Voltar

GETÚLIO VARGAS E O CONSERVADORISMO REPUBLICANO

GETÚLIO VARGAS E O CONSERVADORISMO REPUBLICANO

JÚLIO PRATES DE CASTILHOS (1860-1903), O

Na noite de 25 de outubro de 2021 participei de animada Live com os seguidores do historiador e amigo Alex Catharino (1974-), através do Instagram. Na sessão, coordenada por Alex, foram desenvolvidos cinco pontos relacionados ao tema geral: “Getúlio Vargas e o conservadorismo republicano”: 1 – Rápida caracterização do caráter ideológico dominante na Propaganda Republicana: o rousseaunianismo. 2 – A doutrina do Castilhismo. 3 – Cinco etapas do Positivismo. 4 – A essência do Varguismo. 5 – A contribuição de Oliveira Vianna e a perspectiva do conservadorismo.

Desenvolverei, a seguir, os itens mencionados.

1 – Rápida caracterização do caráter ideológico dominante da Propaganda Republicana: o rousseaunianismo.

A primeira questão colocada pelo coordenador da Live foi a seguinte: “Qual foi o modelo ideológico que prevaleceu na Propaganda Republicana?” Respondi dizendo que não duvidava de que o essencial da Propaganda Republicana tinha consistido no rousseaunianismo, ideologia que, via de regra, inspirou os Manifestos Republicanos.

Lembrei os pontos fundamentais levantados por mim na obra, de minha lavra, intitulada: A Propaganda Republicana [cf. Vélez, 1994]. Ali destaco que, na América Latina, encontramos dois modelos políticos que foram colocados em prática no decorrer do século XIX, ao ensejo das lutas de Independência: o contratualista, de inspiração liberal, na trilha dos ensinamentos de John Locke (1632-1704) e o absolutista, baseado no pensamento de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), que inspirou a Revolução Francesa e que foi copiado, na América Latina, pelos seguidores jacobinos do Liberalismo Francês, notadamente pelo Libertador Simón Bolívar (1783-1830), que foi formado pelo seu tutor, Simón Rodríguez (1769-1854), na filosofia rousseauniana.

O essencial de Rousseau, lembrei, encontra-se na sua obra intitulada: Do Contrato Social (1762) cuja tese central consistia em afirmar que, em política, na formatação do Estado moderno, só havia uma alternativa: a imposição, por parte do Legislador e dos seus colaboradores, os Puros, da unanimidade ao redor de uma concepção unilinear do poder, que excluía os interesses individuais e eliminava o dissenso, só ficando aberta a porta para a aceitação total da vontade indiscutível do novo “Rei Filósofo”, o Magistrado moralizador que imporia o reinado absoluto da virtude republicana. Tal modelo consiste na essência do que, no século vinte, viria a ser o totalitarismo, que se caracteriza justamente pelo monolitismo que exige adesão total à vontade do Líder, com exclusão, mediante o aniquilamento pela polícia terrorista, dos interesses individuais e do dissenso, como foi suficientemente explicado por Hannah Arendt (1906-1975) no seu clássico livro: As origens do totalitarismo (1951).

Ora, Simón Bolívar foi formado no mais rigoroso rousseaunianismo, que terminou inviabilizando o seu modelo de uma República da Virtude, totalmente entregue ao interesse público com exclusão dos interesses particulares. Nisso consistiu o “labirinto” que terminou sufocando o modelo bolivariano, segundo revelou o Prêmio Nobel colombiano García Márquez (1927-2014), na pesquisa dedicada por ele aos últimos meses de vida do Libertador, que morreu amargurado porque o seu Reino da Virtude não se tornou realidade. Quando os médicos franceses que cuidavam do heroico doente, em Santa Marta, na Colômbia, lembraram a ele que, além de Rousseau, a França tinha também liberais moderados da talha de Benjamin Constant de Rebecque (1769-1830), o ilustre doente, num acesso de cólera, os increpou dizendo: “Por favor, carajos, déjennos hacer tranquilos nuestra Edad Media!” [García Márquez, 1989: 130]. Lembro, a propósito, a marchinha popular que era entoada pelos cantos das cinco repúblicas bolivarianas, ao ensejo das inumeráveis guerras civis que pragaram como erva daninha o universo hispano-americano: “Bolívar venció a los godos / Mas, desde ese infausto día / Por un tirano que había / Se hicieron tiranos todos!”. Nem imaginavam os seguidores do Libertador que, no século XX, a República Bolivariana da Venezuela despontaria como o novo paraíso do rousseaunianismo.

