
CAPA DA OBRA DE OCTAVIO PAZ INTITULADA:
Os maiores países da América Latina, México, Argentina e Brasil, são reféns do poder dos sindicatos. O patrimonialismo vestiu, neles, as cores do corporativismo sindical do qual ficaram reféns as respectivas sociedades.
O fenômeno tem sido estudado no Brasil por vários autores, notadamente pelos meus amigos Francisco Martins de Sousa (1925-) e o saudoso mestre Antônio Paim (1927-2021). O primeiro, na sua obra intitulada: Raízes teóricas do corporativismo brasileiro (1999) e o segundo em vários dos seus livros como A querela do estatismo (1978) e O relativo atraso brasileiro e sua difícil superação (2000).
No México, dois autores se destacam no estudo do binômio Patrimonialismo – Corporativismo sindical: o prêmio Nobel de Literatura, Octavio Paz (1914-1998), com a sua obra: El ogro filantrópico (1978) e o antropólogo e escritor Gabriel Zaid (1934-), com as suas ricas análises sociológicas em torno ao sindicalismo e ao domínio da agremiação única, o “partido revolucionário institucional”, PRI.
Na Argentina, sobressai a magna obra de Domingo Faustino Sarmiento (1811-1888), intitulada: Facundo - Civilização e barbárie no pampa argentino (1846), que já no século XIX criticava a privatização do poder a partir dos clãs de um ponto de vista liberal que se inspirava em Alexis de Tocqueville (1805-1859), criticando a unidade que foi construída, a ferro e fogo, em torno ao domínio incondicional das oligarquias, no século XIX, e ainda na passada centúria, sendo a ditadura do tirano Juan Manuel de Rosas (1793-1877) uma espécie de arquétipo que inspirou os sucessivos regimes de força.
No século XX, conhecemos a variante que foi tomada pela Argentina, de cunho corporativista, sentimental e bonapartista, com a ditadura do general Juan Domingo Perón (1895-1974), o qual, à maneira de Getúlio Vargas, construiu um arquétipo de corporativismo fortemente alicerçado nos sindicatos, que ainda perdura na tumultuada história do vizinho país, sem deixar de lembrar a figura carismática e mística de “Santa Evita”, a esposa do ditador, Eva Perón (1919-1952), “mãe dos descamisados”, cuja memória tentaram apagar as sucessivas ditaduras militares.
Dividirei a minha exposição em três itens: 1 – Patrimonialismo e corporativismo sindical no Brasil. 2 – O modelo do “Ogre Filantrópico” no México, com a secular tendência à cooptação afetiva e à repressão sistemática, a partir do corporativismo sindical do Estado. 3 – Patrimonialismo e corporativismo sentimental imposto pelo terror na Argentina, no século XIX e no longo ciclo peronista.
1 – Patrimonialismo e corporativismo sindical no Brasil.
Segundo Francisco Martins de Souza, o Brasil republicano e patrimonialista cerrou fileiras ao redor da maior criação getuliana: os sindicatos, tanto de patrões como de operários, para se proteger da concorrência e fornecer proteção à dispersa sociedade atomizada em clãs.
O meu mestre Antônio Paim reforçou a análise de Francisco Martins, mostrando como o ciclo republicano terminou ignorando a representação, substituindo-a pela cooptação de todo mundo a partir do Executivo e pelas oligarquias estaduais, ao ensejo da Política dos Governadores criada por Campos Salles (1841-1913). Ninguém poderia ficar do lado de fora, se quisesse sobreviver no deserto institucional em que se converteu a República Velha. O poder era das oligarquias estaduais e estas garantiam a sobrevivência dos brasileiros. Ora, a Revolução de 30 não mudou as coisas, mas transformou o clientelismo oligárquico pulverizado em máquina pública centralizadora, rigorosamente controlada pelo Presidente da República, Getúlio Vargas (1883-1954) Ditador de fato, cuja máxima obra consistiu em acabar com o jogo político e parlamentar, para transformá-lo em “equacionamento técnico dos problemas”, a partir do Executivo e dos seus Conselhos Técnicos integrados à Administração. Com precisão milimétrica tudo seria resolvido sem a multidão vociferando em praça pública e sem a corrupta representação parlamentar. A solução emergiria, cristalina e calculada, a partir dos Conselhos Técnicos, com os quais o Ditador substituiu a desorganizada representação sediada no Congresso. “O regime parlamentar”, já tinha sentenciado o mestre de Getúlio, Júlio de Castilhos (1860-1903), “é um regime para lamentar”, posto que representa uma coisa vil, como são os interesses materiais dos cidadãos. Feche-se, então, o Congresso e seja substituído pelos Conselhos Técnicos.
Fórmula nova? Não. Era a repetição tupiniquim da gesta racionalista e cientificista protagonizada por Napoleão Bonaparte (1769-1821) o qual, como Primeiro Cônsul, em 1801, centralizou organicamente todos os poderes da República francesa. Bonaparte, que em 1804 se coroou Imperador dos Franceses, dando origem ao Primeiro Império que se estenderia até 1815, colocou o Conselho de Estado como instrumento para legislar e agir, outorgando à nação francesa o tecido de leis “orgânicas” (os famosos Códigos, sendo o Civil o primeiro deles). Com essa estrutura institucional orgânica, o Imperador dos Franceses superou a anarquia da Revolução e do Terror Jacobino, a fim de exercer, ele sozinho, o poder absoluto como único representante da Vontade Geral rousseauniana.
