Voltar

EIITI SATO - UnB, UMA UNIVERSIDADE INOVADORA: RELAÇÕES INTERNACIONAIS COMO CAMPO DE ESTUDO NO BRASIL

EIITI SATO - UnB, UMA UNIVERSIDADE INOVADORA: RELAÇÕES INTERNACIONAIS COMO CAMPO DE ESTUDO NO BRASIL

UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA - MAPA DO CAMPUS UNIVERSITÁRIO

A Universidade de Brasília foi fundada em 1962 estabelecendo, de forma pioneira, a primeira universidade brasileira criada, desde o início, como uma universidade de pesquisa. O conceito de universidade de pesquisa difere substancialmente da concepção tradicional de instituição de ensino do terceiro grau. Essa concepção de universidade começou a ganhar forma no Brasil com a geração de professores e de lideranças educacionais que, nas três primeiras décadas do século XX, passaram a se interessar por essa concepção de ensino universitário associado à ciência, à reflexão e à pesquisa. Em 1916 foi criada a Sociedade Brasileira de Ciências que, em 1922, passou a ser denominada Academia Brasileira de Ciências. Em 1924 foi criada a Associação Brasileira de Educação. Essas duas instituições reuniam boa parte dos professores e educadores que iriam exercer grande influência no movimento em torno da ideia de se criar universidades no Brasil onde o ensino estaria associado à ciência, à reflexão e à pesquisa, e não mais como simples instituições de ensino do terceiro grau.

Na realidade, na década de 1920 já haviam sido criadas duas universidades; uma no Paraná em 1912 e outra, em 1920, no Rio de Janeiro, “mas nenhuma delas foi mais do que um aglomerado de escolas profissionais reunidas sob um frágil reitorado com poucas atribuições”, argumenta Simon Schwartzman1. De fato, na década de 1920, já existiam muitas instituições de ensino superior no Brasil não apenas no Rio de Janeiro e em São Paulo, mas em muitos outros Estados brasileiros. No entanto, a ideia de universidade de pesquisa era ainda um desejo ou, no máximo, uma possibilidade. Quando a Universidade de São Paulo foi criada, em 1934, essa ideia começou realmente a ganhar forma institucional. Criou-se a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL-USP) tendo em vista o fato de que as Faculdades sobre as quais a USP estava sendo formada eram, basicamente, instituições de ensino do terceiro grau, formando profissionais como médicos, advogados, engenheiros e agrônomos para quem a ciência, embora importante, era essencialmente uma referência, e não uma prática integrada à educação intelectual dos estudantes. Dessa forma, a FFCL-USP deveria introduzir na recém-criada universidade o “espírito científico”, isto é, a preocupação sistemática com a ciência e a reflexão como base da instituição, inclusive do ensino. Foi com essa preocupação que físicos, matemáticos, geólogos, químicos e pensadores sociais, vindos da Europa e dos EUA, foram integrar a primeira geração de professores e de pesquisadores da USP, acomodados, em sua grande maioria, na FFCL. Entre os nomes ilustres dessa geração podem ser lembrados os de Enrico Fermi, Gleb Wataghin, Luigi Fantapié, e dos vários integrantes da Missão Francesa tais como Roger Bastide, Paul Arbousse-Bastide, Fernand Braudel, Claude Lévi-Strauss, e Pierre Monbeig, que ganharam destaque posteriormente ou que, permanecendo no Brasil, migraram para outras faculdades ou acabaram por criar novos institutos na USP 2. Historiadores da USP costumam lembrar que Fernand Braudel, embora jamais tenha voltado a passar outra temporada no Brasil depois dos anos de USP, costumava repetir que "havia se tornado inteligente no Brasil, em São Paulo mais especificamente".

Também como antecedente importante para a criação da Universidade de Brasília, vale lembrar o ambiente efervescente no que se referia ao interesse pela atividade científica, desde os fins do século XIX. Constituíam o clima desse novo empreendimento os estudos sobre as viagens e aventuras vividas por estudiosos que, ao mesmo tempo, eram viajantes e observadores de um mundo que se transformava rapidamente. Charles Darwin não atraía a atenção de seus contemporâneos apenas por suas teorias sobre a evolução das espécies, mas jovens e mesmo jornalistas, em toda parte, interessavam-se por sua experiência em ver e observar terras desconhecidas a bordo do famoso H.M.S. Beagle. O Príncipe Albert – Consorte da Rainha Vitória – deu início às feiras mundiais industriais cuja primeira edição ocorreu em Londres, em 1851, reunindo não apenas empreendedores industriais, mas também personalidades da ciência como o próprio Charles Darwin e do mundo da cultura como Charles Dickens, Lewis Carroll, Charlotte Bronte e Alfred Tennyson. Com o mesmo espírito e com as mesmas características foram realizadas periodicamente outras feiras mundiais, em Paris e em outras capitais europeias e em outras cidades importantes de países como os EUA.