O rousseaunianismo foi, também, a característica marcante dos nossos Manifestos Republicanos, que abarcaram todo o século XIX, desde 1817 até 1888. O ideal da unanimidade constitui um leit-motiv da política, como uma espécie de volta à tranquila indiferenciação do seio materno. Esse sentimento de busca de identidade no útero primordial é tão antiga quanto a Humanidade. Recordemos que já as antigas civilizações Súmero Babilônicas, berço longínquo da Civilização, tinham cunhado o termo “Amargi”, sinônimo de Liberdade, entendida como “volta ao seio materno”. Essa palavra, aliás, escrita em caracteres cuneiformes, terminou sendo resgatada pelos arqueólogos no século XX, nas descobertas realizadas nas bibliotecas mesopotâmicas, notadamente a de Nínive e hoje serve como monograma do Liberty Fund.

O ideal da unanimidade rousseauniana criada ao redor da ciência moderna aparece já nos primeiros Manifestos (de 1817 e de 1824), como o de frei Caneca (1774-1825), no qual o frade se torna tributário do ideário pombalino da unanimidade iluminista ao redor do trono esclarecido. A respeito, frisava o frade revolucionário: “Pela geometria conhecemos evidentemente a existência do Supremo Arquiteto do Universo; pela geometria admiramos a sua infinita sabedoria no sistema da criação e a sua providência no andamento regular da natureza; pela geometria domamos a fúria do oceano, dirigimos a força dos euros, penetramos os abismos, e subimos aos astros; ajustamos os impulsos do nosso coração com os ditames da reta razão; proporcionamos os trabalhos às nossas forças, os remédios às moléstias, as penas aos delitos, os prêmios às virtudes; pela geometria equilibramos os movimentos das grandes massas das nações, regularizamos o valor dos povos e o seu entusiasmo. Todas as coisas em que não entram a régua e o compasso da geometria são desregradas e descompassadas, são monstruosas. Por falta de geometria é que o nosso governo, não conhecendo a gravidade específica dos negócios civis nem a relação deles entre si, não sabe equilibrar as forças dos diversos agentes sociais, desencaixa de seus lugares as molas da sociedade, vai quebra-las e reduzir tudo a poeira” [Frei Caneca apud Vélez, 1994: 38-39].

2 – A doutrina do Castilhismo.

A respeito dessa doutrina, frisou o coordenador da Live, Alex Catharino: “Um dos principais líderes do positivismo, o gaúcho Júlio de Castilhos (1860-1903) desenvolveu, tanto no plano teórico quanto no governo do Estado do Rio Grande do Sul, a chamada doutrina do castilhismo, que deixou um legado nefasto na política nacional”. Na primeira edição do meu livro intitulado: Castilhismo, uma filosofia da República [cf. Vélez, 1980], sintetizei da seguinte forma o cerne do Castilhismo: “A fim de conseguir a moralização da sociedade, segundo a mentalidade castilhista, o governante deve exercer a tutela social, para que (aquela) se amolde à procura do bem público, na acepção de Castilhos. Tanto ele como os seus seguidores elaboraram os mecanismos constitucionais e legais adaptados à instauração da tutela moralizadora do Estado sobre a sociedade. No caso de Castilhos e Borges de Medeiros (1863-1961), tal empenho se refere ao Rio Grande do Sul, enquanto no caso de Pinheiro Machado (1851-1915) e Getúlio Vargas (1883-1954) amplia-se a nível nacional” [Vélez, 1980: 10].

