando entrever soluções viáveis. Estudiosos como Larousse consideram-nas como conselhos mais do que como ataques aos seus adversários. Em que pese a sua moderação, as desavenças políticas terminaram fazendo, no entanto, com que o nosso autor perdesse a sua cadeira de história na Sorbonne, tendo o seu curso sido clausurado em 1825. Pouco antes, Guizot tinha publicado o resumo das suas aulas sob o título de Histoire du gouvernement représentatif (2 volumes).
Nessa época, de outro lado, o nosso autor empreendeu a primeira série dos seus trabalhos históricos, que lhe dariam definitivo renome no universo das letras francesas. Publicou o seu Essai sur l’histoire de France; a sua Collection des mémoires relatifs à la révolution d’Anglaterre (26 volumes), a Collection des mémoires relatifs à l’histoire de France (jusqu’au XIIIe. siècle) (em 31 volumes), e a Histoire de la révolution d’Anglatere, depuis l’avénement de Charles Ier. jusqu’à l’avénement de Charles II (primeira parte). Publicou também uma edição anotada das obras de Rollin, bem como uma revisão da tradução das obras de Shakespeare, com uma nota biográfica. Por este tempo Guizot publicou também numerosos artigos na Révue Française e na Encyclopédie Progressive. No meio de todas estas atividades, o nosso autor teve a grande pena de perder, em 1827, a sua mulher. Antes de morrer, ela deu-lhe uma grande prova de amor, ao abjurar da sua religião (pois era católica), tendo-se convertido ao protestantismo. Cumprindo a vontade da sua falecida mulher, Guizot casou-se, no ano seguinte, com a sobrinha dela, Marguerite-Andrée-Eliza Dillon, que veio a falecer prematuramente, em 1833. Guizot teve quatro filhos: François (do seu primeiro casamento com Pauline, e que faleceu aos 21 anos de idade) e Henriette, Pauline e Guillaume (do seu segundo casamento com Eliza). As suas filhas deram-lhe onze netos, aos quais Guizot dedicou as suas atenções nos últimos anos de vida, tendo escrito para eles uma obra significativa, a Histoire de France racontée à mes petits-enfants, em cinco volumes.
Guizot fundou em 1829 a sociedade Aide-toi, le ciel t’aidera, junto com Duverger de Hauranne, Duchâtel, Rémusat e Odilon Barrot, com a finalidade de garantir o livre exercício do direito eleitoral, contra as manobras governamentais no pleito do mencionado ano. Não se tratava de uma sociedade secreta, como alguns têm pensado; a mencionada associação aglutinava opositores de tendências diversas, todos eles descontentes com o autoritarismo reinante. O advento do ministério Martignac tinha lhe restituído em 1828 a cadeira de professor universitário, bem como o seu cargo no conselho de Estado. O nosso autor foi eleito deputado pela circunscrição de Lisieux e passou a sentar na Câmara no lugar dos membros pertencentes ao centro-esquerda.
Dos seus cursos na Sorbonne surgiram outras obras importantes: Cours d’histoire moderne; Histoire de la civilisation en Europe depuis la chute de l'Empire Romain jusqu'a la Révolution Française [cf. Guizot, 1864] e Histoire générale de la civilisation en France, ao longo período compreendido entre 1827 e 1830. Os cursos oferecidos pelo nosso autor na Universidade foram realmente um marco definitivo na cultura francesa. Muitos dos atores políticos que colaborarão com Guizot no futuro, sairão das fileiras dos seus alunos. O próprio Tocqueville, que será crítico do conservadorismo de seu mestre, ficou impressionado com a erudição e a capacidade didática de Guizot, ao ponto de fazer uma detalhada síntese dos seus cursos na Sorbonne, aos quais o jovem bacharel assistiu entre abril de 1829 e maio de 1830 [cf. Tocqueville, 1989b: 439-534]. (Destaquemos que o jovem Marx, quando da sua primeira permanência em Paris, entre 1843 e 1845, tomou conhecimento das notas dos alunos pertencentes ao círculo saint-simoniano e que, como Tocqueville, tinham assistido aos cursos ministrados por Guizot, tendo sido significativa a influência que Marx recebeu do pensador liberal, como detalharemos mais adiante).
Na Câmara, o nosso autor combateu o ministério Polignac. Acerca das suas atitudes políticas, frisa Pierre Larousse [1865: 1640], com uma ponta de ironia que não esconde as reservas dos historiadores da sua época em face do perfil conservador de Guizot: “amava a Restauração, especialmente porque ela encarnava a autoridade".
Fazendo um balanço das idéias mestras que pautaram as obras escritas por Guizot ao longo desta etapa de sua vida, escreve G. de Broglie, salientando o caráter dinâmico e prático da obra do nosso autor, e assinalando, ao mesmo tempo, a feição incompleta da mesma do ângulo puramente especulativo: "Nesses trabalhos diversos, Guizot aprofunda ainda a sua formação intelectual, sem se afastar de seu objetivo principal: deitar as bases da filosofia política da França moderna, a filosofia do governo representativo, identificando as suas raízes, o seu desenvolvimento na história da Inglaterra e os seus princípios universais. Este trabalho não separa jamais a teoria da prática e não se remonta a uma concepção geral da sociedade, senão em função de uma análise do presente e de um projeto de governo. Ele não chega, contudo, a elaborar um tratado ordenado e completo. Tinha, aliás, a intenção de escrevê-lo em 1821-1822. Diversos fragmentos com pontos de vista penetrantes são como pedras para um edifício que não foi construído. Restaram dessa tentativa alguns escritos menores: um ensaio inacabado, datado de 1823, com noventa e uma páginas e intitulado Philosophie politique (inédito até 1985), um artigo publicado no jornal Le Globe em 1826 acerca da soberania, três artigos dos quais um aparecido na Encyclopédie Progressive, coleção periódica que ele tinha contribuído a fundar em 1825" [Broglie, 1990: 89-90].
Etapa de atuação política, entre 1830 e 1848.- A Revolução de Julho de 1830 foi um ajuste de contas com o Ancien Régime. Nem Luís XVIII nem Carlos X se desatrelaram por completo das antigas instituições que tinham caído por terra ao ensejo da Revolução de 1789. Colocados no poder pelas potências estrangeiras que venceram Napoleão, tentaram fazer reviver, das sombras do passado, o velho modelo absolutista. As repetidas tentativas de endurecimento do regime conduziram às jornadas revolucionárias. Guizot observava a progressiva impopularidade da corrupta monarquia. Não participou como ativista das jornadas revolucionárias. O seu papel foi de quem analisa atentamente os fatos e busca uma brecha para neles se inserir e jogar um papel importante de cunho reformista, mas sem possibilitar o avanço das propostas revolucionárias, que se identificavam com a instauração da República. Para o nosso autor, somente haveria verdadeiras instituições na França com um modelo de monarquia representativa. Com determinação assombrosa, com claridade acerca do que queria, Guizot foi aos poucos ocupando os espaços e catalisando, ao redor de si, o élan revolucionário, para conduzir ao poder um novo monarca que se intitularia Rei dos Franceses, numa clara alusão ao papel do novo regime de inspiração netamente liberal. A França vivia, nas Jornadas de Julho, a sua Gloriosa Revolução, semelhante à que os ingleses tinham vivido em 1688. E Guizot desempenhava o papel de ideólogo do novo regime, assim como John Locke tinha sido o inspirador da Revolução que conduziu Guilherme de Orange ao trono da Inglaterra.
