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CURSO DE CIÊNCIA POLÍTICA - Leitura 12ª - TOTALITARISMO E AUTORITARISMO.

CURSO DE CIÊNCIA POLÍTICA - Leitura 12ª - TOTALITARISMO E AUTORITARISMO.

LENIN (1870-1924) FALA AO SOVIET DE PETROGRADO EM 1917

Ivã IV da Rússia, "O Terrível" (1530-1584), precursor do Autoritarismo e do Totalitarismo grão russo, uma das variantes do "Despotismo Oriental"

Este texto integra a obra, organizada por Ricardo Vélez Rodríguez e publicada pelo Instituto de Humanidades, em 2017, para a Faculdade Arthur Thomas, de Londrina, com o título de: Curso de Ciência Política - Leituras.

O risco do totalitarismo e do autoritarismo não foi banido da vida política brasileira. É um risco que está presente, na medida em que perduram, na nossa cultura, hábitos e convicções que reproduzem esse universo. Esta exposição tem como objetivo identificar essas variáveis, a fim de estimular a busca de atitudes e soluções que se lhes contraponham, visando à consolidação da democracia no Brasil.

Serão desenvolvidos dois pontos: 1 - Os fenômenos totalitário e autoritário. 2 - Formas históricas autoritárias e totalitárias nos séculos XX e XXI.

1 - Os fenômenos totalitário e autoritário.

A fim de realizar uma exposição sumária das variáveis totalitária e autoritária no mundo contemporâneo, torna-se necessário desenvolver os seguintes itens: A - gênese: antecedentes culturais e moldura histórica; B - similitude e aspectos diferenciais; C - traços comuns aos totalitarismos.

A - Gênese: antecedentes culturais e moldura histórica.- A história é pródiga em exemplos de regimes de força. Consoante Karl Wittfogel (1896-1988), na sua obra intitulada: Despotismo Oriental, o modelo mais antigo de “Estado mais forte do que a sociedade” surgiu ao ensejo dos regimes hidrâulicos, no Oriente e nos regimes ensejados por antigas tradições estatizantes, na América pre-colombiana inca e asteca. Na Europa Ocidental, os modelos estatizantes foram precedidos pela República platônica e pelo Direito Justiniano, um de cujos princípios-chave era: “non est civitas propter civem, sed cives propter civitatem” (“não está o governo em função do cidadão, mas o cidadão em função do governo”). Na modernidade, encontramos a linhagem do estatismo, presente nas origens do Estado moderno absolutista, na filosofia política de Thomas Hobbes (1588-1679).

De outro lado, são antigas, também, as raízes do pensamento que se contrapõe às formas estatizantes de dominação. A remota origem desta tendência encontra-se em Aristóteles (384 a.C.- 322 a.C.), que contrapõe, ao modelo platônico, de caráter autocrático e centralizador, o modelo da “Politeia”, ou seja, da cidade organizada de acordo aos interesses dos cidadãos, visando constituir uma grande “classe média”, cujos interesses devem ser representados pelo Estado. Marsílio de Pádua (1275-1342) é o portador, na Idade Média, dessa tendência, que deságua na primeira formulação da “soberania popular”, no Defensor Pacis (1324).

Com o surgimento do messianismo político [cf. Talmon, 1969] no pensamento de Rousseau (1712-1778) e Saint-Simon (1760-1825) se consolida a versão moderna do absolutismo. Essa será a base sobre a qual, no século XX, emerge o modelo do totalitarismo.

B - Similitude e aspectos diferenciais.- A semelhança que se dá entre o autoritarismo e o totalitarismo é gradual: o totalitarismo realiza, em grau extremado, o que o autoritarismo consegue apenas parcialmente. O centripetismo da vida política, econômica e cultural da sociedade ao redor do Estado, dá-se de forma limitada nos governos autoritários. Nos totalitários, a realidade do Estado mais forte do que a sociedade é esmagadora.