Em 1925, o Brasil recebeu a visita de Albert Einstein que, à época, juntamente com algumas figuras como Marie e Pierre Curie, pode-se dizer que era o próprio retrato da ciência uma vez que a Física, a partir dos fins do século XIX, passara a ocupar o centro das atenções das ciências e do público em geral, do mesmo modo que a Astronomia fora o centro das atenções da ciência nos séculos XVI e XVII. Os cronistas que registraram a visita de Einstein ao Brasil relatam que a palestra proferida pelo notável cientista sobre a teoria da relatividade foi muito concorrida e que boa parte da audiência era composta por pessoas completamente alheias ao mundo da ciência 3. As duas guerras mundiais e o advento da era atômica também foram fatores que reforçaram sobremaneira o interesse generalizado pela Física e pela ciência de uma forma geral. A resolução de número 1 da recém-criada Organização das Nações Unidas (ONU) estabeleceu, em 1945, o Comitê de Energia Atômica das Nações Unidas, para o qual o Governo Brasileiro designou Álvaro Alberto que, apesar de militar de carreira, sua trajetória notabilizava-se muito mais com a atividade científica, tendo sido Presidente da Academia Brasileira de Ciências. De volta ao Brasil, após a experiência das discussões no Comitê da ONU sobre Energia Nuclear, o Almirante Álvaro Alberto passou a ocupar-se com a mobilização em torno da criação do Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq) que seria estabelecido em 1951, à semelhança do que havia em países como os EUA, Reino Unido e Canadá.

Além desses, muito outros eventos poderiam ser mencionados, mostrando que a preocupação com a ciência e sua importância para a prosperidade e a segurança das nações era reconhecida em toda parte. Ainda no início da década de 1950, embora sem o glamour de Einstein, a convite do governo brasileiro, o jovem, mas já experimentado cientista, Richard P. Feynman, que havia participado do Projeto Manhattan como físico teórico, deveria ministrar uma série de palestras sobre Física Teórica, no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) na Universidade do Brasil (hoje UFRJ) e despertar o interesse dos estudantes pe-la ciência e, principalmente, pela prática da ciência 4. Nesse sentido, a ideia de uma nova universidade, mais diretamente associada à ciência, à pesquisa e à reflexão, passava a entusiasmar a política e todos aqueles que, de algum modo, pensavam que a educação e o conhecimento eram insumos essenciais ao País.

Em larga medida, a criação da Universidade de Brasília, em 1962, foi uma resultante desse ambiente francamente favorável a essa particular concepção de universidade. Institucionalmente, pode-se dizer que o delineamento do modelo de universidade foi traçado bem antes do relatório preparado pela comissão de especialistas, constituída pelo Governo Goulart e presidida por Darcy Ribeiro, com o propósito de avaliar e, eventualmente, propor a criação de uma universidade na nova Capital Federal. Como já mencionado, a ideia de uma nova universidade – uma universidade de pesquisa – vinha sendo trabalhada no Brasil há muito tempo e, de forma orgânica, chegou a ser proposta ainda na década de 1930 em torno da ideia de criação de uma Universidade do Distrito Federal, isto é, para uma universidade a ser implantada no Rio de Janeiro, quando a ideia de uma nova capital para o país ainda não passava de uma quimera. À época, os principais entusiastas dessa ideia eram Anísio Teixeira e Amoroso Costa.

