Voltar

CURSO DE CIÊNCIA POLÍTICA - Leitura 6ª - AS CRIAÇÕES ORIGINAIS DO OCIDENTE.

CURSO DE CIÊNCIA POLÍTICA - Leitura 6ª - AS CRIAÇÕES ORIGINAIS DO OCIDENTE.

MARTINHO LUTERO - Retrato de Lucas Cranac (1529)

Este texto foi redigido a partir da seguinte obra escrita por pesquisadores do Instituto de Humanidades: Curso de Ciência Política – Volume II: As criações originais do Ocidente [cf. PAIM, Antônio; PROTA, Leonardo; VÉLEZ Rodríguez, Ricardo, 2002]. Cinco itens serão desenvolvidos: 1 – Onde se revela a originalidade do Ocidente? 2 – A nova valoração ocidental: aspectos históricos. 3 – A questão religiosa em debate. 4 – A ideia de predestinação como cerne das novas confissões religiosas. 5 - A hipótese de Weber: a ética do trabalho na tradição protestante.

1 – Onde se revela a originalidade do Ocidente?

 A originalidade do Ocidente irá desabrochar, plenamente, na Época Moderna. A Cultura Ocidental, como algo de autônomo e diferenciado, é fenômeno da época em que se estrutura o Feudalismo na Europa. Este, de fato, resulta do enfrentamento e da derrota do segundo ciclo de invasões bárbaras (ocorrido a partir da segunda metade do século IX e somente superado na segunda metade do século X), quando se sedimenta a figura do guerreiro responsável pela segurança de determinado território. Estavam lançadas as bases para o surgimento do nobre feudal. Assim, pode-se dizer que a novidade representada pela Cultura Ocidental corresponde à fusão do Feudalismo com o Cristianismo. A Cultura Ocidental, em processo de formação, experimentou, no apogeu da Idade Média, um primeiro ciclo, no qual o empenho maior consistia em apropriar-se da herança greco-romana. Ao fazê-lo, entretanto, teve como horizonte princípios religiosos. Tratava-se, na verdade, de incorporar aquela herança ao cristianismo. Somente no Renascimento, quando emergiram novos pontos de vista, é que se configurou a diretriz de encontrar um caminho próprio e diferenciado. As grandes criações da Época Moderna, nas quais não só se expressa a originalidade da Cultura Ocidental, como se revela, também, o seu poder transformador da sociedade, seriam as seguintes:  

- Ética do trabalho, decorrente da Reforma Protestante.

- Moral social de tipo consensual.

- Tolerância religiosa.

 Essas criações, por sua vez, produziram profundas transformações sociais, a saber:

- O Estado Moderno e a sua Reforma, que o fez repousar no Governo representativo.

- O saber científico de índole operativa.

- A empresa capitalista, impulsionada pela Revolução Industrial.

- A vida urbana, que daria origem a valores até então inexistentes.

 O elo fundamental de toda essa mudança foi a Reforma Protestante.

Ao correlacionar o nascimento do capitalismo à ética dos puritanos, Max Weber (1864-1920) facultou uma grande contribuição, no sentido de tornar inteligível todo esse movimento, em sua extrema complexidade. Ao legalizar a riqueza e ao atribuir ao trabalho do homem um sentido, o de erigir na terra uma obra digna da glória de Deus, a ética protestante permitiu que se aglutinassem aqueles elementos dispersos, sem os quais o capitalismo não teria sido possível.

A associação a princípios religiosos, que se verifica na emergência das condições que propiciaram o surgimento do capitalismo não significa que, nos séculos seguintes, o processo histórico se tenha notabilizado por afiançar princípios morais. Mais uma vez, a criação humana irá revelar-se limitada e conducente a resultados nem sempre esperados e, muito menos, desejados.

 2 – A nova valoração ocidental: aspectos históricos.

 A mudança social decorre, basicamente, de alterações na valoração moral. Estas, por sua vez, ocorrem, primeiro, no plano religioso, do qual depende, em última instância, a constituição da moralidade básica das sociedades. A discussão de caráter religioso surgiu no século XVI, em pleno Renascimento, tomando um rumo imprevisível, em seu nascedouro. Acabou provocando uma cisão irreversível na Igreja Católica. E, sem que pudesse ter sido prevista pelos personagens que a desencadearam, produziu impacto profundamente transformador, num aspecto essencial: a atividade dedicada à produção de bens e serviços.