C - Traços comuns aos totalitarismos.- No sentir de Hannah Arendt e J. L. Talmon, os traços comuns aos totalitarismos são os seguintes: a - Busca da identidade completa entre o Estado, de um lado, e a sociedade, a economia e a cultura, de outro; b - unicidade partidária e sindical, com monopólio da vida política pelo partido único e das atividades profissionais pelo sindicato único submetido ao partido; c - império de uma única ideologia, que passa a inspirar a visão de mundo de todos os indivíduos; d - domínio da propaganda, mediante o controle, pelo Estado, dos mass media; e - controle absoluto da polícia política sobre todas as atividades da sociedade e das pessoas; f - geração de um clima de terror permanente por parte do Estado, como instrumento para destruir a solidariedade social e a capacidade de reagir dos indivíduos; g - surgimento, nas pessoas assim submetidas, do sentimento da solidão total. Ninguém melhor do que Mussolini (1883-1945) exprimiu a essência do totalitarismo, quando afirmou: “Tudo dentro do Estado, nada fora do Estado” [cf. Arendt, 1979; Talmon, 1956].

2 - Formas históricas autoritárias e totalitárias nos séculos XX e XXI.

Nesta parte, serão desenvolvidos cinco itens: A - O fascismo e o nazismo; B- o justicialismo e o estado-novismo; C - o socialismo de modelo soviético e suas variações; D – o socialismo totalitário chinês e as suas variações; E - o fundamentalismo islâmico.

A – O modelo totalitário do fascismo e do nazismo.- De acordo com estudiosos do nacional-socialismo [cf. Lipset, 1963; Garmendia, 1986, os componentes fundamentais desta doutrina política são os seguintes: a - exacerbado nacionalismo que ancora numa ideologia comunitária com base em critérios étnicos e racistas; b - xenofobia que evoluiu até um anti-semitismo biológico radical (com base no qual se efetivou o holocausto de milhões de judeus na Segunda Guerra Mundial); c - idolatria do Estado onipotente, segundo um enfoque absolutista e centralizador; d - socialismo nacionalista, que procurava unir o romantismo social ao estatismo; e - culto à personalidade e messianismo carismático, centrados ao redor da figura do III Reich, na Alemanha nazista; f - monopólio da política, por parte do partido único controlado, com mão de ferro, pelo Führer; g - instauração do terror estatal, mediante a temida polícia secreta do regime (os SS); h - organização de uma poderosa máquina de propaganda orientada a efetivar o controle do regime sobre a economia e sobre a consciência dos cidadãos; i - organização de uma poderosa máquina de guerra, que garantiu os ideais expansionistas de Adolph Hitler (1889-1945).

Já em relação ao fascismo, os estudiosos destacam as seguintes caraterísticas: a - composição do Estado como algo absoluto, perante o qual os indivíduos ou os grupos sociais são relativos, uma vez que só têm sentido se atrelados a ele; b - caráter autocrático do poder do Estado concentrado no chefe, segundo Benito Mussolini (1883-1945), de quem emanava, como frisava ele próprio, “uma vontade dirigida para o poder e o governo: a tradição romana revela-se aqui no ideal da força em ação (...). Para o fascismo, o crescimento do império era uma manifestação de vitalidade, e o oposto, um sinal de decadência” [apud Cotter, 1986: 464]; c - subordinação da vida política de toda a sociedade ao Estado, mediante o Partido único; d - monopólio estatal dos meios militares e das comunicações; e - implantação do terror estatal, mediante grupos policiais e para-militares (“camisas negras”); f - ativismo contrário à idéia democrática e à defesa da liberdade perante o Estado; g - estatismo de inspiração social, que pretendia, mediante a presença tutora do Estado, equacionar a problemática da justiça, selecionando o que de real valor houvesse, nesse ponto, “nas doutrinas liberal, social e democrata” [Mussolini, apud Cotter, 1986: 463]; h - organização corporativa das forças econômicas (empresários e trabalhadores).

O comunismo, o nacional-socialismo e o fascismo revelaram-se como três modalidades semelhantes de totalitarismo, que lutaram na Segunda Guerra Mundial e que semearam a morte e a destruição ao longo da Europa e pelo mundo afora.

B - O justicialismo e o “estado-novismo”.- As caraterísticas doutrinárias fundamentais do justicialismo argentino, base ideológica do peronismo, são as seguintes [cf. Crassweller, 1987]: a - defesa da justiça social sem abolição das relações capitalistas de produção; b - defesa do intervencionismo do Estado na economia, a fim de regular o mercado e subordinar a propriedade ao cumprimento da sua função social; c - organização sindical das forças produtivas (empresários e trabalhadores), de forma tal que possam se entender de igual para igual, numa relação a ser arbitrada pelo Estado. Essa organização corporativa visava a aplacar a luta entre as classes sociais; d - nacionalismo econômico endereçado a um projeto de desenvolvimento capitalista autônomo da indústria nacional, com apoio ostensivo do Estado; e - terceiro-mundismo nas relações internacionais, com denúncia do imperialismo das nações capitalistas avançadas e uma atitude cautelosa face à dominação soviética; f - populismo, que se caracteriza pela feição poli-classista do peronismo e pelo paternalismo do chefe justicialista, face aos “descamisados” e aos sindicatos operários, amplamente manipulados pelo regime.

