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CURSO DE INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO POLÍTICO BRASILEIRO - Programa e 1ª Aula

O Curso de Introdução ao Pensamento Político Brasileiro, na sua versão resumida, é oferecido, hoje, pelo Instituto de Humanidades. Seis aulas integram este Curso, que foi redigido por Antônio Paim e Ricardo Vélez Rodríguez, em 1983, com a finalidade de divulgar as ideias básicas do Curso homônimo, publicado, em primeira edição, em 13 volumes, pela Universidade de Brasília [Cf. Paim, A. -organizador- 1982] e, em segunda edição, pela Universidade Gama Filho [Cf. Paim, A. –organizador- 1995].

A ideia original era oferecer, seguindo o modelo da “Universidade Aberta” existente, no início dos anos 80, nos Estados Unidos e na Inglaterra, um Curso que oferecesse, aos alunos, material bibliográfico e documental, a fim de que acompanhassem o processo evolutivo do pensamento político brasileiro. A ideia da Universidade Aberta era uma proposta do então reitor da UnB, professor José Carlos de Almeida Azevedo (1932-2010), que considerava que a Universidade deveria se tornar presente no seio da sociedade, através de atividades desescolarizadas que visavam a uma democratização do conhecimento, sem por isso deixar de zelar pela qualidade dos materiais estudados.

A versão original do Curso de Introdução ao Pensamento Político Brasileiro consistia numa coleção de 13 obras, escritas por professores especialistas na matéria e que seriam estudadas pelos alunos que tivessem se matriculado no Curso de Extensão da UnB.

A versão resumida, que aqui é apresentada, consta de seis aulas introdutórias. Em 1983 esta versão foi oferecida através da imprensa de várias cidades do país, em aulas a serem veiculadas por jornais que fizessem convênio com o Decanato de Extensão da UnB, à cuja frente estava o professor e diplomata Carlos Henrique Cardim. O programa era oferecido como “Curso de extensão universitária à distância”. Uma vez por semana era publicado, no jornal conveniado, o texto correspondente. Foi grande a expectativa que suscitaram essas aulas e a busca pelo curso foi enorme, tendo superado todas as expectativas do Decanato de Extensão. No final das atividades abria-se espaço para uma avaliação do aluno, por parte da equipe de professores da UnB, que atendia as atividades de extensão. O aluno deveria escrever uma breve monografia (três páginas datilografadas ou seis páginas manuscritas, sobre o tema de alguma das aulas do Curso). A inscrição no Curso era gratuita, bastando com encaminhar, ao Decanato de Extensão, um cupom que aparecia no jornal, junto à primeira Aula. O trabalho de avaliação deveria ser remetido ao Decanato de Extensão, numa data previamente fixada. O aluno aprovado receberia, via correio, um certificado de extensão da Un. B. Os autores dos dez melhores trabalhos receberiam prêmios escolhidos entre as publicações da Universidade.

Hoje, contando com o auxílio da internet e das plataformas digitais, o Curso é de novo oferecido, através deste Portal, conveniado com o Instituto de Humanidades. A estrutura mudou e tornou-se mais ágil. É, basicamente, um Curso introdutório, em linguagem simples, com o intuito apenas de familiarizar o leitor com os temas que serão abordados. Sugestões e críticas podem ser encaminhadas a este blog. O nosso interesse, é, apenas, informar e estimular para abordagens mais aprofundadas, conferindo a bibliografia, notadamente os treze volumes das coleções que foram publicadas pela UnB. e pela Universidade Gama Filho.

Programa.

Primeira Aula: “Primórdios do liberalismo e liberalismo e representação”.

Segunda Aula: “O Poder Moderador e a propaganda republicana”.

Terceira Aula: “Ditadura republicana, apostolado positivista e liberalismo, autoritarismo e conservadorismo na República Velha”.

Quarta Aula: “O castilhismo e o trabalhismo após 30”.

Quinta Aula: “O socialismo e o integralismo”.

Sexta Aula: “A opção totalitária e correntes e temas políticos contemporâneos”.

Primeira Aula: Primórdios do liberalismo e liberalismo e representação”.

O Curso sobre o Pensamento Político Brasileiro apresenta, nos dois blocos da sua primeira aula, um panorama das origens e do desenvolvimento ideológico que instruiu e orientou a formação e os primeiros passos do Estado brasileiro. Baseada em textos do professor Vicente Barretto, resumidos aqui por Antônio Paim e Ricardo Vélez Rodríguez, a primeira aula mostra a influência que, apesar das distorções impostas pelo autoritarismo do regime português e pelas próprias condições de vida no Brasil, o Liberalismo exerceu na construção das nossas primeiras estruturas políticas. Os alunos vão encontrar as principais correntes do pensamento que animou a vida brasileira, desde as primeiras manifestações do nativismo político dos fins do século XVIII, até as formulações e preocupações que marcaram as nossas instituições políticas do Primeiro Império. Como leitura complementar foram incluídos, nesta aula, dois textos que ilustram posições de autores da época, face ao problema da representação.

O texto desta primeira aula será dividido em dois itens: I - Primórdios do Liberalismo e II - Liberalismo e representação: o período imperial.

I – Primórdios do Liberalismo.

A organização da nova forma de poder, baseada no sistema representativo, cuja doutrina encontra-se no Segundo tratado do governo civil (1680) de John Locke (1632-1704), fundamenta-se nas posses. Os cidadãos, para se tornarem elegíveis, deviam possuir determinada quantidade de bens, o mesmo exigindo-se dos eleitores.

A discussão da ideia liberal no Brasil seria fenômeno tardio, posterior à mudança da Corte para o Rio de Janeiro. Nesta unidade inicial serão considerados estes temas: 1 – A versão original do liberalismo; 2 – O momento pombalino; 3 – A Inconfidência e o panorama cultural na Colônia; 4 – O liberalismo radical; 5 – O liberalismo constitucional.

1 – A versão original do Liberalismo.

A ideia liberal somente veio a ser chamada de Liberalismo na segunda metade do século XIX. As ideias que constituem o fundo da fé liberal giravam em torno à liberdade e às condições políticas e sociais para garanti-la. É liberal a ideia de que o homem tem a liberdade de escolher sua vida, os seus objetivos, e de que o governo não pode negar essa capacidade.

Somente nos primeiros decênios do século XIX, quando o pensamento liberal já havia assumido inúmeros matizes na Europa, seu debate é impulsionado no Brasil, para onde se trasladara a Corte. Afora esse fato, num primeiro ciclo, a tarefa maior consistia em alcançar e consolidar a independência. Finalmente, vencida essa fase, havia que manter a unidade nacional e coexistir com um regime de produção apoiado no braço escravo.

Os séculos XVI e XVII, na história do pensamento ocidental, caracterizam-se por uma ruptura com a tradição clássica e medieval. A lei natural, que até então tinha sido concebida dentro da tradição cristã, passou, a partir de Jean Bodin (1530-1596), a ser entendida como uma manifestação não divina. A separação definitiva entre o humano e o intemporal veio a ser completada 50 anos depois da morte de Bodin, através da obra de Hugo Grotius (1583-1645).

Existe uma distinção fundamental entre as ideias de Grotius e o pensamento absolutista da época representado por Bodin e Thomas Hobbes (1588-1679). Diferentes quanto aos princípios, estes dois autores identificam-se quanto ao método, pois ambos voltam, sempre, à hipótese fundamental do contrato social.

John Locke, o pai do liberalismo inglês, aceita o ensinamento de Grotius e Hobbes, modificando o deste último e definindo, assim, pela primeira vez, o corpo básico da doutrina liberal. Como Hobbes, considera que o homem no estado natural vive em guerra, porque ainda não tem princípios morais. Para Hobbes, o governo absoluto disciplina a irracionalidade humana, identificando assim o bem comum com o bem do Estado. Locke estabelece neste ponto a diferença entre uma e outra doutrina. Para ele, a causa do bem comum reside no bem-estar individual.