Se bem o modelo napoleônico foi uma construção grandiosa e sistemática, como deixou claro Adolphe Thiers (1797-1877) na sua magna obra intitulada: História do Consulado e do Império (em 6 volumes publicados entre 1845 e 1862), a tipologia do governo absolutista alicerçado nas luzes e governando a partir do Conselho de Estado já tinha sido sistematizada e posta em prática em Portugal pelo Marquês de Pombal (1699-1782), na segunda metade do século XVIII, ao ensejo da sua famosa “Aritmética Política”. Antônio Paim deixou clara essa novidade, na sua clássica obra intitulada: A querela do estatismo (1978). Paim estudou, também, as decorrências políticas e culturais, no Brasil, provenientes do modelo pombalino (ilustradas na obra, coordenada por ele, com o título de: Pombal na cultura brasileira, de 1982). Paim, junto com Simon Schwartzman, elaborou a tipologia de “patrimonialismo modernizador” ou “neopatrimonialismo”, para caracterizar o exercício do poder pelo soberano absoluto, se reforçando com um generalizado projeto modernizador [Cf. Schwartzman, 1975].
A solução getuliana inspirava-se, também, no organicismo de Henri-Claude de Saint-Simon (1760-1825) exposto em La physiologie sociale, obra inspirada na gesta imperial e científica napoleônica que foi vulgarizada pelo grande romancista saint-simoniano Émile Zola (1840-1902), do qual Getúlio tirou os elementos fundamentais do seu “socialismo científico”. Digamos que a inspiração da sinfonia getuliana foi calcada no organicismo saint-simoniano e que o equacionamento prático das reformas corporativistas foi efetivado à luz do pensamento sociológico de Francisco Campos (1891-1968) e Oliveira Vianna (1883-1951). Este último tinha, já em 1920, dado os passos iniciais para fazer a sintomatologia dos problemas nacionais (centrados no “complexo de clã” que dissolvia a nacionalidade) segundo a acurada análise pioneira contida na sua obra intitulada: Populações meridionais do Brasil, que o jovem deputado gaúcho, chefe da bancada do seu Estado, tinha lido sofregamente ao longo da última década dos anos 20. O remédio apregoado por Oliveira Vianna consistia em reestruturar o tecido orgânico da sociedade brasileira, esgarçada pelos clãs, ao redor de um poder centralizador forte que partisse para ousado plano de medidas técnicas de inspiração corporativista, a fim de dotar o Brasil de unidade nacional, equacionando os seus problemas de dispersão e de perplexidade diante dos grandes reptos do desenvolvimento econômico.
O Patrimonialismo brasileiro ganhou, com Getúlio, solidez orgânica e “cientificidade”. Os Conselhos Técnicos de Getúlio repetiam a saga do Conselho de Estado napoleônico. Todo mundo virou parte do grande organismo social, sendo os sindicatos as peças-chave do sistema, que abarcava tanto os sindicatos patronais quanto os de operários. Quem ficasse do lado de fora, simplesmente era como se não existisse. E o Ditador, com mão de ferro, assinalava os caminhos a serem percorridos pelo enorme organismo vivo chamado Brasil.
Essa é a pesada herança do nosso Patrimonialismo republicano, com um sindicalismo autoritário de base eminentemente patrimonialista, dando unidade a todo um complicado organismo de dimensões continentais, com um modelo sindical “fascista-leninista” - de sindicato único autoritário e corporativo, segundo o jurista Arnaldo Sussekind (1917-2012), e criador de uma nova classe de intelectuais e burocratas [cf. Penna, 1988] -. A Segunda Geração Castilhista e os Tenentes revolucionários dos anos 20, encarrapitados no cume do poder por Getúlio após a Revolução de 30, deram ensejo à magna obra salvadora. Nunca mais o Brasil seria o mesmo. Tudo, após Getúlio, tomaria o caminho do autoritarismo corporativista e tecnocrático, centrado nos Conselhos Técnicos, que passaram a rodear o Chefe do Estado. Destaquemos a última realização do patrimonialismo modernizador getuliano: a “Comissão Mista Brasil-Estados Unidos” que elaborou detalhada pauta modernizadora, na última etapa do regime getuliano, entre 1951 e 1954, tendo emergido daí a adoção da ideia de planejamento com as suas instâncias institucionais, sendo a Comissão da Moeda e do Crédito (1953), precursora do Banco Central, uma das principais criações.
Ora, 64 foi a continuidade desse processo, com os Conselhos Técnicos chefiados pelo petit comité dos Ministros da Casa, que, a partir da vontade soberana do General-Presidente, tudo resolvia na reunião das 9, assinalando as linhas mestras da política nacional ao longo da jornada. O “Plano de Metas” de Juscelino foi uma versão “democrática” do tecnocratismo getuliano. Os generais de 64 compraram o pacote autoritário completo, sendo Oliveira Vianna um dos autres mais consultados pela alta cúpula militar. O autoritarismo, na versão do sociólogo fluminense, teria a característica de “instrumental”, visando a desaguar numa democracia controlada pelo Executivo. A política democrática do general João Batista Figueiredo (1918-1999), no início da abertura, foi traduzida no famoso imperativo: “Juro fazer deste país uma democracia e prendo e arrebento quem se opuser”.