As caraterísticas doutrinárias do “estado-novismo” de Vargas são as seguintes[cf. Vélez, 2010]: a - integração do proletariado à sociedade, mediante a legislação trabalhista que tornava os sindicatos dos trabalhadores e empresários, simples caudatários do Estado paternalista; b - defesa do intervencionismo do Estado como empresário na economia; neste ponto, o getulismo deu continuidade à velha tendência pombalina, consolidada em Portugal na segunda metade do século XVIII. O getulismo alicerçou-se doutrinariamente, outrossim, na versão política do positivismo brasileiro, sendo a ideologia castilhista a fonte imediata de inspiração do ideal de “ditadura científica” que o Estado Novo pretendeu encarnar; c - organização corporativa das forças produtivas, tendo sido adotado o modelo do sindicato único para trabalhadores e empresários. Os sindicatos terminaram sendo controlados pelo Executivo forte, no que passou a ser chamado de “peleguismo”. Instrumento importante dessa política “soft” foram o Ministério do Trabalho e a Justiça do Trabalho, que passaram a equacionar, a partir do Estado e com critérios técnicos, os conflitos trabalhistas, de forma a impedir as reivindicações políticas e a luta revolucionária; d - nacionalismo econômico centrado ao redor do Estado dirigido por um Executivo forte, auxiliado pelos conselhos técnicos integrados à administração. O autoritarismo getuliano tolerava, como no caso do peronismo, o sistema capitalista, acomodado, evidentemente, à dinâmica do Estado patrimonial, ou seja, a uma forte tutela da iniciativa privada pelo governo; e - pragmatismo nas relações internacionais (de fato, Getúlio acenou com simpatia para os países do Eixo, ao longo da década de 30, mas quando pressentiu a iminente derrota do nazismo e do fascismo, não duvidou em se entender com os Aliados). Na fase posterior ao estado-novismo, o getulismo evoluiu em direção ao terceiro-mundismo e às consequentes denúncias anti-imperialistas, como revela a Carta-testamento do líder são-borjense; f - populismo, que se caracterizava pela existência de partidos políticos controlados pelo governo (PTB e PSD) e dirigidos à cooptação política dos trabalhadores, dos empresários e outras lideranças da sociedade civil; g - forte aparelho propagandista e repressor, centrado na DIP e na polícia política; h - feição conservadora, expressa nas máximas getulianas “deixar como está para ver como é que fica” e “não fazer inimigos que não se possa converter em amigos”; i - forte preconceito contra a democracia representativa, alcunhada, depreciativamente, pelo getulismo de “metafísica liberal”; j - utilização, pelo getulismo, da retórica liberal para angariar apoio popular nos momentos de crise, sem no entanto aderir, praticamente, aos ideais democráticos do liberalismo.

C - O socialismo totalitário russo e as suas variações.- No decorrer do século XX, as mais completas materializações do despotismo asiático foram, sem sombra de dúvida, a Rússia e a China, as duas maiores expressões do Estado Patrimonial. A temida “restauração asiática” foi, para Wittfogel, o traço marcante que encarnou o totalitarismo russo, e que esvaziou de qualquer conteúdo democrático o regime instaurado a partir da Revolução de 1917. A respeito, o sociólogo alemão escreve:

“Eis o terrível segredo da revolução que Lenin concebeu e realizou. Para inúmeros intelectuais e operários em muitos países, essa revolução era um chamado à pregação do Socialismo na Rússia: um chamado a lutar por esse Socialismo e, se fosse necessário, a morrer por ele. O que acontece quando essa revolução perde a sua bandeira, o seu poder unificador? O que acontece se se comprova, segundo as próprias palavras de Lenin (1870-1924), que essa revolução conduz, não ao Socialismo, mas a uma nova forma de despotismo oriental? Quem, com exceção dos privilegiados, aceitaria morrer pela restauração asiática?” [Wittfogel, 1977: Introdução, p. IV].