O caráter tutelar e hegemônico do Estado castilhista leva os representantes desta corrente a rejeitar todo tipo de governo representativo como essencialmente anárquico. Ao supor que a racionalidade social não se encarna na projeção da razão individual, concretizada num órgão representativo de governo onde se estabeleça o consenso entre os indivíduos, como entendia o liberalismo, mas na obra moralizadora de um Estado autocrático, o Castilhismo se sitúa ao lado das múltiplas reações conservadoras que, a partir da Revolução Francesa, condenavam as conquistas da Ilustração, no que respeita ao papel atribuído à razão individual. E ao propugnar por uma sociedade moralizadora em torno a ideias, recusando o regime de negociações entre interesses individuais alcançado pelo sistema liberal, o Castilhismo buscava uma volta à sociedade feudal, na qual o móvel inspirador dos cidadãos era a procura da virtude. Nessa rejeição à razão individual, como no desprezo pelo interesse individual e material, reside o caráter conservador do Castilhismo [cf. Vélez, 1980: 10].

Do ponto de vista do estudo da história das ideias, o Castilhismo não foi, propriamente, uma doutrina acabada, alicerçada em princípios abstratos. Foi mais um modo de agir em função de uma finalidade moralizante e tutelar do Estado sobre a sociedade. A propósito deste aspecto, frisei na Introdução à minha obra citada acima: “Castilhos não foi um teórico da política. Foi mais um político. E um político que deu início a um modus agendi e a uma conceituação muito pessoais sobre o exercício do poder. Teve, é certo, uma agitada vida jornalística e escreveu a Constituição do Rio Grande do Sul, ali vigente durante três décadas. Porém, tanto os seus escritos polêmicos na imprensa, como a Constituição de 14 de julho de 1891 e toda a sua obra legislativa em geral são insuficientes em si mesmos, se não os projetarmos sobre o contexto de sua ação política. (...). As peculiaridades do autoritarismo castilhista não podem ser explicadas através de simples referências à filosofia de Augusto Comte (1798-1857). Castilhos inspirou-se nele, mas deu ao seu conceito de política traços inéditos, fruto da sua personalidade e das condições concretas que viveu o Partido Republicano Histórico, na luta contra a antiga elite dirigente sul-riograndense” [Vélez, 1980: 11].

3 – Cinco etapas e quatro manifestações do Positivismo.

Alex Catharino analisou, na Live, as cinco etapas cientificistas percorridas pelo Positivismo no pensamento brasileiro, segundo Antônio Paim (1927-2021), no seu livro intitulado: A escola cientificista brasileira. A primeira etapa ocorreu no Império, “(...) com a adesão da elite técnica aos postulados de Augusto Comte (1798-1857), criador do positivismo, divulgados por Miguel Lemos (1854-1917) e Raimundo Teixeira Mendes (1855-1927), os principais expoentes do Apostolado Positivista, e por Benjamin Constant Botelho de Magalhães (1836-1891), o fundador da República. O segundo momento é a derrota do Apostolado Positivista no início do período republicano, devido à atuação de Rui Barbosa (1849-1923), que impediu a implementação de uma ditadura republicana em nosso país. Na terceira fase temos a ação política de Júlio de Castilhos o qual, diante do fracasso da investida do Apostolado Positivista na esfera nacional durante a Assembleia Constituinte, formulou no plano local as bases teóricas do Castilhismo. A quarta etapa foi a reelaboração do Castilhismo por Getúlio Vargas (1883-1954), que transportou-o para todo o país, ao fazer uma adaptação da doutrina às demandas do período. Por fim, aparece a versão positivista do marxismo, elaborada por Leônidas de Rezende (1889-1950) e João Cruz Costa (1904-1978), segundo a qual muitas das teses que atualmente circulam com o rótulo de ‘marxistas’, na verdade provêm do arsenal positivista. No livro: O presidencialismo no Brasil, o historiador João Camillo de Oliveira Torres (1915-1973) explicou os governos entre 1914 e 1930 como uma ‘dança sobre o abismo’, na qual era visível a antiga imagem de ‘os cegos conduzindo cegos’. O remédio para as mazelas da Velha República acabou sendo muito pior, visto que colocou no poder, entre os anos de 1930 e 1945, o ditador Getúlio Vargas”.