Após a Revolução de Julho de 1830, Guizot foi nomeado ministro do Interior e tomou parte na revisão da Carta. A sociedade Aide-te, le ciel t'aidera foi a base que serviu ao nosso autor para conseguir estabelecer a moderação e deixar sem espaço de manobra os radicais, bem como os saudosistas do regime que desabava, segundo testemunha Tocqueville [cf. 1989a: 403-408]. No entanto, Guizot abandonou o poder dois anos depois por desavenças com o primeiro-ministro Laffitte, reacionário demais para colaborar com ele. O nosso autor aglutinou rapidamente os doutrinários ao redor do gabinete Périer. Após o falecimento deste, Guizot organizou, junto com Adolphe Thiers (1797-1877) e Victor 3º duque de Broglie (1785-1870), o gabinete de 11 de outubro de 1832, que durou quatro anos, tendo desempenhado o cargo de ministro da Instrução Pública. Mas a presença de Guizot no universo político da época não se restringiu a essa função, tendo sido ele o pivô ao redor do qual giraram as instituições nesses conturbados anos. Foi inspiração sua a política conservadora de aplicar medidas restritivas às associações e à imprensa, como forma de manter incólumes as instituições, em face dos radicalismos de esquerda e de direita. Tratava-se, sem dúvida, de uma autêntica política liberal-conservadora. Certamente, ao lado desse papel de eminência parda, exercido a partir do ministério da Instrução, cabe-lhe a glória de ter estruturado a instrução pública francesa. A respeito, escreve Pierre Larousse [1865: 1640]: “adversário sistemático e decidido da democracia, teve a nobre inconseqüência de ter contribuído para dotá-la do instrumento de sua grandeza futura e do seu progresso (...). Como ministro da Instrução pública, o senhor Guizot tinha uma verdadeira competência e uma superioridade indiscutível”.
Desempenhou a função ministerial até 15 de abril de 1837, com uma breve interrupção, entre 22 de fevereiro e 6 de outubro de 1832. Em 1840, o nosso autor foi nomeado embaixador em Londres. No ano seguinte foi indicado para a pasta das Relações Exteriores, cargo que acumulou junto com a direção de fato do gabinete, que estava sob a presidência nominal do marechal Soult. O seu sistema de administração era de inspiração netamente conservadora e consistia no seguinte: no interior, dominação exclusiva da classe burguesa e resistência obstinada a qualquer reforma política; no exterior, preocupação constante em evitar qualquer conflito, numa estratégia presidida pela idéia de manutenção de um entendimento cordial com a Inglaterra. Para Guizot as questões externas deveriam estar submetidas à política geral da França, direcionada no sentido de garantir a estabilidade política. A respeito, frisa Larousse [1865: 1641]: “A sua teoria do governo era de uma simplicidade extraordinária: no interior, ter a maioria; no exterior, ter a paz. Os 220.000 eleitores que integravam o país legal eram para ele toda a nação, pelo menos a única parte que um homem sério de Estado deve levar em consideração, a única que deve participar do governo da coisa pública. É popular o famoso preceito de Guizot: Enriquecei-vos. Esta era a primeira e a última palavra do seu sistema”.
Em setembro de 1847, Guizot assumiu as funções de Presidente do Conselho de Ministros, cargo no qual foi surpreendido pela Revolução de fevereiro de 1848. Refugiou-se então na Inglaterra, encerrando-se assim a etapa mais brilhante da sua vida, aquela na qual conseguiu desenvolver as reformas modernizadoras das instituições públicas na França. Duas foram as contribuições mais importantes de Guizot na sua passagem pela cúpula do poder: a definitiva estruturação do ensino básico e a consolidação dos mecanismos institucionais que garantiriam a representação política. Nesses dois fundamentos se alicerçou a história política e cultural do país nas restantes décadas do século XIX. No próximo item, que trata da concepção política de Guizot, destacarei os fundamentos doutrinários dessas reformas. Valha, de momento, uma referência à amplitude dessas iniciativas em face da sociedade francesa.
Quanto à reforma do ensino, o nosso autor dotou a França de uma estrutura completa para a formação da consciência cívica das crianças, garantindo a preparação de mestres e a sua presença em todos os cantos do país. O lema da política de Guizot era: em cada comuna (ou município) uma escola, em cada departamento uma escola normal para a formação de mestres e em Paris a École Normale Supérieure, a fim de garantir a formação dos mestres dos mestres. Paralelamente, o nosso autor deu grande importância às associações científicas e literárias, que garantiriam o livre debate das idéias na sociedade, contribuindo, destarte, à formação da opinião pública. O que o nosso autor queria era que as classes médias acordassem para a sua responsabilidade histórica de configurar a estabilidade política. Para isso era necessário formar a opinião pública, incentivando o estudo acerca das instituições políticas que tinham dado certo na Europa, as britânicas no caso, e fomentando a discussão sobre a melhor forma de se realizar a representação de interesses.
Quanto à reforma política, Guizot estabeleceu a base definitiva para que a representação pudesse se consolidar ao redor das classes médias. Ficava assim superado o risco de retrocesso político, identificado ou com a volta do Ancien Régime, ou com a ascensão dos elementos revolucionários. Mediante uma paciente arquitetura, o nosso autor conseguiu concretizar um modelo de representação liberal-conservadora, que garantia o funcionamento das instituições sem o temor de ações radicais. O que Guizot pretendia era consolidar a representação como média da opinião. Para conseguir essa finalidade, era necessário que as classes médias acordassem para a sua responsabilidade histórica. As reformas educacionais e a política no terreno cultural, visavam a essa tomada de consciência.
Detalhemos a reforma empreendida por Guizot e os seus seguidores no terreno da educação. Guizot integrou, junto com Cousin e Villemain, o trio de professores que estruturaram o ensino público francês. Os três foram, sucessivamente, ministros da Instrução, entre 1832 e 1840, sendo que Cousin e Villemain colaboraram na administração Guizot, pesquisando acerca dos sistemas educacionais de outros países, como a Alemanha e a Inglaterra. A reforma abarcou todo o sistema de ensino, primário, secundário e universitário. A denominada Lei Guizot, de 2 de janeiro de 1833, consolidou a reforma do ensino primário. O nosso autor teve um ponto de vista realista nesse processo: mais do que tentar equacionar soluções ideais, quis exprimir nas suas propostas reformistas o que seria o desideratum da sociedade francesa de sua época. Ora, de acordo com essa intuição, decantada nas pesquisas educacionais que empreendeu no período anterior com a sua esposa Pauline, dois deveriam ser os aspectos que responderiam ao que a opinião pública esperava do ensino primário: estabelecer a liberdade de ensino, criando antes um ensino primário público que não existia. Parecem contraditórios esses dois objetivos. Mas Guizot os entendia de forma complementar: competiria ao poder municipal garantir o financiamento do ensino primário para todos, sendo as políticas e os conteúdos da alçada da sociedade civil, sob a coordenação do ministério da Instrução. Efetivamente, como a sociedade francesa estava muito polarizada ao redor de grupos que pretendiam se apropriar do Estado para torná-lo o seu instrumento de poder, seria necessário garantir, primeiro, uma política educacional traçada desde cima, a partir do ministério, a fim de que, paulatinamente, na medida em que se consolidasse a representação, a sociedade civil, regida pelas classes médias, fosse aos poucos participando mais ativamente do desenvolvimento do ensino primário.
Do ângulo programático, o objetivo do ensino primário deveria ser, no sentir de Guizot, deitar as bases da cidadania alicerçando-a sobre a educação moral e religiosa das crianças. Essa educação, no sistema público, deveria ser ministrada por instrutores laicos devidamente preparados para esse fim. Quanto à fixação e ao controle dos conteúdos a serem lecionados, competiria ao ministério da Instrução estabelecer os programas, divulgando-os aos mestres em todos os cantos do país. Para esse efeito, o nosso autor concebeu um programa amplo de publicações de manuais, que passaram a ser distribuídos gratuitamente entre todos os professores. A partir de 1833 foi publicada, com periodicidade regular, uma revista oficial com o título de Manuel général de l'instruction primaire. Através desse órgão, o ministério passou a se comunicar com os docentes, divulgando estudos sobre a situação do ensino, comunicando atos do governo e a legislação correspondente, fazendo previsões quanto aos futuros programas e divulgando informações pedagógicas de utilidade para os alunos e professores. Foi famoso o Primeiro Comunicado do Ministro da Instrução aos Mestres de todo o País, definindo o que seria a sua missão, que era comparada a um sacerdócio civil, porquanto do ensino ministrado por eles emergiria a consciência cívica das crianças.