Poderíamos arrolar como características do socialismo russo as seguintes [cf. Boer, 1982]: a - hipertrofia do Estado em relação à sociedade, na trilha do velho despotismo mongólico e do absolutismo czarista, seu herdeiro; b - controle da máquina do Estado pela nomenklatura, ou cúpula dirigente do Partido Comunista da União Soviética. Essa nova classe, substrato político do “socialismo real”, “constitui o desmentido histórico da utopia marxista da sociedade sem classes” [Boer, 1982: 34]; c - fé messiânica no papel salvífico do comunismo soviético [Boer, 1982: 17]. Essa fé ancora no velho messianismo político russo, na versão do ideólogo de Ivã IV o Terrível (1530-1584), Filofei de Pskov (1465-1542), segundo o qual Moscou é a Terceira Roma, chamada a unificar e salvar a Humanidade [cf. Voegelin, 1981: 85 seg.]; d - igualitarismo, que apregoa o fim da luta de classes e da diversificação da sociedade, fato que contrasta com o reconhecimento, pela própria ideologia soviética, da existência de três “estratos”: operariado, campesinato e intelligentsia [cf. Trotsky, 1977]; e - abolição da propriedade privada em todas as suas manifestações, especialmente dos meios de produção. Concentração de todas as propriedades nas mãos do Estado; f - culto à personalidade e bonapartismo: tudo gira ao redor do líder revolucionário (Lenin) ou dos secretários todo-poderosos do Partido: Stalin (1878-1953), Kruschev (1894-1971), Breshnev (1906-1982), etc., cuja figura foi bem definida por Lenin como “um poder não limitado por leis” [Lenin, 2017]; g - terror policial exercido pela temida KGB e cuja expressão foram os Gulags, destino forçado dos dissidentes; h - regime de propaganda maciça, graças ao controle do Estado soviético sobre os meios de informação; i - expansionismo, graças à fabulosa máquina de guerra fabricada pela União Soviética; j - cientificismo, que considera conforme à razão científica a organização e funcionamento do sistema soviético; k - regime de partido único e de sindicato único, este submetido ao primeiro.

Com a queda do Império Soviético (1989) mudaram os atores, mas a realidade do Estado patrimonial russo, com características totalitárias, se manteve, incorporando o desenvolvimento do “capitalismo de Estado”, que entregou as falidas empresas estatais aos particulares que, no entanto, passaram a desenvolver um regime oligárquico de novos ricos, muitos deles antigos funcionários soviéticos. Os serviços de segurança e informações terminaram, sob os novos czares, sendo guindados ao ápice do poder, com Vladimir Putin (1952) que, hoje, se prepara para assumir uma dominação praticamente total e incontestável, em decorrência do plebiscito que, no início de julho de 2020, o sagrou como líder inconteste, até 2036.

D – O socialismo totalitário chinês e as suas variações. Perspectivas que se abrem, para a China, nesta quadra do seu desenvolvimento histórico:

a – Mudança de rumo, não abandono do Patrimonialismo e retomada, sob Xi Jinping (1953), atualmente, da ortodoxia comunista. A China, com certeza, está longe de sair da tradição patrimonialista que já tinha sido apontada, nela, por Weber (1864-1920) e Wittfogel. Continuará o poder a ter “donos”. O abandono temporário do comunismo maoísta, no final do século XX, não significou, de forma nenhuma, um rompimento com a tendência à privatização do poder por parte de uma elite ou de uma casta. O Mandarinato chinês se modernizou. Tornou-se o gestor de uma nova Sociedade Limitada capitalista. O capitalismo chinês não é uma economia aberta às sociedades anônimas. É um modelo de capitalismo dirigido desde o Estado. Ou seja, é um modelo capitalista administrado pelo Estado Patrimonial. Os proprietários da Sociedade Limitada são os dirigentes do Partido Comunista, hoje ferreamente controlados pelo “novo Imperador, Xi-Jinping. Acionistas minoritários são aceitos. Mas não podemos deixar de ter dúvidas quanto ao alcance do poder deles em face dos interesses do Mandarinato. Quem não se ajustar – como aconteceu com a Google – tem de arrumar as malas e ir embora.

