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ESCORREGANDO PARA O TERCEIRO MUNDO - Por: JOÃO CARLOS ESPADA (DIRETOR DO INSTITUTO DE ESTUDOS POLÍTICOS DA UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA - LISBOA)

(ESTE ARTIGO FOI PUBLICADO NO JORNAL OBSERVADOR, DE LISBOA, EDIÇÃO DE 11 DE JANEIRO DE 2021)




1 - O assalto ao Capitólio por um bando de arruaceiros, (trajando, aliás, como vulgares arruaceiros), reclamando a causa do sr. Trump, na passada quarta-feira, não pode nem deve ser menosprezado pelos defensores da democracia liberal. Trata-se de uma ofensa maior à democracia americana — e ao ideal democrático em geral.

O assalto ao Capitólio só pode e deve ser veemente e incondicionalmente condenado. E denunciado deve ser o promotor de tremenda ofensa à democracia: o sr. Trump, a quem tive há algumas semanas o prazer de chamar aqui de general tapioca. Como finalmente, e muito tardiamente, descobriram vários responsáveis republicanos, o comportamento do sr Trump e de um bando dos seus seguidores é simplesmente característico de uma república das bananas do terceiro mundo.

2 - Também distintiva de uma república das bananas do terceiro mundo foram as manifestações violentas contra as estátuas (designadamente de Churchill, em Londres) e contra a liberdade de expressão em muitas universidades americanas e inglesas. Tenho aqui denunciado enfaticamente essas manifestações do tribalismo da extrema-esquerda woke e politicamente correcta. Por isso, estou particularmente à vontade para repetir: um tribalismo da esquerda não justifica um tribalismo da direita.

3 - Chegamos aqui à pergunta crucial: por que motivo crescem nas democracias ocidentais os tribalismos de esquerda e de direita? O tema certamente merece um inquérito aprofundado. A proposta conjectural que tenho repetidamente defendido é todavia relativamente simples: os extremos tribais crescem porque as vozes do centro (centro-esquerda e centro-direita) não denunciam os extremos tribais das suas próprias famílias políticas. Preferem denunciar os extremos tribais das famílias políticas rivais. Esta denúncia recíproca acaba por alimentar o tribalismo: cada tribalismo justifica-se a si mesmo por estar em guerra contra o tribalismo rival.

É daqui que emergem os discursos terceiro-mundistas contra o “regime”, ou as “oligarquias”, ou as “elites”, e outros primitivismos similares. Venho criticando estes discursos há vários anos, neste jornal e não só. Não deixa de ser curioso que mais recentemente estas críticas tranquilas estejam a gerar chuvas de insultos das patrulhas ideologicamente correctas na secção de comentários. É seguramente um sinal dos tempos tribais em que vivemos.

4 - A questão é simples, mas o assalto ao Capitólio justifica que seja recordada. A democracia é obra comum de partidos rivais, sob a autoridade comum de regras gerais e iguais para todos, a que chamamos império (ou regência, ou governo) da lei (rule of law).

Se a normal e desejável rivalidade entre os partidos passa a ser apresentada como oposição às regras gerais — a que, no terceiro mundo, chamam “regime” — então a porta fica aberta para o uso da violência quando um partido perde as eleições. Tornar-se-á possível dizer — como disse o sr. Trump, no estilo do general tapioca — que a derrota foi “produzida pelo regime”, não pelos eleitores.

5 - Alexis de Tocqueville elogiou no século XIX a democracia na América precisamente pela ausência desses discursos tribais contra o “regime”. E observou que o sectarismo tribal — da esquerda e da direita — gerava, nas culturas políticas iliberais (na época, sobretudo na sua França natal e no continente europeu) a perpétua oscilação entre o Antigo Regime e a Revolução, entre a servidão e o abuso.

Trump e os arruaceiros que assaltaram o Capitólio obviamente nunca leram nem ouviram falar de Tocqueville. Nem obviamente leram os Federalist Papers, de que apesar de tudo poderão ter vagamente ouvido falar (talvez na escola primária). Mas seguramente ignoram que um dos principais propósitos da Constituição americana de 1787/8 foi impedir o despotismo de uma qualquer facção — sobretudo, na era moderna da paixão pela igualdade em detrimento da liberdade, em nome do “povo”.

6 - Em Portugal, estaremos protegidos contra a maré do tribalismo terceiro-mundista? Como costuma ser dito, vamos ver.

A dúvida reforça a importância crucial da isenção e moderação reveladas pelo Presidente da República e candidato Marcelo Rebelo de Sousa. Tem com firmeza denunciado as manifestações tribais, de um lado e do outro do espectro político. E assume com clareza a principal missão que a Constituição atribui ao Presidente da República: a de árbitro e garante do regular funcionamento das instituições democráticas.

Esta garantia seria sempre importante. Nos tempos que correm, é simplesmente crucial.

Post Scriptum 1: A Rainha (com 94 anos) e o Duque de Edimburgo (com 99) receberam a vacina contra a covid — noticia na primeira página de domingo o Telegraph de Londres (que voltou a chegar em papel ao Estoril, numa edição que me dizem ser agora impressa em Portugal, o mais antigo aliado). A notícia é relativamente rara, mas não única: em 1957, a Rainha deixou saber que príncipe Carlos e princesa Ana tinham recebido a vacina contra a polio. Na mesma notícia do Telegraph, ficamos a saber que o príncipe Carlos, com 72 anos, que já teve covid, está atrás dos outros grupos etários definidos pela lei como prioritários. O Duque de Cambridge, que também já teve covid, também não é ilegível para vacinação prioritária, uma vez que tem menos de 50 anos. This is the rule of law. O sr. Trump e os seus acólitos obviamente não fazem ideia do que isto possa ser.

Post Scriptum 2: Vozes amigas dizem-me que, num recente debate televisivo, um tal sr. Vígaro, ou talvez Vieira, ou talvez Ventura, terá dito que “a única ditadura que eu quero é a ditadura em que os portugueses de bem são reconhecidos como tal.” Há aqui certamente uma lacuna terceiro-mundista na educação do autor dessas palavras: as pessoas de bem não querem qualquer tipo de ditadura. Elas distinguem-se precisamente por defenderem, contra todas as ditaduras, o império da lei, ou the rule of law. Aqui residiu sempre a distinção entre as democracias liberais civilizadas e as repúblicas das bananas do terceiro mundo.