O Positivismo, na sua longa caminhada na cultura brasileira, concretizou-se, a meu modo de ver, em quatro grandes manifestações: a ortodoxa, a ilustrada, a política e a militar. A corrente ortodoxa teve como principais representantes a Miguel Lemos e Teixeira Mendes, os quais fundaram, em 1881, a Igreja Positivista Brasileira, com o propósito de fomentar a “Religião da Humanidade” criada por Augusto Comte e apresentada por ele no seu Catecismo Positivista (1846). A corrente ilustrada teve como principais representantes a Luís Pereira Barreto (1840-1923), Alberto Sales (1857-1904), Pedro Lessa (1859-1921) e Ivan Lins Monteiro de Barros (1904-1975). Esta corrente defendia o plano proposto por Comte na primeira parte da sua obra, até 1845, e se resumia no seguinte: o Positivismo constitui a última etapa (científica) da evolução do espírito humano. Tendo percorrido as etapas teológica e metafísica, o espírito humano deveria ser educado na ciência positiva, a fim de dar ensejo à verdadeira ordem social alicerçada na ciência. A corrente política teve como maior expoente a Júlio de Castilhos (1860-1903), que, em 1891, redigiu a Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, segundo a qual o poder era exercido exclusivamente pelo Executivo, tendo sido reduzido o Legislativo a mera câmara orçamentária. O Estado forte, segundo Castilhos, imporia coercitivamente a ordem social e política, a fim de, ulteriormente, educar o cidadão na mentalidade cientificista. Esta corrente ganhou maior repercussão e influência do que as demais, devido a que obedeceu à tendência cientificista que tinha acompanhado as reformas educacionais do Marquês de Pombal, Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782). Este modelo consolidou-se, no plano nacional, com a ditadura de Getúlio Vargas. A corrente militar positivista teve como principal representante a Benjamin Constant Botelho de Magalhães, professor da Academia Militar e um dos chefes do movimento castrense que derrubou a Monarquia em 1889. Esta corrente estruturou-se paralelamente à Ilustrada, projetando, ao longo do final do século XIX e durante a centúria seguinte, os ideais cientificistas [cf. Vélez, 1985: 282-283].

4 – A essência do Varguismo.

Destaquemos, de entrada, que Getúlio Vargas realizou uma síntese entre o positivismo comteano e o saint-simonismo, em decorrência do fato de ter sido influenciado, além de Comte e Castilhos, pelo filósofo Claude-Henri de Rouvrai, conde de Saint Simon (1760-1825), com cujo pensamento Getúlio se familiarizou através da obra literária de Émile Zola (1840-1902). Saint-Simon, que tinha influenciado Comte e cujo secretário este último foi até 1820, considerava que a etapa superior do cientificismo era constituída pelo estudo da evolução. O pensamento saint-simoniano tinha elaborado, assim, uma visão orgânica do cosmo e da sociedade, que conferia às análises sociológicas uma maior flexibilidade do que a fornecida pela “física social” comteana.

Jacob Leib Talmon (1916-1980) fez uma completa caracterização do messianismo libertador saint-simoniano na sua clássica obra intitulada: Messianismo Político [Talmon, 1969]. A influência de Saint-Simon, do ponto de vista político, teve ampla repercussão em autores tão variados quanto Augusto Comte, Jules Michelet (1798-1874), Giuseppe Mazzini (1805-1872) e Karl Marx (1818-1883).

Um profundo sentimento apocalíptico empolgava ao conde Claude-Henri de Saint-Simon, que apregoava o nascimento de uma religião universal, a qual imporia a organização pacífica da sociedade. Eis um trecho que revela claramente tal sentimento: “Isto é o que dissemos sem dilação: os dias das soluções incompletas chegaram ao fim. É necessário dirigir-se resolutamente em direção ao bem geral. É a verdade na sua totalidade o que deve ser salientado perante as circunstâncias atuais: é chegado o momento da crise. Essa crise profetizada por muitos dos textos do Antigo Testamento e para a qual, durante muitos anos, têm-se preparado as sociedades bíblicas, é a crise cuja existência acaba de demonstrar a instituição da Santa Aliança, união fundada nos mais generosos princípios da moralidade e da religião. Esta é a crise que os judeus esperaram desde quando, expulsos do seu país, têm andado errantes, vítimas de perseguições, sem jamais renunciar à esperança de ver o dia em que os homens conviveriam como irmãos. Finalmente, essa crise tende diretamente ao estabelecimento de uma religião autenticamente universal e a impor a todos uma organização pacífica da sociedade” [apud Talmon, 1969: 21].