Essa é a origem do individualismo de Locke, que serviria como ponto de partida para todo o desenvolvimento do liberalismo e que iria estar sempre presente nas doutrinas liberais dos últimos dois séculos, seja explícita ou implicitamente.

Ao lado de Locke, a contribuição de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) foi a mais importante para a formação da ideia liberal. A versão radical do liberalismo aparece com este último autor, para quem a política seria o reino da unanimidade, sendo, portanto, a primeira tarefa aquela que garantiria a implantação, no corpo político, da unanimidade. Na tentativa de tornar realidade esse modelo, qualquer meio seria válido para garantir a unanimidade, sendo o primeiro passo a eliminação da dissidência pelos “puros’”, aqueles que garantiriam o domínio inconteste da vontade geral, pois se identificariam totalmente com ela. Diferia a teoria de Rousseau da professada por Locke, para quem haveria espaço para a diversidade de posições na defesa dos interesses do indivíduo, sendo necessária, à construção do Estado, uma tarefa constante de obtenção de consensos entre os cidadãos.

O funcionamento do Estado liberal e os primeiros frutos políticos, econômicos, sociais e culturais da Revolução Industrial fizeram aparecer novas forças, no mercado de trabalho, além do capital. Então, dentre os próximos termos competitivos da sociedade liberal, outros tipos de exigências vieram a ser feitas. Mesmo aqueles que não tinham propriedade passaram a ter vez na direção dos assuntos da sociedade. A democracia deixou de ser uma ameaça ao Estado Liberal e tornou-se uma das suas realizações.

Dentro desse clima intelectual, pensaram e escreveram os brasileiros do século XVIII e início do XIX. Suas fontes, raramente originais, provocaram, como veremos, algumas construções esdrúxulas. O pensamento liberal no Brasil foi sendo elaborado empiricamente e também em situação política, social, econômica e cultural diferente da dos países anglo-saxões, onde melhor frutificou.

2 – O momento pombalino.

Travou-se, no século XVIII, em Portugal, uma luta entre o reacionarismo intelectual e o absolutismo monárquico e as ideias filosóficas, estéticas e políticas do Iluminismo. O humanismo, nascido precisamente das novas descobertas marítimas, alargara a visão do homem europeu. Existia uma rápida substituição de valores. Os descobrimentos retificavam conceitos e ideias que não correspondiam à realidade do mundo. A própria tradição da cultura portuguesa era empírica.

A Contra-Reforma, iniciada por dom João III (1502-1557), o “Beato” ou o “Piedoso”, rompeu com essa tradição. A Universidade de Coimbra foi entregue aos jesuítas. O estabelecimento do Santo Ofício, em 1536, veio aprofundar ainda mais a cisão com a tradição intelectual. No terreno das ideias, o empirismo até então vigente, o saber prático e operacional, foi substituído pelo culto da forma. Enquanto isto ocorria em Portugal, nos outros países europeus o capitalismo nascente, aliado à crescente inquietude e curiosidade científica e intelectual, servia como elemento propulsor da sociedade.

Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782), marquês de Pombal, primeiro ministro do rei Dom José I (1714-1777), chamado o “Reformador”, ao optar pela restauração da autoridade monárquica e a simultânea modernização de Portugal, expulsou os jesuítas e, ao mesmo tempo, atualizou o sistema pedagógico. Isto, porém, sem fazer qualquer concessão quanto à natureza do poder real. Essa reforma, na realidade, abriu para os alunos um mundo novo. Formaram-se, na Universidade restaurada, alunos mais preocupados com a realidade concreta do que com a erudição livresca e abstrata. A inteligência preparava-se para o recebimento, depois das luzes científicas, das políticas sociais.

Todo este movimento de reforma da Universidade foi vivido pelos brasileiros que estudaram em Coimbra na época pombalina. Os fundadores da nossa nacionalidade tiveram, precisamente, essa formação intelectual. Muitas das contradições ou simples conclusões ilógicas, como acontece, por exemplo, na obra de Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), têm sua origem na formação educacional da Universidade pombalina.

Lá estudaram, nesta época, alguns dos nossos primeiros cientistas, políticos e homens de Estado. Encontramos entre seus alunos José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), Conceição Veloso, Arruda Câmara, Câmara Bittencourt de Sá, Silva Alvarenga, Alexandre Rodrigues Ferreira, José da Silva Lisboa, Cipriano Barata, Antônio Carlos de Andrada e Silva, Hipólito da Costa, Maciel da Costa, José Vieira Couto e muitos outros.

Através desses homens, as primeiras ideias liberais foram transplantadas para o Brasil. No reinado de Dona Maria I (1734-1816), sob o qual ocorreu a fuga do Príncipe Regente, futuro dom João VI (1767-1826) para o Brasil, a temática liberal não foi plenamente desenvolvida. Contudo, as tentativas encontradas na Inconfidência Mineira (1792), na Conjuração Carioca (1794), na Conjuração Baiana (1798) e na Revolução de Pernambuco (1817) vieram mostrar que estavam sendo lançadas as raízes do liberalismo brasileiro, ideário que somente vingaria na Independência.

3 – A Inconfidência e o panorama cultural na Colônia.

O Brasil, no dizer amável de D. João VI, “era a vaca leiteira de Portugal”. O nativismo nascido no século XVII foi a primeira manifestação de sentimento coletivo e compreensão dos interesses e objetivos comuns dos habitantes da colônia. A conquista e a defesa da terra, durante os séculos XVI e XVII, marcaram o caráter doa baianos, pernambucanos e paulistas. O ciclo do açúcar criara, no início do século XVIII, uma sociedade que despertava. O ciclo do ouro, como mostra João Camillo de Oliveira Torres (1915-1973), veio criar um novo tipo de organização social. A cidade mineira apresentou características próprias, notando-se os primeiros sinais de concentração urbana. A estrutura social montada pelo explorador do ouro permitiu o aparecimento de uma incipiente classe média urbana. Alie-se ao tipo de estrutura social o fato de ir para Minas Gerais uma enorme leva de funcionários, magistrados e personagens da Corte.

Funcionando dentro dessa estrutura, surgia na cidade a classe média. Em Minas, formada por funcionários, padres e brancos não senhores; em Pernambuco, por comerciantes, padres, brancos, portugueses e brasileiros; Na Bahia, por artesãos, oficiais, soldados, padres, brancos e mulatos. Essa nova classe, com exigências próprias, principiando pela atividade comercial, iria ter o terreno onde melhor fermentariam as ideias revolucionárias do século XVIII.

A história ideológica das revoluções burguesas, no Brasil do século XVIII, processa-se dentro de um modelo político em que o Estado português, apoiado nos governadores e na aristocracia da terra, oprimia e regulava com mão de ferro todas as possibilidades de desenvolvimento autônomo do Brasil.

Estava formada a cadeia dentro da qual iria desenrolar-se a crise da Inconfidência. De um lado, o exaurimento das minas de ouro, acompanhado da política monopolística de Portugal; por outro lado, através dos doutores de Coimbra, dos padres e dos viajantes, transmitem-se para o Brasil as ideias francesas e o exemplo da Revolução Americana.

Tradicionalmente as questões de educação e cultura foram entregues à Igreja, especialmente aos jesuítas, desde o início da colonização. Este Estado incompetente absorveu, de repente, as obrigações cumpridas pelos jesuítas. Dessas escolas régias, com suas graves deficiências estruturais e pedagógicas, iria sair, para os bancos das Universidades europeias, ou para a vida prática, a primeira geração de políticos, publicistas e intelectuais brasileiros.