João Goulart (1919-1976) tinha sido uma versão populista e vulgarmente ineficiente do sistema getuliano. 64 colocou as coisas novamente nos trilhos, a fim de culminar tudo, com a industrialização do país e com a solução do problema da “integração” (chamado de problema da “circulação”, ou comunicação entre várias regiões do vasto país continental, ao redor do Trono do Poder Federal, sediando em Brasília). Para essa integração, duas grandes políticas foram desenvolvidas pelos militares tecnocratas: as telecomunicações e a célere e ousada política de abertura de estradas, com a Transamazônica como cereja do bolo.
À iniciativa privada caberia, apenas, o papel de coadjuvante, seguindo as pegadas do Estado empresário. Este cuidaria do estabelecimento e crescimento das indústrias de base, bem como das relativas à prestação de serviços públicos de telefonia e comunicações em geral. As empresas estatais proliferaram como cogumelos durante o regime militar: de 96, em 64, pularam para 490 e nunca mais pararam de florescer, com cargos regiamente remunerados para os donos do poder e os seus coadjuvantes. Uma nova elite se enriqueceu rapidamente, ao longo das décadas seguintes, ocupando esse espaço privilegiado.
A Nova República que, em 85, substituiu o regime militar, não mudou a fórmula do sucesso. Criticando a “opressão militar” e refinando o controle sobre o Congresso mediante a distribuição de benesses, seguindo as pegadas estatizantes do “Pacote de Abril” (de 1977) do general Ernesto Geisel, a máquina governamental presidida pelos técnicos e os bacharéis azeitou convenientemente as engrenagens políticas, a fim de fazer do voto uma questão sistêmica (seria representada a máquina estatal mas não a vontade dos cidadãos). O Congresso deveria ficar preso às determinações estratégicas traçadas desde o Executivo. E a Magistratura, engrandecida na sua sapiência e no seu poder pela Carta de 1988, garantiria que o “sistema” fosse rigorosamente preservado.
Uma última observação em torno à pervivência do patrimonialismo na última quadra da história brasileira, que deságua na confusa etapa do neopopulismo que assombra à sociedade: permaneceu, ainda, graças a um sistema educacional cooptado pelo marxismo gramsciano, o antivalor surgido ao ensejo da mentalidade contrarreformista, de que a riqueza da Nação provém do Estado empresário e de que é lícito, se enriquecer a partir do assalto ao Tesouro. A riqueza auferida a partir do trabalho praticado pela iniciativa privada ficou, assim, novamente na sombra de penumbra criada pela liderança brasileira, produzindo o estranho fenômeno de publicidade ao redor da figura que mais se beneficiou com o assalto aos cofres públicos, o ex-presidente condenado pela Operação Lava-Jato e que foi celeremente liberado pela maxima instância da Justiça, o Supremo Tribunal Federal, para que concorresse nas eleições de outubro de 2022.
Como bem lembrou o professor Antônio Paim em Momentos decisivos da história do Brasil (2014), conforme destacou o pesquisador Alberto Carlos Almeida nas suas obras intituladas: A cabeça do brasileiro (2014) e Por que Lula? (2007) ainda estão vigentes na sociedade brasileira os antivalores presentes na opção contrarreformista de enriquecimento á margem do trabalho produtivo, contando com o dinheiro público. Longo caminho precisará ser percorrido pela liderança liberal para mudar essa escala de valores. Somente um continuado trabalho de conversão cultural poderá dar fim a esse traço de atraso presente numa sociedade ainda refém do Estado patrimonial.
Que o patrimonialismo brasileiro – como, aliás, o mexicano e o argentino – tem ainda fôlego para se perpetuar, ninguém deve duvidar. Daí a importância de enfrentar a questão com a devida coragem e com a análise adequada do patrimonialismo, partindo para a formulação de um plano de reformas realistas que se dirijam a desmontar o mostrengo. Essas reformas passariam, a meu ver, pelo caminho da reforma política do Congresso e dos Partidos Políticos, a fim de dar um fundamento real à representação (adotando o voto distrital) e pela derrogação imediata dos dispositivos legais que conferem aos sindicatos foros de independência perante as instituições fiscais da República.
A conclusão que Paim tira de tudo isso, ressalta a capacidade das lideranças patrimonialistas para lutarem pela perpetuação no poder. Estas são as suas palavras a respeito: “É preciso reconhecer que o patrimonialismo, longamente praticado, leva a população a aceitar o paternalismo estatal como coisa natural. Contingentes de maior ou menor expressão consideram que se trata de um bem. Num quadro desses deve-se reconhecer que muitos hão de considerar a privatização como um mal. Em tal circunstância, é preciso levar em conta a perspicácia de Maquiavel quanto à necessidade de que, aquilo que o comum dos mortais considera como mal, precisa ser feito de uma só vez pelo governante”.
“E não apenas isso. Quando mais não seja, por simples instinto de sobrevivência, os patrimonialistas resistirão com unhas e dentes. Prolongando a sua permanência em postos-chave da economia, perpetua-se a sua capacidade de mobilização. Veja-se o nosso caso: desde 1930, o país dispõe de ‘pais dos pobres’ e a canalização da riqueza para as mãos do Estado não se deve ao fato de que os altos burocratas precisam de ‘dachas’ (não deixa de ser sintomático que hajam dado esse nome russo às suas mansões) às margens do lago, em Brasília – ou que o presidente do Supremo Tribunal Federal continue sendo dispensado de descontos previdenciários a fim de trocar anualmente o seu carro particular – mas para atender ao slogan ‘tudo pelo social’. São mais ou menos setenta anos nesta lengalenga e os níveis de pobreza continuam altos. E as vítimas dessa situação não a associam à pujança do Estado. Deve-se proclamar que a elite burocrática estatal revela a maior competência em vender o seu peixe”. [Paim, 2000: 90-91].