b – Inserção da prática democrática no contexto do Patrimonialismo de tipo estamental-confuciano. A China pós Mao mudou a base cultural da dominação patrimonialista. O antigo comunismo foi trocado por uma versão afinada com a secular tradição confuciana. Se vivo fosse, Napoleão Bonaparte (1769-1821) diria: “arranhai um chinês, encontrareis um confuciano”. Lembremos que o grande general já tinha dito: “arranhai um russo, encontrareis um tártaro”. Ora, o Mandarinato chinês se reciclou, deixou de vestir trajes de militante camponês para aderir ao terno e gravata, engavetou Marx e desengavetou Confúcio. O Mandarinato, que é o estamento dominante do poder, professa essa milenar religião da disciplina, do trabalho, do comércio, do capitalismo à la chinesa. Professa e fortalece a crença de uma “democracia dos melhores” nas várias instâncias da administração. “Democracia dos melhores” que consiste em eleger, unicamente, aqueles candidatos mais capazes, que se afinem, também, com o conceito oficial de “Mundo Murado”.

Assim como em algumas regiões surgiram as áreas econômicas especiais, também o governo de Pequim estimulou, há algumas décadas, uma experiência de democracia à la ocidental no remoto município de Pingchang, sob a orientação de um dos intelectuais do Partido Comunista mais preparado em matéria de inovações, Yu Keping (1959), diretor do Centro de Inovações do governo. No entanto, esta é uma experiência que mais parece, como diríamos no Brasil, “para inglês ver”, ao não ultrapassar os limites estreitos de um remoto município do interior; experiência que, se apresentar riscos, pode muito bem ser suspensa, de forma instantânea, pelo governo central.

Os chineses cultivam ousadas iniciativas no terreno da cultura, hoje, por exemplo, investindo pesadamente em Hollywood, de forma a explorar as “contradições do Ocidente” em torno à impossibilidade da prática da democracia liberal. Por baixo de todo esse movimento político e cultural, Francis Fukuyama (1952) destaca que a China vive, sob o viés político, um processo semelhante ao acontecido na Rússia. Para esse cientista político, frisa Antônio Paim, “(...) se o sistema político chinês não levasse ao governo representativo, posteriormente democratizado, daria por equivocada a sua teoria” [Paim, 2019a: 15].

A expectativa é de que a classe média chinesa aumente de forma considerável nos próximos anos, chegando, em 2025 a, aproximadamente, 75% dos 1,5 bilhão de habitantes do gigante asiático. Com essa projeção, teríamos uma significativa participação desse contingente populacional, com capacidade de consumo, na sociedade chinesa. Converter-se-ia a China, assim, numa das maiores democracias representativas do mundo [cf. Seciuk, 2019]. A respeito do crescimento da classe média na China, frisa Cristina Seciuk: “Atualmente, 60% dos chineses vivem nas cidades e, deles, 40% têm renda anual entre US$ 10 mil e 13 mil, mas essa faixa ainda deve crescer consideravelmente num futuro próximo. Segundo Larissa Waccholz (Sócia da Wallya – Butique de Negócios e Investimentos, que assessora investidores chineses) a projeção é que, por volta de 2025, a população urbana chinesa na classe média passe desses 40% para 75%, implementando, muito rapidamente, o viés de consumo que a gente já percebe" [Seciuk. 2019].

A pergunta que, naturalmente, surge é se os novos Mandarins e o seu Imperador conseguirão manter, sob férula de ferro, a disciplina total nesse imenso país, com a maior população do planeta, e com uma crescente classe média? Tudo depende de que se consolidem a classe média e o modelo de governo representativo. De momento, sabemos que essa representação é mais formal e não abarca o exercício pleno das liberdades individuais. O que se passa em Hong-Kong e as ameaças de Pequim em face da província dissidente, Taiwan, revelam que uma democracia representativa, à maneira ocidental, é difícil de se consolidar na China.