A reforma do ensino de Pombal iria criar uma geração brilhante de naturalistas, cientistas e homens públicos, com as limitações que a própria filosofia da reforma impunha. A incipiente ideologia que iremos encontrar na Inconfidência Mineira reflete a problemática e pouco definida situação ideológica da metrópole transplantada para o Brasil. O nativismo necessitou de muletas ideológicas, que foram encontradas na França e no exemplo americano. O individualismo possessivo vestiu ideologicamente a burguesia diante do Estado. O liberalismo inconfidente refletia, do ponto de vista econômico, a frustração da nascente burguesia nacional com o fracasso do sistema político, administrativo e social instalado por Portugal no Brasil.

Encontramos, presentes na Inconfidência, duas linhas ideológicas definidas e superpostas. De um lado, o nativismo libertário de Joaquim José da Silva Xavier, o “Tiradentes” (1746-1792), que acabou, no balanço geral do movimento, absorvido pelo iluminismo revolucionário da elite social que participou do movimento.

”O espírito do tempo” marcou os nossos inconfidentes. Parece, porém, que os conspiradores não foram além de discutir as ideias mais gerais de todo o movimento iluminista. Na colônia, o poder efetivo, contrapondo-se ao poder administrativo dos funcionários da Coroa, residia no senhor da fazenda, de terras e da casa grande. Ocorreu então o fenômeno observado por Nestor Duarte (1902-1970). O poder privado constituiu, na verdade, o poder político e, por essa razão, a conscientização da pequena elite de inconfidentes não teria a menor influência na estrutura do poder colonial.

Explica-se, assim, diante da impraticabilidade real e efetiva de realizar suas esperanças, a falta de precisão dos inconfidentes, a propósito da forma do novo Estado que desejavam estabelecer. A frágil concepção republicana seria complementada por igualmente pouco elaboradas ideias sobre a nova nação.

4 – O liberalismo radical.

Muitos dos impasses do pensamento político até o final da segunda década do século XIX devem ser atribuídos a uma formação intelectual defeituosa, na qual a razão ficava liberta das peias religiosas e da superstição científica e, ao mesmo tempo, era imediatamente canalizada para a pesquisa e descoberta do mundo natural. Nasceu daí a contradição profunda do liberalismo, na época, e que viria atingir o seu paroxismo no radicalismo do Frei Joaquim do Amor Divino Rabelo e Caneca (1779-1825).

O exemplo mais marcante desta distorção foi o próprio fundador do Seminário de Olinda, o bispo Dom Joaquim da Cunha Azeredo Coutinho (1742-1821), típico representante do homem culto do Iluminismo. Liberal nas ideias, porém, um conservador convicto. O papel desempenhado pelo Seminário de Olinda foi decisivo na evolução posterior do liberalismo em Pernambuco. Existiu, no entanto, uma aguda defasagem entre as ideias do fundador e as de seu sucessores. O liberalismo de Dom Azeredo Coutinho parava nos limites da pedagogia moderna aplicada ao estudo das primeiras letras, das ciências e das técnicas. Nos anos que se seguiram, o Seminário de Olinda transformou-se num centro gerador de ideias políticas e foi lá que se formaram os revolucionários de 1817 e alguns dos líderes do movimento da independência.

O clero, primeiro do que qualquer outra comunidade nacional, compreendeu, na época colonial, a dependência do Brasil em relação a Portugal e a Igreja firmou-se como um outro poder diante do Estado, o que viria a se refletir na participação política do clero.

Essas contradições levariam os brasileiros a tratar o problema da institucionalização do regime liberal, de forma circunstancial. A paixão política e a insuficiência teórica encaminhariam o contraditório processo de 1817 para o caminho ideológico escolhido por Frei Joaquim do Amor Divino Rabelo e Caneca, a expressão do liberalismo em sua forma mais radical.

Os pernambucanos haviam aceitado a monarquia constitucional proposta por Dom Pedro I (1798-1834), em virtude das circunstâncias do movimento da independência, mas Frei Caneca afirmava que “os povos seguem a doutrina liberal; não são obrigados a obedecer aos seus governantes, quando as ordens se chocam com as leis natural e divina”. Neste texto, Frei Caneca expressa duas ideias básicas da ideologia liberal: a – o direito à revolução; b – a representação como instrumento da vontade popular.

O conceito de representação vinha mostrar a pouca elaboração que tivera no Brasil a ideologia liberal. Frei Caneca, sentimentalmente ligado à manifestação popular, não desenvolveu o conceito de representação porque não herdou a confiança no homem comum da tradição liberal. A inadequação entre o sentimento e a ideologia atingiu seu paroxismo durante a crise de fechamento da Assembleia Constituinte, onde defrontaram-se duas forças políticas definidas; de um lado, o liberalismo, consciente da necessidade de organizar o Estado e implementar o exercício do poder; de outro, o liberalismo, que aceitara a monarquia constitucional como solução provisória e mais identificado com a ideia de república do que com a constituição de uma ordem política e social garantidora dos direitos e liberdades individuais. Dissolvida a Constituinte, Dom Pedro I envia às Câmaras Municipais o novo projeto que, outorgado por ato seu, deveria receber a sanção popular através das municipalidades.

A crítica de Frei Caneca ao Projeto de Constituição demarcou algumas teses básicas do liberalismo brasileiro. A defesa da federação viria caracterizar uma das bandeiras. O poder moderador é considerado “a chave mestra da opressão da nação brasileira e o garrote mais forte da liberdade dos povos”. Observa-se, na linhagem intelectual do liberalismo radical, a perplexidade, sempre presente, diante do exercício do poder. Enquanto isso, o problema da origem da autoridade política colocava-se com clareza e precisão.

As rupturas ideológicas que se encontram no radicalismo devem ser atribuídas, também, à necessidade imediata da ação política. O radicalismo representou, socialmente, em última análise, a expressão ideológica, levada às últimas consequências, da nascente burguesia urbana do Brasil. As construções teóricas para justificar essas aspirações falharam, muitas vezes, pelas condições em que foram transpostas e aqui interpretadas as ideias políticas e sociais da época.

5 – O liberalismo constitucional.

O liberalismo brasileiro encontrou a sua forma mais elaborada na obra de Hipólito da Costa (1774-1823) e Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846). Ali se lançaram, na verdade, os fundamentos teóricos incorporados à cultura política da época. O liberalismo brasileiro identifica-se, originariamente, como uma forma cabocla do liberalismo anglo-saxão. Nele não encontramos os anseios de democracia e igualdade existentes no liberalismo de raízes rousseaunianas. O liberalismo no Brasil não se confundiu com a liberação de uma ordem absolutista, mas com a necessidade de ordenação do poder nacional.

O papel do Estado seria o de promover o bem comum, e por isso era necessário que se fizessem reformas. Essas reformas, porém, deveriam partir do Governo e não do povo.

A ideia implícita de que tudo deveria ser feito para o povo, mas nada pelo povo, antepunha-se ao liberalismo radical expresso pelos pensadores revolucionários. Outra característica que irá informar a feição vitoriosa da ideia liberal no pensamento brasileiro é a de que cabe ao Estado papel preponderante na sociedade. A anarquia revolucionária constituía a maior ameaça ao bem supremo, à liberdade. Esta somente seria garantida quando o regime estabelecido, pela lei, pudesse ordenar os diversificados interesses políticos e econômicos vigentes na sociedade.

Esse temor fez com que o liberalismo advogasse o fortalecimento do poder através de reformas. Lutava, porém, não pelo poder absoluto, no qual a vontade real e a aristocracia constituíssem a lei magna, mas por um Estado que incorporasse o proprietário de terras, o comerciante e a burguesia urbana. Procurou-se, em última análise, a cooptação, pelo Estado patrimonialista português, de grupos sociais que terminariam por modificar a sua própria essência.

A mesma preocupação encontrada em Hipólito da Costa quanto à necessidade de institucionalização legal do poder, será desenvolvida por Silvestre Pinheiro Ferreira. A reforma da monarquia, no entanto, deveria ser feita evitando-se, sempre, a ameaça democrática.