G. de Broglie sintetizou assim o balanço que se poderia fazer em relação aos aspectos programáticos da reforma do ensino primário efetivada pelo nosso autor: "Que balanço pode ser desenhado dos quatro anos da aplicação da lei Guizot sob o seu ministério? O seu objetivo principal tende à generalização da instrução primária. Ela repousa sobre princípios simples: a liberdade que permite a concorrência; a descentralização, cara aos doutrinários, que confia a educação à sociedade local; a intervenção do Estado que, pela primeira vez, integra o ensino primário no corpo universitário e garante o todo. A posta em prática desses princípios sofreu algumas atenuações. Sem chegar a impor a obrigação escolar, que afetaria os direitos do pai de família, será publicada nas comunas a lista dos pais que não enviam os seus filhos à escola. A lei não estabelece a gratuidade, considerada na época como uma injustiça em face dos que podem pagar, mas é prevista a admissão gratuita de crianças pobres, às custas das comunidades. Os programas não são definidos de maneira ambiciosa, nem sequer precisa. A escola primária é concebida mais como uma dívida estreita do país para com as suas crianças, do que como um primeiro passo num sistema de ensino continuado. As crianças têm, segundo Guizot, o direito de aprender, mas é preciso evitar o saber popular deformado, assim como uma instrução muito pretensiosa. A leitura e a escrita, o cálculo, o sistema métrico, a formação moral e religiosa, eis os conteúdos que constituem missão da escola" [Broglie, 1990: 160-161].
Do ângulo administrativo, Guizot abriu espaço para o professorado primário no contexto da estrutura universitária. Isso com uma finalidade puramente administrativa, sem que significasse essa providência o atrelamento do ensino primário ao superior. Na embrionária estrutura administrativa da educação, era mais racional situar os mestres de ensino primário no contexto geral do professorado universitário. Isso garantiria aprovar, sem maiores dificuldades, um orçamento que permitisse a digna remuneração. Ficava claro, portanto, que cada nível, primário, secundário e superior, era entendido por Guizot e pelos demais doutrinários como autônomo na sua finalidade específica.
G. de Broglie destacou, da seguinte forma, o caráter racional e dinâmico da estrutura administrativa implantada: "O ensino primário é organizado em um sistema coerente. Em cada comuna, um instrutor e uma escola; em cada povoado de seis mil habitantes ou em cada capital de cantão, uma escola primária superior seguindo o modelo alemão; em cada departamento uma escola normal de instrutores. Para gerir o conjunto, o conselho comunal, integrado pelo maire, pelo padre ou o pastor e por três conselheiros municipais, com a incumbência de vigiar pela salubridade e a disciplina nos estabelecimentos. O conselho de bairro, integrado pelo subprefeito, pelo juiz, pelo padre e pelo conselheiro geral, empossa o instrutor e exerce sobre ele o poder disciplinar. Enfim, a comissão departamental expede os certificados de habilitação dos mestres e dos diretores de escola. O ministro e o inspetor acadêmico dispõem de inspetores primários para supervisar o conjunto dos estabelecimentos, públicos e privados. A chave da reforma consiste na posição social atribuída ao instrutor. Ele vira uma personagem importante da sua comunidade, um funcionário integrado à Universidade que recebe do Estado um salário fixo de duzentos francos ao ano, mais uma remuneração cotizada pelos pais segundo uma taxa fixada pelo conselho municipal. Ele é isento do serviço militar, é formado pela escola normal, é alojado pela sua comunidade e goza de um regime previdenciário" [Broglie, 1990: 161-162]. Em relação à escola primária superior mencionada no texto que acabo de citar, lembremos que se tratava de um complemento da educação primária para melhor preparar as classes inferiores, em face das necessidades do comércio e da indústria nas cidades.
No terreno do ensino secundário, Guizot defendeu dois princípios: independência do Estado em face da Igreja e controle daquele sobre o ensino público, tendo o Estado, outrossim, a missão de vigiar pelo bom desempenho do ensino particular. A finalidade que Guizot atribuía ao ensino secundário oficial era a de formar as classes médias, alicerçando essa tarefa nos estudos humanísticos. A respeito dos traços marcantes da política empreendida pelo nosso autor, escreveu G. Broglie: "Ele enunciava alguns postulados: a instrução pública deve ser desenvolvida à imagem da sociedade e se adaptar às suas aspirações e aos seus recursos. O primeiro imperativo consiste no desenvolvimento das classes médias. Elas têm necessidade, para se firmarem como classe dirigente, do conhecimento das letras clássicas, que não somente garante o acesso à cultura, mas desenvolve também a inteligência. O projeto de Guizot fazia pois do estudo das letras a base mesma e a razão de ser do ensino secundário e se esforçava por estendê-lo ao maior número possível. Assim, os colégios de Estado serão, em cada departamento, os modelos desse ensino, com duas opções, uma para os estudos literários clássicos, outra para os estudos modernos com as línguas vivas, a história e a geografia. Mas Guizot recusava-se a criar um ensino curto e a separar, desde a infância, duas porções da sociedade, uma voltada para o desenvolvimento do espírito, superior e desinteressada, outra direcionada às profissões úteis, estreitas e de aplicação imediata. (Como) trancafiar, por assim dizer, os cidadãos em categorias irredutíveis, como consolidar as profissões de maneira antagônica e ignorantes umas das outras?" [Broglie, 1990: 166]. A única forma de ensino médio profissionalizante aceita, seria a ministrada pelos colégios comunais, que poderiam se ajustar às necessidades práticas das regiões onde se situassem.
No que tange ao ensino superior, Guizot não concebeu uma reforma universitária propriamente dita. O nosso autor, bem como Cousin e Villemain, passaram a entender a Universidade francesa no contexto da preservação da memória nacional. (Dentro desse espírito, influenciado pela filosofia hegeliana, Cousin efetivou a reforma do ensino do Direito, introduzindo definitivamente a cadeira de Introdução Geral ao Estudo do Direito) [cf. Alberto Vélez, 1996: 11]. Guizot pretendia descentralizar a instituições de ensino superior, de forma tal que contribuíssem a consolidar, nas várias regiões da França, a política cultural de resgate das raízes nacionais deflagrada pela monarquia de Luís Filipe. Nem Guizot nem os seus sucessores conseguiram materializar esse projeto, que contemplava a criação de quatro grandes centros de estímulo à vida universitária em Estrasburgo, Rennes, Toulouse e Marselha. Esse processo de regionalização somente se consolidaria no século XX, após as reformas que se seguiram ao levante de 1968. Mas Guizot e os seus sucessores no ministério da Instrução plantaram sem dúvida essa idéia.
Detalhemos um pouco a reforma política empreendida por Guizot. Esta teve uma dupla finalidade: racionalizar a administração pública e deitar as bases da representação. Quanto ao primeiro objetivo, Guizot mobilizou todas as forças do governo, a partir do ministério do Interior, a fim de substituir a nobreza proveniente do Ancien Régime por jovens liberais que tivessem apoiado a Revolução de 1830, ou por funcionários eficientes que tivessem demonstrado o seu devotamento à coisa pública ao longo da Restauração. A reforma administrativa feita por Guizot já nesse mesmo ano, frisa G. de Broglie, “forneceu pelo menos cinqüenta nomes para os quadros superiores do regime, ministros, deputados, pares ou cargos de destaque. O doutrinário soube aproveitar um breve período favorável para provocar uma ruptura e fundar a sociedade nova adicionando, sem muitos escrúpulos, à mudança dinástica, um relevo administrativo em proveito da burguesia liberal. O ministério do Interior compreendia, então, muito mais do que a administração territorial. Englobava tudo quanto não era da alçada direta das administrações tradicionais das finanças, da justiça, da instrução pública, ou seja a polícia, a saúde, as questões sociais, as intervenções econômicas, os trabalhos públicos, os transportes, as construções, numa época em que o Estado tinha poucos meios de intervenção e em que a maior parte das questões eram abordadas sob o ângulo político ou da ordem pública” [Broglie, 1990: 128].
No tocante à representação, o nosso autor promoveu um paulatino alongamento do censo, a fim de ir introduzindo mais eleitores, na medida em que fossem sendo preparadas as classes médias. Inimigo declarado do sufrágio universal pretendido pelos republicanos, Guizot não deixou, no entanto, de alargar o universo dos sufragantes. G. de Broglie sintetiza assim a lenta mas continuada evolução do eleitorado francês no período da monarquia de Luís Filipe: “A questão da reforma eleitoral exprime-se em algumas cifras. Em todas partes, nessa época, o sufrágio é uma função reservada a alguns e não um direito de todos. Na França, a monarquia de Julho baixou o censo eleitoral, imposto direto que confere o direito de voto, de 300 para 200 francos ao ano, o que fez passar o número de eleitores de 94.000 antes de 1830, para 167.000 em 1831, e em 1840 para aproximadamente 241.000 eleitores, sob o único efeito do aumento da riqueza. Trata-se essencialmente de proprietários rurais enquanto na Inglaterra o eleitorado se abre de entrada aos proprietários de bens móveis. O censo de elegibilidade baixou em 1830 de 1.000 para 500 francos. Contava-se ao redor de 56.000 pessoas elegíveis. No escrutínio de bairro, os deputados são eleitos, em média, por menos de 400 eleitores, o que permite o estabelecimento de relações diretas com cada um deles. Os eleitores são proprietários, os eleitos são notáveis” [Broglie, 1990: 344].
