Se é para dar nome à estrovenga patrimonialista que nos assoberba, diria com Arnaldo Süssekind (1917-2012) que se trata de um esquema de dominação fascista-leninista. Digo “fascista”, porque é corporativista, de cima abaixo, o espírito estamental que se espraiou pela sociedade e o Estado como metástase vertiginosa, já desde o período getuliano que sagrou tal condição na “Polaca”, a Constituição de inspiração fascista do Estado Novo em 37. Diria que a estrovenga é também “leninista”, porque empacotou os organismos sindicais na figura do “Sindicato Único”, posto em prática por Lenine (1870-1924) na Rússia após a Revolução de Outubro de 1918 e copiado na legislação trabalhista do getulismo após a Revolução de 30. O que Lula fez já desde o seu primeiro governo em 2003 foi privilegiar, à maneira getuliana, a infraestrutura sindical como chão firme da lambança petista, que no Mensalão e no Petrolão aliviou os cofres da União via empréstimos “democráticos” do BNDES em benefício de amigos e apaniguados (no Brasil e no exterior), isentando os sindicatos, aliás, de prestar contas ao TCU.
O bravo general Golbery (1911-1987) teria ficado assustado, ao ver os resultados alvissareiros do ângulo trabalhista do jovem líder sindical posto aos cuidados do delegado Romeu Tuma nos idos de 79, quando como informante a serviço dos militares lhes passou os nomes dos líderes sindicais. O general considerava que, com Lula a serviço do regime, o trabalhismo getuliano estaria mortinho da silva. Coisa nenhuma. O peleguismo de Vargas entrou em nova fase de revigoramento, ao ensejo do velho corporativismo adotado por Lula.
Foi marcante, nos anais do populismo sindical, a dialética do progresso-retrocesso inaugurada em ritmo do tango justicialista, que desde a época áurea do Peronismo marca o baile de um passo para frente e dois para trás, do eterno atraso progressista adotado como pano de fundo do patrimonialismo latino-americano. Lembro do que me dizia o grande Ernesto Sábato (1911-2011), quando da visita que lhe fiz em Santos Lugares, perto de Buenos Aires: “el tango es un pensamento triste que se baila”.
Convenhamos que os arquitetos da dominação patrimonialista latino-americana têm sido bastante criativos, na arte de colocar a estrutura do Estado a serviço do seu projeto de gerir o público como privado. O velho esquema de apropriação do Estado, retomado na dialética barrosiana de que “o poder se toma, não se ganha”, já tinha sido originariamente praticado pelo coronel Hugo Chávez (1954-2013), na Venezuela, ao empoderar a Suprema Corte que garantiria as suas reeleições “sine fine”. Nada de original, portanto, no putsch monocrático do ministro Alexandre de Moraes, ao criar a etérea área de enquadramento de qualquer protesto ao ensejo do processo contra as “Fake News”, novo nome dado à prática da oposição, nessa original criação jurídica do “direito achado na rua”, que permite, ao mesmo monocrata, indiciar, prender, julgar e condenar à maneira das “Lettres Cachées” (“Decretos Secretos”) de Luís XIV (1638-1715).
Mas não se trata, a esta altura do campeonato, de conspirar contra os ocupantes da alta cúpula do Estado. Trata-se, sim, de resgatar o lugar que cabe aos cidadãos, que com os seus impostos pagam o funcionamento de toda a máquina estatal, incluídos aí os polpudos salários dos seus administradores. O lugar para os cidadãos lutarem em prol dos seus direitos políticos e econômicos tolhidos nessa guerra surda das Fake News é o Parlamento, popularmente chamado de “A Casa do Povo”.
Essa casa, sabemos pelos constitucionalistas que normatizaram a Democracia Representativa na modernidade, desde o século XVII, consta de Duas Câmaras, aquela que representa, como dizia Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846), nosso primeiro grande constitucionalista, “os interesses transitórios dos indivíduos” na Câmara dos Deputados e a Câmara Alta, o Senado, que representa “os interesses permanentes da Nação”, aqueles sem cuja defesa periclitariam a integridade territorial e a permanência das instituições democráticas que garantem a governança. A época é de cobrança de nós eleitores, em relação aos nossos representantes.