O mesmo fator de estabilidade – a autoridade real – apontado por Hipólito da Costa e por José Bonifácio, é explicitado por Silvestre Pinheiro Ferreira. A tranquilidade do Estado e a felicidade da Nação são inconcebíveis, a não ser que a realização das reformas liberais seja feita pela autoridade monárquica. No entanto, a fidelidade à monarquia não significava a defesa dos privilégios aristocráticos, A aristocracia, fundamento do Estado patrimonial, representava, para Silvestre Pinheiro Ferreira, um fator de desequilíbrio social. O liberalismo representou a tentativa ideológica de ruptura do círculo de ferro estabelecido pela aristocracia em torno dos centros de poder. O Estado deveria ser o instrumento, pois a sorte da autoridade real – este é o ponto a assinalar - não se deveria deixar identificar com a sorte da aristocracia. No fundo, o que os liberais solicitavam era a correção dos abusos aristocráticos através da monarquia constitucional. O sistema monárquico constitucional teria o seu funcionamento baseado na representação política. A representação seria, portanto, o meio de controle do poder executivo, sendo essa função exercida, principalmente, na atividade que mais diretamente incidia sobre os interesses econômicos da burguesia, isto é, a função tributária. Este sentimento do papel restrito da representação política é que provocou o choque havido, na Assembleia Constituinte de 1823, entre radicais e liberais.

Os liberais, dentro das linhas doutrinárias comuns à época, distinguiam o Poder Constituinte do Poder do Monarca. Este último antecedia o Poder Constituinte e tivera sua origem no pacto originário da monarquia brasileira, quando o povo, reunido em praça pública, solicitara ao Príncipe Dom Pedro, que ficasse no Brasil.

Nascia, nas discussões da Constituinte, a ideia de que a representação nacional era o poder maior.

II - Liberalismo e representação: o período imperial.

O liberalismo, na sua versão originária, propunha-se a retirar a classe proprietária do arbítrio do monarca, definindo direitos e liberdades. O sistema jurídico que organizou as relações entre o monarca e os proprietários, e entre os proprietários, chamou-se “estado de direito”. Visava, primordialmente, à defesa da propriedade e à disciplina dos interesses individuais. Serão desenvolvidos, neste item, dois pontos: 1 – Vários estágios na democratização da ideia liberal e 2 – A principal questão: organizar a representação.

1 – Vários estágios na democratização da ideia liberal.

O processo de democratização da ideia liberal experimenta vários estágios, tendo-se iniciado no século XIX. Nessa fase, ocorreu a extensão do direito da representação – isto é, direito de ter acesso aos centros decisórios do poder - originariamente exclusivo da classe proprietária rural, extinguindo o monopólio da aristocracia.

A trajetória da sociedade liberal-democrática pode ser caracterizada como segue: no seu primeiro estágio, que historicamente situa-se no final do século XVII, durante o século XVIII e na primeira metade do século XIX, estruturou-se politicamente uma sociedade fundada na liberdade, na propriedade, na igualdade e na segurança dos cidadãos. A história do Estado liberal foi então analisada, com plena justiça, como sendo a história do Estado de proprietários. A grande massa da população ficava à margem dos centros de decisão e dos benefícios econômicos e sociais da sociedade. O segundo estágio, que consiste na democratização, corresponde à cooptação progressiva de um número cada vez maior de cidadãos, para participar no processo decisório e usufruir das vantagens da sociedade contemporânea. Este processo de democratização é o sinal característico das sociedades políticas de nosso tempo e tal vez represente, para o historiador do futuro, a marca do século XX.

Em relação ao Brasil, a elite que concebeu e implantou as instituições imperiais soube assegurar a representação da classe proprietária, no momento em que o princípio do poder absoluto do monarca encontrava o respaldo de segmentos poderosos da sociedade. A consolidação da monarquia constitucional corresponde ao desfecho dessa luta. O sistema resultante inseria-se, plenamente, no primeiro estágio do liberalismo, antes caracterizado. Apesar disto, a elite imperial soube compreender a necessidade da democratização do sistema e a iniciou, sobretudo a partir dos começos da década de oitenta do século XIX.

Este processo, no Brasil, assume características assemelhadas ao que ocorria na Inglaterra, isto é, compreende, na sua fase inicial, o aumento da representação das cidades. Imaginou-se uma fórmula engenhosa: sucessivos segmentos da população citadina eram dispensados da prova de renda, que constituía a antessala dos mecanismos eleitorais e o reconhecimento do direito de acesso à representação.

A análise detida desse processo é da maior relevância, porquanto a República iria revelar o maior desprezo pela representação, mais das vezes em nome de uma crítica cientificista ao sistema imperial, que teve começo nos anos setenta do século XIX. Assim, a superação do persistente autoritarismo republicano supõe o revigoramento da ideia de representação, o que faz sobressair a importância da experiência imperial.

O processo de formação das instituições imperiais, a magnitude que assume o tema da representação e, finalmente, o reconhecimento da necessidade de iniciar-se a democratização do sistema – tais são os temas a serem estudados na primeira parte desta Unidade.

Existe, no entanto, outro aspecto, de igual relevância e atualidade. No ciclo republicano da nossa história, o liberalismo dissocia-se inteiramente da chamada “questão social”, À luz dessa evidência, toma-se o caso brasileiro como paradigma para avaliação do sistema liberal e passa-se a afirmar que as instituições liberais impossibilitam a elevação do bem-estar da maioria. Trata-se de argumento improcedente e inteiramente falso. Precisamente as instituições liberais do Ocidente conduziram às sociedades de bem-estar, de eliminação sucessiva das grandes disparidades de renda. Esse é, aliás, um aspecto indissolúvel no processo de democratização em apreço: corresponde ao processo de aperfeiçoamento, no qual os direitos e liberdades anteriores servem como patamar para os estágios futuros. Assim, por exemplo, a liberdade de associação civil garante a liberdade de associação política, sindical e religiosa. O direito de greve acaba por assegurar níveis econômicos mais dignos para o trabalhador. O direito de voto amplia-se no direito à participação política, nos diferentes grupos comunitários como associações de moradores, igrejas, universidades, etc. Em outras palavras: a democracia supõe, para que se realize plenamente, a incorporação, na cultura política, das liberdades essenciais do homem contemporâneo. Formam um todo unitário, sendo a dimensão social um desdobramento inevitável da valorização da liberdade e da pessoa humana. Devido à circunstância, é da maior relevância consignar que o entendimento da magnitude do problema social começa a aflorar no pensamento liberal do Segundo Império, notadamente na obra de Antônio Pedro de Figueiredo (1814-1859), Tavares Bastos (1839-1875), José Joaquim Nabuco de Araújo (1764-1844), entre outros. Não seria lícito esperar que o tema tivesse desabrochado, em sua inteireza, no século XIX, porquanto só amadureceria plenamente no século XX, em especial após a grande crise econômica de 1929, a ascensão de Franklin Delano Roosevelt (1882-1945) ao poder nos Estados Unidos, a criação do New Deal, a popularização da crítica ao laissez-faire, de um ponto de vista liberal, devido sobretudo a Lorde John Maynard Keynes de Tilton (1883-1946), etc. Ainda assim, a compreensão da magnitude desse aspecto não escapou às grandes figuras do liberalismo brasileiro do período imperial.

2 – A principal questão: organizar a representação.

Desde o momento em que chegaram ao Rio de Janeiro as primeiras notícias da Revolução Constitucionalista do Porto, em 1820, até a organização do Gabinete Conservador, em março de 1841, o país viveu o período da mais intensa agitação. A Nação quase soçobrou e ocorreu o risco de se consumar a separação de partes importantes do País. No período de organização constitucional, mostram-se irreconciliáveis três facções: liberais radicais, autoritários e conciliadores.