c - Reforço ao Patrimonialismo de regimes ao redor do mundo, na Ásia, na África, no Oriente Médio e na América Latina. A forma pragmática em que a nova liderança chinesa está se relacionando com os diferentes países nessas regiões é muito especial. Não questiona direitos humanos nem liberdades fundamentais (como fez, por exemplo, com o ditador do Sudão, com os generais da Birmânia, com os irmãos Castro em Cuba ou com o líder da “Revolução Bolivariana” em Caracas). Interessa a Pequim que as relações econômicas andem bem. De forma indireta, via pragmatismo comercial, os chineses terminam reforçando os regimes de patrimonialismo tribal na África, de estalinismo atômico na Coréia do Norte, de patrimonialismo macunaímico e populista na América Latina, de terrorismo fundamentalista dos Aiatolás, no Irã. Os Mandarins vêm com bons olhos os problemas que esses países causam à diplomacia européia e norte-americana. É uma forma indireta de ver reforçado o seu poder no cenário internacional. Só não toleram, e aniquilam, qualquer intento de patrimonialismo islâmico no seu próprio território, como fizeram com os revoltosos da província de Xianjiang em 2007 e 2008.

d – Reforço à presença militar chinesa em potências emergentes e em países do terceiro mundo. Essa estratégia inclui venda de armas e visitas de oficiais latino-americanos à China. A propósito, o estudioso e diplomata do Timor Leste, Loro Horta (1977) informava: “Desde 2000, a China emprega uma estratégia diplomática paciente e de amplo escopo em relação à América Latina. A nova ofensiva sedutora do Exército de Libertação Popular (ELP) vem se consolidando de forma gradual, numa posição segura. As iniciativas, além da venda de armas, permitem, cada vez mais, ao ELP, criar uma base para a cooperação militar de longo prazo, num futuro não muito distante” [Horta, 2009: 30]. Nos últimos anos, formaram-se em academias militares chinesas mais de 100 oficiais representantes das três forças de 12 países latino-americanos. Esses números tendem a aumentar e a tornar, cada vez mais forte, a presença militar chinesa no subcontinente latino-americano. É o fenômeno que os estudiosos chamam de “diplomacia militar da China”.

e – Modelo estatal de financiamento da pesquisa. Aqui radica um dos gargalos para o regime de Pequim alcançar os Estados Unidos. No sistema americano, o próprio Estado estimula as indústrias privadas a realizarem trabalhos de pesquisa nas áreas mais sensíveis para o desenvolvimento tecnológico do país. Mas a pesquisa é financiada, apenas em parte, pelo setor público. Compete à iniciativa privada desenvolver os trabalhos, a fim de manter a competitividade em face das exigências do Estado. A iniciativa privada, estimulada, arca com o ônus da pesquisa. Na China, o financiamento é inteiramente estatal. Conseguirá o regime de Pequim desenvolver o volume de pesquisas em alta tecnologia de que o país precisa, para superar os seus competidores ocidentais, notadamente os Estados Unidos? Conseguirão os chineses criar e manter, por longo tempo, um regime adequado de liberdade intelectual, sem o qual as pesquisas não avançam? Por enquanto, em áreas muito sensíveis, ainda eles dependem da tecnologia ocidental.

f - Uma pedra no caminho chinês. O episódio de Wuhan, de dezembro de 2019, constitui, sem dúvida, a pedra no sapato do regime chinês. A eclosão e expansão, em questão de semanas, pelo mundo afora, do perigoso vírus Covid-19, parece ter se originado de uma pesquisa secreta do governo chinês com vírus letais, que escapou ao controle, pelo fato de não terem sido observados os rígidos procedimentos previstos para tal empreendimento. Inicialmente, o médico que chamou a atenção para o surgimento, em humanos, de tal vírus, e que terminou se convertendo numa das primeiras vítimas, doutor Li-Wenliang (1986-2020) foi punido e calado pelas autoridades comunistas locais. Quando o acontecimento transbordou e se tornou notícia internacional, o governo de Pequim interveio, rapidamente, e construiu a narrativa que coloca o próprio sistema como o primeiro a controlar o vírus e oferecer uma solução eficaz. Um hospital de grande porte foi construído em questão de dias. A narrativa oficial está sendo questionada pela imprensa internacional, e futuros estudos mostrarão o grau de responsabilidade do governo comunista. Wuhan, sem dúvida, poderá passar à história como a Chernobyl (1986) dos chineses. Em homenagem póstuma feita ao Dr. Li-Wenliang, em Hong-Kong, um ativista dizia: “Estamos tristes porque ele foi o primeiro a informar sobre o novo vírus. Tentou dizer a verdade e foi repreendido. Depois disso, toda a informação foi abafada”.