Saint Simon encarava, dessa forma, autenticamente messiânica, a crise sofrida pela sociedade francesa após a Revolução de 1789. Diante da desagregação ensejada pelo Jacobinismo e o Terror, o filósofo apresentava-se como peça-chave para a redenção, não somente da França, mas de toda a Humanidade. A respeito, escreve Talmon. “Estava convencido de ser um Napoleão (1769-1821) da ciência e da indústria pela promessa que lhe fez Carlomagno (748-814), durante um sonho que teve quando esteve preso na cadeia de Luxemburgo em 1774, de que conseguiria tanta glória como filósofo, quanto o seu famoso antecessor tinha alcançado nas artes da guerra e do governo (...)” [Talmon, 1969: 22-23].

O conde Saint-Simon assistiu passivamente à Revolução Francesa como observador arguto, em que pese o fato de ter sido eleito, em 1790, como presidente da Assembleia Eleitoral da sua comuna, o que motivou a renúncia ao título de nobreza. Anos atrás, o jovem nobre tinha participado como voluntário do exército que, sob o comando do general Lafayette (1757-1834), ajudou os revolucionários americanos a proclamar a independência das treze colónias, em 1776. A Revolução Francesa não foi, no sentir de Saint- Simon, uma révolution régéneratrice, mas um espetáculo de destruição, de inútil debate e de desordem social. Frisava a respeito dessa situação crítica: “É a falta de ideias gerais o que nos tem levado à ruína; não poderemos renascer autenticamente senão com a ajuda de ideias gerais; as velhas ideias caíram (...) e já não é possível rejuvenesce-las. Precisamos de ideias novas (...), um sistema, quer dizer, uma forma de opinião que seja, por natureza, cortante, absoluta e exclusiva” [Apud Talmon, 1969: 26].

Ao passo que Saint-Simon desconhecia o valor de heróis aos protagonistas da História da França, considerava, pelo contrário, que Napoleão Bonaparte encarnava esse valor, não por ter sido militar ou conquistador, mas pelo fato de ter-se firmado como “o chefe científico da Humanidade (...) e a sua cabeça política” [apud Talmon, 1969: 26], tendo legislado alicerçado em princípios racionais. Saint-Simon preocupou-se por achar um princípio total que permitisse a explicação racional do universo. Nessa busca, inspirado nas descobertas de Pierre Simon de Laplace (1749-1827) no terreno da física e da astronomia, terminou professando uma visão determinística do homem, que Talmon caracterizou assim: “(...) O homem é como um pequeno relógio dentro de outro maior, o universo, do qual recebe a energia para movimentar-se. Saint-Simon sonhava com deduzir passo a passo as leis determinantes do universo em ordem de sucessão (...) para, no final, chegar às leis da organização social mediante a reconstrução prévia da interdependência do orgânico e do inorgânico, dos corpos fixos e dos fluidos, da matéria e do movimento” [Talmon, 1969: 26-27]. Nesse contexto, a sociedade é concebida como “verdadeira máquina organizada” ou como um “organismo” que, ao longo dos tempos, criou os seus próprios órgãos para se adaptar às diferentes situações. A unidade inteligível da História não é nem o Estado, nem a Nação, mas a sociedade organicamente considerada. As suas forças e processos não são criação deliberada de ninguém, mas frutos do organismo social.

A reconstituição do Estado francês sob Napoleão Bonaparte, ao longo do Consulado e do Império, entre (1799-1815) foi o modelo sobre o qual Saint-Simon construiu a sua concepção política. Tudo estaria inserido dentro de um “sistema” em que o Centro seria o Primeiro Cônsul Vitalício e, depois, o Imperador dos Franceses, à maneira como Pierre Simon de Laplace tinha entendido o Sistema Solar. Esse sistema era orgânico, no sentido de que se consolidaria como evoluem os organismos vivos, tudo integrado dinamicamente no Cosmo, que é um grande organismo. Essa era a concepção que animava ao próprio Bonaparte, como se depreende do estudo da sua vida e da vasta bibliografia que cobre a sua gestão de dezesseis anos à frente do Estado.