A situação na década de trinta é deveras dramática. Vota-se o Ato Adicional, que dá ganho de causa aos partidários da concentração dos poderes em mãos das Províncias, em detrimento do Poder Central. Mas o todo-poderoso regente Diogo Antônio Feijó (1784-1843) fracassa e renuncia. Tudo conspirava no sentido da plena instauração do caos. No fim da década, o centro moderado consegue articular-se e o Parlamento vota, sucessivamente, um conjunto de providências – Lei de Interpretação do Ato Adicional – do qual iria resultar a estruturação das instituições nacionais. Nos quatro decênios subsequentes, aparece plenamente o entendimento de que a questão magna corresponde à organização da representação.

Com a votação da Lei de Interpretação do Ato Adicional e, em seguida, do Código de Processo, surge no país um novo polo aglutinador que acabaria logrando apaziguar os ânimos. Mas, para tanto, estruturou-se a representação, que era o elemento novo enxertado nas velhas instituições do Estado português.

Paulino José Soares, Visconde de Uruguai (1807-1866), artífice dessa reforma, achava que antes de introduzir as reformas pertinentes ao novo regime – isto é, adequar a monarquia aos institutos do sistema representativo - competia separar inteiramente as funções administrativas das judiciárias.

Nas reformas do período do Regresso, instituições do Judiciário e da polícia passaram a subordinar-se ao Poder Central. Foram estabelecidas as regras segundo as quais os segmentos da sociedade que podiam fazer-se representar, tinham assegurado desnecessário o recurso às armas. Começa o ciclo em que ganham forma os instrumentos capazes de proceder a negociar e sancionar a barganha, em primeiro lugar, os Partidos Políticos, que eram então simples blocos parlamentares, mas capazes de fazer valer os interesses dos grupos sociais que tinham acesso à representação.

O aprimoramento em causa, que se estendeu por mais de quarenta anos - interrompeu-se, afinal, pelo advento da República – compreendia a delimitação rigorosa da base territorial abrangida pelo mandato do representante, o problema da representação da minoria e, finalmente, a ampliação da base social possuidora do direito de fazer-se representar.

As instruções eleitorais de 1824 constituíram a primeira Lei Eleitoral do Império, tendo vigorado por mais de 20 anos. Em linhas gerais, o processo eleitoral da época pode ser assim descrito: os parlamentares, que constituíam o Poder Legislativo, e os membros dos Conselhos Gerais de Província eram eleitos de forma indireta, por colégios eleitorais compostos por eleitores escolhidos em eleições primárias. O primeiro ato do processo eleitoral, a qualificação dos votantes, era sistematicamente marcado por grandes perturbações da ordem. Esta confusão permaneceu até entrar em vigor a Lei de 19 de agosto de 1848 – a primeira codificação que regulamentava de forma sistemática as eleições do Império.

O processo de aprimoramento da representação ocorre nos seguintes momentos principais: a) organização do eleitorado, através da legislação de 1846; b) organização dos distritos eleitorais (1855) e c) adoção do sistema de eleição direta (1881).

A Lei de 19 de agosto de 1846 teve a sua importância por ter sido a primeira regulamentação da matéria eleitoral oriunda do Poder Legislativo e, também, por ter em sua discussão suscitado a questão do voto distrital.

A partir de um projeto apresentado pelo senador Paula Souza (1791-1854), cujos artigos principais e mais polêmicos eram a eleição de círculos de um senador e dois deputados; a eleição especial de suplentes para todos os cargos eletivos; a incompatibilidade de funcionários dos distritos de sua jurisdição e uma pequena elevação do censo pelo cômputo de renda, surgiu a Lei de setembro de 1855, tornando realidade, em nosso passado político eleitoral, o que se discute na atualidade.

Enquanto o sistema eleitoral anterior proclamava o predomínio de província e, através dela, do Governo Central sobre a localidade, o sistema de círculos mostrava a existência, na base da sociedade política, de forças políticas, econômicas e sociais suficientemente importantes para se fazerem presentes com suas características próprias no cenário nacional.

A Lei de 1855 iria permanecer até 1860, quando surgiu nova regulamentação sobre a matéria, trazendo algumas modificações no sistema de eleições por círculo; por sugestão do próprio Imperador que, alertado contra os abusos ocorridos sob a égide da Lei de 1855, preocupava-se em corrigir as distorções daquele documento legal. A partir de 1860, começaram a aparecer as primeiras tentativas de reforma eleitoral, estabelecendo-se as eleições diretas em substituição às indiretas. Os homens públicos, preocupados com a situação de insatisfação, começaram a manifestar-se no sentido de mudar o regime eleitoral para eleições diretas.

Esta aspiração tornou-se concreta pela promulgação da Lei Saraiva, de 1881, abolindo as eleições indiretas em dois graus, que durante 60 anos constituiu a base do sistema eleitoral brasileiro, mas mantendo, no entanto, a necessidade de uma renda líquida entre outros requisitos para o alistamento eleitoral.

A Lei Saraiva viria consagrar o estabelecimento final das instituições liberais no Império. Passava o regime a ser fundado na eleição direta e censitária, onde todos os participantes do processo político, os cidadãos ativos, encontravam-se em igualdade de condições jurídicas para escolher os governantes.

Tem sido um lugar-comum dizer-se que a história política do Império consistiu na alternância no poder do Partido Conservador e do Partido Liberal. Essa afirmação, no entanto, simplifica uma situação mais complexa, caracterizada por um sistema de governo que prescindia dos partidos políticos, mas que possibilitou a formação de correntes de opinião, em torno de nomes que constituíram as bases ideológicas do conservadorismo e do liberalismo.

Vamos encontrar na Assembléia Constituinte de 1823 as primeiras manifestações doutrinárias relativas à organização do poder. De um lado, ali encontrávamos os partidários do fortalecimento da Coroa; de outro, os partidários da definição constitucional dos poderes da Coroa. O senador José Joaquim Nabuco de Araújo (1764-1844) fixa, na legislatura de 1838, o nascimento real dos dois partidos imperiais. No Brasil, como nos Estados Unidos, o liberalismo nasceu estreitamente vinculado ao federalismo e pelas mesmas causas, nas quais se amalgamavam interesses econômicos e políticos. A evolução histórica do federalismo brasileiro manifesta-se, pelo menos, desde o século XVIII.

Com a Inconfidência Mineira, o nascente federalismo provoca crises no Brasil-Reino e intervém no movimento da Independência, ensanguenta o Primeiro Reinado e a Regência, sempre desfraldando, em todos esses episódios, a bandeira liberal. Na Regência, o federalismo, esmagado no que tinha de nocivo e arriscado para a unidade nacional, ficou vitorioso no que tinha de útil e necessário ao progresso do País. Batido nos campos de batalha pelo exército de Caxias, refugiou-se na estreita arena da Câmara: de revolução se fez Lei.

No mesmo dia em que chegava a Regência, Pedro de Araújo Lima (1793-1870) constituía o primeiro Gabinete Conservador. Ocorria, assim, com as correntes conservadoras, o que se tinha verificado com os liberais. Dos grupos absolutistas, restauradores e facciosos, os “corcundas” antigos, arruaceiros e pasquineiros como os “exaltados”, nada mais subsistira. As confusas reivindicações desses grupos tinham adquirido forma política graças à Constituição e ao Parlamento. Tinham-se arregimentado, tinham atraído a direita liberal, formado a maioria, vencido a incompreensão de Feijó, conquistado o novo Regente e o novo Ministério.

Era o Partido Conservador que aparecia. Partido cujo primeiro manifesto é, sem dúvida, o famoso discurso de Bernardo Pereira de Vasconcelos (1795-1834): “Fui liberal, então a liberdade era nova no País, estava nas aspirações de todos, mas não nas leis, não nas ideias práticas; o poder era tudo. Hoje, porém, é diverso o aspecto da sociedade: os princípios democráticos tudo ganharam e muito comprometeram; a sociedade, que então corria risco pelo poder, corre agora risco pela desorganização e pela anarquia. Como então quis, quero agora servi-la, quero salvá-la, e por isto sou regressista”.