Traduzindo em estatísticas esse processo de alienação da maior parte da Nação pela minoria corporativista que se apropriou do Estado, poderíamos afirmar que, no Brasil, com 210 milhões de habitantes, uma felizarda minoria, com os seus familiares, apropriou-se dos benefícios que corresponderiam a todos. Aproximadamente 10 milhões de pessoas gozam dos privilégios incomensuráveis de serem os detentores da riqueza que deveria beneficiar aos 212,7 milhões que não participam da festança da nomenclatura. Segundo especialistas em contas públicas, 98% do orçamento da Nação já vem carimbado em favor da minoria encarrapitada no controle das corporações. Isso nos faz pensar na estatística que apresentava o abade Emmanuel Joseph Sieyès (1748-1836) às vésperas da Revolução Francesa, em 1789: 26 milhões de contribuintes sustentavam a minoria que tudo controlava, identificada com os cerca de 180 mil membros da Nobreza e do Alto Clero [cf. Sieyès, O que é o Terceiro Estado? 1788. 1973].
2 – O modelo do “Ogre Filantrópico” no México, com a secular tendência à cooptação afetiva e à repressão sistemática, a partir do corporativismo sindical do Estado.
Octavio Paz considerava que o poder no México foi se centralizando cada vez mais, ao longo da história plurissecular do país. No início, na era colonial, prevalecia uma espécie de desconcentração de poderes no seio da sociedade, herança sem dúvida das tradições medievais ibéricas, mas que terminou dando ensejo, com o correr dos séculos, a uma modalidade de poder concentrado, sendo que a melhor expressão dessa hipertrofia era o moderno presidencialismo.
Para o Nobel mexicano era claro que o poder exercido, no seu país, de forma patrimonial terminou reforçando o Executivo e o predomínio do Estado sobre a sociedade. Ao ensejo do predomínio dos interesses da elite governante sobre o resto dos cidadãos, houve uma mimetização daqueles por trás de uma aparência revolucionária, que curiosamente produziu o abandono das ideologias liberal e conservadora e a manutenção de uma retórica rousseauniana (de busca da unanimidade ao redor do poder constituído, sob cujo manto passaram a se resguardar as tradicionais elites patrimonialistas). Traços notadamente reacionários da estrutura do poder no México, que Paz desenhava com as seguintes pinceladas:
“México é um país centralista, o poder legislativo e o judiciário são apêndices obedientes do poder executivo; Porfírio Díaz (1830-1915) nomeava os deputados e senadores e, depois, cada Presidente revolucionário fez o mesmo. Nesse aspecto, a única diferença com o porfiriato é a existência do PRI (Partido Revolucionário Institucional). O resultado dessa palpável contradição entre a verdade legal e a verdade verdadeira tem sido a aclimatação da mentira na nossa vida pública. Não menos grave do que a naturalização da mentira tem sido o eclipse das ideias conservadoras: ninguém as professa nem ninguém as defende, nem sequer os banqueiros. Explico-me: desapareceu o Partido Conservador e a sua filosofia política, não os interesses conservadores. O que aconteceu é que esses interesses aparecem mascarados primeiro com a máscara liberal e agora com a revolucionária” [Paz, 1983: 82].
O fortalecimento exagerado do Estado, no entanto, não era privilégio do México do século XX. O estatismo foi, com certeza, o grande mal da política mundial nesse período da História da Humanidade. Pensava Octavio Paz que faltou um elemento conceitual de análise adequado, a fim de desmascarar esse terrível problema. Embora conhecedor da obra de Max Weber (1864-1920), o nosso autor parece esquecer, aqui, que a grande contribuição do sociólogo alemão consistiu justamente em ter chamado a atenção para a realidade do Estado, tendo feito da variável política uma área que mereceu toda a sua atenção, notadamente no que tange a explicitar os valores em que se alicerçava a ação humana.
O caráter impessoal do Estado: esta é a faceta da política contemporânea que mais impressionava ao nosso pensador. Realidade tipicamente moderna. O Estado, mais do que um mal - no sentido metafísico do termo que indica carência ontológica – é positividade, constitui uma verdadeira máquina que se perpetua nas sociedades pelo mundo afora.
Paz escrevia a respeito: “...). Os teólogos e os moralistas tinham concebido o mal como uma exceção e uma transgressão, uma mancha na universalidade e transparência do ser. Para a tradição filosófica do Ocidente, salvo para as correntes maniquéias, o mal carecia de substância e somente podia ser definido como uma falta, ou seja, como carência de ser. (...). O Estado do século XX inverte a proposição: o mal conquista por fim a universalidade e apresenta-se com a máscara do ser. Só na medida em que cresce o mal, tornam-se pequenos os malvados. (...). A sua insignificância intelectual confirma a afirmação de Hannah Arendt (1906-1975) sobre a banalidade do mal. O Estado moderno é uma máquina, mas uma máquina que se reproduz sem cessar” [Paz, 1983: 85].