Getúlio adaptou o positivismo castilhista a essa visão orgânica. Para ele, era válido o princípio de o Organismo Social se transformar como os seres vivos, numa metamorfose permanente para sobreviver às exigências do meio. De outro lado, contrapondo-se à rigidez matemática castilhista, Vargas adotou uma estratégia de avanços e recuos, para conseguir melhor se amoldar às mutantes exigências da vida. O próprio líder gaúcho se auto definia como uma “metamorfose ambulante”. Getúlio terminou assumindo também, à maneira saint-simoniana, o componente messiânico. A sua Carta-Testamento constitui prova insofismável dessa vertente de messianismo organicista. Os próprios dizeres de Getúlio traduzem essa singular concepção vital: no seu primeiro discurso na Câmara dos Deputados, no Rio de Janeiro, em 1923, dizia, emocionado: “Sinto-me, aqui, uma célula sangrante desgarrada do organismo rio-grandense”. Aos seus colaboradores aconselhava: “Não fazer inimigos que não se possa converter em amigos”; “Deixar como está para ver como é que fica”, etc.

O princípio fundamental da gestão getuliana foi este, a partir da Revolução de 30: “Equacionamento técnico dos problemas” [cf. Vélez, 1982: 32 ss]. Chega de assembleias políticas, tipicamente inorgânicas e anárquicas. Estas devem ser substituídas pelos Conselhos Técnicos Integrados à Administração. Era válido, para Getúlio, discutir essa feição desapaixonada de fazer política. A Segunda Geração Castilhista, entre 1930 e 1945, sob o rigoroso controle de Getúlio, encarregou-se de desenhar a estrutura orgânica e racional de todo o sistema político. O Sindicalismo deveria ter a feição de um organismo equilibrado e harmônico. Havia um órgão de debate: a Revista Cultura Política, publicada no Rio de Janeiro e dirigida por Almir Bomfim de Andrade (1911-1991), na qual este jornalista anunciou uma das finalidades cívicas da publicação oficial do Estado Novo: “Daremos ao mundo o homem cordial” [cf. Vélez, 1983: passim, e 2000: 229-246].

5 – A contribuição de Oliveira Vianna e a perspectiva do conservadorismo.

Já na parte final da Live, Alex Catharino frisou, referindo-se à influência recebida de Getúlio a partir do pensamento do sociólogo fluminense Francisco José de Oliveira Vianna (1883-1951), cuja obra: Populações Meridionais do Brasil Getúlio teve oportunidade de ler na sua primeira edição, quando, em 1923, foi desempenhar as funções de líder da bancada gaúcha na Câmara dos Deputados, no Rio de Janeiro. A abordagem monográfica da problemática brasileira realizada por Oliveira Vianna deu a chave interpretativa de que Getúlio carecia para entender a problemática política da República Velha. O grande problema a enfrentar era a desintegração nacional por conta do “complexo de clã” vivido pelas lideranças brasileiras, desde o nascedouro das nossas instituições. O Império, no século XIX, conseguiu contornar esse problema, no regime de centralização política e descentralização administrativa que Dom Pedro II (1825-1891) e os estadistas do Segundo Reinado colocaram em funcionamento. Findo o Império, contudo, as velhas forças centrífugas do particularismo e do Complexo de Clã, colocaram novamente em risco a nossa unidade como nação e o funcionamento das instituições políticas, sugadas pela voragem clientelista. Oliveira Vianna, em Populações Meridionais do Brasil dava a dica de como sair do imbróglio: era necessário consolidar um forte ponto de união nacional ao redor do Executivo, dotado de um poder técnico inquestionável e decidido, que restabelecesse a unidade perdida e equacionasse, com desassombro, os problemas nacionais, notadamente a questão da integração do país, nos terrenos político, cultural, administrativo e da infraestrutura.