 O debate político no Segundo Reinado reveste-se de grande densidade. Os temas da preferência dos publicistas seriam: o Poder moderador; sua compatibilidade ou não com a ideia da Monarquia Constitucional; federalismo, centralização versus descentralização, que se resume no fundo ao problema da representação política dos diversos interesses em jogo; a responsabilidade do Estado na melhoria das condições de vida dos trabalhadores, notadamente a questão servil; e, finalmente, o tema dos partidos políticos e da representação.

O sistema que vigorou até a Lei Saraiva virtualmente institucionalizava o monopólio da representação pela classe proprietária; o elemento rural no interior, amplamente majoritário, e do comerciante citadino. Nesse tempo, na Inglaterra, a ampliação da base social do sistema adquiria grande atualidade. De início, a discussão repercute no Brasil apenas no que se refere à representação das minorias. Com a Lei Saraiva é que seria posta em prática uma fórmula verdadeiramente revolucionária: a dispensa de prova de renda em relação a grande número de eleitores urbanos.

A proclamação da República interrompeu abruptamente o processo de aprimoramento da representação, iniciado na década de quarenta e que deveria sofrer desdobramentos, sobretudo na linha de torna-la sucessivamente mais democrática.

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LEITURAS COMPLEMENTARES

1ª Leitura – José Martiniano de Alencar (1829-1877). Pertenceu à corrente do Romantismo. Fundou a narrativa de temática nacional, tendo dado ensejo à trilogia indianista com os romances: “O Guarani” (1857), “Iracema” (1865) e “Ubirajara” (1874). Desenvolveu a temática regionalista com os romances: “O gaúcho” (1870), “O sertanejo” ((1875), “Guerra dos mascates” (1873), tendo deixado, também, romances com a temática urbana, como: “Senhora” (1875) e “Encarnação” (1877). Advogado formado pela Faculdade do Largo de São Francisco, dedicou-se ao jornalismo. Pertenceu ao Partido Conservador, tendo chegado a desempenhar o cargo de Ministro da Justiça no gabinete Itaboraí (1868). Defendeu, paradoxalmente, a escravatura. Pertenceu à Academia Brasileira de Letras.

“Eleições e seleção negativa”.

O sistema, cujos principais lineamentos foram neste livro esboçados (O sistema representativo, 1866), não somente realiza em sua plenitude a verdadeira representação democrática. A essa grande virtude, acrescem os efeitos salutares que dele resultam em prol da razão e da justiça.

Não basta ao poder que seja legítimo e emane da soberania popular; é indispensável também que se inspire nos preceitos e normas da lei racional, e tenha a ilustração necessária ao manejo dos negócios públicos e altas questões de Estado. O governo de todos por todos fora para a sociedade uma conquista mesquinha e inglória se ele a submetesse à direção dos espíritos medíocres ou incultos. A lógica social não consente em uma tal anomalia; o direito carece, para desenvolver-se e atingir seu esplendor, da inteligência que o fecunda.

O novo sistema eleitoral satisfaz cabalmente e melhor que nenhum outro essa necessidade da democracia; ele realiza o governo de todos, pelos homens superiores escolhidos por todos; em outros termos extrai da soberania bruta a essência pura, e afirma a influência legítima da virtude e talento.

O que atualmente concorre em alto grau para sufocar as aspirações nobres e justas, rechaçando da política tantos espíritos superiores, é a tirania brutal do número. Reduzida a soberania a um algarismo, todas as questões sociais se resolvem por uma simples operação aritmética. |Os secretários de uma opinião não carecem de aprofundar em sua consciência os motivos da convicção, de pesar refletidamente em sua razão os argumentos contrários; de abrir enfim seu espírito à discussão ampla e luminosa do assunto.

Nada: basta que se contem e apurem as somas. “Constituímos a maioria; logo somos a Lei, a Justiça, a Verdade. Vós sois minoria; se grande, corrompa-se para a reduzir; se pequena, oprima-se para não crescer”.

Que interesse têm no regime vigente os partidos de elevar às mais altas posições homens de inteligência vasta e caráter íntegro? Nenhum, absolutamente; pelo contrário essa escolha os prejudicará. Os partidos representam atualmente nos países constitucionais associações destinadas à conquista do poder, ou pelo menos um interesse de classe. Todos lutam para se apoderar da arma decisiva, a opinião. Ora, a opinião no domínio exclusivo da maioria, não é o que deve ser realmente, a expressão comum do pensamento nacional; significa simplesmente o reclamo da parte mais considerável, a exigência do forte.

Ela compõe-se e decompõe-se pela flutuação de certa massa de gente sem crenças, nem princípios, movida já do espírito volúvel, já do sórdido ganho, já da fraqueza intelectual, mas aderente pelo comum destino. Cada partido que disputa a opinião, causa da vitória, carece de falar a todos esses baixos sentimentos, de pôr se a nível do que a sociedade tem de mais repugnante.

As organizações privilegiadas não servem para este vil mister; e por isso os partidos tendem a arredá-las com receio dos graves embaraços que sua razão direita e superior pode criar à próxima ascensão ao poder. Algumas dessas individualidades por seus esforços pessoais conseguem elevar-se depois de uma luta árdua e renhida; mas são forças afinal a transigir com as conveniências partidistas, a revestirem um caráter político, que não é o seu caráter próprio; anulam-se muitas vezes para serem toleradas; contraem as vigorosas expansões de sua personalidade para não ferirem certas conveniências. São as mediocridades ou as inteligências pervertidas, que na atualidade melhor servem aos partidos; e por isso as que mais segura e rapidamente se elevam às posições eminentes. Estas sabem amoldar-se a todos os manejos; insinuam-se no espírito das massas flutuantes; atraem as ambições a quem animam com o exemplo de sua fácil ascensão; descem ao nível dos preconceitos e rotinas; pactuam com toda a resistência; encolhem-se a qualquer aspereza; realizam enfim esse fenômeno admirável da elasticidade política, que tem feito e há de fazer tantos estadistas.

Eis o aspecto dos governos parlamentares, tais quais existem; eles mudam completamente, e como por milagre, sob a influência da reforma.

Aqui no sistema da representação integral, o número deixa de ser déspota, e torna-se apenas presunção falível; não se oprime à sua sombra uma porção do país; o direito de cada um, direito grande ou pequeno, é respeitado. A opinião dominante não será mais aquela que apóiam as massas flutuantes, isto é, a gente sem opinião. O voto preponderante resultará da adesão de convicções sinceras, criadas pelo estudo, robustecidas pela discussão, provadas pelo certame público de todas as ideias.

Os partidos ambiciosos de governo continuarão a existir; mas a par deles se formarão os partidos da ideia, hoje impossíveis; as propagandas em prol de um melhoramento social; as seitas reformistas que preparam os elementos das revoluções humanitárias. Esses partidos não disporão decerto, como os outros, do mando dos títulos e dos cofres públicos para favorecer a vaidade ou cupidez dos que os sirvam; terão porém mais pura e valiosa recompensa para tributo aos seus chefes; os testemunhos do reconhecimento público, a celebridade e a glória. Quem não preferiria à mais elevada honra oficial, uma estátua erigida pelo voto espontâneo de alguns milhares de seus concidadãos? As grandes almas hoje condenadas em política à ambição do poder, como único meio de realizarem suas ideias e exercerem na sociedade uma legítima influência, acharão nesses partidos de propagandas, destinados unicamente a fazer triunfar a verdade, um nobre emprego às suas altas faculdades, e campo às expansões de sua vitalidade. De seu lado os partidos nascentes, sentindo a necessidade imprescindível de aumentar suas forças pela inteligência para resistir às opiniões mais fortes, serão forçados a se confiarem aos seus chefes naturais e legítimos: seu programa será subjugar o número à razão, o fato ao direito.