Os políticos têm de serem instados, pelos seus eleitores, para que cumpram com o papel que lhes corresponde, de serem os seus representantes, tanto na Câmara Baixa (dos Deputados), quanto na Câmara Alta (o Senado). A primeira cobrança, nestes tumultuados tempos, deve ser feita em relação ao desmonte das irregularidades legais que foram sendo levantadas, aos poucos, pela alta cúpula do Judiciário (no TSE e no STF), para tolher o direito dos cidadãos a se exprimirem e a protestarem, ao verem os seus direitos tolhidos. Essas ações, claro, abarcam também os devidos processos de impeachment, no Senado, a serem instaurados contra aqueles membros da alta magistratura que desconheceram criminosamente os direitos dos cidadãos à livre expressão.
Confesso, ao analisar os desvios orçamentívoros do Estado patrimonial atual na América Latina, que fico com saudades da criatividade literária de outras épocas, para colocar no pelourinho da tragicomédia toda essa cena de safadeza pouco republicana. Valorizo demais as toadas de repentista genial que o médico e senador gaúcho Ramiro Fortes de Barcellos (1851-1916) entoou na sua obra-prima, de 1915, Antônio Chimango, com a qual verberou as crônicas “reeleições” de Antônio Augusto Borges de Medeiros (1863-1961), seu primo, chamado de “O Chimango”.
Ficaram famosos os sábios conselhos de maquiavelismo dos pampas, recordados nas toadas do preto-velho Aureliano: “Quando um erro cometeres / O que bem se pode dar / Tu não deves olvidar / Como se sai da enrascada: / A culpa é da peonada, / o Patrão não pode errar”. Em tempos de mudança de governo, vale a pena lembrar esta outra toada, ao ensejo do processo sucessório no Rio Grande, quando o Patriarca Júlio de Castilhos (1860-1903) indicou o nome do obscuro Chimango, o fiel burocrata Borges de Medeiros: “Toda minha gente é boa / Pra parar bem um rodeio, / Boa e fiel já lo creio; / Mas eu procuro um mansinho / Que não levante o focinho / Quando eu for meter-lhe o freio”.
Em tempos de “xilindró” ambulante, como os que estamos vivendo – isso é, aliás, a prisão com tornozeleira - lembro-me da genial obra Eu o Supremo (1974) do escritor paraguaio Augusto Roa Bastos (1917-2005), dedicada a reviver as memórias do autocrata positivista don Gaspar Rodríguez de Francia (1766-1840), o famoso “doctor Francia”, que decidiu isolar o seu país numa República à la Romana, presidida por dois Cónsules, que terminaram virando um Cónsul, encarnado no próprio Doctor Francia (imitando, aliás, o episódio do Consulado da Primeira República Francesa que emergiu do terror jacobino, tendo à testa três Cónsules que viraram um: o eterno Napoleão Bonaparte, que outorgou a Constituição absolutista de 1802 e que virou o primeiro Imperador dos Franceses, ao se autoproclamar e se auto coroar Imperador em 1804).
O que fez o Doutor Francia para virar eterno monocrata do Paraguai entre 1814 e 1840? Convidou todo o corpo diplomático acreditado em Assunção para um magnífico coquetel servido em alto luxo no iate presidencial, ancorado sobre o Rio Paraguai. No momento dos brindes, o Doutor Francia saudou os convidados erguendo a taça de finíssimo champagne francês, dizendo: “Brindo à memória da grande República do Paraguai, que não precisa render tributo às demais Potências ocidentais”. Fecharam-se as portas do navio, que zarpou com o corpo diplomático como refém, rumo à Argentina, onde foram desembarcados os cónsules e os embaixadores. A recepção e o banquete tinham sido magníficos. E a criatividade autocrática do Doutor Francia passou a povoar, em grande estilo, a imaginação literária.