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CURSO DE CIÊNCIA POLÍTICA - Leitura 7ª - O ESTADO MODERNO

CURSO DE CIÊNCIA POLÍTICA - Leitura 7ª - O ESTADO MODERNO

FRANCISCO DE GOYA - LEVIATÃ

Este texto é de autoria de Antônio Paim, Leonardo Prota e Ricardo Vélez Rodríguez [cf. Paim, Prota, Vélez, 2002]. Desenvolveremos três itens nesta leitura: 1 – Apresentação da questão do Estado Moderno e origem das suas modalidades. 2 – Características essenciais do Estado de Direito. 3 – Características essenciais do Estado Patrimonial.

1 - Apresentação da questão e origem das duas modalidades de Estado Moderno.

Norberto Bobbio (1909-2004) e Gianfranco Pasquino (1942-), no Dicionário de Política [Cf. Bobbio, Pasquino, 1998] afirmam a diferença entre formas de Estado e formas de Governo. No que respeita às formas de Estado, fazem referência ao abandono do critério aristotélico, relativo à posse do poder (sendo de um, de poucos ou de todos) e destacam que foi substituído, modernamente, pela diferenciação entre regimes autoritários, totalitários e democráticos.

Entretanto, do ângulo da evolução histórica e tratando-se da Europa, cumpre observar que o Estado Moderno assumiu duas modalidades básicas: Estado Patrimonial e Estado de Direito ou Contratualista. Essa tipologia provém de Max Weber (1864-1920), e foi estabelecida, fundamentalmente, na sua obra maior, Economia e Sociedade.

Como pretendia descrever o que denominou de tipos ideais, Weber evitou situá-los temporal e historicamente. Em nosso caso, entretanto, torna-se imperativo fazê-lo. Os tipos ideais em causa dizem respeito às formas pelas quais o exercício do poder se legitima perante a sociedade. As formas dessa legitimação seriam: a - a dominação legal (ou racional); b - a dominação tradicional; e, c - a dominação carismática.

O modo racional de legitimação corresponde ao Estado de Direito. Na descrição que empreendeu desse modelo, Weber focalizou, sobretudo, o caráter impessoal (burocrático) de seu exercício. Na dominação tradicional, Weber indicou a existência de dois tipos básicos: o feudalismo e o patrimonialismo. Derivando-se ambos da mesma fonte, Weber identificou esta última com os sistemas patriarcais.

Essa identificação, entretanto, precisa ser devidamente qualificada. Reinhard Bendix (1916-1991) advertiu para a necessidade dessa qualificação. A esse propósito, afirma o seguinte, na obra intitulada: Max Weber, um perfil intelectual: "Weber desejava analisar os relacionamentos de poder que resultam da ampliação do grupo familiar do governante e dos modelos de interdependência entre chefes guerreiros e seus seguidores militares, mais ou menos independentes. (...). É evidente (...) que o governo do grupo familiar patriarcal é fundamental para o tipo patrimonial de dominação tradicional, mas não para o tipo feudal, e que, portanto, pode não ser adequado como modelo básico para ambos. É igualmente evidente que o regime patrimonial tende a ser pessoal, enquanto o regime feudal tende a ser impessoal e legalista. (...)”.

Levando em conta a experiência europeia, tivemos oportunidade de mostrar, na Leitura 4ª, que, sob o Feudalismo, a reunião de diversos feudos sob uma única direção deveu-se, sobretudo, às questões de segurança contra as incursões externas. Além disto, também foi destacado que o titular daquele poder guardava determinados níveis de dependência, em relação aos senhores que o sustentavam. Régine Pernoud (1909-1998) constatou que, "durante a maior parte da Idade Média, o Rei da França, com o seu domínio exíguo, dispunha de recursos inferiores aos dos grandes vassalos" [Pernoud, 1979]. Assim, sob o feudalismo, formaram-se contrapesos ao poder do Monarca, consubstanciados num contrato (o contrato de vassalagem), que deu origem ao constitucionalismo, isto é, à formalização dos direitos conquistados pelos principais grupos sociais e, portanto, ao Estado de Direito, o equivalente da dominação racional tipificada por Weber.