Nesse processo diabólico, o instrumento passa a ser o partido único, que impede a diversificação de interesses na sociedade – interesses que deveriam ser representados numa pluralidade político-partidária – para dar lugar a uma cinzenta massa amorfa dominada pelo partido. A política contemporânea converte-se, nos países dominados pelo partido único, em exercício de unanimidade, com banimento de qualquer dissenso. Estava assim materializado o ideal que tinha sido pensado por Jean-Jacques Rousseau, no 8º capítulo do seu Contrato Social [cf. Rousseau, 1966]. É claro que o fenômeno não se deu no México com toda a carga de terror e de fanatismo que vingaram em outros lugares, ao ensejo de ideologias radicais como o nazismo ou o comunismo russo. O Estado patrimonial mexicano revelou-se, nesse aspecto, mais brando do que outros regimes de partido único. Mas nem por isso o Estado no México deixou de ser autoritário. Um autoritarismo mitigado pelo populismo do líder carismático, como sugere o título da obra de Paz, “O ogro filantrópico”.
O Nobel mexicano destacava a necessidade imperiosa de se fazer, na América Latina, uma crítica ao estatismo, a começar pelo regime cubano, modelo mais acabado do vício estatizante entre os herdeiros da colonização ibérica. A realidade do Estado mais forte do que a sociedade conheceu, no México e em outros países latino-americanos, a sua justificativa teórica, numa forma de positivismo heterodoxo, que mudou a ordem conceitual vigente no comtismo originário, que era uma doutrina pedagógica que visava a garantir a ordem social e política. Os positivistas deste lado do mundo – mexicanos, colombianos, chilenos e brasileiros – inverteram espertamente a filosofia de Comte (1798-1857), tornando-a uma doutrina da ditadura do partido único. Castilhismo, porfirismo, conservatismo regenerador foram versões heterodoxas do comtismo, que serviram às respectivas oligarquias políticas.
O Positivismo adotado como filosofia hegemônica foi vertido, no Brasil e no México, na redoma ideológica junto com essa filosofia falsamente salvadora que é o marxismo e terminou produzindo a retórica “nacionalista” com que os populistas pretendem se perpetuar no poder, nesses países, depois de terem derrubado, na segunda metade do século XIX, o modelo de uma monarquia que pretendia unificá-los. Pedro II (1825-1891), no Brasil, e Maximiliano de Habsburgo (1832-1867), no México, foram derrubados pelos respectivos agitadores positivistas, que deportaram o Imperador brasileiro em 1889 e fuzilaram o seu homólogo mexicano em 1867. Claro que Maximiliano carecia de uma base culturológica para a prática do poder imperial, sem ter conseguido organizar os fundamentos de uma monarquia constitucional como a brasileira. De qualquer forma, o brutal fuzilamento do imperador mexicano, com apoio dos nacionalistas descendentes dos astecas, revela a índole definidamente rousseauniana dos seus algozes. O golpe contra Dom Pedro II foi mais uma trama de gabinete inspirada no positivismo caudilhista. Menos brutal, mas igualmente eficiente.
As respectivas sociedades experimentaram, à luz do poder patrimonial, a dor de não terem encontrado a sua própria identidade. Há uma aguda descrença em face das instituições, embora estas tenham sido erguidas para garantir a felicidade da nação. No Brasil, a República foi recebida com descrença pelo povo dos sertões, que nas primeiras décadas do novo regime ainda acreditava que Dom Sebastião, o rei que desapareceu mas que voltará, emergiria das águas do mar para vencer “o cão republicano”. A gesta de Canudos revela toda essa esperança reprimida. Para Paz, a desorientação do povo mexicano indica que foram traídos os sonhos ancestrais. Depois de terem sido ludibriados, durante séculos, os mestiços somente acreditam, nos tempos que se dizem “civilizados”, na Vigem de Guadalupe e na Loteria Nacional. Ou para traduzir, em termos estratégicos e messiânicos essa desorientação comum, poderíamos lembrar a frase do general Porfirio Díaz (1830-1915): “Coitado do México, tão longe de Deus e tão próximo dos Estados Unidos!”
Para o sociólogo e escritor Gabriel Zaid, o grande mal de México consiste em que toda a vida política e social foi sequestrada pelas corporações sindicais. Seria necessária uma grande reforma política que libertasse o México dessa força de perpetuação do atraso. ”Em meio século – escreve Zaid – as corporações sindicais acumularam mais do que as antigas corporações eclesiásticas. Têm o direito de designar alcaides (prefeitos), governadores, deputados, senadores. Controlam o principal setor do Partido Revolucionário Institucional (PRI). Controlam domínios de caciques locais e regionais. Possuem miles de milhões de pesos, empresas de todos os tipos, barcos, fazendas, fábricas, cadeias de lojas, jornais, escolas. Têm foros fiscais: os seus ingressos não são objeto de impostos e ninguém tem direito a fiscalizar as suas contas. Possuem foros de propriedade: o presidente que se atreveu a expropriar a banca privada não teve coragem para expropriar o Banco Operário. Têm foros de força: podem agremiar utilizando a intimidação física; podem expulsar (e deixar sem emprego) os seus agremiados; podem obrigá-los a marchar em peregrinações políticas; podem sequestrá-los e obrigá-los a confessar, como fazia a Santa Inquisição: como donos da sua própria justiça, à margem dos foros civis. Possuem uma história de mortes não investigadas, que mais parecem ajustes de contas. Em caso extremo, chegaram a ameaçar as autoridades sem recorrer à violência, dentro ou fora da Constituição. Num regime presidencialista que apoiam porque respeita os seus direitos, repetidas vezes declaram que o seu apoio não é incondicional. São capazes de gestos de desafio e até de velados desacatos, sem paralelo atualmente, como os que praticavam os antigos caudilhos armados que negociavam a sua lealdade com o presidente da República”.