A esse esforço dos pequenos partidos, corresponderá esforço idêntico dos grandes, e especialmente da maioria. Observando o efeito imediato que a presença de cidadãos notáveis dos outros partidos produza no Parlamento, por sua vez há de a maioria reconhecer a fragilidade do número, e a superioridade de uma palavra que comove o país e conquista milhares de adesões, enquanto o governo pensa esmaga-la. Os manequins serão imediatamente substituídos por homens de verdadeiro merecimento, que possam afrontar-se com os antagonistas nas lides parlamentares; se o partido já não tiver homens dessa qualidade, porque os especuladores medíocres os hajam escorraçado, abrir-se-á espaço para eles.

Os saltimbancos políticos são de grande préstimo para a escamotagem das opiniões e dos votos; ninguém melhor do que eles vence uma eleição e empalma nas Câmaras uma medida de confiança. Garantida porém a representação a todas as opiniões, o resultado lógico e infalível é sua completa separação; cada uma, até agora confundida ou desvanecida pela superioridade, assume sua autonomia; adquire uma existência própria e ativa. A prestidigitação política pois decai bastante. A maioria será obrigada a tornar-se honesta e ilustrada; do contrário a aliança natural de todas as minorias a afastará do poder. Convençam-se aqueles que dirigem os povos: o meio mais breve e fácil de estabelecer o governo das notabilidades não é esse despotismo absurdo decorado com o nome de censo, mas sim a democracia representativa levada a efeito pelo voto universal, e pela escolha proporcional. Esse governo bem pode se chamar da razão e justiça; esse domínio legítimo, baseado na livre escolha, satisfaz a generosa ambição dos espíritos superiores. O outro ao contrário humilha as grandes inteligências, pois impondo-as de certo modo pela força, denuncia que nunca pela razão elas conseguiriam exercer a missão que lhes assinalou o Criador.

No instante em que o Parlamento seja o foco da sabedoria, como da vontade nacional, não tardará a civilização completa do povo; porque ele não receberá de seus legisladores somente a disposição tosca e bruta da lei, mas também o raio que a ilumina, o espírito que a vivifica. A lei não será ato de força ou império, mas uma lição profícua, um exemplo fecundo que desenvolva os bons instintos da população.

2ª Leitura, Tobias Barreto de Menezes (1839-1889). Poeta, filósofo, jurista, professor de Direito da Faculdade de Recife, foi uma das mais lúcidas mentes brasileiras do Segundo Império. Em matéria filosófica, Tobias Barreto foi tributário do neokantismo, tendo deitado as bases da que seria a mais importante corrente do pensamento filosófico brasileiro, a denominada Corrente Culturalista. Juntamente com Sílvio Romero, Arthur Orlando e outros, desenvolveu ampla reflexão sobre a cultura nacional e acerca da nossa meditação filosófica, criticando duramente o determinismo e o positivismo, sendo um verdadeiro paladino dos ideais liberais, notadamente da luta em prol da liberdade, pensada no contexto de um regime republicano. Esse esforço de criação intelectual deu ensejo à denominada “Escola do Recife”, que foi a grande mediadora, para o Brasil, das tendências mais evoluídas da filosofia ocidental, decorrentes do pensamento de Immanuel Kant (1724-1804).

“Democracia, liberalismo e ordem” (1870).

O princípio democrático, em sua ideia, não é de certo que todo o cidadão, como tal, exerça funções de governo diretas e imediatas, mas é que todos por sua ação, menos periódica e mais tenaz, possam, como lhes aprouver, mudar e melhorar as peças governativas; é que o espírito popular não esteja de um lado, e os poderes constituídos de outro; é que a representação nacional seja uma coisa séria, expressiva e real, que o menor interesse público tenha sempre um voto que signifique; é em suma a liberdade, operando como força, e a igualdade operando como tendência, em todos os átomos do corpo social, para a sua completa harmonia e felicidade.

Disse a igualdade operando como tendência, e não quero deixar passar a frase, desacompanhada de explicação. Pode ocorrer o risco de não ser entendida. Disse-o pois e repito. É neste ponto que separo-me das utopias comuns. A igualdade só pode obrar como tendência, não pode obrar como direito. Se é absurdo que o criado, por exemplo, queira ser igual ao amo, que o operário queira ser igual ao capitalista,, não é absurdo, antes natural, que um e outro, como termos de relação, tendam a nivelar-se com o termo correspondente.

Ao passo pois que a liberdade é uma força individual, força ativa e consciente, a igualdade é apenas, como vimos, um pendor social; e ao passo que as leis da liberdade são subjetivas, as que regulam a igualdade são objetivas e estranhas à vontade do indivíduo.

A democracia sensata que proclama a liberdade como seu magno princípio, não pode prometer a igualdade senão como resultante de todas as forças contrabalançadas no seio da sociedade; não quer bater a ordem na cabeça do povo, não quer passar a regra na superfície dos mares. Onde está o perigo de semelhante governo? Onde a inconveniência da realização de sua ideia?

É mister acabar com estes falsos pressentimentos, com estes manhosos receios da escola do cesarismo. A verdade não tem seu tempo, ela é de todos os tempos. Não se repita com o Sr. Conselheiro Alencar, no seu superficial ensaio sobre o sistema representativo, que a distância entre o político e o filósofo é imensa... que há reforma que o espírito prevê em um futuro remoto, ao passo que no presente combate como altamente prejudiciais.

Tudo isto é inexato e de uma inexatidão banal. Primeiramente não se admite em pensadores do tamanho de S. Exa. esse alto dom de prever futuros remotos, pelas induções de sua ciência política.

Além disto é fácil de compreender o engano dos apóstolos da procrastinação indefinida: eles julgam prever o que realmente estão vendo e sentindo, isto é, a necessidade das reformas capitais, do estabelecimento do verdadeiro governo, da verdadeira ordem social.

Não nos iludamos com eles; não apelemos para o futuro que só Deus precisamente sabe a quem pertence. Aproveitemos o presente que é nosso. Pressinto e confesso que nos dois artigos antecedentes, se por um lado pude despertar a leviana curiosidade dos espíritos frívolos, por outro lado, não cheguei talvez a merecer o assentimento dios homens severos que dão pouco apreço a ideias gerais, como se diz, incapazes de levar ao fim a solução dos enigmas com que lutamos. Nem aqueles me contentam, nem estes me incomodam.

Tendo em vista menos convencer os outros do que preparar a terra em que se estenda a raíz de minhas convicções, o que me interessa não é o apoio alheio, mas o de minha própria consciência, assegurando-me da posse da verdade.

Repetindo que não são puras modalidades acidentais as diferenças que separam liberais e conservadores, quero por este ponto, que é para mim capital, avivar a linha divisória, já hoje completamente apagada pelos manejos da chicana política.

Sem pretender impugnar os que possam sentir de um modo contrário, eu não tenho as noções de ordem e progresso, sobre que se há quase criado numa tal ou qual doutrina, como bastante claras e inteligíveis, para servirem de bandeira e atraírem espontaneamente as adesões populares.

A concepção destes dois fatos ou destas duas ideias, como uma tese a uma antítese conciliáveis em uma tese superior, é demasiado filosófica e abstrata, incapaz de cativar a atenção geral.

E os esforços empregados por aqueles que tentam produzir tal conciliação, ou explica-la a seu modo, perante o povo descuidoso e pouco refletido, dão apenas testemunho da fatuidade como certos homens julgam poder empolgar em suas mãozinhas de pequenos estadistas e pensadores pigmeus, o globo de fogo das sociedades políticas.

A ordem e o progresso não são simples instituições que baste enunciar para se compreenderem. Há nelas uma complexidade, uma combinação de outras ideias que é difícil discernir. A psicologia e a história são acordes em atestar que essas noções não se oferecem ao espírito humano, como princípios diretores de sua inteligência ou de sua atividade; nem posso crer que a personalidade coletiva em sua vida tenha outros móveis de ação que não os mesmos do indivíduo.

Quer em geral, quer em particular, nem o progresso nem a ordem são coisas que se façam ou se deixem de fazer, ao sabor de nossas veleidades.

