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EIITI SATO - UMA DESPEDIDA

EIITI SATO - UMA DESPEDIDA

Professor Doutor Eiiti Sato: quarenta anos de pesquisa e docência no Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília.

Em momentos de despedida, há sempre o impulso inevitável de se fazer um balanço da fase da vida e do tempo de convivência que marcam essa despedida. Entendo que recebi da Universidade de Brasília muito mais do que dei, e a razão é bastante simples: as instituições são criadas para estender as habilidades e a capacidade de realização coletiva dos seres humanos.

Nos primeiros anos da revolução industrial, dizia-se que as máquinas serviam para multiplicar a força humana. Na esfera social, pode-se dizer que as instituições ampliam e dão curso ao talento e às habilidades dos seres humanos. Assim, um professor só pode dar curso pleno às demandas de sua alma e de suas habilidades se tiver uma escola, uma universidade, para atuar. Um professor sem escola é um estadista sem um Estado para exercer sua liderança; é um Michelangelo sem mármore para esculpir; ou um Rembrandt sem uma tela para expressar sua arte. Dessa forma, sou grato à Universidade de Brasília, que me proporcionou a oportunidade e o ambiente para ser um professor. Na minha trajetória de quatro décadas como professor da UnB, pude conviver e compartilhar a docência com notáveis professores brasileiros e estrangeiros, não apenas em seminários e encontros no Brasil ou no exterior. Mesmo nos cursos regulares oferecidos pela UnB, foi possível compartilhar a convivência acadêmica com personalidades que se tornariam figuras públicas notáveis no Brasil e em instâncias internacionais.

Por outro lado, pude também ter a alegria de ver seguidas turmas de alunos de Relações Internacionais concluírem com sucesso seu curso, e vi também muitos deles se afirmarem em suas carreiras, como profissionais de respeito, destacando-se na diplomacia, na política, em organizações internacionais e também no mundo da academia e das corporações empresariais. Em geral envolvidos na promoção de louváveis causas sociais.

Foi também no ambiente da Universidade de Brasília que pude aprimorar minhas percepções sobre o país, sobre o mundo e sobre a vida. Na universidade fui desafiado a pensar que as fronteiras do conhecimento estão sempre além do que já foi dito e além do que já foi escrito. Aprendi que em uma universidade de pesquisa, como foi originalmente concebida a UnB, ensinar e fazer ciência são uma coisa só. Em uma universidade de pesquisa, nas ciências físicas, o que se ensina nas salas de aula, acompanha o que se faz nos laboratórios enquanto, nas ciências humanas e sociais – como é o caso das Relações Internacionais – o ensino tem suas raízes no estudo e na reflexão dos fenômenos humanos e sociais. É esse fato que, no fundo, explica porque muitos escritos de autores notáveis como Norberto Bobbio, John Maynard Keynes, Francisco de Vitória e Henri Bergson tiveram por origem tanto as observações empíricas do mundo quanto os cursos que ministravam em suas universidades. Por essa razão esses escritos refletem tão bem o tempo e o mundo em que viveram e exerceram sua missão de professor.

Nesta despedida, o sentimento que se destaca é o da gratidão. Gratidão à UnB como instituição, como já foi destacado. Gratidão aos colegas professores por sua amizade e compreensão e que, generosamente, sempre compartilharam comigo a docência e a reflexão, e também as dificuldades e oportunidades da vida acadêmica. Gratidão aos funcionários técnico-administrativos da UnB – mais particularmente, do antigo Departamento de Ciência Política e Relações Internacionais e, depois, do Instituto de Relações Internacionais – que, com sua paciência e com sua dedicação, tornaram o meu ambiente de convivência profissional mais gentil e mais produtivo. Em muitas ocasiões foram eles que ajudaram a aliviar as tensões decorrentes de problemas do dia a dia da universidade que, por vezes, pareciam virtualmente insolúveis. O sentimento de gratidão se estende também aos estudantes que souberam extrair até das minhas dúvidas e das minhas insuficiências, algum ensinamento e, com o passar do tempo, com orgulho, posso dizer que muitos deles, de alunos, transformaram-se em meus amigos. Em um momento como esse, também é impossível deixar de se sentir abençoado por pertencer a uma família que, além de me proporcionar a educação de qualidade de que pude me beneficiar, foi o ponto de apoio e de segurança, de todas as formas, ao longo da minha carreira. Agradeço ainda pela sorte e pelo privilégio de ter tido grandes amigos desde a juventude nos anos passados no velho e saudoso bairro da Aclimação em São Paulo e, depois, por ter conhecido e participado do grupo de estudantes que se aglutinavam em torno do CLACE, com os quais desenvolvi o gosto pelo estudo e pela reflexão e a admiração pelas virtudes morais que ajudam a dar sentido e hierarquia ao conhecimento.

Nesta altura da vida, em que as experiências vividas já me proporcionaram tantas alegrias, mas também momentos difíceis de tristeza e de decepções, ocorreu-me pensar no kintsugi, que é uma arte japonesa antiga que consiste na restauração de objetos preservando as marcas do tempo. Ao invés de apagar as feridas do tempo, essa arte acrescenta à forma original dos objetos, a beleza impressa pelas marcas do tempo, estimulando a imaginação criadora do observador. Um objeto restaurado, tornado "novinho", jamais terá o mesmo valor de um objeto restaurado por meio da arte do kintsugi, que acrescenta vida e alma à forma original do objeto. Assim, neste momento de despedida, o que espero é que eu seja visto não somente como um ser que conclui uma jornada, mas como aquela peça de cerâmica que esteve presente em banquetes reais e que também foi útil em momentos em que foi preciso servir água ao caminhante desconhecido ou ao soldado ferido em uma batalha pela justiça e pela paz.

Entre os muitos legados, o profesor e pensador José Ortega y Gasset nos deixou a famosa e inquietante frase: “Yo soy yo y mi circunstância, y si no la salvo a ella no me salvo yo”. De fato, o sentimento de responsabilidade para com o seu meio e com o seu tempo, faz parte das missões de um professor. Apesar de belo, parece ser um destino inevitável para o professor, o sentimento de ser essa uma missão fadada a não ser jamais completada, por mais dedicado que seja o professor. As gerações se sucedem e os tempos mudam. Esse é o ciclo natural da vida. Em um tempo de grandes transformações, em que até mesmo os valores parecem mudar e perder seu brilho, como acontece neste mundo em que vivemos, a sensação de impotência torna-se maior e mais evidente, sugerindo que o sentido mais preciso da frase de Ortega y Gasset, é a ideia de que cabe a cada professor, com sua mente treinada para a reflexão e o magistério, ajudar seus contemporâneos, sobretudo os jovens, a melhor compreender e a enfrentar com mais dignidade os problemas e os desafios de seu respectivo tempo.

Brasília, Agosto/Setembro de 2022