Na Idade Média, tal atividade estava vedada a grupos sociais importantes. Os integrantes da nobreza não podiam dedicar-se ao comércio ou à gestão empresarial, em geral, sob pena de perda das prerrogativas que os distinguiam (foro especial; virtual monopólio de cargos importantes na administração pública e toda sorte de privilégios). A regra aplicava-se, também, ao clero, embora este pudesse burlá-la, na medida em que a Igreja, em muitos países, tornara-se grande proprietária de terras. Afora a proibição indicada, havia uma condenação declarada da riqueza, em que pese o fato de que, como instituição, a Igreja não se furtasse a ostentá-la.

A Reforma Protestante modificou, radicalmente, essa situação, ali onde acabou sendo adotada. Não se trata de um processo linear. Ao contrário, corresponde a algo complexo que se estendeu por alguns séculos na Europa. Para entende-lo cumpre lembrar estas etapas:

- A divergência, no seio da Igreja Romana, tinha caráter estritamente religioso.

- A divergência assumiu um caráter político, na medida em que se revelou elemento catalisador do inconformismo de diversas monarquias e principados, com a estrita subordinação ao Papado, a que estavam sujeitos.

- A liderança maior do continente, concretizada no Imperador do Sacro Império, Carlos V (1500-1558), teve que fazer concessões, a fim de manter a região unida no enfrentamento à invasão, em grande escala, dos muçulmanos, agora representados pelo Império Otomano.

- Contida a invasão muçulmana nos Bálcãs, a sobrevivência do luteranismo, na Alemanha, foi decidida militarmente. Os principados alemães que ocupavam aproximadamente o território da parte oriental haviam se organizado numa Liga, tendo legalizado a Igreja Luterana e proibido o culto católico. Reconhecendo a impossibilidade de vencer o exército da Liga, Carlos V (1550-1558) assinou a Paz de Augsburg (1555) introduzindo o princípio segundo o qual os habitantes de determinada área territorial eram obrigados a seguir a religião do monarca (cuius régio, eius religio).

Os aspectos antes resumidos serão detalhados nos tópicos a seguir.

 3 - A questão religiosa em debate.

O iniciador da Reforma Protestante foi Martim Lutero (1483-1546). Monge de formação agostiniana, era professor de teologia na Universidade de Wittenberg. Em 1517, aos 34 anos, Lutero elaborou um documento, que passou à história com a denominação de “95 teses sobre as indulgências”. O incidente prende-se ao seguinte: o arcebispado de Magdeburg, ao qual estava subordinado, era exercido por um jovem príncipe de 27 anos, Albrecht von Hohenzollern (1490-1568). Como era de praxe na época, ao assumir aquela função episcopal, devia pagar ao Vaticano uma soma considerada elevada (trinta mil florins). Albrecht levantou esse dinheiro junto à casa bancária Fugger, tendo sido autorizado pelo Papa a promover uma coleta de dinheiro, entre os fiéis, que fosse suficiente: a) para repor o empréstimo; b) para facultar quantia equivalente, a ser encaminhada a Roma, destinando-se à edificação da catedral de São Pedro; e, c) atender às despesas da própria coleta.

Esta ficou a cargo de um frade dominicano chamado Johan Tetzel (1464-1519), com cerca de 52 anos, que dispunha de uma carruagem, um cavalo, três acompanhantes e um criado. O prazo para levantamento do dinheiro foi fixado em oito anos. Quem colaborasse entregando dinheiro a Tetzel, ganhava uma indulgência, que implicava no perdão dos pecados. O direito canônico facultava tal prerrogativa a um prelado eclesiástico, devidamente autorizado pela autoridade competente, como era o caso. O Arcebispo de Magdeburg, Albert de Hohenzollern (ao qual era subordinado Tetzel), utilizou metade do dinheiro arrecadado por este, para pagar as dívidas acarretadas em decorrência do empréstimo, com o qual obteve a sua nomeação pelo Papa. Dada a magnitude da soma a ser levantada, tratava-se de envolver, na campanha, a todas as pessoas e não apenas aqueles que tivessem sofrido alguma punição. Além disto, a oferta das indulgências acabou sendo concretizada de forma que, na prática, estava-se vendendo, para usar a expressão empregada por Lutero, “garantia da eterna bem-aventurança”. Dizendo-o em linguagem popular: ingresso de entrada na porta do Céu.

As críticas de Lutero ficavam claras nos pontos 27 e 28 das suas “95 teses sobre as indulgências”, cujo texto rezava assim: “27 - Pregam doutrina mundana os que dizem que, tão logo tilintar a moeda lançada na caixa, a alma sairá voando (do purgatório para o céu). 28 - Certo é que, ao tilintar a moeda na caixa, pode aumentar o lucro e a cobiça; a intercessão da Igreja, porém, depende apenas da vontade de Deus”.