Complementar ao alargamento do voto foi a política parlamentarista desenvolvida por Guizot. Como na França da época não havia partidos políticos no sentido moderno do termo mas blocos parlamentares, era fundamental, para conseguir a aprovação das reformas, desenvolver a oratória parlamentar, a fim de mobilizar a grande massa de congressistas que permanecia passiva nas sessões. Guizot, o professor da Sorbonne, era um orador nato. Conseguia fazer pender a balança da opinião com a força da sua palavra. Victor Hugo resumiu de forma poética esse poder: “No momento em que o seu pé tocava a tribuna, a sua cabeça tocava o céu” [apud Broglie, 1990: 266].
Para Victor de Broglie, o doutrinário, Guizot e Thiers foram os dois grandes oradores políticos da França no decorrer do século XIX. A respeito, escreve Gabriel de Broglie: “O grande rival de Guizot, na tribuna como em tudo, é Thiers. Não podemos imaginar dois talentos mais diferentes. Um e outro são, no entanto, oradores de assembléia, possuem uma eloqüência adaptada à sua pessoa, falam durante horas, sem notas, se esgotam sem que pareça e possuem a garganta frágil. Mas Guizot fala lentamente, Thiers muito rápido. Guizot jamais se afasta do estilo nobre; Thiers não declama, é direto, familiar, às vezes vulgar. Guizot flutua na especulação intelectual e em meio a fórmulas sonoras; Thiers fala no verdadeiro, no exato, no técnico. Guizot termina com um discurso grandioso, Thiers acaba as suas falas sem peroração. Eles são, como disse Victor de Broglie, os dois maiores oradores da França moderna e talvez de todos os tempos. É possível. São, em todo caso, dois lutadores fantásticos. Juntos, são invencíveis; opostos, destroem-se mutuamente” [Broglie, 1990: 269].
Etapa de retiro do governo e de ação social, entre 1848 e 1874.- Após a eleição de Luís Napoleão, o nosso autor pensava que ainda era possível a sua volta à vida política e publicou, em janeiro de 1849, a obra intitulada De la Démocratie en France, que constituía um virulento panfleto de inspiração conservadora que passava por alto das profundas mudanças que estavam se operando na sociedade francesa. Apresentou-se ao pleito eleitoral de julho de 1849 e sofreu pesada derrota em Lisieux (somente obtendo 166 votos entre 89.000 eleitores), se tornando assim, como frisa Rosanvallon [1985: 406], "o símbolo do regime derrubado". Embora torcesse pela idéia da fusão monárquica entre o conde de Chambord e a família Orléans, Guizot parece ter-se acomodado à República, ao não se insurgir contra o golpe de estado de 2 de dezembro de 1851 e ao se mostrar favorável ao voto afirmativo, no plebiscito de maio de 1870.
Situado à margem da vida política, Guizot desenvolveu amplo magistério intelectual e moral ao longo de todo o Segundo Império. Prosseguiu com os seus trabalhos historiográficos, acabando a sua Histoire de la révolution d'Angleterre (1854-1856) [cf. Guizot, 1997] e escrevendo ensaios sobre Monk e sir Robert Peel. Entre 1858 e 1867 publicou os oito volumes das suas Mémoires pour servir à l'histoire de mon temps, reeditou, acrescentando novos capítulos, o seu antigo curso dado em 1820-1822 e intitulado Histoire des origines du gouvernement représentatif, publicou os cinco volumes que integram a sua Histoire de France racontée à mes petits-enfants e reuniu os seus discursos nos cinco volumes que integram a sua Histoire parlamentaire de France.
O nosso autor ocupou um lugar de destaque na história do protestantismo francês, ao ter participado, muito de perto, da vida da Igreja reformada, ao presidir numerosas associações e ao ter assumido a responsabilidade de estabelecer uma ponte entre estas e o poder político, notadamente no processo de preparação do sínodo de 1872. No contexto destas atividades, escreveu os três volumes das suas Méditations chrétiennes e a Biografia de Calvino. Em que pese o fato de ter se afastado do poder político nos seus últimos anos, continuou, no entanto, a ter grande influência na vida intelectual da França, sendo o grande eleitor na Academia Francesa, da qual formava parte desde 1836, na vaga deixada por Destutt de Tracy. Guizot faleceu no dia 12 de setembro de 1874.
Guizot deu grande importância ao convívio com a família ao longo de sua vida, mas especialmente durante o período de retiro na sua mansão de Val-Richer, em Calvados, na Normandia, entre 1848 e 1874. Dir-se-ia que virou um avô exemplar, participando de perto da educação dos seus netos, bem como do lazer junto com eles. Testemunho vivo da luminosidade desses últimos anos escreveu o seu biógrafo, nos seguintes termos: "Guizot praticou com encanto a arte de ser avô. Ele saboreava todas as alegrias: acariciar a sua neta preferida, Jeanne, a que mais se assemelhava a Henriette, sua mãe e à Eliza, sua avó; inspirar a veneração a todo esse pequeno mundo, lhe transmitindo as suas crenças, as suas aspirações, as suas admirações; brincar na grama ou no salão; fazer a leitura em comum de uma tragédia de Corneille ou de um romance de Walter Scott. A sua vasta família não deixou nunca de ser um templo do espírito. As alegrias da casa, todas as gerações reunidas, a lembrança das sombras esvanecidas, os trabalhos tranqüilos do espírito encontravam em Val-Richer um terreno fecundo, uma virtude vivificante e mesmo um poder fascinante. A natureza ganhava, com os anos, mais e mais importância na vida de Guizot. Ele se deixava penetrar e como que engolir pela contemplação do seu horizonte imediato e diverso e pelo desfrute de mil laços secretos que o atavam à sua terra e lhe proporcionavam uma serenidade idílica" [Broglie, 1990: 402].
II - O pensamento político de Guizot
François Guizot representou, para o pensamento político brasileiro do século XIX, o marco de referência conceitual do Liberalismo Conservador, um de cujos máximos expoentes foi Paulino Soares de Souza (1807-1866), visconde de Uruguai. A problemática vivida pelo Império Brasileiro na sua etapa inicial (correspondente ao Primeiro Reinado e ao Período Regencial, e que se estende entre 1824 e 1840), era bem semelhante à vivida pela França da época da Restauração (1814-1830). A vida política decorria, no Brasil, (no período apontado) entre os extremos do absolutismo e do democratismo rousseauniano. De forma semelhante, na França da Restauração, os abismos estavam identificados, de um lado, com o espírito reacionário dos ultras, que aspiravam os ares do Ancien Régime, e com o bonapartismo, que constituía a versão burguesa do absolutismo; de outro lado, com o jacobinismo revolucionário e o democratismo rousseauniano, que tinham ensejado a Revolução de 1789 e o Terror [cf. Macedo e Vélez, 1996].
A queda do Ancien Régime, ao tirar todo poder à Igreja, colocou no seu lugar o homem de letras, certamente um intelectual diferente daquele do Iluminismo, porquanto sensível à realidade histórica de sua época. A sua missão consistiria em erguer um poder espiritual que iluminasse a sociedade com as luzes de uma religião civil, diferente por certo da proposta por Rousseau, porquanto compatível com uma sociedade estruturada em várias ordens de interesses. Essa nova religião civil deveria garantir a unidade do tecido social, ao redor de uma gama de interesses comuns a todas as classes e os seus dogmas seriam objeto de um processo pedagógico ministrado pelos homens de letras, que teriam, também, funções proféticas (porquanto pregoeiros de uma nova era) e dirigentes (seriam, ao mesmo tempo, líderes da sociedade da sua época). Françoise Mélonio sintetizou o perfil desses novos líderes, com as seguintes palavras: "Saber para poder, superar a filosofia crítica das Luzes para elaborar os novos dogmas, tal é o objetivo que todos, com não poucas variações, perseguem, Jouffroi como Guizot, Comte, Hugo, Lamartine, Renan ou Renouvier" [Mélonio, 1998: 195].