“Como se fosse pouco – continúa Zaid – têm legitimidade. Assim como os intelectuais, as instituições, o poder, a sociedade, não podiam blasfemar em face dos propósitos redentores das corporações eclesiásticas, hoje não se pode blasfemar diante dos propósitos redentores do sindicalismo. Há até doutrinas que supõem que os sindicatos são algo assim como a Igreja Militante: protagonistas das lutas do Bem contra o Mal. Um foro como a cláusula de exclusão, que põe os agremiados nas mãos dos seus líderes, parece sacrossanto. Já ninguém pede ‘Religião e foros’, mas ‘Controle sindical e foros’. Tal pedido parece uma aspiração legítima para muitas almas piedosas”.
Gabriel Zaid termina assim o seu arrazoado: “Obregón, Calles, Cárdenas, que criaram o monstro em prol do poder presidencial, nunca imaginaram o quanto ia crescer, alimentado pelo gigantismo industrial. Há até os que pensam que, num futuro próximo, algum presidente terá de se impor, como fizeram Carranza, Obregón Calles, Cárdenas, sobre alguns líderes fortes demais, eliminando-os de algum modo, mais ou menos violento. Mas seria um erro: o perigo não está em que tais ou quais pessoas tenham acumulado um poder sem paralelo fora da presidência, mas na forma de acumulá-lo, que de fato é a mesma que culmina na presidência (exceto que a presidência é transitória): essas negociações constituem os acertos privados, à margem dos votantes. Por isso, a maneira de acabar com o monstro tem de ser democrática: destruir os foros do absolutismo presidencial junto com os foros sindicais; fazer com que os presidentes não sejam donos da República, nem os líderes donos dos sindicatos; fazê-los depender de apoios democráticos, em vez de corporativos” [Zaid, apud Aguilar, 2011: 1023-1024].
3 – Patrimonialismo e corporativismo sentimental imposto pelo terror na Argentina, no século XIX e no longo ciclo peronista.
Marca registrada do caudilhismo argentino consistiu, segundo Domingo Faustino Sarmiento (1811-1888), no terror praticado por dois tipos de tiranos que sobressaíram no século XIX: Facundo Quiroga (1788-1835), “senhor das armas” na região de São Luís, ícone dos tiranetes locais que colocaram as suas respectivas Províncias em mãos do general Juan Manuel de Rosas (1793-1877), o qual assumiu o poder em Buenos Aires em 1835, tendo governado com mão de ferro o país até 1852, quando foi derrotado pela confederação dos seus oponentes, com auxílio do Império do Brasil, na batalha de Monte Caseros, em 3 de fevereiro de 1852. Após a derrota, Rosas refugiou-se na Inglaterra, tendo falecido em Southampton, na sua quinta, em 1877.
O deputado liberal José Manuel Estrada (1842-1894), na sua obra: La política liberal bajo la tiranía de Rosas (Buenos Aires, 1873) deixou consignada a sua avaliação do ditador, com as seguintes palavras: “Tiranizó por tiranizar, tiranizó por deleite, por vocación, a impulsos de no sé qué fatalidad orgánica, sin dar al país la paz que prometió, antes más bien llevando de un cabo a otro de la República, la depravación y el hierro y destruyendo todas las condiciones morales y jurídicas sobre las cuales descansa el orden de las sociedades humanas”.
Facundo Quiroga (1788-1835) praticava um terrorismo sistemático contra os que se opusessem a ele, como “sargento de milícias” dos latifundiários da Província de São Luís. A nota característica do terrorismo praticado era o medo que a pessoa do caudilho impunha aos membros do grupo social, notadamente àquelas pessoas que, por pertencerem às classes mais abastadas, deveriam ser humilhadas pelo sátrapa, a fim de banir qualquer enlevo de honra ou de dignidade da parte dos seus subordinados. A respeito dessa prática rotineira do terror como meio de dominação, escreve Sarmiento: “Um dia está Quiroga de bom humor, e brinca com um jovem como o gato com o tímido rato: brinca para ver se o mata ou não o mata; o terror da vítima foi tão ridículo que o verdugo ficou de bom humor, rindo-se às gargalhadas, contra seu costume habitual. Mas seu bom humor não deve ficar ignorado, precisa espraiar-se, ser estendido sobre uma grande superfície: soa o toque da generala (para chamar tropas às armas ou a postos) em La Rioja e os cidadãos saem à rua armados, ao rumor de alarme; Facundo, que determinou a generala para divertir-se, forma os cidadãos na praça, às onze da noite, despede das filas a plebe, e deixa só os pais de família abastados e os jovens que ainda conservam lampejos de cultura; manda-os marchar e contramarchar toda a noite, fazer alto, alinhar-se, marchar de frente, de flanco; é um cabo de instrução que ensina a uns recrutas, e a vara do cabo anda pela cabeça dos desajeitados, pelo peito dos que não se alinham bem; que querem? – Assim se ensina! (...)” [Sarmiento, 1996: 112-113].