Em contrapartida, a consolidação do feudalismo, com as características descritas, não se verificou em toda parte da Europa. No caso da Península Ibérica, não se formaram economias suficientemente fortes, capazes de contrarrestar o poder do Monarca. Na verdade, constituiu-se o que costuma ser caracterizado como poder mais forte que a sociedade, justamente, o que singulariza o Estado Patrimonial. Tal foi, de igual modo, o caso da Prússia. Provavelmente, traços patrimoniais chegaram a ser preservados em países onde vingou o Estado de Direito que, entretanto, não se teriam revelado fortes o suficiente para impedir esse desfecho.

A vantagem dos modelos que Weber denominou de tipos ideais consiste em conduzir as análises à identificação daquilo que é essencial.

2 - Características essenciais ao Estado de Direito.

Weber dedicou grande atenção às características definidamente racionais do Estado, que surgiram das lutas patrimoniais e feudais pelo poder e que podem ser encontradas, apenas, na Civilização Ocidental. Antes de referir tais características, cabe indicar as pré-condições, nas quais está baseado o Estado ocidental moderno.

Elas são: 1ª A monopolização dos meios de dominação e administração com base na criação de um sistema permanente e centralmente dirigido de taxação, bem como de uma força militar permanente e centralmente dirigida, nas mãos de uma autoridade governamental central. 2ª A monopolização de promulgações legais e do uso legítimo da força pela autoridade central. A organização de um funcionalismo racionalmente orientado, cujo exercício de funções administrativas depende da autoridade central.

Embora alguns desses atributos tenham existido em outros lugares, seu surgimento mais ou menos simultâneo é um fenômeno exclusivamente ocidental. Quando o domínio da lei prevalece, as organizações burocráticas são governadas pelos seguintes princípios:

• Os negócios oficiais são conduzidos em bases contínuas.

• Os negócios são conduzidos, também, de acordo com regras estipuladas em um órgão administrativo, caracterizado por três atributos inter-relacionados: a - o dever de cada funcionário executar certos tipos de trabalho é delimitado em termos de critérios impessoais; b - é dada ao funcionário a autoridade necessária para exercer suas funções; c - os meios de coação à sua disposição são estritamente limitados e as condições em que seu emprego é legítimo são claramente definidas.

• As responsabilidades e a autoridade de todo funcionário são parte de uma hierarquia de autoridade. São atribuídas tarefas de supervisão a cargos mais altos e, aos mais baixos, o direito de apelação. Contudo, o grau de supervisão e as condições de recurso legítimo podem variar.

• Os funcionários e outros empregados administrativos não são donos dos recursos necessários para o desempenho de suas funções, mas são responsáveis pelo uso desses recursos. Os negócios oficiais e os privados, a renda oficial e a privada são estritamente separados.

• Os ocupantes dos cargos não podem se apropriar dos mesmos, no sentido de propriedade privada que pode ser vendida ou herdada. (Isso não exclui diversos direitos, como os de reivindicar pensão, condições regulamentadas de disciplina e demissão etc., mas tais direitos servem, ao menos em princípio, de incentivo ao melhor desempenho dos deveres. Não são direitos de propriedade).

• Os assuntos oficiais são conduzidos através de documentos escritos. Na dominação legal, portanto, o cargo do funcionário burocrático é caracterizado pelos seguintes atributos: a - Ele goza de liberdade pessoal e é designado para o cargo através de um contrato. b - Ele exerce a autoridade a ele delegada de acordo com regras impessoais e sua lealdade, requisitada em nome da execução fiel de suas obrigações oficiais. c - Sua designação e colocação no emprego dependem de suas qualificações técnicas; d - O trabalho administrativo é sua ocupação em tempo integral. e - Seu trabalho é recompensado com um salário regular e pela perspectiva de promoções regulares em uma carreira estável.