"Passar a França pós-revolucionária a limpo", esse poderia ter sido o princípio inspirador dos chamados doutrinários, Guizot à testa. Quanto ao nome dessa corrente, assim explica Rosanvallon o seu significado: "A denominação de doutrinários, que parece ter sido utilizada pela primeira vez em 1817 nos corredores da Câmara dos Deputados, referia-se no início unicamente a Camille Jordan, de Broglie e Royer-Collard. A expressão caracterizará em seguida a corrente indissociavelmente intelectual e política que se estruturará progressivamente ao redor de Guizot, aparecendo este após 1820 como o verdadeiro líder do que no início não era mais do que um pequeno grupo de parlamentares" [Rosanvallon, 1985: 26, nota 1]. O grupo dos doutrinários esteve também integrado por Remusat e de Serre. Tocqueville, como frisa Ubiratan Macedo, "a rigor, não pode ser agregado aos doutrinários mas é impensável sem eles e corresponde certamente ao corolário de sua obra" [Macedo, 1987: 33].
O projeto político de Guizot correspondia ao ideal de “finalizar a Revolução, construir um governo representativo estável, estabelecer um regime que, fundado na Razão, garantisse as liberdades. Esses objetivos definem a tripla tarefa que se impõe a si mesma a geração liberal nascida com o século. Tarefa indissoluvelmente intelectual e política, que especifica um momento bem determinado do liberalismo francês: aquele durante o qual o problema principal é prevenir a volta de uma ruptura mortal entre a afirmação das liberdades e o desenvolvimento do fato democrático. Momento conceitual que coincide com o período histórico (da Restauração e da Monarquia de Julho), no curso do qual essa tarefa está praticamente na ordem do dia e que se distingue, ao mesmo tempo, do momento ideológico, que prolonga a herança das Luzes, e do momento democrático, que se inicia depois de 1848" [Rosanvallon, 1985: 26].
Tarefa intelectual e política. Efetivamente, a essência da proposta de Guizot consistiu em pensar as novas instituições que garantissem, no plano político, o exercício da liberdade. Esse pensar as novas instituições não era ato de uma elite intelectual desligada da sociedade. Era função de uma elite, sim, pensar os novos conceitos. Mas eles deviam se espraiar pelo resto da sociedade. Guizot apostava num uso social da razão. A propósito, perguntava: "O que é necessário para que os homens possam fundar uma sociedade um pouco durável, um pouco regular?" E respondia: "É preciso, evidentemente, que tenham um certo número de idéias suficientemente desenvolvidas, para que convenham a essa sociedade, que respondam às suas necessidades, às suas relações. É preciso, além do mais, que essas idéias sejam comuns à maior parte dos membros da sociedade; enfim, que elas exerçam um certo domínio sobre as suas vontades e as suas ações" [Guizot, 1864: 81].
Essa tarefa político-pedagógica era pensada num pano de fundo histórico, inserindo as instituições políticas no contexto mais amplo do espírito do tempo. A função pedagógico-política do intelectual consistia em fazer descobrir aos franceses a sua própria história. Guizot pretendia cumprir esse papel, em relação ao seu país, doutrinando as classes médias, as únicas que conseguiriam manter a unidade nacional, numa perspectiva de não privatização do poder por castas ou estamentos. O pensador francês estabelecia um estreito elo de ligação entre a conquista das liberdades individuais e a construção do Estado. Em relação a esse ponto, escreve Rosanvallon: "A construção do Estado e o nascimento do indivíduo vão de mãos dadas: os dois se fundam sobre a destruição das ordens fechadas" [Rosanvallon, 1985:199].
As obras de caráter histórico de Guizot tinham como finalidade ensinar às classes médias essa sua importante missão de construir, na França, o Estado e a civilização. O líder dos doutrinários e primeiro representante da chamada escola histórica, "quer dar uma memória às classes médias, lhes restituindo a história" [Rosanvallon, 1985:195]. A inserção da preocupação histórica como parte essencial da tarefa dos intelectuais, formou parte do clima que se seguiu na França, e na Europa em geral, à Revolução Francesa. Talvez aí radicassem as reservas com que Guizot enxergava a obra de Auguste Comte (1798-1857), dogmática demais segundo o seu ponto de vista, em boa medida por não levar em consideração, suficientemente, os fatos históricos [cf. Littré, 1868: 28]. Ao passo que os philosophes do século XVIII davam as costas ostensivamente à realidade, transformando o seu discurso numa abstração, (Tocqueville aderiria posteriormente, em L'Ancien Régime et la Révolution, a essa crítica), os doutrinários faziam questão de se definirem como homens do seu tempo, que buscavam as raízes da própria sociedade na sua história. Tarefa de evidente inspiração hegeliana, na qual Guizot, com insuperável maestria de sociólogo e filósofo, elaborou as categorias dialéticas à luz das quais passou a ser entendida a problemática social no seio do Liberalismo francês. Guizot entendia a sociedade européia numa dupla perspectiva: socio-política e cultural. Em ambos os contextos identificava a essência da realidade como fundamentalmente dialética. O hegelianismo de Guizot não provinha de uma leitura direta de parte do nosso autor das obras do filósofo alemão, mas da influência de Victor Cousin.
No terreno da história da cultura, o pensador francês considerava que a civilização européia era fruto do confronto entre dois princípios que se contrapunham dialeticamente: o da liberdade e o da ordem. O primeiro, identificado com o legado dos bárbaros, cujo élan era constituído por uma liberdade selvagem, vizinha da anarquia; o segundo princípio, identificado com a ordem imposta pelo Império Romano e pelas instituições herdadas, dele, pela Igreja. Em relação a este ponto, Guizot escrevia: "Devemos aos Germanos o sentimento enérgico da liberdade individual, da individualidade humana. Ora, num contexto de extrema grosseria e ignorância, esse sentimento é o egoísmo em toda a sua brutalidade, em toda a sua insociabilidade (....). A Europa tratava de sair desse estado (...). Restavam, aliás, grandes ruínas da civilização romana. O nome do Império, a lembrança dessa grande e gloriosa sociedade, agitavam a memória dos homens, dos senadores das vilas sobretudo, dos bispos, dos sacerdotes, de todos os que tinham a sua origem no mundo romano. Entre os bárbaros mesmos, ou entre os seus ancestrais bárbaros, muitos tinham sido testemunhas da grandeza do Império; tinham servido nas suas legiões, eles o tinham conquistado. A imagem, o nome da civilização romana impunha-se-lhes; eles sentiam a necessidade de imitá-la, de reproduzi-la, de conservar alguma coisa dela. Nova causa que os deveria puxar para fora do estado de barbárie" [Guizot, 1864: 82-83].
Esses dois princípios, o da liberdade e o da ordem, constitutivos da civilização européia, precisaram, no entanto, de uma força que os amalgamasse numa experiência histórica concreta. O pensador francês achava que essa foi a missão dos grandes homens, que apareceram providencialmente, como é o caso de Carlos Magno (742-814). Em relação a esses importantes atores da história humana, frisava Guizot: "Há homens aos quais o espetáculo da anarquia e da imobilidade social golpeia e revolta, que são sacudidos por esses fatores como se estes constituíssem um fato ilegítimo, e que são invencivelmente possuídos pela necessidade de mudar esse fato, de colocar alguma regra, algum princípio geral, regular, permanente, no mundo observado por eles. Poder terrível, amiúde tirânico, e que comete mil iniqüidades, mil erros, pois é acompanhado pela fraqueza humana; poder, no entanto, glorioso e salutar, pois ele imprime à humanidade, pela mão do homem, uma forte sacudida, um grande movimento" [Guizot, 1864: 84].