A crueldade do patrimonialismo argentino fica patente, também, no terror desenvolvido pelo tirano Rosas. Para garantir a ausência de oposição de parte da sociedade, a fim de construir a unanimidade (que constituía, segundo Rousseau o fundamento da felicidade geral da nação), o general Rosas mandava prender, indistintamente, cidadãos a esmo, a fim de deixar todo mundo com as barbas de molho. Ninguém estava seguro na capital da República Argentina, muito menos no interior do país.
Eis o que Sarmiento escreveu a respeito dessa esdrúxula e autocrática política penitenciária: “Lições deste gênero não são inúteis para as cidades, e o hábil político que em Buenos Aires elevou estes procedimentos a sistema, refinou-os e fez produzir efeitos maravilhosos. Por exemplo: de 1835 até 1840, quase toda a cidade de Buenos Aires passou pelas prisões; havia, às vezes, 150 cidadãos que permaneciam presos dois, três meses, para ceder o seu lugar a um novo grupo de duzentos, que permanecia seis meses. Por que? Que haviam feito? Que haviam dito? Imbecis! Não vedes que está se disciplinando a cidade! Não recordais que Rosas dizia a Quiroga que não era possível constituir a República porque não havia costumes? E que estava acostumando a cidade a ser governada... Pois ele concluirá a obra e, em 1844, poderá apresentar ao mundo um povo que não tem senão um pensamento, uma opinião, um entusiasmo sem limites pela pessoa e pela vontade de Rosas! Agora sim se pode constituir a República!” [Sarmiento, 1996: 113].
Ficaria incompleta a descrição do terror patrimonialista argentino se não mencionássemos, aqui, o instrumento assassino inventado por Rosas para facilitar a eliminação de inimigos e implantar o medo nos espíritos: trata-se da instituição da “mazorca”. Constituía ela uma espécie de tribunal secreto integrado pelos íntimos colaboradores do ditador, que tinha como finalidade condenar à morte os mais destacados inimigos e executá-los de maneira sumária. Era uma espécie de SS dos Pampas, que agia em silêncio e com total cobertura do dono do poder que lhe garantia a impunidade.
Do ângulo doutrinário, o peronismo ancorou numa doutrina identificada como “justicialismo”, cujas características são as seguintes: A – Defesa da justiça social sem abolição das relações capitalistas de produção. B – Defesa do intervencionismo do Estado na economia, a fim de regular o mercado e subordinar a propriedade ao cumprimento da sua função social. C – Organização sindical das forças produtivas (empresários e trabalhadores), de forma tal que possam se entender de igual para igual, numa relação a ser arbitrada pelo Estado. Essa organização corporativa visava a aplacar a luta entre as classes sociais. D – Nacionalismo econômico endereçado a um projeto de desenvolvimento capitalista autônomo da indústria nacional com apoio ostensivo do Estado. E – Terceiro-mundismo nas relações internacionais, com denúncia do imperialismo das nações capitalistas avançadas e uma atitude cautelosa face à dominação soviética. F – Populismo, que se caracteriza pela visão policlassista do Peronismo e pelo paternalismo do chefe justicialista, face aos “descamisados” e aos sindicatos operários, amplamente manipulados pelo regime.
O Peronismo constituiu, sem dúvida, junto com o Getulismo brasileiro e o Porfiriato mexicano, um dos “modelitos” mais importantes do velho Patrimonialismo ibérico em que, por baixo das feições doutrinárias atrás apontadas, esconde-se sorrateira a realidade de um Estado centrípeto e familístico, mais forte do que a sociedade insolidária. Nesse contexto, a Res Publica é administrada pelos donos do poder como coisa nossa. Segundo frisou Crassweller [1988: 14]. “A civilização de Perón é a culminância da cultura e dos valores legados por Roma, pelos mouros que dominaram a Península Ibérica durante muitos séculos e pela Castela da antiga Espanha, valores que foram todos corrigidos e reforçados durante os quatro séculos de história do Novo Mundo”. Múltiplos fatores aproximavam o estado-novismo getulista do peronismo, sendo aspecto diferenciador o cientificismo de origem castilhista (e, portanto, positivista) de Getúlio Vargas.
Nos momentos de crise, tanto o getulismo quanto o peronismo fizeram reviver, no entanto, as antigas práticas da violência destemida em prol da manutenção do poder, com os denominados “corpos provisórios”, armados pela guarda pretoriana do regime para intimidar opositores, como foi o caso do varguismo contra os radicais de esquerda ou de direita ao longo nos anos 30 (que deram ensejo à proclamação do Estado Novo em 1937 com a explicitação do caráter ditatorial do regime) e, depois, nos anos 50, nos confrontos políticos com os liberais, que desaguaram na tentativa de assassinato do jornalista e candidato a deputado federal Carlos Lacerda (1914-1977), no atentado da rua Tonelero, no Rio, em 5 de agosto de 54, que conduziu à morte do major-aviador Rubens Florentino Vaz, à intervenção militar e ao suicídio de Getúlio em 24 de agosto do mesmo ano.