Segundo Weber, essa organização é tecnicamente superior a todas as outras formas de administração, assim como a produção mecânica é superior aos métodos não-mecânicos. Essa superioridade técnica aparece nas seguintes variáveis: precisão, rapidez, ausência de equívocos, conhecimento do registro documental, continuidade, senso de discrição, uniformidade de operação, sistema de subordinação e redução de atritos. A burocracia supera outras formas honoríficas e diletantes de administração. Essa lista de vantagens é longa, mas são vantagens relativas. Weber ressaltou que a burocracia tende a assumir forma agressiva, sendo indestrutível.

Finalizando suas considerações, Weber salientou que a forma de administração burocrática é tanto permanente quanto indispensável, contrariamente aos argumentos dos anarquistas e socialistas, que acreditam que a administração pode ser dispensada numa sociedade ideal, ou é passível de ser usada para implementar uma ordem social mais equitativa. Na opinião de Weber, a burocracia veio para ficar e qualquer ordem social, no futuro, só promete ser mais opressiva que a sociedade capitalista de hoje.

3 - Características essenciais do Estado Patrimonial.

Na caracterização do Estado Patrimonial elaborada por Weber, num primeiro momento não são necessárias teorizações que o justifiquem, apoiando-se estritamente na tradição. Contudo, tendo em vista a necessidade de absorver sucessivas atividades – como forma de aumentar os benefícios dos que cercam o mandatário supremo – no processo de seu desenvolvimento irá aparecer a necessidade de comprovar que essa crescente expansão não se dá em benefício próprio, mas de todo o povo. Em seu processo de expansão, essa espécie de ideologia desembocará na doutrina do "Pai dos pobres", e, subsequentemente, nas chamadas "políticas sociais".

Ainda segundo Weber, essa mesma necessidade pode aparecer, também, quando o patrimonialismo "não se apoia em exércitos patrimoniais recrutados no exterior", o que o leva a depender da boa vontade dos súditos. "Contra as aspirações dos estamentos privilegiados, eventualmente perigosos para ele – prossegue –, o patrimonialismo serve-se das massas (...). Não o herói, mas o príncipe bondoso é, por toda parte, o ideal glorificado na lenda das massas, que deve (...) se legitimar diante de si mesmo e dos súditos, como protetor do bem-estar destes últimos. O Estado providente é a lenda do patrimonialismo que não brota da livre camaradagem, mas sim de uma relação autoritária entre pai e filho: o pai do povo é o ideal dos Estados Patrimoniais".

Visto de fora, sobretudo da ótica ocidental, o czarismo era uma instituição odiosa e opressora. Na Rússia, entretanto, a massa do povo, os camponeses sobretudo, chamavam o Czar de "Paizinho". Getúlio Vargas (1883-1954), que esteve no poder de 1930 a 1945 – desde 1937 governando o país de forma ditatorial, no regime denominado Estado Novo – e que seria eleito, democraticamente, Presidente da República, em 1950, veio a ser chamado de Pai dos pobres. Não por esse fato, certamente, o tema da possibilidade de caracterizar-se o Estado Brasileiro como Estado Patrimonial mereceu diversos estudos. Essa discussão foi resumida por Antônio Paim no livro intitulado: A querela do estatismo [cf. Paim, 1994].

Contudo, a característica distintiva mais relevante desse tipo de Estado consiste em ter vindo a constituir uma estrutura mais forte do que a sociedade. A elaboração doutrinária destinada a justificar o que Weber denominou de "forma patrimonial de dominação", naturalmente não poderia explicitar que, precisamente nisto, consistia o seu objetivo maior. Levando em conta que os homens, ao constituírem uma tal estrutura, visavam em especial à segurança, o exame desse aspecto deveria conduzir à hipótese de que a circunstância referida – o fato de ter-se tornado mais poderosa que os seus instituidores – teria que ser considerada como resultado indesejado.

Nessa convicção, a investigação conduzida por Karl Wittfogel (1886-1988) visou justamente responder à pergunta: como se deu a formação de Estado mais forte que a sociedade? A resposta, como se sabe, indica ter sido uma criação da sociedade agrária baseada em sistemas de irrigação. O processo de sua disseminação obedeceu a outras prioridades para terminar nutrindo, em diversas partes do mundo, uma tradição cultural arraigada (e inamovível, por vezes), de muito difícil superação [cf. Wittfogel, 1977]. O interesse da discussão desse tema está longe de ser apenas acadêmico, revestindo-se, ao mesmo tempo, de grande relevância política.