Como já mencionado, a ênfase posta na Física no presente relato decorre do fato de que, até meados do século XX – no auge do interesse pela criação de universidades no Brasil – a Física ocupava o centro das atenções das ciências. Ocorria com a Física algo semelhante ao que havia ocorrido com o estudo da Astronomia que, nos tempos de Galileu e de Isaac Newton, era praticamente sinônimo de fazer ciência. O conceito de research university, no entanto, incluía também as áreas das Humanidades e das Ciências Sociais, da forma em que ocorria em universidades como Princeton, Harvard, ou Oxford. É o que explica porque a fundação da USP foi acompanhada da criação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, para a qual foram trazidas figuras como Lévi-Strauss, Roger Bastide e Fernand Braudel, não se restringindo a “cientistas” como Enrico Fermi e Gleb Wataghin. O sentido mais geral desse conceito de universidade pode ser ilustrado pelo relato de Richard Feynman, cujas vindas ao Brasil estavam vinculadas às iniciativas de instituições recém-criadas pelo Ministério da Educação e Cultura, com o propósito de formar pessoal para as universidades e incentivar a adoção do modelo de research university no Brasil 5. Feynman relata que achava bastante curioso que os estudantes brasileiros pareciam tão inteligentes e tão dedicados quanto os seus alunos de Princeton, mas que tinham dificuldade de associar o que estudavam à observação da realidade. Em um curso de Física que ministrava no CBPF – relata Feynman – os estudantes revelavam-se notavelmente atentos, anotando tudo o que falava e, por vezes, até faziam perguntas para se certificarem de que haviam anotado corretamente suas palavras. Ao abordar o tema da polarização da luz, observa Feynman, perguntara o que seria o ângulo de Brewster e, imediatamente, vários alunos levantaram a mão e a resposta viera de forma precisa, enunciando perfeitamente o conceito em questão. No entanto, como a janela da sala oferecia uma bela visão do entardecer na Baía da Guanabara, resolveu pedir aos alunos que explicassem aquela visão das cores que aquele belo entardecer oferecia. A resposta fora um silêncio constrangedor, revelando que a nenhum dos estudantes ocorria a ideia de que o espetáculo oferecido pela natureza era um fenômeno decorrente da polarização da luz. Feynman explica essa curiosa dissociação entre ciência e a observação da realidade fazendo uma comparação. Argumenta que um exemplo hipotético dessa dificuldade observada no comportamento dos estudantes brasileiros era como um estudante da língua grega que, diante de uma banca de exame, é perguntado sobre “Quais as ideias de Sócrates sobre a relação entre Verdade e Beleza?” – e o estudante não consegue responder. Então a banca refaz a questão: “O que Sócrates disse a Platão no Terceiro Simpósio?” O estudante fica feliz e responde “Sócrates disse isso, aquilo e aquilo outro...”, reproduzindo tudo o que Sócrates havia dito no Terceiro Simpósio, palavra por palavra, explicando justamente a sua visão sobre a relação entre verdade e beleza 6. Esse relato de Feynman ilustra de forma magistral a diferença entre o ensino do terceiro grau que era praticado no Brasil – voltado para responder perguntas em provas e em concursos públicos – e o conceito de research university no qual o ensino é orientado para o desenvolvimento do conhecimento voltado para a compreensão da realidade física, social, política e cultural dentro da qual a existência humana se desenvolve.

Em larga medida, a criação da Universidade de Brasília foi produto dessa concepção de universidade, que servia de motivação para aquela geração nascida entre os fins do século XIX e as primeiras décadas do século XX como Anísio Teixeira, Amoroso Costa, Victor Nunes Leal, Darcy Ribeiro, Júlio Mesquita Filho, Fernando de Azevedo e Armando de Sales Oliveira. Essas lideranças políticas e intelectuais tiveram papel destacado na criação das primeiras universidades no Brasil entre as décadas de 1930 e 1960. A particularidade da Universidade de Brasília é que, desde o início, fora concebida totalmente como research university, diferente da USP, por exemplo, cuja fundação se deu a partir da criação da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras, que deveria “irrigar” o desenvolvimento do espírito científico por tradicionais instituições de ensino do terceiro grau que já existiam desde o século XIX. No caso da UnB, desde o início, os cursos deveriam ser estruturados em torno de campos do conhecimento, que deveriam orientar até mesmo a implantação de cursos tradicionais como o Direito, a Medicina e as Engenharias. Por essa razão, sua estrutura administrativa inicial foi implantada em torno de Institutos e de Departamentos, enquanto os cur-sos foram organizados de forma de créditos cumpridos de maneira interdisciplinar. A esses recursos organizacionais, somava-se a orientação tutorial dos cursos, isto é, os estudantes eram orientados individualmente por docentes que deveriam cuidar de sua formação, desde a orientação na escolha das disciplinas que deveriam frequentar em cada semestre até auxiliar em providências diversas que ajudassem na formação geral e particular de cada discente. Para os que militam hoje na docência universitária, essa tutoria poderia ser compreendida como algo como se cada estudante da UnB pertencesse a um programa PET, isto é, pertencesse a um grupo permanente de estudos composto por uma dezena de estudantes orientados sistematicamente por um professor tutor.