No terreno sócio-político, Guizot considerava que a realidade da Europa era constituída pela luta de classes. Nada mais alheio, para ele, à realidade política da França e da Europa, do que o sonho utopista dos que achavam que seria possível uma espécie de entropia política, como se as relações sociais pudessem ser reduzidas uni-linearmente a uma única ordem de interesses. Mas, ao mesmo tempo, o pensador francês tinha consciência de que a época era a das classes médias, as únicas capazes de dotar a França de instituições livres e estáveis, superando os excessos da revolução e do absolutismo. Ora, essas classes médias identificavam-se, na França da Restauração, com a burguesia. Esta devia acordar e despertar a sua consciência de que se tratava de uma classe chamada a garantir a unidade francesa, fazendo frente à dissolução do Terror e ao anacronismo do Absolutismo bonapartista. Eis aí, formulado claramente o conceito da consciência de classe. Sem dúvida que Karl Marx fez uso desse arcabouço conceitual (luta de classes, consciência de classe, classe habilitada para exercer o domínio na sociedade). Gueorgui Plekhanov (1856-1918), aliás, tinha destacado esse ponto, com rara probidade intelectual que reconhecia ser Marx herdeiro de um liberal-conservador na formulação dos seus conceitos sociológicos chaves. Guizot considerava-se o profeta dessa situação histórica, o pregoeiro da nova ordem de coisas, de uma política alicerçada no conceito de luta de classes, e de uma burguesia que era chamada à responsabilidade histórica, indelegável, de garantir o exercício da liberdade, mediante a criação de instituições que, salvaguardando a ordem, possibilitassem o amadurecimento da civilização européia. O pensador francês atribuía à burguesia o papel de pregoeira da Verdade histórica.
Acerca da influência de Guizot em Marx, escreve Rosanvallon [1985: 394]: "Poderá ser observada a atração exercida por Guizot sobre certos teóricos de inspiração marxista, na medida em que ele tinha sido considerado por Marx e Engels como um dos historiadores burgueses que tinham inventado a noção de luta de classes". (A respeito, Rosanvallon menciona os seguintes autores, além de Plekhanov: Robert Fossaert com o seu ensaio intitulado "La théorie des classes chez Guizot et Thierry", in: La Pensée, jan.-fev. 1955 e B. Reizou com a obra L'historiographie romantique française, 1815-1830. Moscou, s. d.). Plekhanov, aliás, na sua obra Os princípios fundamentais do marxismo, considerava que Marx descobriu a concepção materialista da história, inspirado em parte nas teorias do interesse material que movimenta as classes sociais, presentes nas obras de Guizot, Mignet e Thierry [Plekhanov, 1989: 59].
A burguesia, no sentir de Guizot, deveria garantir as instituições que alicerçassem o exercício da liberdade, mediante a organização da representação. Esta consistia, cumulativamente, na luta em prol dos interesses de classe e na tentativa de, mediante a explicitação desses interesses no terreno do discurso, dar ensejo à racionalidade social, que era fruto do entrechoque das opiniões. Desse processo dialético emergiria o conceito de representação. Esta seria considerada, quando estabelecido o domínio da burguesia mediante esse processo de explicitação, como a média da opinião. Não há dúvida de que esses conceitos entraram fundo no discurso político do século XIX, tanto na França quanto no Brasil. Só para lembrar um exemplo dessa influência, Assis Brasil [1896: 81] definia a representação como a média da opinião.
III - A influência de Guizot no Liberalismo Conservador Brasileiro do século XIX
O autor que mais diretamente recebeu a influência de Guizot foi Paulino Soares de Souza, visconde de Uruguai (1807-1866). Para ele, a elite imperial tinha uma missão fundamental: garantir a criação e o funcionamento de instituições que garantissem, no Brasil, o exercício da liberdade e o progresso da sociedade, a exemplo dos dirigentes franceses e britânicos. O terreno onde se deveria travar essa luta era, para Paulino, o do direito administrativo, já que à luz deste poderiam ser pensadas as instituições do governo, bem como os meios jurídicos e práticos que garantissem o seu funcionamento. Essa era a finalidade primordial do seu Ensaio de Direito Administrativo, publicado em 1862. A respeito, escreve Themistocles Brandão Cavalcanti: "Ali se estudam os elementos fundamentais do Direito Administrativo e principalmente a estrutura do Estado e da administração, o problema da centralização, do Poder Moderador, da administração graciosa e contenciosa, do Conselho de Estado. O conteúdo próprio das normas administrativas não estava ainda bem caracterizado e, por isso mesmo, não tinha a doutrina a merecida expansão. Afora, portanto, os elementos básicos de direito administrativo bem expostos no princípio da obra, o autor deu singular importância a duas instituições fundamentais da Política Constitucional do Império e que teriam influência preponderante no desenvolvimento do nosso direito administrativo e do nosso direito político - o Poder Moderador e o Conselho de Estado" [Cavalcanti, 1960: VII-VIII].
O trabalho não foi pura e simples elucubração teórica. Como Guizot em relação à França, Paulino considerava que deveriam ser pensadas as instituições brasileiras à luz da história e da cultura nacionais. O Ensaio é fruto do profundo conhecimento que tinha do país, amadurecido na sua participação em vários órgãos do Governo Imperial, entre 1840 e 1862. A obra foi motivada pela viagem que o visconde realizou à Inglaterra e à França, com a finalidade de estudar o funcionamento das Instituições Públicas. A respeito, Paulino escreve o seguinte testemunho: "Na viagem que ultimamente fiz à Europa não me causaram tamanha impressão os monumentos das artes e das ciências, [mas] a riqueza, força e poder material de duas grandes nações: a França e a Inglaterra, quanto os resultados práticos e palpáveis da sua administração. Os primeiros fenômenos podemos nós conhecê-los pelos escritos que deles dão larga notícia. Para conhecer e avaliar os segundos não bastam descrições. Tudo ali se move, vem e chega a ponto com ordem e regularidade, quer na administração pública, quer nos estabelecimentos organizados e dirigidos por companhias particulares. Nem o público toleraria o contrário. As relações entre a administração e os administrados são fáceis, simples, benévolas e sempre corteses. Não encontrava na imprensa, nas discussões das câmaras, nas conversações particulares essa infinidade de queixas e doestos, tão freqüentes entre nós, contra verdadeiros ou supostos erros, descuidos e injustiças da administração, e mesmo contra a justiça civil e criminal. A população tinha confiança na justiça quer administrativa, quer civil, quer criminal. E é sem dúvida por isso que a França tem podido suportar as restrições que sofre na liberdade política" [Souza, 1960: 5].
O visconde regressa da sua viagem à Europa com o firme propósito de pensar as instituições que garantissem, no Brasil, o exercício da liberdade. Esse é o seu imperativo categórico, que o distancia da pura teoria e da pura prática, e que o aproxima do ideal dos doutrinários. Eis a forma em que ele entende o seu propósito: "Convenci-me ainda mais de que se a liberdade política é essencial para a felicidade de uma nação, boas instituições administrativas apropriadas às suas circunstâncias, e convenientemente desenvolvidas não o são menos. Aquela sem estas não pode produzir bons resultados. O que tive ocasião de observar e estudar produziu uma grande revolução nas minhas idéias e modo de encarar as coisas. E se quando parti ia cansado e aborrecido das nossas lutas políticas pessoais, pouco confiado nos resultados da política que acabava de ser inaugurada, regressei ainda mais firmemente resolvido, a buscar exclusivamente no estudo do gabinete aquela ocupação do espírito, sem a qual não podem viver os que se habituaram a trazê-lo ocupado" [Souza, 1960: 5-6].
A primeira convicção que tem o visconde de Uruguai - como de resto os demais estadistas da sua época - é a de que a monarquia constitucional é o regime que melhor se adaptava às necessidades brasileiras. Essa convicção, é bem verdade, tinha sido sedimentada pela obra pioneira de Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846). Mas o interessante é que Paulino encontra no próprio Guizot um arrazoado claro e favorável à monarquia brasileira. Efetivamente, o pensador francês, na nona lição da sua Histoire de la Civilisation en Europe, tinha deixado claro que a monarquia foi, na Europa e notadamente na França, a primeira garantia de legalidade no início da modernidade, por cima da turbulenta atmosfera de particularismos em pugna. Referindo-se especificamente ao Brasil, escrevia Guizot: "Abri a obra onde M. Benjamin Constant tem representado de forma tão engenhosa a realeza como um poder neutro, um poder moderador, elevado por cima dos acidentes, das lutas da sociedade e somente intervindo nas grandes crises. Não é essa, por assim dizer, a atitude do soberano de direito no governo das coisas humanas? É necessário que haja nessa idéia algo de muito especial que chame a atenção das pessoas, pois ela passou com extraordinária rapidez dos livros aos fatos. Um soberano fez dessa idéia, na constituição do Brasil, a base mesma do seu trono; a realeza é ali representada como um poder moderador, elevado por cima dos poderes ativos, como um espectador e um juiz das lutas políticas" [Guizot, 1864: 256].