O documento de Lutero corresponde a uma peça teológica de extremo rigor. Santo Agostinho (354-430), a quem segue, defendera o livre arbítrio do homem, mas subordinando-o à estrita obediência à Igreja. Sem a intervenção da graça, por esta propiciada, o homem não é capaz de escolher o bem. Assim, foi difundida uma visão pessimista da pessoa humana, que orientou a crítica de Lutero à maneira como estavam sendo vendidas as indulgências. A reação do Papado não foi nada benevolente. Em agosto de 1518, instituiu processo contra Lutero. Numa atitude que, a seu ver, seria conciliatória, o pregador de Wittenberg redigiu documento específico sobre suas relações com o Vaticano, no qual proclamava o seu empenho em prol da unidade. Mas entremeou os seus arrazoados com uma certa altivez, como se pode ver deste trecho: “(...) torna-se evidente, segundo espero, que nada desejo tirar de Roma, como me acusaram meus queridos amigos; se, porém, não tolero alguns hipócritas, creio que só faço o bem e não pretendo morrer de medo diante de meras bolhas d´água (...)”.

A resposta do Vaticano, em 1520, consistiu em lançar uma Bula ameaçando-o de excomunhão. A reação de Lutero equivalia a uma ruptura frontal: a dez de dezembro queima publicamente a Bula. Ainda nesse ano, dirige-se aos príncipes alemães, incitando-os a rebelar-se contra Roma e deixar de pagar-lhe tributos.

 4 - A idéia de predestinação como cerne das novas confissões religiosas.

 O luteranismo estendeu-se, rapidamente, aos principados do Oeste e do Norte da Alemanha, à Prússia, Suécia, Dinamarca e Noruega. Consagrando a livre interpretação da Bíblia, surgiram, naturalmente, diversas vertentes do protestantismo. Entre as mais importantes sobressaí o Calvinismo, formulado por Jean Calvino (1509-1546). Tendo organizado um governo de índole ditatorial, no pequeno Estado representado pela cidade de Genebra, entre 1541 e 1546, valeu-se da circunstância para popularizar sua doutrina. Enquanto o luteranismo ganhou a adesão do Norte da Europa, o calvinismo penetrou na direção do Ocidente, primeiro na Suíça de língua francesa, depois na própria França, na região que depois constituiria a Holanda e, finalmente na Escócia, onde deu nascimento à Igreja Presbiteriana.

Vertente importante adviria do rompimento com o Papado, protagonizado por Henrique VIII da Inglaterra (1491-1547), cujo reinado iniciou-se em 1509. Em consequência desse rompimento, o Parlamento inglês votou, em 1534, uma disposição tornando o Rei chefe da Igreja, que passou a denominar-se Anglicana. A organização efetiva da nova Igreja foi obra de Elisabete I, que reinou de 1538 a 1603. Outra confissão que, igualmente, se destacou, no conjunto, veio a ser o Metodismo, surgido na Inglaterra e que encontraria grande receptividade nos Estados Unidos. Esse fato deu nascedouro a diversas confissões protestantes, que receberam a denominação genérica de dissentes, que popularmente foram denominados de puritanos, na medida em que aspiravam a “purificar” o anglicanismo. Em que pese essa diversidade de confissões, a Inglaterra tornou-se, predominantemente, protestante.

O elemento unificador dessa enorme variedade foi a doutrina da predestinação. Consistia no postulado de que a determinação de quem seria salvo dependia do arbítrio da divindade. Ao adepto da Reforma não restava outra alternativa senão cumprir a lei moral. Essa nova interpretação do texto bíblico, aventada por Lutero, foi amplamente desenvolvida por Calvino. Richard Baxter (1615-1691) e John Wesley (1703-1791), teólogos protestantes ingleses. Eles afirmaram que, aos crentes, cabia trabalhar e enriquecer-se posto que, justamente a condição da riqueza, auferida a partir do trabalho produtivo, iria testa-los na capacidade de resistir ao ócio, violação frontal dos princípios que deveriam nortear a vida do verdadeiro crente.

5 - A hipótese de Weber: a ética do trabalho na tradição protestante.