Trata-se de averiguar qual seria o caminho que poderia conduzir à transformação do Estado Patrimonial num Estado Liberal de Direito, preferência sem dúvida auto justificável. Chega-se mesmo a pôr em dúvida tal possibilidade, a partir do que ocorreu com a Prússia – Estado Patrimonial típico – que foi, simplesmente, eliminada do mapa, no último pós-guerra. Medida tão radical teria sido determinada pela evidência de que aquela nação, desde que fez sua emergência no cenário europeu, notabilizou-se pelo insaciável apetite de expansão territorial, insistindo em anexar parcelas de outros países, nutrindo, desde modo, sucessivas disputas que sempre terminaram em conflito bélico. Em contrapartida, invoca-se o exemplo da Espanha, outra estrutura estatal tipicamente patrimonialista, que vem trilhando sem maiores percalços o caminho da constituição do Estado de Direito. Na Unidade 8 deste Curso será ampliado este aspecto, referindo-o, diretamente, ao Brasil.

BIBLIOGRAFIA

BENDIX, Reinhard [1986]. Max Weber – um perfil intelectual. (Tradução brasileira). Brasília: Editora da Universidade de Brasília.

BOBBIO, Norberto; PASQUINO, Gianfrancesco, et alii [1998]. Dicionário de Política. (Tradução de Carmen C. Varriale, et alii). Brasília: Editora da Universidade de Brasília.

PAIM, Antônio; PROTA, Leonardo; VÉLEZ-RODRÍGUEZ, Ricardo [2002]. Curso de Ciência Política – O Estado moderno. Londrina: Instituto de Humanidades. [www.institutodehumanidades.com.br].

PAIM, Antônio [1994]. A querela do estatismo – A natureza dos sistemas econômicos. 2ª edição revisada e acrescida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.

PERNOUD, Régine [1979]. Idade Média: o que não nos ensinaram, Rio de Janeiro: Agir.

PERNOUD, Régine [1985]. Luz sobre a Idade Média. (Tradução portuguesa). Lisboa: Europa/América.

VÉLEZ Rodríguez, Ricardo [2006]. Patrimonialismo e a realidade latino-americana. (Prefácio do Editor, Ferdinando Bastos de Souza). 1ª edição. Rio de Janeiro: Documenta Histórica Editora.

WEBER, Max [1944]. Economia e Sociedad. 1ª edição em espanhol. (Tradução de José Medina Echavarría et alii). México: Fondo de Cultura Económica, 4 volumes.

WITTFOGEL, Karl [1977]. Le despotisme oriental. (Tradução francesa de M. Puteau). Paris: Minuit.

QUESTÕES

1 – (Escolha a opção válida). Do ângulo da evolução histórica ocorrida na Europa, o Estado moderno assumiu, segundo Max Weber, duas modalidades básicas:

a) Estado autoritário e Estado democrático.

b) Estado patrimonial e Estado contratualista.

c) Estado totalitário e Estado liberal.

2 – (Escolha a opção válida). Segundo Max Weber, as formas de legitimação do uso da força no Estado são as seguintes:

a) Dominação legal (ou racional), Dominação tradicional, Dominação carismática.

b) Dominação patrimonial, Dominação eleitoral, Dominação burocrática.

c) Dominação patriarcal, Dominação clânica, Dominação clientelística.

3 – (Escolha a opção válida). Identifique, nos seguintes conjuntos de características, aquele que é próprio do Estado de Direito:

a) Os governantes pertencem à realeza; a burocracia é profissional; os assuntos oficiais são secretos.

b) O chefe do poder é sagrado pelo Papa; os funcionários públicos são concursados; os assuntos oficiais são transmitidos mediante documentos escritos.

c) Os negócios oficiais tramitam em bases contínuas; os funcionários inserem-se numa hierarquia; os assuntos oficiais são registrados em documentos escritos.

GABARITO

1-b;2-a; 3-c.