Traduzindo a hipótese de Oliveira Vianna na tipologia weberiana do Estado Patrimonial, na minha obra intitulada: Oliveira Vianna e o papel modernizador do Estado brasileiro, destaco que o citado autor identificou nos clãs a base social do Estado patrimonial brasileiro. Os clãs são a projeção, no espaço territorial, do patrimonialismo tradicional. Confluem os seus interesses e os da burocracia estatal. Na luta que se travou pela posse do poder, após a Independência, emerge um grupo modernizador que se atribui um projeto distinto do tradicional e busca colocar a centralização a serviço desse projeto, preservando as liberdades e a prática do governo representativo, à luz do liberalismo de Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846), inspirado em John Locke (1632-1704) e nos doutrinários franceses, notadamente em Benjamin Constant de Rebecque (1767-1830) [cf. Vélez, 1997: 49-63; Paim, 1994: 115-149].

Com a República Velha, a vertente modernizadora do Estado patrimonial é esmagada, passando o Centro a girar paulatinamente na órbita dos interesses dos clãs. Sob Vargas, reaparece no seio do Estado o elemento modernizador, mas excluindo a representação, fato que torna essa solução de cunho autoritário e ancorada numa visão cientificista [cf. Vélez, 1997: 15; 2017: 40-58]; esta concepção terminou influindo no ciclo dos governos militares, tendo dado ensejo, segundo o general Golbery do Couto e Silva (1911-1987), a uma solução de “autoritarismo instrumental”, segundo a qual, no processo de democratização permanece, sobranceiro aos partidos e à sociedade, um núcleo tecnocrático, centrado no Poder Executivo, capaz de gerir o confronto social a partir de uma posição de intervenção e comando sobre o panorama político [cf. Golbery, 1981: 3-37].

A tipologia sociológica do “autoritarismo instrumental” tinha sido sugerida por Oliveira Vianna em 1949, na sua obra intitulada: Instituições Políticas Brasileiras (Volume I, Capítulo XI), como praxe a ser adotada pelo Estado Tecnocrático e Modernizador, a fim de fazer prevalecer um governo que coadunasse a unidade nacional com os anseios democráticos e do desenvolvimento [cf. Vianna, 1949, I]. A mencionada tipologia foi desenvolvida teoricamente por Wanderley-Guilherme dos Santos (1935-2019) nas suas obras: Ordem burguesa e liberalismo político e Poder e política: crônica do autoritarismo brasileiro, ambas de 1978 [cf. Santos, 1978a : 31 ss; Santos, 1978b: 172-173]. A respeito da tipologia do “autoritarismo instrumental” frisa Wanderley-Guilherme: “O liberalismo político seria impossível na ausência de uma sociedade liberal e a edificação de uma sociedade liberal requer um Estado suficientemente forte para romper os elos da sociedade familística. O autoritarismo seria, assim, instrumental para criar as condições sociais, que tornariam o liberalismo político viável. Esta análise foi aceita, e seguida, por número relativamente grande de políticos e analistas que, depois da Revolução de 1930, lutaram pelo estabelecimento de um governo forte como forma de destruir as bases na antiga sociedade não liberal” [Santos, 1978b: 171-172].

Simon Schwartzman (1939-), por sua vez, reconheceu que, no contexto de autoritarismo instrumental, ao longo da República Velha, deu-se um tipo parcial de representação, num Congresso controlado com mão forte pelas oligarquias regionais. Já no Estado getuliano, segundo Schwartzman, a representação passou a segundo plano, dificultando assim a participação da sociedade na gestão dos negócios públicos [cf. Schwartzman, 1982, passim].

A versão getuliana do conservadorismo é, assim, de cunho definidamente estatizante e contrasta com uma concepção moderna de conservadorismo, consentânea com a representação de interesses e com a efetivação de programas modernizadores da economia e da sociedade em geral. O getulismo careceu de abertura para que este tipo de conservadorismo amadurecesse. O conservadorismo getuliano preservou, assim, o velho caráter estatizante de que tinha sido revestido por Júlio de Castilhos.

BIBLIOGRAFIA

GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel [1989]. El general en su laberinto, 1ª edição, Bogotá: La Oveja Negra, 284 pp.

PAIM, Antônio [1994]. A querela do estatismo – A natureza dos sistemas econômicos: o caso brasileiro. 2ª edição corrigida e acrescida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. Coleção “Biblioteca Tempo Universitário”, volume 52.

PAIM, Antônio [2002]. A Escola Cientificista Brasileira. Londrina: Edições CEFIL, 168 pp.