A hipótese de que se trata diz respeito ao surgimento da ética do trabalho e à presença do puritanismo inglês, no surgimento da empresa capitalista. Essa hipótese foi apresentada por Weber na obra intitulada: A ética protestante e o espírito do capitalismo (1904). Com efeito, sem a abolição das interdições ao acesso à riqueza, bem como sem a exaltação do trabalho, permitindo que todas as classes pudessem exercer o comércio e outras atividades empresariais, não poderia ter surgido a empresa capitalista, outra novidade ocidental. No desenvolvimento de sua tese, Weber afirma que o dogma da Reforma, segundo o qual o eleito de Deus, para a salvação, o fora por desígnio insondável de sua própria vontade, "sem qualquer previsão de fé ou boas obras, ou de perseverança em ambas", deixou os crentes entregues, exclusivamente, a si mesmos, numa "inacreditável solidão eterna".

A esse respeito, Weber escreve: "No que era, para o homem da época da Reforma, a coisa mais importante da vida (sua salvação eterna) ele foi forçado a, sozinho, seguir seu caminho no encontro de um destino que lhe fora designado na eternidade. Ninguém poderia ajudá-lo. Nenhum sacerdote, pois o escolhido, só por seu próprio coração, podia entender a palavra de Deus. Nenhum sacramento, pois embora os sacramentos houvessem sido ordenados por Deus para aumentar sua glória (...), não são meios de obtenção da graça, mas apenas as ajudas exteriores subsidiárias da fé. (...) A completa eliminação da salvação através da Igreja e dos sacramentos (...) era o que constituía a diferença absolutamente decisiva entre o calvinismo e o catolicismo" [Weber, 1981: 72].

BIBLIOGRAFIA

BEUTEL, Albert [2003]. “Luther’s Life”. (Tradução do alemão para o inglês, de Katharina Gustavs). In: Mc KIM, Donald K. (Editor). The Cambridge Companion to Martin Luther. New York: Cambridge University Press, p. 11 seg.

GOMES, Antônio Máspoli de Araújo [2003]. “Origens e imagens do Protestantismo Brasileiro no século XIX numa perspectiva calvinista e weberiana”. Ciências da Religião: História e Sociedade. São Paulo, Ano I, nº 1, pgs. 70-113.

GUIZOT, François [1990]. Historia de la civilización en Europa. 1ª edição, 3ª reimpressão. (Prólogo: “Guizot y la Historia de la civilización en Europa”, de José Ortega y Gasset. Versão espanhola, da edição francesa, de Fernando Vela). Madrid: Alianza Editorial.

IRWIN, C. H. [1947]. Juan Calvino: su vida y su obra. México: Casa Unida de Publicaciones.

JAMES, William [1991]. As variedades da experiência religiosa: um estudo sobre a natureza humana. São Paulo: Cultrix.

MENDONÇA, Antônio Gouvêa [1989]. Um panorama do protestantismo brasileiro. Rio de Janeiro: ISER.

PAIM, Antônio; PROTA, Leonardo; VÉLEZ Rodríguez, Ricardo [2002]. Curso de Ciência Política – Volume II: As criações originais do Ocidente. Londrina: Instituto de Humanidades. [www.institutodehumanidades.com.br]

RIBEIRO, Boanerges, rev. [1981]. Protestantismo e cultura brasileira. Aspectos culturais da implantação do protestantismo no Brasil. São Paulo: Casa Editorial Presbiteriana.

WEBER, Max [1981]. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Pioneira.

WEBER, Max [2011]. Ciência e política: duas vocações. São Paulo: Martin Claret, 2011.

WEBER, Max [1999]. Economia e Sociedade. Brasília: Editora da UnB, 2 volumes.

QUESTÕES

1 - (Escolha a opção válida). A originalidade do Ocidente manifestou-se plenamente:

a) Na época moderna, com a criação do Estado nacional e a sua ulterior reforma democrática.

b) Na época medieval, com a formulação da noção de pessoa e o primado do bem comum.

c) Na época antiga, com o surgimento do Cristianismo e dos seus ideais transcendentes.

2 – (Escolha a opção válida). O Imperador Carlos V assinou a Paz de Augsburg em 1555. Esse documento consagrou a validade do seguinte princípio:

a) Em matéria de política, a norma que vale é: “os fins justificam os meios”.

b) Os habitantes de determinado território devem seguir a religião do monarca.

c) Deve haver total independência entre religião e política.

3 – (Escolha a opção válida). Qual foi a tese defendida por Max Weber na sua obra: A ética protestante e o espírito do capitalismo?

a) O homem encontra, no sucesso da empresa econômica, uma prova de que foi escolhido por Deus para a salvação eterna.

b) Somente a vida religiosa e a prática dos sacramentos da Igreja garantem ao homem a certeza da sua salvação.

c) O homem não pode ter, neste mundo, nenhuma certeza e mesmo nenhum signo indicativo da sua salvação eterna.

GABARITO:

1-a; 2-b; 3-a.