E - O fundamentalismo islâmico [cf. Jomier, 1993]. Pode ser caracterizado através dos seguintes itens: a - união estreita entre religião e política, desde a época do fundador da Religião Islâmica, Maomé, no século VII; b - divisão do Islamismo em duas grandes vertentes: sunitas (moderados), que representam hoje 90% do mundo islâmico e que defendem a natural evolução histórica das suas lideranças políticas e xiitas (radicais), que representam hoje 10% dos islâmicos; c - intolerância com quem professa outras religiões ou credos políticos. Essa intolerância varia de grau, indo dos sunitas (menos intolerantes) até os xiitas (radicais), que levam a extremos terroristas o conceito mais largo, e originariamente moral, de jihad (guerra santa); d - autoritarismo como forma geralmente aceita de organização do poder político, que oscila entre o modelo ditatorial (de Muammar Kadhafi (1942-2011), Saddam Hussein (1937-2006) ou dos Mulahs iranianos, passando por monarquias familiares (como as que imperam nos Emirados árabes, na Jordânia ou na Arábia Saudita) e indo até formas republicanas mais ou menos autocráticas (como no Egito ou na Turquia, respectivamente); e - expansionismo, no sentido de que o Islamismo é considerado, pelos seus seguidores, como uma religião de missão, que visa a conquistar, espiritual e políticamente, o mundo, mediante a implantação do Alcorão como Constituição universal; f - reação fundamentalista a partir dos anos 70, decorrente de vários fatores: derrota do mundo árabe na Guerra dos Seis Dias (1967); decepção diante da política de socialismo árabe de Abd-en-Nasser (1918-1970), bem como diante da sua aliança com os países comunistas; excessiva ocidentalização de regimes como o do Xá do Irã, crise do petróleo, Guerra do Golfo e derrota de Saddam Hussein; desconhecimento da vitória dos fundamentalistas na Argélia, nas eleições de 1993; crescimento da onda anti-islâmica em países como a França e a Alemanha; guerra de “limpeza étnica” dos sérvios contra os muçulmanos na ex-Yugoslávia, etc. A convicção generalizada é a de que os islâmicos estão sendo vencidos por não terem posto em prática, com suficiente devoção, o Alcorão; g - fundação, nos anos 60 e 70, dos grandes organismos muçulmanos internacionais, com as suas reuniões periódicas; h - criação de organismos muçulmanos não governamentais (como os “Irmãos Muçulmanos”) e de partidos radicais (como o Hezbolah ou Partido de Deus), que visam a manter viva a pureza da fé islâmica e a defender os interesses das nações nela inspiradas, face ao mundo ocidental. Não faltam mártires e profetas para essas iniciativas, como o egípcio Sayyid Qotb (1906-1966), como o escritor Abul Ala al-Mawdûdi (1903-1979) e o próprio Aiatolá Ruola Khomeini (1902-1989).

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WEBER, Max [1944]. Economía y Sociedad. 1ª edição em espanhol. (Tradução de J. Medina Echavarría et alii). México: Fondo de Cultura Económica, 4 volumes.

WITTFOGEL, Karl [1977]. Le despotisme oriental. (Tradução ao francês, do original inglês, a cargo de Micheline Puteau). Paris: Minuit.

QUESTÕES PARA RESPONDER

1 – (Escolha a opção válida). A semelhança que se dá entre autoritarismo e totalitarismo é:

a) Gradual.

b) Nenhuma.

c) Total.

2 – (Escolha a opção válida). Os seguintes traços, entre outros, são comuns aos totalitarismos:

a) Busca da identidade parcial entre o Estado e a Sociedade e controle relativo da polícia política sobre as atividades da Sociedade e as pessoas.

b) Unicidade partidária e sindical (com monopólio da vida política pelo partido único) e domínio da propaganda (mediante o controle dos mass media pelo Estado).

c) Pluralidade partidária e sindical e o surgimento, nas pessoas, do sentimento da solidão.

3 – (Escolha a opção válida). Uma das características do socialismo de modelo soviético foi a seguinte:

a) Hipertrofia do Estado em relação à sociedade, na trilha do velho despotismo mongólico e do absolutismo czarista, seu herdeiro.

b) Convívio do Cristianismo Ortodoxo com o partido comunista, como se deu a aceitação da Igreja Católica pelo partido comunista cubano.

c) Concentração de todas as propriedades urbanas nas mãos do Estado, deixando uma pequena liberdade aos produtores rurais.

GABARITO

1-a; 2-b; 3-a.