Paulino era consciente da complexidade da tarefa empreendida. Pensar as instituições do direito administrativo, era algo mais do que conceber os termos de uma Constituição Política. Implicava, também, criar os caminhos jurídicos e institucionais que permitissem a boa administração e que se enraizassem, portanto, na cultura e nos hábitos do país. É significativo dessa preocupação o texto de Guizot (tirado da obra L'Église et la Societé Chrétiennes, publicada em 1861) que serve de epígrafe à obra de Paulino, e que reza assim: "Não basta estabelecer num país eleições, câmaras e o governo parlamentar, para libertá-lo dos seus males, dar a todos os bens que lhes são prometidos e poupá-los das funestas conseqüências de todos os erros que ali se cometem. As condições do bom governo dos povos são mais complicadas; não se satisfaz a todos os interesses, não se garantem todos os direitos colocando uma constituição no lugar de um velho poder, e não se pode ter instituído em Turim um parlamento italiano sem ter fundado na Itália a liberdade" [apud Souza, 1960: folha de rosto].
Paulino Soares de Souza considerava que, no processo de construção das instituições que garantiam no Brasil o exercício da liberdade, as condições assemelhavam-se muito às da França pós-revolucionária. A experiência inglesa de self-government era mais distante. A nossa prática do municipalismo esteve sempre vinculada à garantia da legislação e das instituições por um poder central, que se soerguia por sobre o universo de particularismos e castas predispostos à privatização do poder. A prática do direito administrativo inspirou-se, no caso de Portugal e no do Brasil, na tradição francesa, centralizadora, diferente da tradição anglo-saxã, eminentemente descentralizadora.
A propósito, escreve Paulino: "O sistema francês, inteiramente diverso do anglo-saxônio, mais ou menos modificado, é o mais simples, mais metódico, mais claro e compreensivo, e o que mais facilmente pode ser adotado por um país que arrasa, de um só golpe todas as suas antigas instituições, para adotar as constitucionais ou representativas, e isto muito principalmente quando esse país larga as faixas do sistema absoluto, e abrindo pela primeira vez os olhos à luz da liberdade, está mal, ou não está de todo preparado para se governar em tudo e por tudo a si mesmo. (...) Adotados em um país, como nós adotamos, os pontos cardeais desse sistema, organizado o país segundo o seu espírito em geral, não é possível proscrevê-lo, sem adotar o contrário, e sem a completa mudança de toda a organização existente. O sistema administrativo francês concede pouco ao self government, é um e muito uniforme, preventivo e muito centralizador. Alarga muito a direção, tutela a fiscalização do Governo. Admite largamente a hierarquia. Reduz o Poder Judicial ao Civil e Criminal. (...) Este sistema é muito ligado, lógico e harmônico, e tem incontestáveis vantagens. Depois de bem montado e desenvolvido é o que apresenta melhores condições de resistência e estabilidade. (...). Cada indivíduo tem menos ingerência nos negócios públicos, porém o seu direito está mais bem resguardado e garantido do que em muitos países que se dizem livres. Bem desenvolvido e executado, como o é na França, não se dão as violências, e as injustiças flagrantes, das quais apresentam não raros exemplos países que aliás gozam de liberdade. A França não goza de uma completa liberdade política, mas não há talvez país mais bem administrado, e onde a segurança pessoal, o direito de propriedade, e a imparcialidade dos tribunais sejam melhor assegurados e garantidos" [Souza, 1960: 417].
Paulino Soares de Souza não renunciava à prática do self government. Não escondia a sua admiração por essa forma de governo, na forma em que foi belamente descrita por Tocqueville na sua Democracia na América. É explícita a admiração de Paulino pelo regime de self government que Tocqueville encontrou na América, e que ele aproxima do regime de liberdade municipal. A respeito, escreve o visconde: "Um povo, diz Tocqueville, pode sempre estabelecer Assembléias políticas, porque ordinariamente encontra no seu seio certo número de homens nos quais as luzes substituem até certo ponto a prática dos negócios... A liberdade municipal escapa, para assim dizer, aos esforços do homem. É raro que seja criada pelas leis; nasce por algum modo por si mesma. São, a ação contínua das leis e dos costumes, as circunstâncias e sobretudo o tempo, que conseguem consolidá-la. De todas as nações do continente da Europa, não há talvez uma só que a conheça. É contudo na Municipalidade que reside a força dos povos livres. As instituições municipais são para a liberdade o que as escolas primárias são para a ciência: põem a liberdade ao alcance do povo, fazem com que aprecie o seu gozo tranqüilo, e habituam-no a servir-se dela. Sem instituições municipais pode uma nação dar-se um governo livre, mas não tem o espírito da liberdade" [Souza, 1960: 405].
Mas, à semelhança de Guizot, Paulino era consciente de que a liberdade democrática requeria uma base moral, que não estava suficientemente consolidada entre nós. Para atingir o estágio da plena democracia, seria necessário primeiro educar o povo nos hábitos do respeito ao bem público e da participação na gestão responsável da res pública. A tirania é a conseqüência da construção afoita da democracia, sem as bases morais que tornam o self government uma instituição a serviço da liberdade e não do despotismo. Em relação a esse ponto, escreve o visconde: "Assim é e deve ser, ao menos a certos respeitos, naqueles afortunados países, onde o povo for homogêneo, geralmente ilustrado e moralizado, e onde a sua educação e hábitos o habilitem para se governar bem a si mesmo. Quais e quantas são as nações entre as quais se tem podido estabelecer o self government? Ide estabelecê-lo em certos lugares da Itália, entre os Lazzaroni, no México, e nas Repúblicas da América Meridional! O pobre Soberano, o povo, deixar-se-á iludir, e será vítima do primeiro ambicioso esperto (....). Nos países nos quais ainda não estão difundidos em todas as classes da sociedade aqueles hábitos de ordem e legalidade, que únicos podem colocar as liberdades públicas fora do alcance das invasões do Poder, dos caprichos da multidão, e dos botes dos ambiciosos, e que não estão portanto devidamente habilitados para o self government, é preciso começar a introduzi-lo pouco a pouco, e sujeitar esses ensaios a uma certa cautela, e a certos corretivos. Não convém proscrevê-lo, porque, em termos hábeis, tem grandes vantagens, e nem o Governo central, principalmente em países extensos e pouco povoados, pode administrar tudo. É preciso ir educando o povo, habituando-o pouco a pouco, a gerir os seus negócios" [Souza, 1960: 404-405].
Sintetizando: Paulino advogava por um direito administrativo centralizador, como o francês, que na sua aplicação, no entanto, estivesse pedagogicamente aberto à prática do self government. "Isto não tira que seja possível e muito conveniente, -- frisava o estadista do Império --, no desenvolvimento e reforma das nossas instituições administrativas, ir dando (à sociedade), (a) parte de self government que (as instituições) encerram, mais alguma expansão temperada com ajustados corretivos, habituando assim o nosso povo ao uso de uma liberdade prática, séria e tranqüila, preservando sempre o elemento monárquico da Constituição, porque, por fim de contas, é para aqueles povos que nela nasceram e foram criados, essa forma de governo, rodeada de garantias e instituições livres, a que melhor pode assegurar uma liberdade sólida, tranqüila e duradoura" [Soares, 1960: 412]. Proposta de autêntico liberalismo conservador, como a defendida pelos doutrinários, notadamente Guizot.
Na sua análise da realidade brasileira, Paulino Soares de Souza adotava como pano de fundo a perspectiva histórica proposta por Guizot. O grande problema no estudo da nossa realidade, considerava Paulino, é o fato de os estudiosos esquecerem-se da própria realidade. A propósito, escreve: "Tive muitas vezes ocasião de deplorar o desamor com que tratamos o que é nosso, deixando de estudá-lo, para somente ler superficialmente e citar coisas alheias, desprezando a experiência que transluz em opiniões e apreciações de estadistas nossos" [Souza, 1960: 8]. A perspectiva histórica identificada com o conhecimento das próprias raízes (que, como vimos no item 1, inspirou a Guizot na elaboração das soluções institucionais para a França do seu tempo), era também a perspectiva adotada por Paulino. "É preciso, frisava ele, primeiro que tudo estudar e conhecer bem as nossas instituições, e fixar bem as causas porque não funcionam, ou porque funcionam mal e imperfeitamente. Convém muito o estudo e o conhecimento todo que sobre elas pensaram os nossos homens de Estado, e o dos fatos próprios do país que podem esclarecer o assunto" [Souza, 1960: 12]. Sobre esta base histórica de conhecimento das próprias origens, ardentemente defendida por Paulino Soares de Souza e os demais estadistas do Império, alicerçar-se-ia a etapa posterior da emergência da sociologia brasileira, com Silvio Romero (1851-1914) e Oliveira Vianna (1883-1951), na adoção do método monográfico. Paulino e os restantes "homens de mil" do Segundo Reinado foram, assim, os precursores da ciência social desenvolvida pelos seguidores do "culturalismo sociológico".