Algo semelhante encontramos no Peronismo: nos momentos de aguda luta contra outras tendências, notadamente contra os militares de direita, os peronistas radicalizaram-se na luta guerrilheira dos Montoneros contra o regime, que chegou ao ponto de sequestrar, "julgar" no cativeiro e executar sumariamente o ex-presidente general Pedro Eugênio Aramburu (1903-1970), que foi ditador da Argentina entre 1955 e 1958 e que tinha sequestrado o cadáver da “mãe dos descamisados”, Evita Perón.
Nas últimas décadas, a Argentina ainda tem sofrido com ações radicais deflagradas ao ensejo do enquadramento, pela Justiça, de líderes peronistas, como foi o caso do assassinato do promotor Alberto Nisman em janeiro de 2015. A respeito desse fato, o jornal El País de Madri informou, na sua edição de 2 de junho de 2018 que: “A Justiça argentina não tem dúvidas: Alberto Nisman não se suicidou. A Câmara Federal de Buenos Aires, um tribunal de segunda instância, considerou provado que durante a noite de 18 de janeiro de 2015 o promotor que investigava o atentado terrorista contra a entidade judaica AMIA foi assassinado com um tiro na cabeça em seu apartamento de Puerto Madero. O crime, segundo os juízes, foi ‘consequência direta da denúncia’ por suposto acobertamento do atentado que ele havia formulado contra a então presidenta Cristina Fernández de Kirchner. A sentença nem sequer cita Kirchner, mas ordena ao juiz do caso Nisman que se concentre na hipótese do homicídio ‘com a celeridade e seriedade que tão grave fato impõe’. A Câmara Federal deu assim pleno respaldo à posição adotada desde o primeiro dia pela família do promotor. Na noite de seu assassinato, Nisman tinha preparado sobre sua mesa um relatório que acusava Kirchner e altos funcionários de seu Governo de acobertarem os iranianos acusados de cometerem o atentado com carro-bomba que destruiu o edifício da AMIA e deixou 85 mortos, em 1994. Esse documento deveria ser entregue ao Congresso, mas Nisman morreu na véspera da sua apresentação” [Rivas, 02/06/2018].
Concluamos.
Na consolidação de um poder patrimonial sobre os demais poderes atuantes na sociedade, há um momento definitivo: quando o líder se sobrepõe aos demais poderes, graças à criação de um mecanismo de eliminação dos concorrentes. É notável o surgimento desse fenômeno na Modernidade. O capítulo inicial dessa transformação se dá na Rússia, com o domínio imperial do Czar Ivã IV o Terrível (1538-1584), no período compreendido entre 1565 e 1572 conhecido como “oprichnina” (“emergência” em face das ameaças da oposição). Esse período foi marcado pelo terror de Estado com um sistema de medidas de emergência. “Oprichniki” eram os indivíduos que integravam a polícia secreta do Czar e praticavam diretamente a repressão. Ora, a criação desse mecanismo, que permitiu a Ivan IV eliminar o poder da nobreza rural identificado com os latifundiários “boyardos”, foi o ponto de partida para a consolidação do poder total em mãos dos seus seguidores.
A Dinastia Románov, fundada por Ivã IV, pelo seu casamento com a princesa Anastácia Románovna (1530-1560), graças às medidas absolutistas do Czar, consolidou o seu domínio definitivo sobre a nobreza rural, abrindo caminho para a grande expansão do Império russo na Dinastia Románov a qual, ao longo dos seguintes 300 anos, aumentou o território ininterruptamente, ocupando uma média de 130 quilômetros quadrados por dia (até 1918), tornando a Rússia, assim, o maior império do mundo em extensão territorial.
Há um ponto essencial na evolução do Patrimonialismo no Brasil, no México e na Argentina: quando o líder consegue criar, à maneira de Ivã IV, um mecanismo de eliminação dos concorrentes ao poder, a sua própria “oprichnina”. Ora, isso se dá, no caso brasileiro, ao ensejo da chegada ao poder da Segunda Geração Castilhista chefiada por Getúlio Vargas, que já tinha se firmado como líder inconteste no Rio Grande do Sul com o fortalecimento do Partido Republicano Rio-grandense. Chegado ao poder em 30, Getúlio recebe apoio definitivo dos tenentes descontentes com as oligarquias da República Velha e, contando com a fidelidade do Clube 3 de Outubro integrado por oficiais do Exército, parte para reforçar o seu poder pessoal e garantir o domínio inconteste sobre o País. A consolidação do poder do grupo getuliano sobre a sociedade se dá através das reformas trabalhistas ensejadas com a adoção do modelo de sindicato único, que replica, pela sociedade afora, o domínio inconteste do Executivo hipertrofiado.
No México, a oprichnina do poder se dá na revolução positivista chefiada pelo general Porfirio Díaz, com a criação do Partido Revolucionário Institucional, que será o instrumento de que os sucessivos Presidentes da República se valem para dominar a sociedade através dos sindicatos.
Na Argentina, a oprichnina ou instância burocrática que garante o poder supremo ao Presidente da República, se dá ao redor da criação da “mazorca”, o brutal mecanismo de dissuasão e eliminação de desafetos criado pelo general Rosas. O Peronismo passou a utilizar mecanismo semelhante ao ensejo, por exemplo, de “La Cámpora”, organização juvenil de apoio irrestrito ao governo criada pelo casal Kirschner e que pratica a guerrilha virtual – inspirando-se nos Montoneros – para atacar adversários e fortalecer o poder presidencial, ao lado da Confederação Geral do Trabalho.
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