SAINT-SIMON, Claude-Henri de [1965]. La physiologie sociale - Oeuvres Choisies. (Introdução de G. Gurvithc). Paris: PUF.

SAINT-SIMON, Claude-Henri de [1969]. Le nouveau Christianisme. (Introdução de H. Desroche). Paris: Seuil.

SANTOS, Wanderley-Guilherme dos [1978a]. Ordem burguesa e liberalismo político. São Paulo: Duas Cidades, 172 pp.

SANTOS, Wanderley-Guilherme dos [1978b]. Poder e política: crônica do autoritarismo brasileiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 212 pp.

SCHWARTZMAN, Simon [1975]. São Paulo e o Estado Nacional. São Paulo: DIFEL, 190 pp.

SCHWARTZMAN, Simon [1982]. Bases do autoritarismo brasileiro. 1ª edição. Rio de Janeiro: Campus.

SILVA, Golbery do Couto e, general [1981]. Conjuntura política nacional: o Poder Executivo e Geopolítica do Brasil. 2ª edição. Rio de Janeiro: José Olympio. Coleção “Documentos Brasileiros”, nº 190.

TALMON, Jacob Leib [1956]. Los orígenes de la democracia totalitaria. (Tradução ao espanhol de M. Cardenal Iracheta). México: Aguilar.

TALMON, Jacob Leib [1969]. Mesianismo político, la etapa romántica. (Tradução ao espanhol de A. Gobernado). México: Aguilar.

VÉLEZ Rodríguez, Ricardo [1980]. Castilhismo: uma filosofia da República. 1ª Edição. Porto Alegre: EST / Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 160 pp.

VÉLEZ Rodríguez, Ricardo (organizador) [1982]. Aliança Liberal – Documentos da Campanha Presidencial. (Introdução de R. Vélez Rodríguez). Brasília: Câmara dos Deputados / Centro de Documentação e Informação. Coleção “Biblioteca do Pensamento Político Republicano” nº 13.

VÉLEZ Rodríguez, Ricardo (organizador) [1983]. Cultura Política e o Estado Autoritário. Introdução de R. Vélez Rodríguez; apresentação do deputado Flávio Marcílio). Brasília: Câmara dos Deputados / Centro de Documentação e Informação. Coleção “Biblioteca do Pensamento Político Republicano”, nº 21.

VÉLEZ Rodríguez, Ricardo [1985]. “La historia del pensamiento filosófico brasileño (siglos XVII a XIX): problemas y corrientes”. Inter-American Review of Bibliography. Washington: Organização dos Estados Americanos, volume XXXV (nº 3), 1985: pp. 279-288].

VÉLEZ Rodríguez, Ricardo [1994]. A Propaganda Republicana. 2ª edição. Rio de Janeiro: Editoria Central da Universidade Gama Filho, Coleção “Pensamento Político Brasileiro” - 13 volumes, vol. 4, 106 pp.

VÉLEZ Rodríguez, Ricardo [1997]. Oliveira Vianna e o papel modernizador do Estado brasileiro. (Apresentação de Antônio Paim). Londrina: Editora da UEL, 239 pp.

VÉLEZ Rodríguez, Ricardo [2000]. Castilhismo, uma filosofia da República. (Apresentação de Antônio Paim). 2ª edição corrigida e acrescida. Brasília: Senado Federal / Conselho Editorial. Coleção “Brasil 500 anos”.

VÉLEZ Rodríguez, Ricardo [2015]. A grande mentira: Lula e o patrimonialismo petista. Campinas: VIDE Editorial.

VÉLEZ Rodríguez, Ricardo [2017]. Patrimonialismo e a realidade latino-americana. 2ª edição corrigida e aumentada. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora - BIBLIEX, 103 pp. “Biblioteca do Exército – Coleção Avulsa, nº 945”.

VIANNA, Francisco José de Oliveira [1920]. Populações meridionais do Brasil, volume I: Populações rurais do centro-sul. 1ª edição. Rio de Janeiro: José Olympio.

VIANNA, Francisco José de Oliveira [1949]. Instituições políticas brasileiras – O povo e o governo. 1ª edição. Rio de Janeiro: José Olympio. 2 volumes.