Também vale a pena chamar a atenção para a originalidade da concepção administrativa e financeira da Universidade de Brasília. Quando a UnB foi criada, em 1962, ficou estabelecido que a universidade seria organizada na forma de uma fundação pública (Fundação Universidade de Brasília - FUB) com autonomia didática e, em larga medida, também financeira, já que foi atribuída à FUB uma larga extensão de terras que se estendia por considerável parte da Asa Norte.

A administração por meio de uma fundação pública permitia que houvesse mais flexibilidade administrativa como, por exemplo, a contratação de professores e de funcionários técnico-administrativos pelo Regime CLT, isto é, pelo mesmo regime que rege a vida profissional nas indústrias e nas empresas privadas, que empregam mais de 90% da força de trabalho no Brasil. Do ponto de vista financeiro, a incorporação de considerável extensão de terrenos no Plano Piloto de Brasília ao patrimônio da UnB permitia que, no longo prazo, a universidade dispusesse de uma fonte de recursos que poderia servir para dar sustentação às suas atividades fins. Esse mecanismo era, na verdade, uma adaptação brasileira dos endowments que proporcionam recursos para o funcionamento das grandes universidades americanas. De forma simplificada, nas grandes universidades americanas o endowment é um fundo de investimento que geralmente resulta de doações feitas por indivíduos, empresas e organizações de benemerência, que doam esses recursos para universidades as quais, assim, podem dispor dos ganhos resultantes de investimentos no mercado de ativos financeiros para financiar as atividades fins da universidade 7. Hoje, o mercado de capitais no Brasil já atingiu uma certa maturidade mas, no início dos anos 1960, esse mercado era ainda bastante incipiente e precário, e aplicações em patrimônio imobiliário era o que caracterizava os investimentos de longo prazo no Brasil. Por essa razão, a iniciativa de equipar a UnB com um endowment ganhou a forma de lotes de terrenos na Asa Norte, nos quais a universidade poderia construir e obter rendimentos para serem aplicados em suas atividades fins.

NOTAS

  EIITI SATO é Professor Doutor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília.

 1 S. SCHWARTZMAN, em Um Espaço para a Ciência. MCT/CNPq/CEE, Brasília, 2001 (p.147) relata que a Universidade do Rio de Janeiro, criada em 1920, reunia as Escolas de Engenharia, de Medicina e de Direito que, embora de qualidade reconhecida eram, tipicamente, instituições de ensino do terceiro grau.

 2 Conforme os historiadores da educação, a palavra missão, evidenciava que o Brasil era ainda visto como uma nação de padrões educacionais precários e, efetivamente, a grande maioria dos integrantes dessa missão francesa não passavam de jovens promissores, ainda sem uma obra acadêmica e científica.

 3 ALFREDO T. TOMALSQUIM, "Einstein no Rio de Janeiro: Impressões de Viagem". In: PARCERIAS ESTRATÉGICAS, no. 8, Maio/2000. (313-330).

 RICHARD FEYNMAN ganhou o Prêmio Nobel de Física em 1965. Sua experiência no Brasil, especialmente no que se refere ao ensino voltado para a ciência, é narrada no livro, de sua autoria, intitulado: Deve Ser Brincadeira, Sr. Feynman, Brasília: Editora da UnB, 2000.

 5 Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP) e Campanha (hoje Coordenação) Nacional de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) que estavam sob o comando de Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro.

 6 Esse relato é feito por Richard Feynman no capítulo intitulado “O Americano outra Vez” de seu livro, já citado,  Deve ser Brincadeira Sr. Feynman (pp. 225-245).

 7 De acordo com o Office of Communications da Universidade de Princeton (PAW Archives) em 2021 o endowment da Universidade de Princeton totalizava cerca de US$ 37 bilhões que, na hipótese de que esse endowment tivesse proporcionado um rendimento de 10% ao longo do ano, Princeton teria tido algo como US$ 3,7 bilhões para investir em programas e projetos de pesquisa, bolsas de estudo, professores visitantes e outras atividades fins.