Com efeito, o progresso das sociedades, sempre maior que a resistência de um governo, também é sempre maior que a proteção de um partido. Quase que tanto valera ser partidário do movimento assombroso que arrasta o nosso mundo solar a mergulhar-se nos abismos siderais, em busca de destinos desconhecidos!...

Por outro lado, quando se fala de ordem, de ordem social propriamente dita, não é possível deixar de entender por tal expressão não só um complexo de leis respectivas, como também a resultante de sua inteira aplicação que é a harmonia de todas as forças que elas regularizam na direção de um término, talvez inatingível, mas certamente concebível.

É fácil de deduzir que, assim compreendida, a ordem social não oferece, não pode oferecer as condições de um princípio conservador. Em vez de consistir na permanência de um estado de coisas, ele é pelo contrário uma espécie de ponto ideal das aspirações e tendências sociais. Imaginai de feito uma nação em que todas as leis do mundo moral, éticas, estáticas industriais e econômicas sejam exatamente cumpridas, e vós tereis o tipo, a verdadeira ideia do que seja ordem social.

Não há, pois, mais ridícula pretensão do que a desses homens, obcecados pela poeira de velhos prejuízos, que em nome da ordem, isto é, da coesão, da unidade, da harmonia total comprimem, reprimem, sufocam o espírito popular em seus voos impetuosos para uma melhor esfera, de que têm o pressentimento vivo e inextinguível.

Por uma estranha inversão de ideias, a ordem não é para eles o centro em torno do qual gravitam e para o qual se encaminham todos os esforços individuais, ainda hoje perdidos, dispersos, desagregados na atmosfera da história pelo calor das lutas estéreis, das dissidências inúteis.

A ordem, como eles entendem, é o silêncio e o deserto, é a paz das trevas e a intranquilidade dos túmulos, é a doçura do sono dormido sob as asas de uma providência fictícia que se diz velar pela sociedade!

Não sei como há ainda quem se iluda com estas aparências de reflexão e sensatez que dói arrogar-se o conservantismo de todos os tempos, com essas grosseiras contrafações da ordem pública, expressa nas leis, nas opiniões e até nos costumes em que chegue a preponderar o espírito conservador.

Porém não nos contentemos com este punhado de observações: indaguemos com mais afinco e atenção.

Quando se lança a vista sobre o mundo político, o primeiro fenômeno que se oferece ao observador é a existência dos partidos que disputam a posse do poder, com mais ou menos vantagem, com mais ou menos ardor na luta contínua.

Se isto é geralmente observável como fato permanente, como fenômeno idêntico e múltiplo, não assiste ao pensamento especulativo o direito de induzir que esta é uma lei necessária à própria vida e desenvolvimento das sociedades?

Hesito em pronunciar-me. O que porém me parece fácil de verificar é que as divergências, donde saem os partidos, são de duas naturezas, umas que versam sobre a escolha dos princípios; outras que se referem à escolha dos homens; e, ao invés do que parece, não são estas, são aquelas que derramam no seio das nações o fermento das pugnas intermináveis.

A dissidência nos princípios é complexa e divisível, dando lugar a grupos diversos de sectários, cuja diferença de nomes marca uma diferença de doutrina.

Ao contrário, a divergência dos homens pelos homens é simples, mais simples do que se supõe. Ali são questões de ciência; aqui são questões de opinião.

Se a convergência intelectual para a unidade das ideias políticas é uma coisa necessária para o estabelecimento da ordem, como devemos concebê-la, e uma coisa possível pelos esforços da meditação, outro tanto não se diz da convergência e completo acordo de opiniões puramente pessoais, cuja necessidade é contestável, cuja possibilidade é quimérica.

Acontece que muitas vezes indivíduos superiores por suas qualidades identificam-se com os princípios e fazem do seu nome e da sua pessoa a magna questão de longo tempo, como o ídolo de uns e a execração de outros. É que o povo não se acomoda com as verdades abstratas; o que lhe agrada, o que lhe toca mais de perto, é o concreto, e nada de mais concreto do que os nomes próprios. Mas nisto mesmo reside o maior perigo para ele, que pode facilmente deixar-se iludir por aparência de grandeza e dar ao nome próprio de um chefe a significação que não tem.

Permanece, porém, como certo que ainda neste caso, o que faz perdurar a luta é o desacordo das ideias bem ou mal representadas. Logo que, por conseguinte, nos assuntos políticos o absurdo das afirmações e negações extremas, o alarido das contradições caprichosas desaparecem diante do rigor científico, aplicado ao problema da vida social, sob a verificação da experiência, não há dúvida de que os homens, sem a máscara da obscuridade, em que ainda se envolvem as polêmicas partidárias, deixar-se-ão melhor apreciar, e melhor as coisas deixar-se-ão prever.

Ora bem: o que precisamente nos acabrunha, é que os partidos entre nós são dissidências de princípios, mal representados e fracamente defendidos; dissidências em que uns se limitam muitas vezes a negar simplesmente o que outros afirmam, sem oferecer um dogma próprio, novo e salutar.

Eis o terreno em que pisam as nossas seitas políticas. Não é só a grossura de uma palavra diversa que as separa; é a espessura de uma ideia. É esta ideia que se faz preciso desvestir dos cálculos pessoais, das pretensões egoísticas, e mostra-la em toda sua nudez, em toda sua claridade.

Esta ideia não é nada menos que a democracia santa e pura de todas as féculas aristocráticas que ainda permanecem no próprio fundo do liberalismo; nada menos que a união, a sinergia completa dos homens seriamente liberais, verbo et opere, se é lícito dizê-lo, desde a mesa em que comem, até a mesa em que votam.

Esta ideia, cujos três grandes momentos, como se diz em alemão, são expressos pela célebre trilogia revolucionária, o espírito nacional organizado, vivendo e funcionando em sua plenitude, por seu próprio e colossal impulso.

Não pareça estranha a seguinte proposição. O Brasil, encarado pela face do seu Governo, é um corpo que se move entre dois abismos, sempre mais inclinado para o lado do absolutismo. Encarado como povo, como nação, como sociedade, o Brasil é um país amorfo, se assim me posso exprimir, pela mistura variável de elementos radicalmente antagônicos, tolerados e aquecidos no seio da opinião pública.

A ideia liberal, como eu a compreendo, estreme de qualquer mácula de interesse particular, deve ser o trabalho de assimilação de todos estes elementos a um princípio único – a democracia; fazendo-os obedecer à lei do desenvolvimento universal, arrendando os preconceitos, as distinções malfundadas, as enfatuações estólidas, esse cúmulo de imundícies que obstruem a corrente.

A ideia liberal, infelizmente, como é fácil de atestar, tem sido até aqui - permitam-me a analogia – uma espécie de judaísmo político, esperando e prometendo ardentemente o reinado messiânico da liberdade só nos críticos momentos de perseguição e de penúria; mas desde que o céu se azula e a tempestade serena, adeus, Messias, adeus esperanças!

Isto é feio; acabemos com isto.

Deixem-me abrir um breve parêntese. Não estou sozinho neste modo de pensar, por mais esquisito que ele possa parecer.

Há poucos dias, a leitura da carta dirigida pelo Sr. Saldanha Marinho ao Diretório liberal desta Província, convenceu-me de que os homens conscientes e leais começam com razão a impacientar-se de tantas incertezas, de tantas dubiedades, lançadas como obstáculos à marcha e vitória do partido.

Convém, pois, que se varram por uma vez sobre o plano em que se quer assentar o edifício da Liberdade, os velhos embaraços de considerações e cautelas tomadas só em benefício de poucos.

Se é hoje entre nós difícil que o liberalismo tenha os seus mártires, é porque ele já vai tendo os seus feiticeiros.

Ora, pois, fiquemos certos que a indignação popular, este fogo do céu que sabe acudir à voz dos verdadeiros profetas, para despedaçar os ídolos da terra, não acuda ao apelo dos profetas da mentira.