De forma semelhante a como Guizot entendia a civilização ocidental como uma luta entre os princípios de liberdade e de ordem, Paulino concebia a nossa vida política como pautada por dois grandes princípios jurídicos, contrapostos mas complementares: aquele que consolidava os direitos individuais em face do Estado (chamado de direito público interno ou constitucional) e aquele que garantia o funcionamento do Estado (chamado de direito administrativo). Paulino definia o direito constitucional ou político como aquele que compreendia "aquelas matérias que constituem o chamado direito público propriamente dito" e que tem como finalidade garantir "a inviolabilidade dos direitos civis e políticos, que têm por base os direitos absolutos que derivam da mesma natureza do homem, e se reduzem a três pontos principais, a saber: liberdade, segurança individual e propriedade". Já o direito administrativo era definido por ele como "a ciência da ação e da competência do Poder Executivo, das administrações gerais e locais, e dos Conselhos Administrativos, em suas relações com os interesses ou direitos dos administrados, ou com o interesse geral do Estado" [Souza, 1960: 18-19].
O equilíbrio entre ambas as ordens do direito, a constitucional e a administrativa, exige que, do ponto de vista da legislação, não se fixem apenas os direitos dos cidadãos, mas também os seus deveres (correspondentes aos direitos da sociedade). A respeito deste atualíssimo ponto (o problema da nossa Constituição de 1988 é justamente a hipertrofia dos direitos do cidadão esquecendo os seus deveres), escrevia Paulino: "É necessário também que a legislação não se limite a estabelecer e a proteger direitos, é também preciso que fixe e defina bem as obrigações. Um dos grandes erros, observa Laferrière, da Assembléia Constituinte da França, seguido em outros países inexperientes que a tomaram por modelo, consistiu em ter protegido mais os direitos do homem do que os da sociedade, e em ter desconhecido e estabelecido com timidez a união indispensável e fundamental do direito e do dever. É agradável ter somente direitos, e os aduladores do povo fogem de falar-lhe em deveres. A legislação inglesa e americana ocupam-se especialmente em fixar os deveres" [Souza, 1960: 406-407]. Na formulação dessa dupla vertente (direitos e deveres do cidadão), Paulino alicerça-se em Guizot, fazendo referência ao seguinte texto extraído de Mémoires pour servir à l'histoire de mon Temps:
"Duas idéias constituem os dois grandes caracteres da civilização moderna e lhe imprimem o seu formidável movimento; sintetizo-os nestes termos: - há direitos universais inerentes unicamente à condição humana e que nenhum regime pode legitimamente recusar a homem nenhum; - há direitos individuais que decorrem unicamente do mérito pessoal de cada homem, sem levar em consideração as circunstâncias exteriores do nascimento, da fortuna, ou da posição social, e que todo homem que os porta em si mesmo deve ter a possibilidade de desenvolver. O respeito legal aos direitos gerais da humanidade e o livre desenvolvimento das capacidades naturais, desses dois princípios, bem ou mal entendidos, têm decorrido ao longo do último século os bens e os males, as grandes ações e os crimes, os progressos e os descaminhos que ora as revoluções, ora os governos mesmos têm feito surgir no seio das Sociedades Européias" [Souza, 1960: 448, nota 8].
Fazendo-se eco do hegelianismo soft que inspirava a Guizot, Paulino considera que os grandes atores da história não são, no século XIX, apenas os indivíduos, mas também, e de forma decisiva, as massas. Um governo que olhe apenas para a perspectiva individual, não consegue atingir o seu escopo. A nota caraterística da política moderna consiste em levar em consideração a perspectiva das massas, pois é nelas que passou a residir a força e a legitimidade dos governos.
Eis a forma em que o estadista brasileiro fundamentava o seu pensamento a respeito deste ponto: "Os seguintes profundos trechos de M. Guizot -- Des moyens de gouvernement -- explicam e completam o meu pensamento. Quando se considera o poder, não isolado e em si mesmo, mas na sua relação íntima com a sociedade, a sua ação apresenta-se sob um duplo aspecto. Ele deve tratar, de um lado, com essa massa geral de cidadãos que ele não vê, mas que o sofrem, o sentem e o julgam; de outro lado, com indivíduos que tal ou qual causa aproxima de si e que estabelecem com ele uma relação pessoal ou direta, já se trate de que eles lhe sirvam nas suas funções, ou de que ele próprio sinta necessidade de se servir de sua influência. Agir sobre as massas e agir através dos indivíduos, é isso que se chama governar. Dessas duas partes do governo, o poder é inclinado a negligenciar a primeira. Fraco e pressionado, é absorvido pelo trabalho de tratar com os indivíduos. Nada mais comum do que vê-lo esquecer que há um povo no qual vai terminar parando tudo quanto ele faz. Dos erros do poder, esse é sobre tudo o mais fatal, pois é nas massas, no povo mesmo que ele deve encontrar a sua força principal, os principais meios de governo. O público, a nação, o país, é lá que reside a força, lá que é possível consegui-la. Tratar com as massas, essa é a grande mola do poder. Em seguida vem a arte de tratar com os indivíduos; arte necessária, mas que, sozinha, de nada vale e produz pouco efeito" [apud Souza, 1960: 502-503].
IV - A ética pública de Guizot e de Paulino Soares de Souza
Não são poucas as novidades que nos apresentam Guizot e os doutrinários, no seu arrazoado acerca das condições históricas da França de meados do século XIX. Da mesma forma, são muitas as lições de ciência política que podemos tirar da leitura do Ensaio sobre o Direito Administrativo de Paulino Soares de Souza. Gostaria de terminar estas reflexões destacando um ponto que me parece essencial no pensamento de ambos os autores: o seu conceito de ética pública. Quatro aspectos podem ser assinalados (tanto em Guizot como em Paulino):
Em primeiro lugar, o imperativo categórico do governante consiste em transformar as instituições do seu país, para garantir aos seus concidadãos, de maneira eficaz, o exercício da liberdade, no contexto do estudo diuturno das tradições históricas da nação.
Em segundo lugar, é necessário que o governante, na sua ação, não se perca na perspectiva individual, mas que enxergue sempre e sem vacilação o fundo que constitui a essência da legitimidade política: a vontade das massas. O folclore político resumiu esse ideal no princípio de "ouvir o clamor das ruas".
Em terceiro lugar, cabe ao governante o compromisso pedagógico de formar, mediante a educação cívica, a consciência do bem público nos seus governados, de forma que eles não reivindiquem apenas os seus direitos, mas que acordem, também, para os seus deveres. No sentir de Guizot, essa tarefa traduzia-se em acordar nas classes médias a consciência da sua responsabilidade histórica. Algo semelhante pensava o visconde de Uruguai: tratava-se de formar, a partir de um eleitorado censitário, um núcleo disciplinado ao redor da idéia de nação e sensível às demandas do bem público.
Em quarto lugar, não há na caminhada histórica da sociedade um final utópico, em que todas as contradições sejam resolvidas. O processo de luta de classes permanecerá como caraterística essencial à vida política. O que Guizot e Paulino destacam é que essa luta pode ser civilizada pelo debate parlamentar e pela prática, cada vez mais aperfeiçoada, da representação. Aqui radica a diferença fundamental entre liberais e socialistas. Estes últimos terminaram acreditando no "fim utópico da história", na conquista de um paraíso em que desaparecesse a luta pela defesa dos próprios interesses.
Muitas coisas poderíamos escrever acerca da tremenda atualidade da ética pública apresentada por Guizot e adotada por Paulino Soares de Souza. Reste apenas, expressar o nosso sentimento de admiração face a esses grandes pensadores-estadistas, que conseguiram encarnar o princípio da moral de responsabilidade no momento histórico em que viveram.
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